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Psic: revista da Vetor Editora

versão impressa ISSN 1676-7314

Psic v.8 n.2 São Paulo dez. 2007

 

RESENHA

 

A família atual sob diferentes perspectivas

 

 

Priscilla Rodrigues Santana *

Universidade São Francisco

 

 

Cerveney, C. M. de O. (Org.) (2007). Família em movimento (226p.). São Paulo: Casa do Psicólogo.

 

Cerveney é a organizadora e autora de um livro que tem como principal objetivo contar como a família estava estruturada alguns séculos atrás e como ela tem se modificado através do tempo, por meio da cultura, ambiente socioeconômico, modificações que ocorreram na estrutura da família entre outras variáveis. Os capítulos foram feitos por especialistas na área de família, tanto na pesquisa do tema como no atendimento psicoterápico. Composto por nove capítulos, o livro aborda temas como as relações familiares tradicionais e como esta tem se modificado através dos anos, as práticas psicoterápicas, a influência de situações próprias do atual ambiente socioeconômico atual, as dificuldades intrínsecas e extrínsecas ao ambiente familiar que podem dificultar a transmissão de valores familiares adequados.

A autora começa a apresentação do livro com um breve histórico das relações familiares, conduzindo o leitor à conclusão de que os problemas enfrentados pela família hoje são os mesmos enfrentados desde o início dos tempos, apesar de suas particularidades que caracteriza cada época e que mostra o movimento feito pela família. A autora traça um paralelo entre a primeira família existente, bíblica (Adão e Eva), com as famílias atuais observadas nos consultórios. Fala também das relações familiares e como estas têm influenciado as estruturas familiares e a adaptação do indivíduo no ambiente que o cerca.

As autoras do primeiro capítulo asseguram que devido à mudança na qualidade de vida e no avanço da medicina, a família tem se transformado em estrutura e relacionamento. Tal mudança aumenta a convivência entre diferentes gerações, permitindo o fortalecimento do vínculo mesmo quando há uma ruptura no núcleo familiar ou uma reestruturação do mesmo. Mostram que devido a esse aumento de convivência há uma intensificação na transmissão de crenças, valores e emoções, próprios de cada família, para as novas gerações, além de permitir um vínculo mais maduro entre pais e filhos, isto é, o vínculo deixa de ser baseado na dependência para se basear na confiança de que pode haver um ambiente confortante como referência mesmo em um meio de múltiplas relações. Trazem ainda que a família atual tenta passar à nova geração a liberdade de escolha e a necessidade de submissão à história familiar, há então uma combinação delicada entre a tradição e o atual. Por fim, as autoras argumentam que a família continua a ter um importante papel na socialização e que a transmissão geracional facilitará esse processo, por meio da caracterização do sujeito no meio familiar e a apropriação de seu papel nesse ambiente.

A próxima discussão apresentada é sobre a necessidade dos casais e de seus membros, de se reproduzir para dar continuidade à família. As autoras relatam sua pesquisa feita que investiga como a mulher se sente ante a necessidade de procedimentos externos para engravidar, que implicam a mudança do paradigma anterior que centrava tal processo no pai. Atualmente quem decide se quer ou não ter filhos, quando e como isso irá ocorrer é a mulher e seu médico. O pai assume o papel de mediador entre o ambiente externo à família e o interno; cabe a ele auxiliar o filho nessa transição, além de estar presente e atento em todas as fases do filho, na educação e na manutenção de um relacionamento. Ao casal cabe decidir e operacionalizar o ambiente familiar, garantir que esse seja seguro e reconfortante, mas isso deve ser realizado sem que o casal abra mão de sua identidade como homem e mulher, para dar espaço apenas a mãe e ao pai. Esse teste também relata o peso que é para esse casal, e suas partes, a incapacidade de gerar um filho e quais as técnicas pensadas para superar tal situação, além dos custos, econômicos e psicológicos de tais procedimentos. Para a mulher cabe a tentativa de métodos invasivos e dolorosos afim de conseguir engravidar, além de ter que dar apoio ao marido, o qual lida com sua impotência de ter um filho. É discutido também o papel que a adoção recebe nos casos em que o tratamento médico não dá resultados, muitas vezes apesar de preencher a necessidade de se tornar pai e mãe do casal, não preenche a questão de gerar uma criança com o mesmo sangue, sendo por isso muitas vezes visto como um último recurso. Ao lado disso, foi discutido que o sentimento de vergonha e como influência no movimento de transmissão familiar. Chegou à conclusão de que a vergonha tem o funcionamento de mediador do afeto da moralidade familiar e que esta serve para repetir ou transformar tais informações.

