SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 número2Fenomenologia crítica da depressão no Brasil, Chile e Estados UnidosEspaço real, espaço simbólico e os medos infantis índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Latin American Journal of Fundamental Psychopathology On Line

versión On-line ISSN 1677-0358

Lat. Am. j. fundam. psychopathol. on line v.4 n.2 São Paulo nov. 2007

 

ARTIGOS

 

As múltiplas faces da violência

 

The multiple faces of the violence

 

 

Rosane de Abreu e Silva*

Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho faz parte da pesquisa intitulada "Delinqüência Juvenil: um modelo de avaliação clínica voltado à aplicação de medidas socioeducativas", desenvolvido em cooperação entre o Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Clínica da Universidade de Provence e o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. A pesquisa foi realizada na Casa de Internação Provisória da Fundação de Atendimento Socioeducativo   FASE, localizada na região metropolitana de Porto Alegre, tendo como objetivo elaborar um modelo específico de avaliação clínica para adolescentes infratores e buscar as invariantes psicopatológicas na questão da delinqüência. No presente texto, faremos algumas reflexões sobre os modos de subjetivação de jovens com práticas de violência. Através de estudo do caso de um adolescente que encontramos em internação provisória, abordaremos as múltiplas faces da violência decorrentes de falhas na formação de um objeto psíquico e da função paterna.

Palavras-chave: Adolescência, Violência, Objeto psíquico, Psicopatologia


ABSTRACT

The present work is part of the entitled research "Youthful Delinquency: a model of clinical evaluation directed to the application of social educative measures", developed in cooperation between the Laboratory of Psychoanalysis and Clinical Psychopathology of the University of Provence and the Public Ministry of the State of the Rio Grande do Sul. The research was carried through in the House of Provisory Internment of the Foundation of Social Educative Attendance - FASE, located in the metropolitan region of Porto Alegre, having had as objective to elaborate a specific model of clinical evaluation adolescent infractors and to search the psychopathologic invariable factors in the question of the delinquency. In the present text, we will make some reflections on the ways of subjective boarding of young people with practical of violence. Through of boarding case of an adolescent that we find in provisory internment, we will approach the multiple faces of the violence that occurs by fail in the formation of a psychic object and paternal function.

Keywords: Adolescence, Violence, Psychic object, Psychopathology


RESUMÉ

Le présent travail fait parti de la recherche intitulée « Délinquance juvénile : un modèle d'évaluation clinique concernant l'application des mesures socio-éducatives » développé en coopération entre le Laboratoire de Psychanalyse et Psychopathologie Clinique de l'Université de Provence et le Ministère Publique de l'État du Rio Drande do Sul. La recherche s'est réalisée dans le Foyer d'internation provisoire de la FASE (Fundação de Atendimento Socioeducativo), situé dans la région métropolitaine de Porto Alegre, l'objectif étant celui d'élaborer un modèle d'évaluation clinique spécifique aux adolescents qui ont commis des infractions et chercher les invariants psychopathologiques dans la question de la délinquance. Dans le présent texte on fera quelques réflexions sur les modes de subjectivation des jeunes violents. A travers de l'apport du cas d'un adolescent qu'on a trouvé dans le Foyer, on fera quelques remarques sur les multiples faces de la violence qui découlent d'un défaut de construction de l'objet psychique et de la fonction paternelle.

Most-clés: Adolescence, Violence, Objet psychique, Psychopathologie


RESUMEN

El actual trabajo es parte del estudio titulado "Delincuencia Juvenil: un modelo de evaluación clínica dirigido a la aplicación de las medidas sociales y educativas", desarrollado a través de la cooperación entre el " Laboratorio de Psicoanálisis y de Psicopatología Clínica de la Universidad de la Provence "y el " Servicio Publico del Procesamiento de la Provincia de Rio Grande del Sur " El estudio fue realizado en la "Casa de Internación Provisional de la Fundación de la Atención Social y Educativa   FASE", localizada en la región metropolitana de Porto Alegre, con el objetivo de elaborar un modelo de evaluación clínica específico para los adolescentes infractores y de buscar las invariables psicopatológicas en la cuestión de la delincuencia. En el actual texto, haremos algunas reflexiones sobre las maneras de categorizar a los jóvenes con prácticas de violencia. A través del abordaje de una situación de un adolescente que está en internación provisional, abordaremos las múltiples facetas de la violencia resultantes de la falla en la formación de un objeto psíquico y de la función paternal.

