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Psic: revista da Vetor Editora

versão impressa ISSN 1676-7314

Psic v.6 n.1 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Abuso sexual na infância: um estudo de validade de instrumentos projetivos

 

Child sexual abuse: a study for validation of projetive instruments

 

Abuso sexual en la infancia: un estudio de validez de instrumentos proyectivos

 

 

Ana Rita da FonsecaI1; Cláudio Garcia CapitãoII2

I Universitário Salesiano de São Paulo
II Universidade São Francisco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho teve como objetivo verificar se os instrumentos Desenho da Figura Humana e Teste de Apercepção Infantil – Animal são sensíveis à identificação do abuso sexual, se eles conseguem diferenciar o grupo de crianças que sofreram abuso sexual do grupo de crianças que não sofreram. Participaram do estudo 30 crianças de ambos os sexos, com idade de 6 a 10 anos, divididas em dois grupos distintos. Um grupo de 15 crianças que apresentavam histórico de abuso sexual e outro de 15 crianças que não. O DFH foi aplicado e avaliado segundo o sistema de avaliação de Koppitz, e o CAT-A foi aplicado de acordo com as instruções de Bellak. Os resultados mostraram que os dois instrumentos foram sensíveis e conseguiram discriminar o grupo de pesquisa do outro grupo e “detectar” situações de abuso sexual no grupo de pesquisa.

Palavras-chave: Abuso sexual, Avaliação psicológica, Criança, Desenho da Figura Humana, Teste de Apercepção Infantil.


ABSTRACT

The present work aimed to verify if the instruments the Human Picture Drawing and the Children’s Perception Test are sensitive to identify the sexual abuse. Confirming the possibility of those tests to distinguish the sexually abused group from the one that did not was investigated. 30 children, male and female, aged from 6 to 10 years, being one group of 15 children with historical of child abuse and other 15 children who did not. The Human Picture Drawing was applied and assessed according to Koppitz evaluation system and the Children’s Percepction Test according to Bellak instructions. The results confirmed that both instruments were valuable to identify sexual abuse and discriminated the sexual abused group from the other group, distinguishing situations of sexual abuse.

Keywords: Sexual Abuse, Psychology Evaluation, Child, Human Picture Drawing, Children’s Perception Test.


RESUMEN

Este trabajo ha tenido como objetivo verificar se los instrumentos Desenho da Figura Humana y Teste de Apercepção Infantil - Animal son sensibles para la identificación del abuso sexual, se ellos consiguen distinguir el grupo de niños que ha sufrido abuso sexual del grupo de niños que no han sufrido. Han participado del estudio 30 niños, varones y mujeres, con edades de 6 a 10 años, separados en dos grupos. Un grupo de 15 niños que tenian histórico de abuso sexual y otro de 15 niño suq e no tenian tal histórico. El DFH ha sido aplicado y evaluado siguiendo el sistema de evaluación de Koppitz, y el CAT-A ha sido aplicado de acuerdo con las instrucciones de Bellak. Los resultados han mostrado que los dos instrumentos han sido sensibles y han conseguido distinguir el grupo de investigación del otro grupo y "detectar" situaciones de abuso sexual en el grupo de investigación.

Palabras clave: Abuso sexual, Evaluación psicológica, Niño, Desenho da Figura Humana, Teste de Apercepção Infantil.


 

 

O abuso sexual de forma geral, tanto com criança quanto com adulto, pode designar qualquer relacionamento interpessoal no qual o ato sexual é realizado sem o consentimento do outro, podendo ocorrer pelo uso da violência física e/ou psicológica. Esse ato caracteriza um desrespeito ao ser humano, pois esse não pode manifestar sua vontade e mesmo que a manifeste, essa não é considerada (Cohen & Figaro, 1996). O abuso sexual, no que se refere à criança, de acordo com vários autores, corresponde a atos impostos por um adulto, que explora seu poder sobre ela, a fim de obter satisfação sexual sob diversas formas (Azevedo & Guerra 1989; Farinatti, Biazus & Leite, 1993; Furniss, 1993; Gabel, 1997; Koller, 1999; Saffioti, 1989).

