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Psic: revista da Vetor Editora

versão impressa ISSN 1676-7314

Psic v.7 n.1 São Paulo jun. 2006

 

ARTIGOS

 

Práticas de escolas públicas e privadas diante da violência doméstica em São Paulo

 

Public and private schools procedures toward domestic violence in São Paulo

 

Prácticas de escuelas públicas y privadas frente a la violencia doméstica en São Paulo

 

 

Lucilena Vagostello1; Andréia de Souza Oliveira2; Ana Maria da Silva3; Valéria Donofrio4; Tânia Cristina M. Moreno5

Universidade Camilo Castelo Branco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou verificar as práticas de escolas públicas e privadas diante da identificação de casos de violência doméstica contra crianças e adolescentes. A pesquisa foi realizada em 17 escolas da cidade de São Paulo, com um total de 149 profissionais da área de educação, por meio de questionário elaborado a partir de um estudo piloto com 30 professores. Os resultados indicaram que esses profissionais conseguem identificar situações de maus-tratos envolvendo seus alunos, mas não os encaminham às autoridades competentes. A violência doméstica nessas escolas é tratada da mesma forma como são resolvidos os problemas escolares, por meio da convocação e da orientação dos pais, o que indica que os profissionais da educação, além de não estarem preparados para abordar adequadamente essa questão, podem estar colocando em risco seus alunos.

Palavras-chave: Violência doméstica, Crianças, Adolescentes, Escolas públicas, Escolas privadas.


ABSTRACT

The present study intended to verify the procedures of public and private schools at identifying cases of domestic violence against children and adolescents. The survey was carried out in 17 schools in São Paulo, with a total of 149 education professionals by means of a questionnaire tested in a pilot study done with 30 teachers. The results showed that those professionals identify situations of mistreatment to their students, but they do not refer the cases to the competent authorities. Domestic violence in those schools receive the same treatment of any other problem at school, parents are called and given orientation. This shows that education professionals are not yet prepared to provide a proper treatment to the matter.

Keywords: Domestic violence, Children, Adolescents, Public school, Private school.


RESUMEN

Este estudio ha tenido como objetivo verificar las prácticas de escuelas públicas y particulares frente a la identificación de casos de violencia doméstica contra niños y adolescentes. La investigación ha sido realizada en 17 escuelas de la ciudad de São Paulo con un total de 149 profesionales del área de educación, por medio de un cuestionario hecho con base en un estudio preliminar con 30 profesores. Los resultados han indicado que esos profesionales consiguen identificar situaciones de malos tratos involucrando a sus alumnos, pero no los dirigen a las autoridades competentes. La violencia doméstica en esas escuelas es tratada de la misma forma como son resueltos los problemas escolares, por medio de la convocación y orientación de los padres, lo que indica que los profesionales de la educación, además de no estar preparados para asumir de forma adecuada esa cuestión, pueden estar colocando en riesgo a sus alumnos.

Palabras clave: Violencia doméstica, Adolescentes, Escuelas públicas, Escuelas privadas.


 

 

Introdução

O abuso doméstico é uma das modalidades de violência de maior dificuldade de identificação porque atinge a vida privada dos indivíduos e seu restrito universo familiar, cujo acesso a terceiros é muito limitado. A violência doméstica é um fenômeno presente em todas as classes sociais, porém sua visibilidade é mais comum nas camadas sociais mais baixas, onde as condições habitacionais - favelas, cortiços e aglomerados - facilitam a exposição da intimidade familiar e tornam público um fenômeno privado. Além disso, segundo Deslandes (1994), as famílias mais pobres geralmente necessitam do auxílio de programas sociais e comunitários e, portanto, encontram-se mais expostas às intervenções do poder público.

