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Latin American Journal of Fundamental Psychopathology On Line

versão On-line ISSN 1677-0358

Lat. Am. j. fundam. psychopathol. on line v.5 n.1 São Paulo maio 2008

 

ARTIGOS

 

Uma pele para as palavras: sobre a importância dos envelopes sensoriais na clínica psicanalítica com a criança autista

 

A skin to the words: on the relevance of sensory envelops in the psychoanalytical clinic with the autistic child

 

Maria Teresa Melo Carvalho*

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo parte de um questionamento sobre o uso da interpretação na clínica psicanalítica com a criança autista para, em seguida, defender a importância das intervenções apoiadas na esfera sensorial, tal como sistematizadas por Tafuri, com sua tese do "analista não intérprete". Busca, ainda, um aprofundamento da fundamentação teórica de tal tese.

Palavras-chave: Clínica Psicanalítica do Autismo, Eu-pele, Objetos Autistas.


ABSTRACT

The present paper raises a question on the use of interpretation in the psychoanalytical clinic with the autistic child, in order to defend the relevance of the interventions based upon the sensory domain as proposed by Tafuri, in the realm of her "non interpreter psychoanalyst" thesis. It also aims to go further regarding the theoretical foundations of this thesis.

Keywords: Psychoanalytic Clinic of Autism, Ego-skin, Autistic Objects.


RESUMÉ

Cet article part d´une mise en question de l´utilisation de l´interprétation dans la clinique psychanalytique de l´autisme pour soutenir, ensuite, l´importance des interventions basées sur le domaine sensoriel, telles qu´elles ont été proposées par Tafuri dans le cadre de sa thèse de « l´analyste non-interprète ». L´auteur envisage, aussi, un approfondissement des fondements théoriques d´une telle thèse.

Mots clés: Clinique Psychanalytique de l´Autisme, Moi-peau, Objets Autistiques.


RESUMEN

El presente articulo parte de un cuestionamiento sobre el uso de la interpretación en la clínica psicoanalítica con niños autistas para, en seguida, defender la importancia de las intervenciones apoyadas en la esfera sensorial, tal como son sistematizadas por Tafuri en su tesis del "analista no interprete". Busca, además, profundizar en la fundamentación teórica de tal tesis.

Palabras clave: Clínica Psicoanalítica en Autistas, Yo-piel, Objetos Autistas.


 

 

Introduction

Desde os seus primeiros passos, a clínica psicanalítica com crianças autistas tem se guiado pelo recurso à interpretação, apesar da ausência de linguagem da maioria dessas crianças. O caso Dick, atendido por Melanie Klein, é hoje considerado o precursor dessa clínica. Dick não se expressava verbalmente, mas esboçava brincadeiras que foram interpretadas por Klein em termos de conteúdos edípicos, como se estes estivessem atuantes no inconsciente da criança. Tais interpretações mostraram-se efetivas pelos evidentes progressos apresentados pela criança (Klein, 1930, p. 219-232).

Relendo esse caso, Lacan (1975) ponderou que a efetividade da interpretação proposta por Klein residiu não no fato de ela ter revelado conteúdos inconscientes à criança, mas sim no fato de ter promovido o recalcamento, fundando o inconsciente de Dick (p.81-100). Ou seja, o inconsciente de Dick teria se constituído a partir do discurso de Klein que simbolizou, com palavras ditadas pela teoria, aquilo que ainda não estava inscrito nele como desejo, no mesmo sentido em que a mãe antecipa o desejo da criança ao interpretar seu choro, seus gestos, seu comportamento.

Temos então, com Lacan, uma nova leitura daquilo que se passa entre a criança psicótica e o analista, mas essa leitura não sugere uma modificação na característica das intervenções. Essas continuariam a ser feitas pela via da linguagem, com o caráter de interpretações, ainda que num sentido diferente daquele presente em Klein. O que justifica a interpretação do analista, nessa abordagem, não é a idéia de que a brincadeira da criança expressa uma fantasia inconsciente, mas sim a idéia de que o analista se faz presente ali como suporte do Outro.