Segundo Vitiello (1989) é muito difícil estabelecer a freqüência com que ocorre a vitimização sexual, devido ao silêncio que se estabelece em torno do fato. Somente alguns casos chegam ao conhecimento dos profissionais especializados e, freqüentemente, são os considerados graves, de grandes conseqüências para a vítima. Há, ainda, muita resistência, tanto por parte da vítima como de seus familiares, em comunicar o ocorrido, provavelmente por ser uma prática que envolve medo e vergonha e por estarem envolvidos nela os próprios familiares e/ou pessoas conhecidas que têm o apreço da família.

Azevedo e Guerra (1988), por meio de pesquisa realizada no município de São Paulo, verificaram que os casos denunciados aos órgãos públicos são mínimos, e que somente cerca de 6,5% das vítimas são do sexo masculino. Nos casos de incesto, 70% das vezes o autor da vitimização foi o pai biológico.

Para Finkelhor (1979) há, entre as pessoas, uma certa confusão no que se refere a incesto e abuso sexual, pois elas em geral não sabem estabelecer a diferença entre um e outro termo. Tendem a definir uma relação sexual entre uma criança e um adulto estranho à família como sendo incestuosa, talvez pela diferença entre as idades. Isso, no entanto, caracteriza vitimização sexual e não relação incestuosa. O autor considera como incesto somente uma relação sexual entre dois membros da mesma família, cujo casamento seria proibido por lei ou costume. Assinala, portanto, duas formas de relação incestuosa, uma em que não ocorre a vitimização e outra em que ela está presente. Assim sendo, quando existe contato sexual entre familiares da mesma idade, isso é uma forma de relação incestuosa que não é vitimização sexual; quando esse contato sexual se dá entre uma criança e um adulto da mesma família, é incesto e vitimização sexual. Essa última requer um intervalo de idade, pois é a discrepância de idade entre a criança e o adulto agressor que vai definir uma relação de tipo explorador. Nesse sentido, uma relação sexual entre um adulto que não é membro da família e uma criança pode ser definida como vitimização sexual e não como incesto.

O incesto de acordo com Flores e Caminha (1994) é um dos abusos sexuais mais freqüentes e com conseqüências mais danosas para a vítima. Ele pode ser definido operacionalmente como qualquer contato sexual entre pessoas com um grau de parentesco, inclusive padrastos, tutores e qualquer pessoa que assuma o papel dos pais. Assim sendo, relações incestuosas são as relações praticadas entre pessoas que a lei proíbe de se casar e entre pessoas que estejam ligadas por um forte vínculo familiar. A violência sexual doméstica, portanto, é uma violência de natureza incestuosa, pois geralmente os abusadores são membros da família.

Furniss (1993), referindo-se às famílias em que ocorre o abuso sexual, assinala o rompimento das fronteiras intergeracionais em certas áreas do funcionamento familiar. Segundo ela, há inversão de papéis, a criança, dependente estrutural, é colocada no lugar de parceiro pseudo-igual no relacionamento sexual inadequado com o abusador. De acordo com Pinto Jr. (2003), a transgressão da proibição do incesto pode trazer sérias conseqüências para a vítima, implicando a perturbação da noção de identidade e outros distúrbios de personalidade e de adaptação social.

Para Cohen (1997) o incesto não pode ser considerado, simplesmente, como uma relação sexual entre duas pessoas, mas uma relação que nasceu por causa da ausência de uma estrutura familiar que pudesse contê-la. A proibição do incesto, segundo ele, proporciona ao indivíduo uma nova estrutura na dimensão psicológica e social. Psicologicamente o não, estabelecido pela lei do incesto, pode ser considerado como um ordenador mental e emocional, que possibilita ao indivíduo estruturar o superego e desenvolver o ego. Há, com isso, um maior enriquecimento do ego, permitindo, assim, uma noção de limites ao indivíduo, condição sine qua non para a autonomia. Socialmente, a estruturação do superego permite a simbolização da função paterna, possibilitando ao indivíduo o convívio social, ou seja, o conhecimento e aceitação da lei e da cultura; além disso, essa proibição permite ao indivíduo alcançar a exogamia.