A violência é uma prática tão assimilada aos costumes e valores quotidianos da família, que praticamente passa despercebida. A agressão física de crianças perpetrada por pais é hábito socialmente tolerado e até mesmo considerado "educativo" a despeito das desigualdades de poder e de força que se exercem numa relação entre adulto e criança. Assim como todas as formas de violência, os abusos domésticos se exercem a partir de um padrão de relacionamento que pressupõe desigualdade e abuso de poder (Saffioti, 1989, Azevedo & Guerra, 1989 e 1995; Gonçalves, 2003)

As maiores peculiaridades da violência doméstica referem-se à natureza dos vínculos que a vítima mantém com a pessoa que a agride e o "pacto de silêncio" que se estabelece entre ambos. O agressor doméstico geralmente é uma pessoa conhecida, supostamente confiável e por quem a vítima nutre sentimentos de amor e, ao mesmo tempo, de ódio (Azevedo & Guerra, 1989 e 1995).

De acordo com Silva (2002), os serviços de atendimento às vítimas de violência doméstica estimam que, diariamente, a cada dez crianças três sejam vítimas de maus-tratos domésticos, sendo sua maior concentração nas faixas entre cinco e sete anos e entre dez e treze anos. A violência física é o abuso mais freqüente dentro da família e este dado não é surpreendente, uma vez que se trata de uma prática punitiva socialmente legitimada.

No Brasil, grande parte das denúncias de agressões física contra crianças e adolescente ocorre dentro do próprio lar e os agressores são predominantemente os pais (Azevedo & Guerra, 1995 e 1998; Silva, 2002; Gonçalves, 2003). Entre as conseqüências da exposição de crianças e adolescentes ao abuso físico, destacam-se o comportamento autodestrutivo e o relacionamento interpessoal marcado pela agressividade, que é assimilada como algo "natural" ou "normal". Não raro a violência produz uma auto-imagem desvalorizada e sentimentos de culpa que levam a vítima a acreditar ser merecedora do castigo (Azevedo & Guerra, 1989 e 1995).

O abuso sexual doméstico vitimiza mais meninas do que meninos e, em ambos os casos, os agressores são predominantemente pais e padrastos (Azevedo & Guerra, 1995; Furniss, 1993; Gonçalves, 2003). Vale destacar que o abuso sexual de meninos não é pouco freqüente, porém é muito menos notificado em decorrência de outro estigma ao qual aparece associado, o da homossexualidade (Pinto Junior, 2004).

A identificação da violência sexual é difícil porque, na maior parte dos casos, ela se caracteriza por atos libidinosos (carícias corporais e genitais) que não deixam sinais físicos. Além disso, quando uma criança consegue romper com o silêncio sobre o abuso, sua revelação muitas vezes é desqualificada pelos adultos. Quadros psicóticos, reações psicossomáticas, enurese, distúrbios alimentares, rituais de higiene e condutas hipersexualizadas podem estar relacionados a vivências de abuso sexual; entre adolescentes é comum a ocorrência de reações mais drásticas como fuga do lar e tentativas de suicídio (Azevedo & Guerra, 1989 e 1995; Furniss, 1993; Gabel, 1997).

O abuso psicológico (rejeição, abandono, agressão verbal e psicológica) e a negligência são formas de violência menos aparentes e, consequentemente, menos identificáveis (Azevedo & Guerra, 1989 e 1995; Gonçalves, 2003). Comportamentos de apatia, passividade e apego fácil a estranhos (ausência de figura fixa de apego) são comuns em crianças vítimas de ambas as formas de violência; reincidências de doenças e/ou acidentes domésticos são considerados fortes indicadores de negligência (Azevedo & Guerra, 1998).

Crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica sinalizam seu sofrimento de diversas maneiras nos diferentes contextos extrafamiliares. Na escola, por exemplo, observam-se mudanças que incidem diretamente sobre o rendimento escolar (queda no desempenho, dificuldade de concentração) e o comportamento do aluno, que pode variar da agressividade à passividade/apatia e choro (Azevedo & Guerra, 1989; Furniss, 1993; Gabel, 1997).