Palabras clave: Adolescencia, Violencia, Objeto Psíquico, Psicopatología


 

Ao iniciarmos nosso trabalho de pesquisa na Casa de Internação Provisória da Fundação de Atendimento Socioeducativo FASE, não sabíamos, exatamente, que tipo de realidade encontraríamos. Tínhamos alguma idéia das dificuldades que teríamos de enfrentar e apenas uma certeza: a de encontrar sujeitos privados de liberdade. E, ao perder a liberdade, podemos inferir que o sujeito perde a humanidade. Seguindo a observação do antropólogo Pierre Clastres (1934, p. 161), se o homem é, por natureza, um ser-para-a liberdade, a perda desta exerce seus efeitos no plano mesmo da natureza humana: o homem muda de natureza. Em outras palavras, Clastres coloca que, na perda de liberdade, o homem é desnaturado e esta desnaturação acontece não para o alto, mas para baixo, ou seja, ela é uma regressão, situando-se na ordem do inominável.

De toda forma, as medidas socioeducativas destinadas a adolescentes delinqüentes, chamadas também de medidas de proteção, ainda estão voltadas para a privação de liberdade. Uma vez que as medidas em meio aberto não encontram suporte técnico suficiente para seu acompanhamento, tornam-se inoperantes para o sistema judiciário. Nesse ponto, já encontramos barreiras impeditivas para um trabalho humanizante.

Não é surpreendente, então, que as respostas institucionais a estes jovens venham a ser a ressonância de um sistema que só encontra sua saída no encarceramento deles, considerados dejetos da sociedade. O próprio dirigente da Casa acredita que o destino destes adolescentes não escapa da morte prematura, procurando diariamente nos jornais, notícias sobre a morte de jovens que passaram pelo estabelecimento. "Tanto faz entrevistar um ou outro", ele nos dizia. "Se o guri sair da casa durante o trabalho de vocês, é só chamar outro; é tudo a mesma coisa". Durante nossa permanência na Casa, contava-nos, incansavelmente, episódios de violência ocorridos nas alas dos internos o que nos parecia uma tentativa de provocar espanto ou temor.

Nossa presença causava uma espécie de mal-estar na maioria dos monitores, funcionários e técnicos, que não entendiam porque queríamos trabalhar com estes adolescentes, embora tivéssemos realizado algumas reuniões para explicar o objetivo da pesquisa. Organiza-se uma cultura própria, em que as regras para a sobrevivência são criadas pelo convívio entre os adolescentes, como defesa da violência à qual são submetidos pela instituição. Lotação para sessenta adolescentes, a casa abriga em torno de 190 chegando, por vezes, a 200 adolescentes. As celas escuras e úmidas, chamadas de "brete" pelos próprios internos, possuem acomodação para dois adolescentes. No entanto, nunca há menos de cinco em cada uma delas, sendo que a única alternativa é permanecer deitado nos colchões distribuídos pelo chão. Os internos têm direito a trinta minutos de permanência no pátio, duas vezes ao dia, exceto àqueles que estão no isolamento, chamado de "tratamento especial" pela equipe técnica. Nestes casos, os adolescentes são medicados para diminuir a ansiedade. Alguns adolescentes relatam, ainda, serem submetidos a agressões verbais e violência física pelos monitores da Casa.

Os adolescentes, em sua maioria, não sabem o nome da técnica responsável designada para acompanhá-los durante seu período de internação provisória, e dificilmente conseguem entrevistas com estas após o ingresso. Também não recebem nenhuma informação sobre o andamento do seu processo e nem de quando será sua audiência, situação que provoca grande ansiedade e tensão entre os internos. Poucas atividades são oferecidas aos jovens que permanecem no estabelecimento durante a internação provisória, tempo previsto de, no mínimo, 45 dias, mas que pode se prolongar por tempo indeterminado, quando há acúmulo de processos no sistema judiciário. Algumas oficinas de trabalhos manuais e uma escola funcionam pela manhã comportando, porém, apenas seis adolescentes.