Abuso sexual infantil e suas possíveis conseqüências

Para Silva e Hutz (2002), o abuso sexual, de caráter incestuoso ou não, pode ser considerado como uma experiência muito negativa, pois provavelmente vai interferir nos padrões normais de repostas e pressupor uma alta probabilidade de desenvolvimento de algum tipo de desordem. Esses autores citam alguns outros (Farrington, 1995; Heflin & Deblinger, 1999; Jonson-Reid & Barth, 2000; Loeber & Hay, 1997; Misten & Garmezy, 1985, entre outros) que vão considerar o abuso sexual como uma causa, em longo prazo, da delinqüência, o que não significa que toda criança que sofreu abuso vai se tornar delinqüente. No entanto, o fato de ter sofrido abuso deixa a criança numa situação de risco para o desenvolvimento da delinqüência, pois aumentam as possibilidades de que ela venha manifestar problemas comportamentais.

Faiman (2004) assinala que é comum a presença de distúrbio do sono em crianças que sofreram abuso sexual. A criança manifesta grande angústia e agitação, sem alcançar, geralmente, o estado de vigília. Isso, provavelmente, se deve ao caráter ameaçador relacionado ao relaxamento da censura sobre a fantasia, inerente ao estado de sono.

Por sua vez, Teicher (2000) reconhece a relação entre o abuso infantil e o desenvolvimento de problemas psiquiátricos. Ressalta, porém, que até o início dos anos 90, profissionais da área da saúde mental acreditavam que as dificuldades emocionais e sociais ocorriam, principalmente, por meios psicológicos.

Novas pesquisas, no entanto, realizadas por ele e colaboradores em Belmont, Massachusetts, no McLean Hospital e na Harvard Medical School indicam que o abuso infantil pode alterar de modo irreversível o desenvolvimento neuronal. Como os maus-tratos na infância ocorrem durante o período em que o cérebro está sendo fisicamente esculpido pela experiência, o impacto do extremo estresse pode deixar uma marca em sua estrutura e função.

A reflexão estabelecida até o presente momento parece denunciar a gravidade do fenômeno, uma vez que as conseqüências desse para a vítima podem ser traumáticas. O abuso sexual, sendo ele de caráter incestuoso ou não, deixa a criança numa sensação de total desamparo. O adulto que deveria ser sinônimo de proteção se torna fonte de perturbação e ameaça. Ela não tem com quem contar, não pode comentar o fato e ainda é mobilizada, pela complexidade da relação, a sentir-se culpada. O silêncio, portanto, pode estar associado ao sentimento de culpa, às ameaças feitas, ao vínculo estabelecido na relação, principalmente por parte da criança. Essa situação de desproteção e desamparo pode levar a criança a sinalizar isso de diferentes formas.

Técnicas projetivas

O termo projeção, de acordo com Anzieu (1989), foi utilizado pela primeira vez em 1896 em um artigo escrito por Freud sobre a paranóia. Nessa primeira definição elaborada por ele, a projeção é entendida como um mecanismo de defesa.

Güntert (2001) assinala que no contexto da avaliação psicológica o termo projeção ganhou um sentido bem mais amplo e relaciona-se com o termo apercepção criado por Herbart e adotado por Bellak em 1967. Definindo-o como um “processo pelo qual novas experiências são assimiladas e transformadas por resíduos da experiência passada de um indivíduo, para formar uma nova totalidade” (Bellak, 1967, p. 27). Dessa forma, aquilo que é percebido no momento pelo indivíduo, que está carregado de sentido e que pode ser atribuído uma carga afetiva, foi vivido anteriormente. A apercepção que caracteriza as recordações de percepções passadas exerce influência sobre a percepção de estímulos atuais não apenas com fins de defesa, como foi inicialmente o termo projeção assinalado por Freud. Assim sendo, Bellak (1967) utiliza o termo apercepção, em vez de projeção, para a interpretação subjetiva que o indivíduo faz de sua experiência.