Um estudo prévio, realizado em escolas públicas do município de São Paulo (Vagostello, Oliveira, Silva, Donofrio & Moreno, 2003), apontou que a grande parte dos professores e diretores é sensível às sinalizações de violência doméstica, porém não possui preparo para manejá-las. Em vez de notificar os órgãos competentes - Conselhos Tutelares e Varas de Infância e Juventude - a conduta mais comum destes profissionais foi convocar os pais ou responsáveis para orientação, o que, na verdade, pode colocar ainda mais em risco a criança ou adolescente.

Diante do dado de que escolas públicas raramente notificam casos suspeitos de violência doméstica e da hipótese de que esta conduta tende a ser ainda mais freqüente nas classes sociais mais favorecidas, o presente trabalho objetivou verificar as práticas adotadas por profissionais de escolas privadas diante de situações indicadoras de violência doméstica entre seus alunos, comparando-as com os resultados das escolas públicas.

 

Método

Participantes

O estudo foi realizado em 17 escolas, dez públicas estaduais e sete privadas, com a participação de 149 profissionais da educação, sendo 17 diretores e 132 professores de ensino fundamental (1ª a 4ª série). A tabela abaixo mostra a distribuição dos sujeitos em relação ao cargo ocupado (professores e diretores) e à natureza das escolas (públicas e privadas).

 

Tabela 1 - Distribuição do total de sujeitos da amostra

 

As escolas localizam-se na região leste do município de São Paulo, em uma área caracterizada por graves problemas sociais, com altos índices de desemprego, pobreza e violência. Vale destacar que a região leste é a que registra maior número de Boletins de Ocorrências na cidade de São Paulo, segundo Azevedo e Guerra (1998).

Não houve diferenças significativas quanto ao tempo médio de experiência em magistério entre os diretores das escolas públicas e particulares (23,8 anos e 26,5 anos, respectivamente) e entre os professores (12,4 anos em escolas públicas e 12,6 anos em escolas privadas).

Quanto à escolaridade, houve diferenças significativas entre o grupo de professores de escolas públicas (60% superior completo, 27% segundo grau e 13% superior incompleto) e o de escolas particulares (76% superior completo, 6% segundo grau e 18 % superior incompleto). Todos os diretores tinham nível de escolaridade superior completo.

Material e Procedimento

A coleta de dados foi realizada por meio de questionário, elaborado a partir de um estudo piloto com 30 professores de ensino fundamental, contendo dez questões de múltipla escolha e duas questões abertas (Vagostello e cols, 2003).

As escolas estaduais pertencentes à região de abrangência da pesquisa foram listadas e numeradas e dez foram sorteadas aleatoriamente. Os questionários foram distribuídos para cada diretor e para oito professores de ensino fundamental (dois professores de 1ª série, dois professores de 2ª série, dois professores de 3ª série e dois professores de 4ª série).

O mesmo procedimento deveria ter sido realizado nas escolas particulares, mas não foi possível, devido à escassez de escolas privadas na área abrangida pela pesquisa. Todas as escolas particulares disponíveis na região foram procuradas para participar da pesquisa.

Na ocasião da coleta de dados, três escolas públicas e duas privadas se recusaram a participar da pesquisa e foram, portanto, excluídas da amostra. Os profissionais das públicas mostraram-se mais colaboradores do que os das particulares; apenas uma escola privada respondeu prontamente aos questionários, as demais levaram até quatro meses para entregar os questionários respondidos.

A análise dos resultados baseou-se na freqüência de respostas em cada questão, levando-se em consideração o número de respondentes em cada uma delas. Tendo em vista que o número de diretores (N=17) é muito inferior ao número de professores (N=132), optou-se por apresentar resultados quantitativos somente dos professores. Os resultados do grupo de diretores serão apresentados em linhas gerais, comparando-os com o grupo de professores.

