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Latin American Journal of Fundamental Psychopathology On Line

versão On-line ISSN 1677-0358

Lat. Am. j. fundam. psychopathol. on line v.4 n.2 São Paulo nov. 2007

 

ARTIGOS

 

Quando qualquer semelhança não é mera coincidência: o lugar da construção de caso na pesquisa psicanalítica

 

When similarity is no mere coincidence: the place of the construction of a case in psychoanalytic research

 

 

Sabine Kraenker*

PUC-SP
Faculdade Dom Bosco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse artigo pretende esclarecer a especificidade da construção do caso clínico na pesquisa psicanalítica. A pesquisa em psicanálise é um percurso que se inicia por um enigma e é finalizado em uma construção metapsicológica. Esse enigma é suscitado no psicanalista pelo que o afeta em sua clínica e coloca-o a transformar sua vivência em uma elaboração a posteriori &– construção metapsicológica. O caso clínico é uma construção ficcional necessária que apresenta sua singularidade e possui uma metapsicologia &– referência à generalização. Para que um caso clínico se torne uma metapsicologia ele deve ser avalizado pelo Outro &– referência à alteridade &– representado pela comunidade de pesquisadores, na universidade.

Palavras-chave: Caso clínico, Metapsicologia, Outro.


ABSTRACT

This article discusses specific aspects of the construction of clinical cases in psychoanalytic research, a path that begins with an enigma and can be concluded as a metapsychological construction. The enigma is stirred up in a psychoanalyst by what affects her in her clinical work, and leads her, a posteriori, to work through this experience, to wit, to develop a metapsychological construction. A clinical case is a necessary fictional construction that has both a singularity and a metapsychology. It is a reference to generalization. For a clinical case to become metapsychology it must be endorsed by anOther &– a reference to alterity &– represented by the community of university researchers.

Keywords: Clinical case, Metapsychology, Another.


RESUMÉ

L’objectif de cet article est d’investiguer la spécificité de la construction du cas clinique en recherche psychanalytique. La recherche psychanalytique est un parcours qui commence par une énigme et se termine en construction métapsychologique. Pour le psychanalyste, cette énigme résulte de ce qui l’affecte lors de sa clinique et le pousse à transformer son expérience en une élaboration a posteriori &– une construction métapsychologique. Le cas clinique est une construction fictionnelle nécessaire qui se caractérise par sa singularité et qui possède une métapsychologie &– une référence à la généralisation. Pour qu’un cas clinique se transforme en métapsychologie, il doit être certifié par l’Autre &– une référence à l’al térité &– qui est représenté par la communauté des chercheurs à l’université.

Most-clés: Cas clinique, Métapsychologie, L‘Autre.


RESUMEN

Este artículo se propone esclarecer la especificidad de la construcción del caso clínico en la investigación psicoanalítica. La investigación en psicoanálisis es un recurso que tiene inicio en un enigma y culmina en una construcción metapsicológica. Dicho enigma es suscitado en el psicoanalista por lo que lo afecta de su clínica y lo pone a transformar su vivencia en una elaboración a posteriori &– construcción metapsicológica. El caso clínico es una construcción ficcional necesaria que presenta una singularidad y posee una metapsicología &– referencia a la generalización. Para que un caso clínico se torne una metapsicología debe ser avalado por Otro &– referencia a la alteridad &– representado por la comunidad de investigadores, en la universidad.

Palabras claves: Caso clínico, Metapsicologia, Otro.


 

A pesquisa em psicanálise é um percurso que se inicia por um enigma e é finalizado em uma construção metapsicológica (Berlinck, 2000). O enigma de pesquisa é suscitado no psicanalista por algo que o afeta em sua clínica, pois o psicanalista nela está implicado pela escuta, pelo olhar e por seu pathos, isto é, pelo que ele é afetado pelo discurso do sofrimento do outro. Mas, é preciso esclarecer estas implicações. De que olhar se trata? E de que escuta? Diferentemente da visão e audição, a escuta e o olhar supõem uma subjetividade na leitura de um discurso. A clínica exige do psicanalista que ele responda à sua prática com seus recursos subjetivos. Assim, a subjetividade e o corpo do analista são instrumentos para a sua atuação.