As técnicas projetivas são as mais recomendadas para esse tipo de interpretação, uma vez que são caracterizadas por tarefas relativamente não estruturadas, que possibilitam ao sujeito uma variedade quase ilimitada de respostas possíveis, bem como liberdade total de fantasia. Dessa forma, os testandos raramente se dão conta do tipo de interpretação psicológica que suas respostas poderão ter: “Os instrumentos projetivos representam procedimentos de testagem disfarçada” (Anastasi & Urbina, 2000, p. 338).

Segundo Güntert (2001), boa parte dos instrumentos projetivos utilizados em nosso meio tem apresentado estudos estatísticos de validação e, quando utilizados em pesquisa, têm possibilitado uma forma mais objetiva de lidar com os dados, uma abordagem quantitativa dos resultados, assim como uma abordagem qualitativa, caracterizada pelo seu aspecto interpretativo. A autora ressalta que é comum a crítica de demasiada subjetividade nesse tipo de interpretação, tanto pela metodologia empregada, quanto pelo caráter extremamente singular de alguns achados. Apesar disso, esse tipo de técnica apresenta possibilidades que permitem trabalhar para alcançar ambas aspirações na psicologia: apreender o singular, que vai considerar o indivíduo em seus aspectos únicos e, ao mesmo tempo, organizar as informações obtidas de modo a torná-las parte de um corpo teórico generalizável.

O Desenho da Figura Humana, de acordo com uma pesquisa realizada por Hutz e Bandeira (1993), estava presente na relação dos testes mais citados entre os artigos publicados envolvendo o uso de testes no Brasil e no exterior. Foi classificado em terceiro lugar na lista dos mais utilizados no Brasil, perdendo apenas para o Rorschach e o TAT/CAT.

Hutz e Bandeira (2000) afirmam que, já no final do século XIX, acreditava-se que o desenho infantil podia ser visto como indicador do desenvolvimento psicológico. Eles relatam que a primeira escala contendo critérios de análise do desenho da Figura Humana (DFH), que será utilizada neste trabalho, foi desenvolvida em 1926 por Florence Goodenough, como medida de desenvolvimento intelectual de crianças. Em 1949, Karen Machover publicou o livro Proyección de la personalidad en el dibujo de la figura humana, baseado em uma série de observações clínicas sobre a representação gráfica de figuras humanas desenhadas por crianças e adultos com problemas psicológicos diversos. Machover (1949), a partir dessa publicação, concede ao DFH um caráter projetivo, contribuindo, assim, com a sua popularização como método de avaliação da personalidade. Koppitz, no entanto, em 1968 é quem vai fornecer mais do que uma alternativa à escala de Goodenough para avaliar inteligência. Surge, pela primeira vez, um sistema quantitativo objetivo de avaliação do DFH para o diagnóstico de problemas de aprendizagem e distúrbios emocionais. A autora vai considerar um conjunto de sinais relacionados com a idade e o nível de maturidade mental da criança, denominado como Item Evolutivo, e um outro que estaria relacionado com as atitudes e preocupações da criança, denominado como Indicadores Emocionais.

Uma outra técnica a ser utilizada neste trabalho é o Teste de Apercepção Infantil-Animal (CAT-A). Ele é um descendente direto do Teste de Apercepção Temática (TAT), de Henry Murray, que foi criado para investigar a personalidade de adultos, sendo impróprio para crianças pequenas (Bellak & Bellak, 1991).

De acordo com Anzieu (1989) a validação de testes projetivos não pode ser tomada do mesmo modo que para os testes de aptidão, pois os testes projetivos não exploram uma variável única; descrevem um indivíduo, em termos de um esquema dinâmico de variáveis de intercorrelação. Eles oferecem uma gama ampla de dados qualitativos que devem ser codificados em hipóteses a serem testadas. Nesse sentido, o termo validade clínica, proposto por Tavares (2004), parece apropriado e importante de ser considerado para a validação dos testes projetivos. Uma vez que, segundo ele, a validade clínica vai enfatizar o significado singular de um determinado indicador ou de um conjunto de indicadores para um indivíduo e seu contexto específico de vida e contexto de avaliação. A validade clínica é compartilhada com a totalidade do contexto no qual a informação é gerada, buscando compreender o conjunto de elementos que forma um todo coerente, ligados por algo em comum. Realidade que deverá ser considerada mesmo que este estudo busque evidências de validade dentro dos parâmetros psicométricos.