No quarto capítulo Romagnoli aborda a família por meio de correntes institucionalistas. Primeiro a autora começa explicando a família e suas mudanças na evolução humana, assim como as mudanças estruturais que esta sofreu. Depois autora explica o que entende por instituição, utilizando-se da definição de René Lourau. Na visão institucionalista, a família é formada por um enorme número de regras e modelos sociais que produzem modelos de comportamento, que integra seus membros no sistema social, e sua principal função como organização é criar indivíduos ajustados à sociedade que mantenham a ordem, reproduzindo e preservando o já estabelecido. Mas a família está sempre se modificando e, atualmente, tal metamorfose tem se tornado preocupante, pois muitas vezes a sociedade não está preparada para tal, assim como seus membros podem não estar preparados psiquicamente para enfrentar a sociedade. A autora ressalta a importância de se acolher essas famílias quando elas aparecem em nossos consultórios entendendo-as como uma tentativa de não-submissão às regras atuais e expressão de seus sentimentos. Por último ressalta que o espaço social está sempre em constante mudança e que por isso tem capacidade de estar sempre superando suas limitações.

No quinto capítulo as autoras apresentam uma proposta de intervenção para trabalhar o processo de migração na família e as possibilidades de reestruturação das relações familiares no novo contexto sociocultural em que esta inserida. As autoras trazem a realidade em relação à migração no País e depois a realidade em Florianópolis onde a intervenção foi realizada. Relatam que muitas famílias mudam de estados ou cidades em busca de uma melhora socioeconômica, mudando-se o marido primeiro para depois mudar a família toda, alterando toda a dinâmica familiar e muitas vezes o cenário cultural em que a família estava inserida. Explicam que cada família tem um ciclo vital que é formado por fases definidas, desde sua concepção até a morte do ou dos indivíduos que a iniciaram. A intervenção é formada por alguns passos, como processo de saúde-doença da família, em que fase se encontra o ciclo de vida familiar, contexto cultural de origem, organização familiar e ruptura versus construção de redes sociais. As autoras ressaltam a necessidade de se dar atenção a essas famílias e seus processos de adaptação como forma preventiva à saúde delas.

O sexto capítulo aborda uma forma de se trabalhar em processos psicoterápicos com família o jogo terapêutico. As autoras explicam como surgiu o trabalho relatado e explicam o surgimento do jogo, utilizando para isso mais uma vez a primeira família bíblica. Elas mostram que o jogo está muito presente em nossas vidas desde que nascemos, pois é a partir de então que começamos a conviver com o outro e o jogo está muito presente nos relacionamentos. Trazem um breve levantamento teórico de como o jogo surge na via do indivíduo, definindo-o como dinamizador da alegria de viver, e que para cada fase tem um significado diferente. Para o adulto o jogo traz um estado de leveza e despreocupação, para o adolescente o jogo é a busca por identidade, trazendo uma mistura de sentimentos e incertezas em relação a ela. E por último para a criança o jogo se divide em três fases: jogos funcionais, que são movidos pela curiosidade; jogos simbólicos, necessidade de compartilhar a fantasia com o outro; os jogos de regras, no qual introduz a recompensa e a punição. As autoras ressaltam que durante o jogo terapêutico busca-se configurar o trabalho a ser realizado em paradigmas de liberdade e respeito, com limites mínimos integrados pelo próprio grupo. O processo começa dirigido pelos coordenadores e segue com uma abertura gradual aos integrantes que passarão a ser mais espontâneos e criativos, assim é possível alcançar o desenvolvimento da comunicação, autonomia e integração familiar. Após a exposição de um dos encontros realizados com um grupo de 42 participantes elas concluem que o jogo auxilia a família a se comunicar de forma adequada e a superar seus conflitos. Perguntam-se se a sociedade já está preparada, como a família está para se modificar a aceitar a inclusão de todos os indivíduos de forma respeitosa e com o devido valor merecido.