Entretanto, em muitos casos de autismo, e em particular naqueles em que o comprometimento da comunicação é severo, o recurso à interpretação esbarra em obstáculos enormes, não se podendo vislumbrar um progresso como aquele conseguido por Dick. Insistir na interpretação, em tais casos, pode incrementar a angústia da criança ou resultar numa ausência total de respostas por parte desta, e isso por sessões a fio, deixando o analista sem palavras e sem recursos. Foi tal constatação que levou Tafuri a defender a tese do "analista não intérprete" na clínica com crianças autistas. Baseando-se no "caso Maria", que acompanhou por um longo período de tempo, essa autora sustenta a centralidade da esfera sensorial no início do tratamento de crianças autistas cujo comprometimento da comunicação é muito grande. Ressalta, em particular, a função sensorial da voz e mostra que os jogos de sons que se estabelecem entre analista e paciente são cruciais no sentido de criar uma possibilidade de comunicação.

A tese de Tafuri teve importância decisiva no atendimento de Olívia, paciente autista que acompanhei dos quatro aos oito anos de idade. Passo a expor um fragmento desse caso para, em seguida, contrastá-lo com o fragmento de um caso encontrado na literatura, o caso de Julián, paciente de Rodulfo, apresentado no seu artigo "Os modos de representação característicos da patologia autista" (2001). O contraste entre os dois casos possibilitar-me-á retomar a discussão sobre a importância da tese do analista não intérprete, em contraposição ao uso da interpretação, buscando aprofundar a reflexão, já iniciada por Tafuri, sobre seus fundamentos teóricos.

 

Olívia e a ausência do "não"

Olívia acabara de completar 4 anos quando seus pais consultaram-me por indicação da pré-escola que passara a freqüentar havia dois meses. Vários elementos de sua história clínica indicavam um quadro de autismo infantil precoce. Dentre esses elementos, crises freqüentes de auto-mutilação eram fonte de grande dificuldade e sofrimento para os pais e para as demais pessoas que lidavam com a menina no dia-a-dia. Olívia mordia suas mãos e batia a cabeça na parede, no chão, ou onde quer que fosse possível.

Quando a vi pela primeira vez, essas crises estavam relativamente controladas pela intervenção medicamentosa do psiquiatra que passara a acompanhá-la, depois de algumas passagens, sem sucesso, por neurologistas. Esse controle possibilitou seu ingresso na escola e a retomada, pela mãe, de sua vida profissional. No entanto, tais crises não desapareceram completamente e, algum tempo depois, voltaram com tal intensidade que a rotina familiar recomeçava a ficar comprometida e a permanência da criança na escola extremamente dificultada.

Os pais, que já estavam habituados com o estado mais sereno da filha, ficavam se perguntando como agir ante essa nova onda de crises, o mesmo sucedendo com os profissionais da escola para os quais essa situação trazia problemas de várias ordens. Na percepção de todos que lidavam com a menina, tais crises pareciam produzir-se em situações de frustração e teriam o sentido de manipulação; seriam o correspondente de uma birra e, como tal, deveriam encontrar o limite do "não" do adulto. De fato, em períodos de maior serenidade, os pais observavam que a criança, ao aproximar-se de um objeto que já sabia que não poderia tocar, anunciava o gesto de bater a cabeça na parede e, ao ouvir um solene "não" do pai, interrompia o gesto. Mas nos períodos em que se intensificavam, as crises pareciam caóticas, sem qualquer endereçamento ao outro, como se fossem reações imediatas a um afluxo de excitação insuportável. Perguntava-me então se, nesses momentos, poderíamos responder com a interdição. A interdição, na sua forma do enunciado verbal, acompanhada de interpretação, poderia ter o efeito de proporcionar um limite àquilo que escapava, de forma avassaladora, pela via motora, como auto-agressão? Não seria o caso de privilegiar intervenções que visassem à contenção? Refiro-me aqui tanto à contenção física da criança, sem insistência na interpretação, quanto à contenção psíquica da angústia dos pais na medida em que o incremento das crises de Olívia, muitas vezes ligado a momentos de conflitos ou de desorganização da rotina familiar, vinha desestabilizar ainda mais essa rotina, provocando um crescendo nas situações de angústia que, evidentemente, envolviam também a criança.