Considerando os vários modos de se validar um teste (validade de construto, conteúdo, critério), essa última, que leva em conta um critério, parece mais indicada para o presente estudo. O critério é considerado uma variável, operacionalmente independente, mas logicamente associada ao teste e importante de ser prevista. Nesta pesquisa será averiguado se os instrumentos utilizados conseguem diferenciar o grupo de crianças que sofreram abuso sexual do grupo de crianças que não sofreram. Para tal finalidade a validade mais indicada é a concorrente.

Assim, o objetivo geral desta pesquisa foi verificar se os instrumentos Desenho da Figura Humana (DFH) e Teste de Apercepção Infantil–Animal (CAT-A) são sensíveis à identificação do abuso sexual, se eles conseguem diferenciar o grupo de crianças que sofreram abuso sexual do grupo de crianças que não sofreram.

Os objetivos específicos foram: avaliar por meio do DFH os aspectos cognitivo e emocional das crianças, segundo Koppitz (1976); comparar os resultados da avaliação dos aspectos cognitivo e emocional entre os grupos, a fim de verificar se esses apresentam diferenças quanto aos aspectos avaliados; comparar as respostas dadas pelas crianças dos dois grupos às pranchas do CAT-A, com a finalidade de verificar se os mesmos apresentam respostas diferentes e que possam sinalizar para a ocorrência de abuso sexual.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo 30 crianças de ambos os sexos, com a idade entre 6 e 10 anos em dois grupos distintos. Um grupo de 15 crianças que apresentavam histórico de violência sexual e que foi selecionado por meio de prontuários em serviços de psicologia, em instituições que atendem menores, em algumas cidades do interior de São Paulo (Delegacia de Defesa da Mulher, Serviço de Psicologia de uma Instituição Universitária e Centro de Referência à Infância e Adolescência). O outro grupo foi constituído por crianças de uma Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental. Esse grupo foi formado por indicação dos professores dessas crianças, seguindo os seguintes critérios: apresentar boa sociabilidade entre os colegas, ter um bom desempenho escolar, fazer parte de uma família bem-estruturada e com renda salarial de até quatro (4) salários mínimos, pois a renda familiar dos participantes do grupo de pesquisa não ultrapassou quatro salários mínimos. Duas outras informações foram necessárias para a inclusão da criança nesse grupo: não apresentar histórico de abuso sexual e nem estar em tratamento psicoterápico, informações que foram oferecidas pelos responsáveis pela criança.

Instrumentos

Técnica do Desenho da Figura Humana (DFH) segundo Koppitz (1976). O material é composto de folhas de papel em branco, sem pauta, tamanho ofício, lápis nº 2 e borracha. A aplicação foi individual e sem limite de tempo determinado. As instruções consistiam em pedir para a criança desenhar uma pessoa inteira. Após a realização do desenho foi solicitado à criança que contasse uma história acerca da pessoa desenhada, momento que foi realizado o inquérito a respeito do desenho.

Teste de apercepção infantil–animal (CAT-A). É composto por dez pranchas com cenas de animais. Para a aplicação do teste foi dada a seguinte instrução: “Vamos brincar de um jogo, no qual você deverá me contar histórias sobre umas pranchas (figuras de animais); me conte o que está acontecendo, o que os personagens estão fazendo.” No momento adequado também foi perguntado “o que fizeram antes e o que ia acontecer depois.” As pranchas foram apresentadas uma após a outra seguindo a seqüência estabelecida para a aplicação do teste. As histórias dos grupos de pesquisa e de controle foram registradas literalmente pela pesquisadora.