 

Resultados

Um fenômeno, inicialmente observado entre os professores das escolas públicas (Vagostello e cols, 2003), também ocorreu entre os professores das escolas particulares: os mesmos aceitaram participar da pesquisa, responderam ao questionário, mas devolveram o termo de consentimento em branco. Em todos esses casos, os sujeitos foram novamente esclarecidos quanto à garantia de sigilo e à necessidade da assinatura do termo como forma de anuência de participação da pesquisa.

Os profissionais das escolas públicas tiveram conhecimento de casos de violência doméstica entre alunos em proporções muito mais elevadas do que os das escolas particulares, conforme Tabela 2.

 

Tabela 2 - Profissionais com conhecimento de casos de violência doméstica

 

Nas escolas públicas, a proporção de professores que informaram desconhecer qualquer caso de violência doméstica (seja entre seus próprios alunos, seja entre alunos de outros professores) é de 13,8% (N=80); nas escolas particulares este número quase dobra, ou seja, 25% dos professores (N=52) alegaram desconhecer qualquer caso de violência. Um diretor de escola privada e dois diretores de escolas públicas afirmaram desconhecimento total de casos de violência doméstica durante toda a sua carreira profissional.

A violência física é o abuso doméstico observado com maior freqüência por professores - e também por diretores - tanto das escolas públicas quanto das particulares. A tabela a seguir mostra a proporção das diferentes formas de violência conhecidas pelos professores.

 

Tabela 3 - Tipos de violência doméstica conhecidos

 

Todavia, a maneira pela qual os profissionais tomam conhecimento da violência doméstica difere entre escolas públicas e particulares. Os professores - e diretores - das escolas públicas tomaram conhecimento predominantemente pelo próprio aluno (vítima); já os professores das escolas particulares - e seus respectivos diretores - tomaram ciência pelos sinais corporais (hematomas, lesões), embora o relato dos alunos também seja uma fonte significativa de conhecimento dos fatos.

 

Tabela 4 - A identificação da violência doméstica segundo os professores

 

A intervenção adotada por professores e diretores das escolas públicas e privadas diante do indicativo de maus-tratos domésticos (Tabela 5) é a mesma, isto é, a convocação e orientação dos pais. Os professores das escolas públicas tendem (ainda que em pequena proporção) a encaminhar os casos para o Conselho Tutelar, enquanto que os professores das escolas particulares tendem a encaminhar a criança ao psicólogo. Os diretores apresentaram exatamente as mesmas respostas dos respectivos professores, ou seja, convocação dos pais e encaminhamento ao Conselho Tutelar no caso das escolas públicas e convocação dos pais e encaminhamento ao psicólogo no caso das escolas particulares.

 

Tabela 5 - A intervenção das escolas diante da suspeita de violência doméstica

 

A tabela a seguir (Tabela 6) apresenta os resultados alcançados pelas escolas a partir das suas intervenções - convocação e orientação dos pais. As duas primeiras categorias de respostas também foram as mais freqüentes entre os diretores, porém apenas um diretor de escola pública citou o encaminhamento do caso ao Judiciário, enquanto que nenhum diretor de escola particular assinalou tal resposta.

 

Tabela 6 - Resultados obtidos a partir da intervenção das escolas

 

A agressividade foi apontada como a principal característica comportamental indicadora de maus-tratos domésticos, segundo os profissionais (professores e diretores) das escolas públicas e particulares. A reação de medo foi mais observada entre o grupo de professores das escolas particulares.

 

Tabela 7 - Indicadores comportamentais de maus-tratos domésticos

 

Tabela 8 - Opinião dos professores sobre o papel da escola diante dos casos de maus-tratos domésticos

 

Tanto os professores das escolas públicas quanto os das escolas privadas acreditam que o papel da escola nos casos de violência doméstica é o de orientação dos pais. Embora esses profissionais expressem que o encaminhamento ao Conselho Tutelar deva ser uma medida adotada, sua proporção é muito inferior, como indica o quadro acima.