Com essas questões em mente e buscando apoio na literatura, encontrei o artigo de Marisa P. Rodulfo, anteriormente mencionado, que instigou-me às reflexões que se seguem.

 

Os objetos e as formas autistas de sensação e seu funcionamento como barreira à comunicação

Em seu artigo, Rodulfo apóia-se no conceito de objetos autistas de sensação, introduzido por Frances Tustin (1990), para enfrentar o difícil encontro com os comportamentos pelos quais a criança autista evita o contato com o outro.

Do ponto de vista de sua fenomenologia, os objetos autistas são familiares a qualquer pessoa que lida com esse tipo de transtorno. São os objetos aos quais a criança apega-se, utilizando-os de forma estereotipada, uma forma de "brincar" na qual fica evidente o elemento da sensação. Tustin fala também de "formas autistas de sensação", quando não se trata de um objeto, no sentido material, mas de comportamentos ou gestos que parecem cumprir a mesma função que o manuseio de objetos (p. 85-113). Considerado sob o ponto de vista metapsicológico, o objeto autista, embora pareça um objeto de apego da criança, não se equipara ao objeto transicional, descrito por Winnicott. Diferentemente deste, não é insubstituível e isso justamente por não aludir a uma representação ou, mais precisamente, por não vincular-se a uma fantasia ou a uma idéia. Podemos especular que esses objetos estariam ligados a formas muito primitivas de representação, que são recriadas corporalmente pelo vestígio da sensação. Carecem de um sentido compartilhado e parecem ter muito em comum com alucinações do tipo tátil (Rodulfo, 2001, p. 78). No que diz respeito à sua função, esses objetos parecem permitir à criança instaurar uma continuidade existencial que se encontra profundamente obstaculizada, por meio do restabelecimento de uma sensação corporal, assim como igualar, por contigüidade, o que deveria ser reconhecido como próprio e o que deveria ser reconhecido como alteridade (ibid, p. 78-79).

O caso de Julián, exposto por Rodulfo, poderá tornar mais claras as idéias acima.

 

Os objetos e as formas autistas nas sessões e a exigência de desativá-los

Julián estava em atendimento já há algum tempo quando começou a repetir, no início de cada sessão, o comportamento de sentar-se na cadeira da analista e ali permanecer durante toda a sessão. A situação estabelecia-se com tal naturalidade que chamava a atenção da analista, faltando-lhe, todavia, elementos para intervir. O processo terapêutico, que vinha desenvolvendo-se bem, começou a dar sinais de impasse. Foi então que Rodulfo recorreu ao argumento de Tustin segundo o qual a intervenção propriamente analítica deve centrar-se, nesse tipo de caso, em desfazer e impedir a utilização dos objetos ou das formas autistas, na medida em que representam um obstáculo absoluto a qualquer movimento terapêutico. A criança os utiliza para acalmar a angústia do "buraco negro", obturando e neutralizando o processo analítico (ibid, p. 79).

Rodulfo percebia que o comportamento de Julián de sentar-se na cadeira da analista era muito distinto daquele que caracteriza uma identificação com o analista ou uma manobra para deter o poder. Propõe, então, que compreendamos tal comportamento como o correspondente a uma forma autista. Ela afirma: "Minha cadeira igualava-se a meu corpo, portanto, ao assentar-se nela, captura meu ser como se pertencesse a ele, igualando-me à sensação que experimentava ao sentar-se" (p. 79; tradução nossa). Considera ainda que, se esse comportamento o acalmava, era às custas do desenvolvimento de sua subjetividade e do progresso do processo terapêutico. "Ao igualar-me, desconhece-me como uma alteridade oposta à sua subjetividade", acrescenta a autora. (ibid., p. 79; tradução nossa).