Este trabalho não procurou verificar os critérios de Bellak, embora eles tenham sido utilizados na análise, até mesmo para a escolha dos novos critérios. Para analisar as respostas das crianças foram criadas categorias próprias, mais direcionadas para o objetivo da pesquisa e que fossem passíveis de tratamento estatístico. Com base nas histórias contadas pelo grupo de pesquisa foi feita a seleção de indicadores que apareceram nesse grupo com mais freqüência (abuso sexual, medo, ameaça do meio, agressividade, desequilíbrio e abandono). Os nomes atribuídos aos indicadores foram estabelecidos de acordo com os seguintes critérios:

Abuso Sexual. Foi computado todas as vezes que as histórias apresentaram situações explícitas de abuso. Explícitas porque ao serem comparadas com o histórico das crianças retratavam o abuso sofrido.

Medo. Foi computado todas as vezes que as crianças manifestaram medo, que verbalizaram a palavra medo.

Ameaça do Meio. Quando as crianças expressavam situações de ameaça e desamparo por parte de figuras que podiam retratar os genitores.

Desequilíbrio. Foi pontuado todas as vezes que as crianças narraram histórias com tombo: o desequilíbrio foi físico.

Médico. Quando as crianças mencionaram a presença de médico em suas histórias: ida ao médico. Com base nesses indicadores foi feita a análise do grupo de controle, a fim de identificar nas histórias das crianças desse grupo a presença ou não dos indicadores selecionados.

Procedimento

Foi estabelecido contato com as instituições para que essas pudessem autorizar a pesquisa por meio da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido; foi estabelecido contato com os pais a fim de obter, da mesma forma, autorização para que seus filhos pudessem participar da pesquisa. Os dois instrumentos foram aplicados no mesmo dia pela pesquisadora e a aplicação foi individual.

 

Resultado e Discussão

Os participantes eram provenientes de famílias domiciliadas em três cidades do interior de São Paulo, de nível socioeconômico baixo, com renda familiar de até quatro salários mínimos e com escolaridade máxima até o segundo grau. Quanto ao gênero 33% dos participantes eram do sexo masculino e 67% do sexo feminino. Esses dados confirmam o que vem sendo apresentado pela literatura de maior incidência de notificação de abuso sexual em relação ao sexo feminino (Azevedo & Guerra, 1988).

Analisando o histórico retirado dos prontuários das crianças que sofreram abuso sexual foi possível constatar que ele retrata os atos impostos por adultos que exploram seu poder sobre elas com a finalidade de obter satisfação sexual (Azevedo & Guerra, 1988; Farinattti, Biazus & Leite, 1993; Furniss, 1993; Gabel, 1997; Koller, 1999; Saffiotti, 1989). Ele confirma que esse tipo de prática ocorre envolvendo pessoas com grau de parentesco e proximidade, pessoas que têm o apreço da família (Flores & Caminha, 1994; Vitiello, 1989). Das crianças que participaram desta pesquisa com histórico de abuso sexual, 60% sofreram abuso por pessoas que faziam parte da família [padrasto (26,6%), pai biológico (13,3%), avô (13,3%) e tio 6,6%)] e 40% foram abusadas por pessoas conhecidas [amigos (33,3%) e professor particular (6,6%)]. Esses dados confirmam o que vem sendo apresentado pela literatura de que o incesto é um dos abusos sexuais mais freqüentes (Cohen, 1997: Flores & Caminha, 1994), pois esteve presente em 60% dos casos estudados.

O histórico de abuso sexual retirado dos prontuários das crianças possibilitou ainda refletir a respeito de outros aspectos apontados pela literatura, no que se refere à situação de abuso infantil. Furniss (1993) e Vitiello (1989) assinalam que é comum a vítima ser responsabilizada pelo abuso. Fato que pode ser identificado no histórico do sujeito 12P que, depois de ter sido molestado por mais de um adolescente, é responsabilizado pelo pai que o culpa pelo ocorrido.

Furniss (1993) assinala que para o silêncio ser mantido na situação abusiva, a criança é exposta a uma rede de ameaças, ou outras vezes é subornada ou recebe um tratamento especial a fim de que esse tipo de ganho possa manter o silêncio. Isso pode ser observado no histórico dos sujeitos 9P, 10P, 13P e 14P que foram subornados por presentes, desde simples balas.