Os diretores, tanto das escolas públicas quanto das privadas, declararam com unanimidade que o papel da escola é o de convocar e orientar os pais que praticam alguma forma de violência contra seus filhos.

De maneira geral, os profissionais das escolas públicas e particulares reconheceram a associação entre maus-tratos domésticos e comportamentos como agressividade, baixo desempenho escolar, indisciplina, falta de concentração e falta de motivação. Do total de participantes (N=149), apenas um diretor de escola pública mostrou conhecimento de um serviço que promove a capacitação de profissionais para identificação e prevenção de violência doméstica, mais especificamente o Laboratório de Estudos da Criança (LACRI) da Universidade de São Paulo, coordenado por Azevedo e Guerra (1989, 1995 e 1998).

 

Discussão

De maneira geral, os resultados encontrados nas escolas particulares não diferem das escolas públicas (Vagostello e cols, 2003). A temática da violência doméstica pareceu suscitar desconforto entre os participantes, à medida que muitos demonstraram receio de preencher os dados de identificação do termo de consentimento e alguns manifestaram resistência para participar da pesquisa.

O desconhecimento absoluto de casos de maus-tratos domésticos entre professores de escolas particulares é muito elevado (25%) para profissionais tão experientes, o que pode sugerir que estes sujeitos ocultaram informações. O silêncio destes professores pode indicar uma postura defensiva mobilizada por necessidades subjetivas (para aliviar o desconforto emocional que o assunto mobiliza) ou por necessidades objetivas (para preservar a relação de natureza econômica com o cliente).

Tanto os profissionais de escolas públicas quanto os de escolas particulares mostraram-se sensíveis aos indicadores físicos e comportamentais de maus-tratos domésticos nos alunos, bem como apresentam as mesmas práticas ante a questão - a convocação e orientação dos pais ou responsáveis.

Vale destacar que os profissionais de escolas particulares encaminharam com mais freqüência os seus alunos ao psicólogo nos casos suspeitos de violência. Certamente esta opção é muito mais restrita aos profissionais de escolas públicas, cujas famílias dependem da prestação de serviços oferecidos por instituições da rede pública, nas quais o tempo de espera por chega a levar meses.

O abuso físico é a categoria de violência mais observada pelos profissionais, uma vez que produz marcas corporais visíveis e de fácil identificação. É curioso observar que o abuso sexual, a modalidade mais protegida pelo segredo familiar (Azevedo e Guerra, 1989; Furniss, 1993; Gabel, 1997), seja tão conhecido pelos professores das escolas públicas por meio do relato da própria vítima. Pode ser que esses alunos tenham estabelecido com seus professores uma relação de confiança para contar seu sofrimento e pedir ajuda.

A denúncia aos órgãos competentes (Conselhos Tutelares e Varas de Infância e Juventude) é uma prática pouco freqüente entre os profissionais da amostra - e menos ainda nas escolas particulares - que preferem convocar os pais e orientá-los na própria escola. Essa conduta parece fazer parte da "cultura da escola", cujo representante maior é o diretor; vale lembrar que o encaminhamento às autoridades competentes é um procedimento ainda mais raro entre os diretores, tanto das escolas públicas quanto das particulares.

Os profissionais, de maneira geral, reconheceram, com pertinência, a agressividade como principal manifestação comportamental relacionada à violência doméstica. A associação entre violência doméstica e indicadores como baixo desempenho escolar, indisciplina, dificuldade de concentração, falta de motivação também foi devidamente percebida pelos mesmos.

 

Considerações Finais

A comparação entre escolas públicas e privadas indicou que ambas utilizam as mesmas práticas, quando se defrontam com a violência doméstica. Tais práticas não passam de generalizações da administração dos seus problemas pedagógicos quotidianos, onde os pais são convocados para discutir os problemas escolares dos filhos.