Sobre este ponto, Foucault (1975, p. 352) afirma que "a delinqüência é um produto da instituição." Para o autor, o delinqüente não é um fora da lei; ele está, desde o início, dentro da lei, ou ao menos no meio destes mecanismos que fazem passar, insensivelmente, da disciplina à lei, do desvio à infração. Se é verdade que a prisão sanciona a delinqüência, esta, por essência, se fabrica dentro e para um encarceramento que a prisão, no final das contas, reconduz ao retorno. Podemos supor então que, entre as exigências que surgem após o agir delinqüente, estaria a introdução do simbólico, a qual a instituição deveria ser o vetor. Enquanto o simbólico continua a falhar, não resta a estes jovens senão privilegiar a via do agir.

Dentre os 21 adolescentes com os quais trabalhamos, encontramos Pedro, um jovem de 17 anos que estava em internação provisória por haver cometido dois homicídios e, também, por tráfico de entorpecentes.

O primeiro encontro realizou-se com a mãe do adolescente, procedimento que adotamos ao longo da pesquisa. Izabel, uma mulher de 56 anos, mostra-se muito ansiosa e fala quase sem tomar fôlego. Tinha realizado a primeira visita ao filho, que ingressara há dois dias na Casa de Internação. Diz já estar um pouco melhor depois de tê-lo visto, porque ele lhe garantiu que estava bem, embora estivesse no isolamento.

Izabel queixa-se de solidão e de não ter conseguido fazer o filho ficar com ela. Também se diz irritada porque ele pensa em sair da FASE e voltar a morar com os amigos. "Estou sofrendo há um ano. Ele me deixou para andar com os amigos," diz a mãe.

Izabel perdeu seus pais quando criança. A mãe morreu antes que ela completasse os 11 anos e o pai, após a morte da esposa, começou a vagar pelas ruas. Acabou falecendo em seguida. Freqüentou a escola alguns meses e depois aprendeu a ler e escrever com uma professora em casa. Tem vergonha de dizer que não freqüentou a escola, então, diz ter o primário incompleto. Saiu de casa e veio para Porto Alegre quando o pai faleceu. Nunca mais teve contato com seus irmãos. Namorou um policial com quem teve uma filha, atualmente com 32 anos. Depois morou com um músico durante oito anos, mas a relação terminou devido ao ciúme que tinha do companheiro. Saiu por duas vezes com o pai de Pedro, um homem casado, com um filho de 22 anos. Engravidou de Pedro aos quarenta anos. Depois que o menino cresceu, diz ter tentado aproximá-lo do pai. Este o levou para trabalhar com ele, mas, segundo Izabel, acabou desistindo dizendo que o menino não gostava dele.

Depois do nascimento de Pedro, Izabel diz que "não quis saber de mais ninguém". Teve uma relação que durou pouco tempo, mas não moraram juntos. "Pedro é minha razão de viver", ela comenta. Amamentou seu filho durante três meses e atribui o desmame ao câncer que teve no seio. "No dia em que Pedro completava dois anos, estava no hospital tirando o seio. Tive câncer quando meu bebezinho ainda mamava.", explica a mãe. Pergunto-lhe a quem ela se referia e ela me responde: "Pedrinho, o meu bebezinho."

Pedro abandonou a escola alguns meses depois de começar o primeiro ano do ensino médio. Izabel tentou ajuda do conselho tutelar diversas vezes, pois não sabia o que o filho ficava fazendo na rua com os amigos, porém não obteve resultados. Pedro matriculou-se em outra escola iniciando o ano letivo. Evadiu-se novamente em abril do mesmo ano, após ter cometido o primeiro homicídio. Desde então estava foragido, motivo pelo qual a mãe resolveu mudar-se para outro bairro. Sabia do homicídio e não queria que ele fosse pego pela polícia.