Quanto aos Indicadores Emocionais do DFH foi possível constatar que no grupo de pesquisa (crianças que sofreram abuso sexual) a maior parte dos sujeitos (66,6%) apresentou escore maior ou igual a 3 indicadores. No grupo controle 66,6% dos sujeitos apresentaram até 2 indicadores. As Figuras 1 e 2 mostram a distribuição do número de Indicadores do DFH de cada grupo.

Para o Nível de Maturidade Mental também buscou-se comparar os dois grupos. As Figuras 3 e 4 demonstram que a maior parte dos sujeitos do grupo de pesquisa apresentou um NMM de Normal para Normal Baixo e os sujeitos do grupo controle apresentaram uma classificação de normal para normal alto de acordo com a classificação de Koppitz.

Quanto aos Indicadores apontados pelo CAT-A foi possível constatar que os sujeitos do grupo de pesquisa apresentaram até seis indicadores enquanto os sujeitos do grupo controle apresentaram até 3. No grupo de pesquisa apenas um sujeito (6,6%) apresentou 1 indicador. No grupo controle 40% dos sujeitos apresentaram 1 indicador, demonstrando que quase a metade desse grupo apresentou apenas 1 indicador. As Figuras 5 e 6 mostram a distribuição do número de indicadores do CAT-A para os grupos.

Procurou-se, ainda, verificar a associação entre as variáveis NMM, Indicadores Emocionais no DFH e Indicadores do CAT-A. Para isso foi utilizada a prova de correlação dos Postos de Spearman, estabelecendo o nível de significância de 5%.

Observou-se por esses dados, no grupo de pesquisa uma correlação negativa. Essa tendência pode ser interpretada pelo fato de que com aumento da idade diminuiu o NMM das crianças desse grupo, o que não corresponde à definição de Koppitz (1976), pois segundo a autora, à medida que aumenta a idade, aumenta o NMM da criança. Já no grupo de controle observou-se uma correlação positiva entre a idade e NMM.

Na correlação entre idade e Indicadores Emocionais do DFH observou-se, no grupo de pesquisa, uma correlação positiva. Pode-se interpretar que com o aumento da idade também se observou o aumento de Indicadores Emocionais no DFH. No grupo controle a correlação foi negativa. Na correlação entre idade e Indicadores do CAT-A observou-se que a idade nos dois grupos não exerceu influência significativa nos Indicadores do CAT-A.

 

Conclusão

Os resultados apresentados neste trabalho apontaram diferenças entre os grupos de pesquisa e controle quanto aos aspectos cognitivo e emocional por meio do DFH e CAT-A.

Do ponto de vista estatístico não se pode afirmar categoricamente, a partir deste estudo, considerando que as análises foram limitadas em razão do número de participantes, a existência de validade concorrente nos dois instrumentos. Por meio deste estudo, porém, observou-se, também, do ponto de vista estatístico, que os dois instrumentos foram sensíveis e conseguiram discriminar o grupo de pesquisa do grupo de controle e “detectar” situações de abuso sexual no grupo de pesquisa.

Considerando a importância da avaliação psicológica para uma compreensão mais ampla do indivíduo e a contribuição dos instrumentos de avaliação psicológica nesse contexto, esta pesquisa buscou identificar evidências de validade nos instrumentos DFH e CAT-A em crianças vítimas de abuso sexual. Em outros grupos circunstanciais esses instrumentos podem ser aplicados da mesma forma, a fim de dar continuidade ao estudo de validade dos mesmos.

 

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Endereço para correspondência
Ana Rita da Fonseca
E-mail: lap@lo.unisal.br

Cláudio Garcia Capitão
E-mail: cgcapitao@uol.com.br

Recebido: abril/2005
Reformulado: junho/2005
Aprovado: junho/2005

 

 

Sobre os autores:

1 Ana Rita da Fonseca é psicóloga, mestre em Psicologia pela Universidade São Francisco.
2 Cláudio Garcia Capitão é psicólogo, doutor em Educação pela UNICAMP, com pós-doutorado em psicologia clínica pela PUC-SP, professor do Curso de Graduação e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia da Universidade São Francisco