Seguindo as proposições de Tustin, Rodulfo assevera, então, que o analista deve impedir a repetição inercial dos objetos ou das formas autistas e, para tanto, deve intervir ativamente, porém cuidadosamente, para desativá-los, possibilitando, dessa forma, a inauguração de uma subjetividade desejante (ibid., p. 80).

Tendo acompanhado essas considerações, vejamos como Rodulfo formula a intervenção que objetivou desativar a forma autista, no caso de Julián. Ao iniciar cada sessão, ela ocupava sua cadeira antes que ele o fizesse e dizia-lhe:

... que era minha cadeira, que era eu que me assentava nela e que, além disso, era diferente dele, que era outra pessoa e que tinha descoberto que ele se sentava na minha cadeira para igualar-se a mim. Que de forma alguma era assim, que suas nádegas eram distintas das minhas, que éramos duas pessoas diferentes e que por todas essas razões, de agora em diante, não iria mais assentar-se em minha cadeira porque lhe fazia mal. (ibid., p.80; tradução nossa).

Segundo a autora, essa intervenção foi debulhada ao longo de várias sessões, provocando forte oposição por parte de Julián e uma verdadeira batalha no espaço do consultório, mantida com igual tenacidade por ambas as partes. Do lado da analista, no entanto, essa batalha não era produzida por um processo de estereotipia simétrico ao de Julián, mas buscava marcar os limites entre duas subjetividades distintas. Finalmente, o espaço analítico foi reorganizado e o impasse superado (ibid., p. 80).

De posse dessa instigante argumentação de Rodulfo, retomo o caso de Olívia.

 

Os transtornos da aquisição do "não" e os movimentos falidos na constituição da tópica psíquica

Olívia sempre fugia do contato com o outro utilizando seus objetos autistas. Tinha preferência por objetos que podiam ser pendurados e balançados como um ioiô e, muitas vezes, passava toda a sessão a balançá-los. Ela não adquirira a linguagem e apenas emitia sons próximos a balbucios, choros e risos. Em alguns momentos parecia compreender o que lhe era dito, olhava-me nos olhos, mas, logo em seguida, afastava-se com olhar ausente e voltava a seus objetos. Seguindo a orientação de Tustin, esses objetos deveriam ser desativados, mas como fazê-lo, nesse caso, se qualquer intervenção nesse sentido provocava crises incontroláveis de auto-agressão? Insistir nesse propósito de retirar-lhe seus objetos parecia-me, por um lado, infrutífero e, por outro, oneroso demais. Infrutífero porque a interdição ou a interpretação não surtiam efeito algum sobre ela nesses momentos, a não ser incrementar sua excitação motora. Oneroso justamente porque esse incremento de excitação desembocava em crises de auto-agressão, difíceis de conter, e a afastava ainda mais da possibilidade de comunicação. No início, eu tentava acompanhar com palavras os gestos de contenção de suas crises, palavras que pudessem interpretar sua excitação e assim acalmá-la. Notava, entretanto, que tinha mais sucesso quando a continha apenas com os gestos, sem nada dizer.

Parecia-me claro que não teria sucesso em impedir a repetição de seus comportamentos estereotipados utilizando a interdição acompanhada de interpretação. Formulei então a seguinte hipótese: ainda que os objetos autistas de Olívia pudessem ser equiparados à forma autista de Julián - o paciente de Rodulfo do qual tratamos acima - o mesmo não podia ser dito quanto ao momento da constituição psíquica dessas duas crianças. Se Julián estava a muitos passos atrás de uma criança neurótica, que insiste em ocupar o lugar da analista numa manobra identificatória marcada pela rivalidade edípica, Olívia encontrava-se em uma posição ainda mais primitiva. Ante a interdição e a interpretação, ela não era capaz de manter uma oposição tenaz, como o fez Julián, sem ser engolfada pela angústia gerada por esse tipo de intervenção. Talvez faltasse a Olívia, no seu processo de subjetivação, um movimento que já se concretizara em Julián.