Porém, Pedro não foi morar com ela. Foi residir com seus amigos. Segundo a mãe, esses fazem tráfico de entorpecentes. Quanto ao homicídio, seus relatos são confusos. O primeiro, ela diz que foi em um baile e a briga começou entre a vítima e outra pessoa. O segundo homicídio, ocorrido em agosto do mesmo ano, foi porque a vítima teria ameaçado seu filho, que havia voltado ao bairro onde residiam para rever amigos. O adolescente voltou a morar neste mesmo bairro, momento em que a mãe acredita que começou seu envolvimento com o tráfico. "Ele é burro, fica se expondo por ai", diz a mãe. Pedro visitava-a semanalmente e pedia dinheiro. Ela lhe dava em torno de R$ 30,00 por semana, o que a faz concluir que ele não teria dinheiro suficiente para comprar a arma que disse ter custado R$ 350,00. Izabel comenta que o filho estava acompanhado de um jovem adulto, quando foi capturado pela polícia. Este também está detido, mas Pedro disse a ela que não vai entregar ninguém, assumindo a responsabilidade pelos dois homicídios e tráfico de entorpecentes. Izabel acrescenta: "Ele gosta de mim, mas não quer ficar comigo. Eu posso oferecer o céu para ele."

No dia anterior à captura do filho pela polícia, Izabel diz tê-lo esperado para jantar. Como ele não apareceu, deixou comida e dinheiro para ele no dia seguinte. "Deixei bilhete aqui e ali de tanto que eu amo ele", diz a mãe. Quando soube que o prenderam, teve vontade de sair pela rua gritando seu nome. Izabel segue sua fala: "Acho que tenho pânico de perder as pessoas, pai, mãe, irmãos, filhos. Cheguei até a sonhar que eu perdia ele, que ele tinha fugido e acordava gritando. Agora é como se eu tivesse morrido."

Pedro dormiu na cama com a mãe até que completasse 11 anos, a mesma idade com que Izabel perde sua mãe. "Tudo era para ele", ela lembra. Não consegue dormir à noite, pois tem medo que ele esteja passando fome. Sente-se perdida porque não tem para quem fazer comida e nem de quem cuidar. Tem vontade de procurar seus parentes no interior, mas acha que precisaria de muito dinheiro para procurá-los.

Izabel comenta ainda que sente muita ansiedade e não consegue dormir, mas não quer fazer tratamento com psicólogo, como lhe recomendaram. Acha que o tratamento não vai resolver a dor, pois o problema agora é com a polícia. Ela se despede pedindo-me que cuide de seu filho e que o convença a ficar com ela quando sair da FASE. Diz também que vou poder ver como seu filho é bonito e como ele se parece com um anjinho, com seus cabelos loiros.

De fato, Pedro se parece com um daqueles anjinhos, personagens de livros infantis. Cabelos loiros encaracolados e grandes olhos azuis que, no entanto, lançavam um olhar ora distante e indiferente, ora apreensivo. O primeiro encontro com Pedro foi difícil, assim como os outros que se seguiram. Embora tivesse concordado em participar da pesquisa, não se mostrou nada disponível na primeira vez que o vimos. Estava no isolamento e dormia quando o chamaram.

Pedro não quer falar sobre sua história. Diz ter muitas lembranças da infância, porém nada quer dizer sobre elas. Com a proposta de que falasse então o que viesse no seu pensamento, ele pronuncia frases curtas, parecendo cuidar muito para que nada escapasse. Continuava a falar quando colocávamos alguma questão, mas sempre bastante reticente. Diz ter parado de estudar por causa dos homicídios. O primeiro ocorreu quando morava com a mãe ainda. Envolveu-se em uma briga em uma festa e passou a sofrer ameaças. Voltou ao local no final de semana seguinte com uma arma que tomou de um amigo e cometeu o homicídio. Em um primeiro momento, Pedro comenta que, a partir de então, não quis mais morar com a mãe para protegê-la, mas logo depois diz que queria sua independência e que a mãe o controlava.

A vítima do segundo homicídio participou da mesma briga e também o ameaçou. Pedro não pensou em buscar a ajuda de ninguém, muito menos procurar a polícia. "Polícia não serve para nada. Não adianta nada", ele comenta. Pedro não sabe a idade das vítimas. Acha que eram jovens. Não pensou em nada antes e nem depois de cometer os homicídios. Apenas pensou que devia matar. Acrescenta que foi pego na casa onde mora com amigos por tráfico de entorpecentes e que prenderam também o amigo que estava com ele no momento. Era maior de idade e Pedro faz questão de dizer que ele é inocente. Afirma novamente querer evitar falar sobre este assunto ou qualquer outra coisa.