Hintz apresenta no sétimo capítulo o espaço relacional da família contemporânea. Traz um breve histórico sobre o surgimento da família e de suas transformações em termos de estrutura e de relações. Quando se estuda a família deve-se ter em mente que há vários aspectos que influenciam suas relações e todos devem ser levados em consideração, pois irão influenciar o desenvolvimento do indivíduo. É mostrado que atualmente há inúmeras situações que interferem no espaço relacional familiar, como o trabalho dos pais, internet, celulares, computadores, laptops, e-mails, entre outras coisas. Com o relacionamento familiar permeado por tantos fatores, os casais ficaram com um tempo reduzido de convívio tanto entre si quanto com os filhos o que ocasionou uma impaciência e uma maior exigência com o próximo. É importante ressaltar que apesar das diferentes estruturas familiares, a triangulação "pai, mãe e filho" da família nuclear se dá utilizando membros da família mais ampla de um dos cônjuges ou com amigos e técnicos de instituições. A autora aponta ainda que é comum hoje filhos terem convivência com apenas um dos genitores, devido ao divórcio, a relação da criança com o genitor pode se transformar em um vínculo de exclusividade por meio da superproteção da mesma, principalmente em se tratando de filhos únicos, não havendo lugar para a entrada de um terceiro na relação e causando à criança uma dificuldade de compartilhar afeto com os outros. Para tanto é muito importante a rede social, assim a é possível que esta amplie suas vinculações afetivas, deixando a oportunidade da entrada do outro. O ponto mais importante do capítulo é quando a autora mostra estudos sobre o casal homossexual e suas relações e como a interação com as famílias de origem pode atrapalhar esse relacionamento, pois é muito comum que eles recebam apoio de uma parte da família e não de outros, e que a falta de apoio dos familiares pode resultar no prejuízo na qualidade da união estável. Por fim, a família é sempre essencial para a saúde, satisfação e desenvolvimento do indivíduo, assim como para a saúde e estabilidade da sociedade, sendo esse pertencimento essencial para o ser humano.

O oitavo capítulo fala dificuldade da mulher de meia-idade encontrar sua identidade, uma vez que é nesse momento que a sua produtividade começa a decair e eventos estressantes próprios do ciclo vital passam a ocorrer e seus sentimentos muitas vezes não são levados em consideração pela sociedade. Por meio da perspectiva sistêmica, mostra-se a importância do papel da família nessa etapa vivenciada pela mulher, que muitas vezes é considerada pela sociedade como incapaz de redefinir suas redes relacionais. As autoras mostram um histórico sobre a desigualdade vivenciada pela mulher na sociedade e como essa vem se moldando ao que é exigido, mesmo que isso fira seus conceitos mais profundos. É apresentada uma pesquisa qualitativa, na qual os relatos evidenciam uma revisão crítica das relações familiares por parte das mulheres participantes. As relações familiares muitas vezes são assimétricas quando se trata do relacionamento da mulher de meia-idade com os outros membros da família, essa muitas vezes faz sacrifícios pelos outros, como uma forma de proteger-se da incapacitação estabelecida por esses. A revisão das relações nessa idade para mulher possibilita constituição de espaços de autonomia e/ou ação. Muitas vezes, esse período vivenciado pelas mulheres é simplificado, sendo necessário o respeito por parte da família à constituição de sua subjetividade.

Por fim, o último capítulo do livro aborda o tema do abuso sexual infantil e como esse fato repercute no desenvolvimento dessa criança. Nota-se nos últimos 50 anos, que o abuso sexual cometido por parentes próximos à criança e/ou ao adolescente vem aumentando e se tornando cada vez mais visível na população, por isso observa-se uma diferença nos perfis familiares que por vezes se mostra em mudança contínua acompanhando a evolução social e cultural, e em outros momentos mantém o comportamento abusivo sustentado por relações de afetos, poder e autoridade, evidenciando a superficialidade das mudanças sofridas. São apresentados dois trabalhos de intervenção para interromper a reprodução do modelo transgeracional violento e favorecer a reconstituição dos sujeitos e das famílias em novas bases, embasadas no respeito e direitos individuais da infância e de gênero. Demonstra que apesar de se considerar a globalização como um fator favorável para romper com as relações abusivas, na verdade esta é considerada nociva por muitos estudiosos por incrementar e sofisticar tal violência.

Esse livro vem mostrar diversos trabalhos nacionais realizados com as famílias e como essas estão respondendo às intervenções. É importante ressaltar que há muito ainda a ser realizado nesse ambiente para que se possa compreender completamente essas relações tão complexas que ocorrem no ambiente familiar.

 

Recebido em: julho/2007
Revisado em: setembro/2007
Aprovado em: novembro/2007

 

Sobre a autora:

* Priscilla Rodrigues Santana é psicologa, mestranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade São Francisco.