A hipótese que acabo de formular encontra suporte no trabalho de Bleichmar (1993), quando afirma que os movimentos que determinam a constituição do psiquismo vão se produzindo ao longo da infância e, do mesmo modo que podem ser bloqueados por transtornos, podem encontrar vias de resolução no tratamento. Sendo assim, é necessário levarmos em conta, em nossa hipótese clínica, os movimentos que fundam a tópica psíquica para tentarmos situar os pontos de impasse no caso de cada paciente e, em particular, no caso dos transtornos graves (p. 9-14). Em se tratando das psicoses precoces e dos quadros de autismo, é importante lembrar a estreita relação entre o fracasso na aquisição do não, e da linguagem em geral, e os movimentos falidos na constituição do recalcamento. Voltemos aos nossos casos para trabalhar um pouco mais essas idéias.

"Não é nada disso, não quero ser como você e você é muito chata!" Esta é, em geral, a resposta de uma criança neurótica que se defronta com a interpretação de sua identificação com a analista e de sua manobra para deter o poder, quando se obstina em tomar para si a cadeira da analista. Aí está presente uma negação determinada, marcando uma posição de sujeito em oposição ao semelhante. Essa negação não é um oposicionismo absoluto, um fechamento ao outro, mas sim uma denegação, que possibilita um compromisso, ou uma forma de fazer face à excitação gerada pela invasão da alteridade. Nesse caso, a função estruturante do recalcamento já se encontra em ação. Podemos dizer que há fronteiras psíquicas bem traçadas capazes de manter, num território estrangeiro interno, aquilo que é ameaçador.

No caso de Julián, parece que esse passo ainda estava por ser dado. Sua recusa à interdição e à interpretação não parecia relacionada à competição ou rivalidade, mas sim ao oposicionismo, num movimento de anulação da diferença em relação ao outro. Não obstante, o gesto de assentar-se na cadeira da analista, ainda que repetitivo e obstrutivo do trabalho analítico, parecia indicar sua identificação a um envelope continente e talvez tenha sido essa possibilidade identificatória o que lhe permitiu resistir, tão bravamente, ao seu desalojamento.

Quanto a Olívia, penso que os primeiros esboços desse envelope, ao mesmo tempo protetor do eu e, por isso mesmo, propiciador do contato com o outro, ainda estavam por ser estabelecidos. Nesse sentido, aproximo-a de Maria, a paciente de Tafuri, que levou essa autora a propor a tese do analista não-intérprete no livro Dos sons à palavra: explorações sobre o tratamento psicanalítico da criança autista(2003). Retomo, a seguir, alguns elementos da argumentação de Tafuri.

 

A constituição de um ambiente-holding-sonoro no trabalho de Tafuri

Ao se deparar com os comportamentos estereotipados e repetitivos de Maria no início do tratamento, Tafuri (2003) não tentou impedi-los pela via da interpretação. Além de perceber que sua própria voz significava uma presença ameaçadora para a criança, ela não tinha material clínico suficiente para formular uma interpretação (p. 34-35). Deixou então em suspenso os significados e as interpretações e ficou atenta aos sons estranhos produzidos pela criança. Começou a tentar repeti-los, e percebendo que pouco a pouco a criança demonstrava esperar por sua repetição, passou a ecoá-los regularmente, propiciando a constituição de um ambiente-holding-sonoro"nas" e "para" as sessões. Isso representou uma longa fase do trabalho que desembocou finalmente na possibilidade da intervenção discursiva (ibid., p. 21).

Creio que podemos dizer que o início do trabalho analítico com Maria não se caracterizou por intervenções que visassem impedir os objetos ou as formas autistas de sensação. Foi marcado, ao contrário, pela adoção da esfera sensorial como forma de criar uma aproximação com a criança, como forma de proporcionar-lhe um envelope sonoro dentro do qual esta pôde sentir a presença da analista, conforme afirma a autora (ibid., p. 25).