No decorrer do nosso trabalho, Pedro sai do isolamento, mas sempre tem de ser acordado no horário que deixamos marcado para novo encontro. Na verdade, ele dorme a maior parte do tempo evitando assim falar com os outros internos. Acompanhamos a aplicadora nos testes TAT (Teste de Apercepção Temática) e Rorschach. Especialmente na aplicação do TAT, Pedro mostra-se extremamente resistente na primeira prancha e, entre suspiros e caretas, argumenta que odeia histórias. Na segunda prancha, mostra-se irritado com a cena que se configura.1 Coloca a prancha na mesa e, afastando-a, diz estar enjoado e com vontade de vomitar. Pede para ir ao banheiro e, logo após, a monitora informa que ele foi para a enfermaria e que não poderia prosseguir. Pedro realiza o segundo teste, mas pouco fala novamente.

No encontro seguinte, Pedro nos revela que não gostou dos testes enfatizando novamente que não gosta de histórias, porém consegue trazer algo de sua própria história. Seu pai trabalhava em uma oficina eletrônica para onde ele gostava de ir, mas não sabe o porquê de não ter ido mais. Disseram-lhe que o pai havia se mudado e, a partir de então, perdeu o contato com ele. Também lembra que gostava de jogar futebol quando criança. Mas logo se desvia de suas recordações queixando-se de não conseguir falar com a técnica responsável pelo seu caso para solicitar liberação de visita da sua namorada.

Pedro torna-se um pouco mais receptivo no último encontro. Esboça o primeiro sorriso ao entrar na sala. Antes de encerrar o trabalho com Pedro, arrisquei dizer-lhe que penso que ele não pode falar muito em função de estar envolvido com o tráfico e, por essa razão, resolve assumir tudo o que aconteceu e não contar nada, inclusive sobre ele. Nem contar histórias, muito menos a sua história. Pedro balança a cabeça em sinal de afirmação. Com um sorriso que parece expressar surpresa e alívio ao mesmo tempo, ele tece seu último comentário: "Mas é assim... o que eu posso fazer... e se eu dissesse alguma coisa a senhora poderia se ferrar também."

Evidentemente, este jovem não podia contar sua história, mas de alguma maneira ele também revela não gostar da sua história. De uma forma ou de outra, esta espécie de apagamento ou de anulação diz respeito às leis do tráfico. Leis de extrema violência, às quais Pedro se submete e é extremamente fiel, na tentativa de sair da posição em que se encontrava junto à mãe, buscando uma outra configuração que permanecerá, no entanto, regressiva no que concerne ao objeto. Como se pôde observar, o discurso da mãe denuncia algo da ordem do incestuoso e, no seu contexto, Pedro tem a função de tamponar sua falta. Sobre este aspecto, é importante ressaltar que a mãe, através do seu discurso, é o agente introdutor da dimensão paterna como terceiro separador sustentando o lugar imaginário do pai, condição essencial para que a metáfora paterna funcione. Da mesma forma, podemos dizer que a proibição do incesto é feita por uma lei cuja mediação também deve ser assegurada pelo discurso da mãe. Porém, a função paterna não encontra lugar no discurso da mãe de Pedro, revelando-se também inoperante no que tange às leis que regem o social. Seria uma tentativa de buscá-la, por vias tortuosas, nas leis do tráfico?

Na verdade, no que concerne ao objeto, ele só acede à sua existência ao se tornar um objeto perdido. Na teoria freudiana, como testemunha o texto Luto e melancolia (Freud, 1915), o objeto é, antes de tudo, aquele da perda. É importante observar neste ponto que, se em um primeiro momento, Freud considera o objeto como o que existe de mais variável na pulsão, anos mais tarde, no seu texto Esboço de psicanálise (1938), ele acentua que a mãe adquire uma importância única. O objeto intrinsecamente variável de sua teoria das pulsões desloca-se para um único objeto.