Nas classes sociais mais favorecidas não se pode negar que o cliente, ao remunerar pela prestação de serviços de diversas naturezas (médico, educacional, entre outros), remunera também - de forma mais ou menos implícita - a "discrição" do profissional que passa a ter acesso à sua família e, consequentemente, à sua intimidade (Deslandes, 1994). Portanto, não é por acaso que os maus-tratos domésticos sejam tão subnotificados nas classes média e alta e que as escolas privadas mantenham-se tão resistentes à denúncia.

Quando se convoca uma família para abordar uma suspeita (ou constatação) de violência familiar sem notificar órgãos que realmente podem proteger a criança, a escola realiza uma prática perigosa sob vários aspectos, pois não permite que esses órgãos cumpram seu papel (avaliação e acompanhamento do caso), estabelece com o agressor uma relação que pode fortalecê-lo (concede-lhe credibilidade), fragiliza ainda mais a criança (sua voz se enfraquece diante do discurso do agressor). A ação equivocada da escola pode expor a vítima a riscos mais intensos à medida que o agressor, quando alertado sobre a violência, pode fazer uso de mecanismos coercitivos menos visíveis - e ainda mais cruéis - para silenciar a vítima.

O abuso sexual dentro da família é fortalecido pelo silêncio que leva, em muitos casos, vários anos para ser rompido, seja porque a criança não conseguiu revelar este segredo para um membro da família, seja porque revelou mas sua palavra não foi ouvida (Gabel, 1997; Furniss, 1993; Azevedo e Guerra, 1989 e 1995; Ferrari e Vecina, 2002). A criança que ainda tem esperança de romper com a violência confia seu pedido de socorro a terceiros e qualquer pessoa com quem estabeleça uma relação de confiança - inclusive um funcionário da escola - pode ser esse terceiro.

Portanto, se, através da revelação, a criança ou adolescente procura no professor (ou qualquer outro funcionário da escola) uma fonte de proteção, sua palavra novamente cai em descrédito, na medida em que a escola convoca o agressor e lhe concede credibilidade, sem garantias de que seu ato não voltará a se repetir. Vale lembrar que a maioria dos profissionais das escolas informou que, após a orientação dos pais, não houve mais notícias sobre reincidência da violência; esta informação está longe de significar que o abuso doméstico cessou, ela apenas expressa que a vítima se calou e/ou que as marcas corporais deixaram de ser visíveis.

Assim, pode-se dizer que tanto os profissionais das escolas públicas (Vagostello e cols, 2003) quanto os das escolas privadas necessitam de melhor instrumentalização para administrar, de maneira mais adequada e segura, as situações de violência doméstica que atingem seus alunos.

 

Referências

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Ferrari, D.C.A. & Vecina, T.C.C. (Orgs.). (2002). O Fim do Silêncio na Violência Familiar: teoria e prática. São Paulo: Ágora.        [ Links ]

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Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (1991). Estatuto da Criança e do Adolescente: lei nº 8069 de 13 de julho de 1990. São Paulo: Forja Editora/Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo/CBIA.        [ Links ]

Vagostello, L., Oliveira, A.S., Silva, A.M., Donofrio, V. & Moreno, T.M.M. (2003). Violência Doméstica e Escola: um estudo em escolas públicas de São Paulo. Paidéia: Cadernos de Psicologia e Educação, 13 (26), 190-196.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Universidade Camilo Castelo Branco
Faculdade de Psicologia
Av. Carolina Fonseca, 584
08230-030 São Paulo-SP
E-mail: vagostello@yahoo.com.br

Recebido em: agosto/2005
Revisado em: novembro/2005
Aprovado em: dezembro/2005

 

 

Sobre os autores:

1 Lucilena Vagostello é docente e pesquisadora da Faculdade de Psicologia da UNICASTELO, mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP, doutoranda em Psicologia Clínica pela USP, pesquisadora do APOIAR/Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do Instituto de Psicologia da USP e psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
2 Andréia de Souza Oliveira é psicóloga
3 Ana Maria da Silva é psicóloga
4 Valéria Donofrio é psicóloga
5 Tânia Cristina M. Moreno é psicóloga