Lacan (1958, p. 593) em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” nos ensina que o analista paga com seu corpo, no que ele é suporte da transferência; paga com as palavras no que elas são transformadas em
interpretação e, ainda, paga com o que há de essencial em seu juízo mais íntimo:
paga com o seu ser. Berlinck (2003), a partir da noção de porta-marcas de Pierre Fédida, esclarece que:

(...) o início de praticamente todo tratamento psicoterapêutico, há um não saber o paciente que é transferido para o psicoterapeuta. Este se confronta com a condição de porta-marcas, gerando um mal-estar em relação ao sabido. Este malestar possui matriz biológica, pois o porta-marcas é o próprio corpo do psicoterapeuta no qual se manifestam afetos próprios do não-saber transferido pelo paciente. Nesta circunstância, o sicoterapeuta sente dor, depressão, angústia e uma ausência de representação de coisa e de palavras que, se tudo ocorrer bem, irá desaparecer posteriormente. Isto dependerá de sua capacidade clínica de se debruçar e escutar, além do vazio, aquilo que o paciente tem para lhe transmitir, que é da ordem de um saber não sabido, e ainda, dependerá de ser capaz de colocar, de alguma forma, essa memória inconsciente em palavras sistematicamente elaboradas, num logos, enfim (p. 5).

Localiza-se aí então o motor de uma pesquisa, quando o pathos do analista é transformado em logos, em saber. Assim, há uma implicação daquele que escuta desde a vivência da clínica até a elaboração a posteriori em experiência &– pela via da análise pessoal, supervisão e, finalmente, por aquilo que aqui nos interessa, a pesquisa. Nesse mesmo sentido, o analista está implicado em sua clínica pelo o que Lacan nomeia ao dizer que “o analista faz parte do conceito de inconsciente”. Só há a possibilidade de existência do inconsciente se houver um interlocutor que o reconheça, que o escute, que o interprete no que ele consiste em repetição, mas também em sua potência criativa.

É desde a escuta clínica, baseada em uma metapsicologia já incorporada pelo analista, mas também e, sobretudo pelo que lhe escapa, que se fundamenta a pesquisa, pois o coloca diante da posição ética da psicanálise: o que quer que seja é preciso chegar lá.

O enigma é o primeiro momento de uma pesquisa e, segundo Berlinck (2000), é uma discrepância entre aquilo que é e o que deveria ser. Em um segundo momento é necessário um distanciamento da vivência de um enigma para formular a construção do caso, pois para Queiroz, “na produção de pesquisa metapsicológica o caso clínico aparece como ancoragem necessária”, e não apenas como a ilustração de uma teoria.

Fédida (1991) ensina que o “caso é uma metapsicologia em gérmem”, isto é, cada caso apresenta a sua singularidade, que se configura em transferência e que possui uma metapsicologia própria, uma construção teórica que o fundamenta em sua particularidade. A metapsicologia “elabora um conjunto de modelos conceituais mais ou menos distantes da experiência como, por exemplo, a ficção de um aparelho psíquico, dividido em instâncias, tal como a teoria das pulsões, que Freud nomeia como um mito” (Laplanche e Pontalis, 1986).

Freud, logo no início de sua prática, em “Estudos sobre a histeria” (1893- 1895), faz quase que um desabafo ao revelar o estranhamento deste caráter ficcional do caso, quando diz:

Nem sempre fui psicoterapeuta. Como outros neuropatologistas, fui preparado para empregar diagnósticos locais e eletroprognose, e ainda me surpreende que históricos de casos que escrevo pareçam contos e que, como se poderia dizer, eles se ressintam do ar de seriedade da ciência. Devo consolar-me com a reflexão de que a natureza do assunto é evidentemente a responsável por isso, antes do que qualquer preferência minha. O fato é que o diagnóstico local e as reações elétricas não levam a parte alguma no estudo da histeria, ao passo que uma descrição pormenorizada dos processos mentais, como os que estamos acostumados a encontrar na obra de autores imaginosos, me permitem, com o emprego de certas fórmulas psicológicas, obter pelo menos certa compreensão do curso da afecção. Relatos desta natureza destinam-se a ser julgados como psiquiátricos; possuem, contudo, uma vantagem sobre os outros, a saber, uma ligação íntima entre a história dos sofrimentos do paciente e os sintomas de sua doença. (p. 124)

A especificidade da construção de um caso clínico consiste em que ao passar pela subjetividades do clínico - já que é efeito de um olhar e de uma escuta sobre o discurso do outro em transferência - não é uma descrição objetiva do relato, da história, ou mesmo da experiência da análise, mas sim uma construção que tem este caráter ficcional dado não só como (se) explica Freud, pela natureza do conteúdo, mas também pela técnica da psicanálise dada pela regra fundamental, a saber, a associação livre e atenção flutuante na revelação de uma realidade psíquica.

Estas condições da técnica psicanalítica suportam o que Berlinck (2000) chama de uma epistemologia onírica da sessão de psicanálise. As conseqüências e importância destas afirmações são que:

1) Não somente o caso é uma construção ficcional como só pode ser formulado, só pode vir a existir se tiver este caráter ficcional, envolto por um véu onírico, que possibilita um distanciamento, em termos de espaço e temporalidade psíquicos, para transformá-lo então, a posteriori, de uma vivência &– de pathos &– em uma experiência: construção metapsicológica.

2) Que a construção do caso seja ficcional não quer dizer que ela possa estar isenta de clareza, consistência e rigor conceitual, qualidades exigidas em uma pesquisa.