Assim, como observa André (1999), este objeto, quanto mais único e insubstituível, maior a impossibilidade de se dá-lo como perdido, de objetá-lo. Trata-se aqui, então, da mãe que não permite a elaboração de sua perda. Para tanto, certamente é a mãe, em primeira instância, que deve elaborar o seu bebê como um objeto perdido.

No desenvolvimento psíquico os objetos da pulsão determinam a vida pulsional do sujeito, considerando que sua evolução permite a percepção do objeto em sua ausência, vias da construção de um objeto psíquico. Para tanto, ele deve ser um objeto perdido passando por uma série de modificações, nas quais o sujeito deve encontrar equivalentes simbólicos.

Trabalho de substituição a realizar, o adolescente encontra-se diante de duas vias antagonistas: de uma parte, ele pode simplesmente substituir materialmente o objeto por um outro na realidade exterior sem, no entanto, modificar a modalidade do laço. De outra parte, ele pode proceder a uma modificação ao nível da realidade psíquica, o que implica uma metamorfose interna e administração de suas pulsões. (Abreu e Silva, 2007, p. 78)

No caso de Pedro, assim como o de outros adolescentes delinqüentes, é essa dificuldade que encontramos: a impossibilidade de buscar outros objetos pela falha de construção do objeto psíquico. "O jovem delinqüente é alguém que passou pela dificuldade de construções de bases indispensáveis à formação de um objeto psíquico" (Abreu e Silva, 2007, p. 79). Este adolescente, na tentativa de libertar-se desta posição de objeto capturado no apelo exercido pelo discurso materno, o que já comporta então uma violência contra o sujeito, entrega-se, ele mesmo, como objeto do tráfico. Portanto, nenhuma modificação se processa ao nível da realidade psíquica. De uma forma ou de outra, a direção é a morte. À impossibilidade de se desenhar um lugar como sujeito soma-se a morte real, pois estss jovens inseridos no tráfico de entorpecentes sabem que a expectativa de sobrevivência termina antes de completarem 18 anos. Para este adolescente, uma separação que não pode ser elaborada, parece só encontrar na morte o limite humano do desejo.

O caso de Pedro é um exemplo, entre tantos outros, em que as políticas sociais não contemplam nenhum lugar para a palavra, uma vez que a preocupação parece se limitar ao encarceramento desses jovens, a título de proteção. Jogados no silêncio, estes jovens cumprem um destino traçado pela lei, aprisionados pelo descrédito das políticas sociais vigentes.

 

 

Referências

ABRUE e SILVA, R. de. Sujeito e objeto na delinqüência juvenil. Pulsional Revista de Psicanálise, São Paulo, ano XX, n. 189, p. 72-80, março 2007.        [ Links ]

ANDRE, J. L'unique objet. In: Les états limites. Paris: PUF, 1999.        [ Links ]

CLASTRES. (1934). Arqueologia da violência. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.        [ Links ]

FOUCAULT, M. Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1975.        [ Links ]

FREUD, S. (1915). Luto e melancolia. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XIV.        [ Links ]

_____. (1915). Pulsões e destino das pulsões. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XIV.        [ Links ]

_____. (1938). Esboço de psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XXIII.        [ Links ]

SILVA, M. C. TAT: Aplicação e Interpretação do Teste de Apercepção Temática. São Paulo: EPU, 1989.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Miguel Couto, 464, Ap. 208
90850-050 Porto Alegre, RS - Brasil
Fone : (51) 2112-85 28
E-mail : rasgam@terra.com.br

Recebido em 11 de setembro de 2007
Aceito em 13 de outubro de 2007
Revisado em 15 de outubro de 2007

 

 

* Psicanalista, Doutora em Psicopatologia e Psicanálise   Universidade Paris 13; membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental ; assessora de Perícias Médicas no Centro de Perícias Médicas do Tribunal de Contas do Estado do RS; coordenadora do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa do Ministério Público do Estado do RS.
1 Prancha 2 (universal)- A estudante no campo: evoca a área das relações familiares, percepção do ambiente e nível de aspiração. Por apresentar três personagens pode evocar ainda as relações heterossexuais. São freqüentes, também, associações aos papéis femininos entre eles a maternidade. SILVA, Maria Cecília de Vilhena Moraes, TAT: Aplicação e Interpretação do Teste de Apercepção Temática.

Creative Commons License