3) A ficção é verossímil, e a construção de um caso deve ter esta característica.O verdadeiro do caso está no campo do real, no sentido lacaniano, pois a ele não temos acesso senão pela via simbólicoimaginária, que estabelece sua constituição verossímil. De outra forma, seria um constructo artificial que criaria um Frankstein inumano e, portanto, sem possibilidade de metapsicologia.

Pode-se lembrar o que Freud sublinha como a importância da reconstrução em análise, quando a reconstrução é feita pelo preenchimento de lacunas por meio de uma história simbólico-imaginária que tem função de sustentação psíquica e de veracidade para aquele que a constrói, porque tem ligação com o factual. Se não fosse assim, quais seriam os critérios para discernir que se trata de uma pesquisa ou de uma concatenação delirante?

Como exemplo dessa construção delirante temos o livro de Schereber (1985), Mémória de um doente dos nervos, que podemos considerar como uma tentativa de construção de uma metapsicologia como função paterna para sustentar-se psiquicamente, mas que se dá pela via real - imaginária.

A metapsicologia então é:

1) O “pé-no-chão” da psicanálise, pois é o campo que trata do singular e do universal dos fenômenos e das estruturas psíquicas fundamentada numa tradição de pensamento, numa matriz cultural e filiação que já foram comprovadas pelo real da clínica.

2) O constructo teórico que sustenta a psicanálise como leitura e intervenção clínica corroborada pelos acontecimentos desta clínica. Não se trata de uma elucubração teórico-filosófica, mas de uma práxis.

Para complicar um pouco mais, Freud (1937) chama a metapsicologia de feiticeira, quase uma fantasia, que pode vir ao nosso encontro como apoio e referência quando se está perdido. Então ainda sim, mesmo a metapsicologia tem caráter ficcional, mas também elaborativo.

Em última análise, na continuidade da nossa questão sobre o que garante tratar-se de uma construção metapsicológica ou de uma construção delirante, podemos nos utilizar da ajuda do conceito de metapsicologia de Irribary (2003):

Metapsicologia é um campo de conhecimentos psicanalíticos que vai da vivência de uma experiência à elaboração de uma ficção teórica. Da ficção teórica se vai à alteridade e, depois disso, retorna à experiência. Nesse processo, um saber pode ser construído e, assim, quando o pesquisador retornar à experiência poderá modificar e transformar radicalmente o seu sentido (p. 59).

O que é importante ressaltar é a referência à alteridade, referência ao campo do Outro &– e, portanto, ao simbólico recortado em um rosto de cultura e sociedade de determinada época e encarnado no semelhante. Ao se remeter à alteridade, o pesquisador retira-se de um risco de uma produção narcísica, pois o Outro tanto lhe oferece uma referência de filiação a constructos teóricos que traçam a sua marca no real, quanto o coloca diante de uma comunidade mais ampla &– de pesquisadores - e submete ao Outro a sua produção que pode legitimála ou não como uma pesquisa e contribuição metapsicológica. Daí resulta a importância da pesquisa em psicanálise na universidade.

 

 

Referências

BERLINCK, Manoel. Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Escuta, 2000.        [ Links ]

____ Seminário Inaugural do Laboratório de Psicopatologia fundamental do Programa de Estudos Pósgraduados em Psicologia Clínica. São Paulo: PUC-SP, fev 2003.        [ Links ]

FÉDIDA, Pierre. Nome, figura e memória: a linguagem na situação analítica. São Paulo: Escuta, 1991.        [ Links ]

FREUD, Sigmund (1893-1895). Estudos sobre a histeria. In: Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Direção de Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. 1.        [ Links ]

____ (1937). Análise terminável e interminável. In: Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Direção de Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. 23.        [ Links ]

IRRIBARRY, Isac. O diagnóstico transdisciplinar em psicopatologia. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. VI, n. 1, p. 53-75, mar.2003.        [ Links ]

LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1986.        [ Links ]

QUEIROZ, Edilene Freire. O estatuto do caso clínico. Pulsional Revista de Psicanálise, São Paulo, ano 15, n.157, p. 33-40, maio 2002.        [ Links ]

SCHREBER, Daniel Paul. Memória de um doente dos nervos. 2. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Brigadeiro Franco, 125 ap.13
80430-210 Curitiba, PR
e-mail: flaviaps@hotmail.com

Recebido em 6 de setembro de 2007
Aceito em 10 de setembro de 2007
Revisado em 15 de outubro de 2007

 

 

* Psicóloga, psicanalista, mestre em psicologia clínica &– PUC-SP; doutoranda do Programa de estudos pósgraduados em psicologia Clínica - Laboratório de Psicopatologia Fundamental PUC-SP; professora da Faculdade Dom Bosco; psicóloga do Hospital Pequeno Príncipe.

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