Com Olívia, as intervenções possíveis eram igualmente aquelas que privilegiavam a esfera sensorial. O que mais surtia efeitos nos seus momentos de crise era uma contenção física firme, porém acolhedora e silenciosa. Constatei também que era cedo para interditar o uso que fazia dos objetos autistas. Ao invés de insistir na interdição, eu a acompanhava com o olhar ou com gestos, tentando inserir essas sensações num circuito de trocas, ou tentando propiciar um deslizamento metafórico desses objetos que estavam ligados metonimicamente pelas sensações. Nomeava-os, convidando-a a iniciar uma brincadeira com eles, propunha-lhe novos objetos, associações entre sons e objetos. Na maioria das vezes, minhas tentativas de aproximação não eram correspondidas, mas, ao contrário das intervenções interpretativas, não provocavam movimentos que denotassem intensificação de sua excitação ou de seu isolamento. Paralelamente, trabalhava com os pais, acolhendo sua angústia e, sobretudo, buscando com eles conferir sentido às crises de Olívia. Assim, do lado dos pais, havia um trabalho de interpretação: buscávamos traduzir a excitação desenfreada da criança como expressão de demandas de um sujeito. Isso significa que o trabalho que privilegia o domínio sensorial, com a criança, não nega a determinação simbólica do sujeito, mas orienta-se pela idéia segundo a qual as primeiras ligações psíquicas são ligações que se fazem pela via das sensações corporais. Essa idéia já foi apresentada por vários autores e podemos encontrar alguns indícios dela no próprio texto freudiano quando este afirma, em 1923, que "o ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal" (p. 40) ou mesmo em 1895, no "Projeto para uma psicologia centífica", quando propõe elaborações bastante complexas sobre a relação dos processos de pensamento e de linguagem com os processos perceptivos primitivos.

Esse trabalho com Olívia e o acompanhamento com os pais durou aproximadamente dois anos até que ela adquirisse um estado de humor estável, superando suas crises extremas de agitação e de auto-agressão. Somente depois desse tempo é que os pais adquiriram a confiança de que não seriam novamente surpreendidos por elas. Isso me permitiu, também, na continuidade do trabalho, tentar um passo a mais e considerar a hipótese de desativar seus objetos autistas de sensação, o que levou outros dois anos para ser efetivado.

Pelo que foi dito nos parágrafos acima, fica evidente que há uma teorização sobre os primórdios da constituição do psiquismo fundamentando a tese do analista não-intérprete. Tafuri destaca, particularmente, a contribuição de Winnicott com seu conceito de ambiente holding e o papel fundamental desempenhado pela mãe-ambiente no desenvolvimento emocional da criança (Tafuri, 2002, p. 205-220). Sem desconsiderar a pertinência do trabalho de Winnicott, retomarei, a seguir, o conceito de Eu-pele, desenvolvido por Didier Anzieu, com o intuito de abrir nova perspectiva na compreensão da importância do universo sensorial na clínica com a criança autista esperando, assim, acrescentar alguns elementos à reflexão iniciada por Tafuri.

 

O Eu-pele como precursor do "não" e sua importância na clínica com a criança autista

A noção de eu-pele, introduzida por Anzieu, advém da escuta clínica e vem colocar em relevo certas fantasias de pacientes adultos relativas à superfície corporal e indicativas de momentos de extrema fragilidade narcísica. Tais fantasias apontariam para a importância da superfície corporal - e do universo sensorial em geral |– na constituição do eu e remeteriam a formas muito primitivas de ligação da excitação pulsional. Concebido originalmente como uma noção que designa um tipo determinado de fantasia, o eu-pele vai adquirindo, nas elaborações de Anzieu, o statusde um conceito que pretende dar conta de uma configuração inicial do eu, no interior de uma metapsicologia das origens. Nesse sentido, ele se apresenta como um conceito original e fecundo para situarmos os movimentos precoces da constituição do psiquismo que se encontram falidos nos autismos infantis.

Definindo-o de forma breve, podemos dizer que o eu-pele designa uma configuração inicial do eu, constituída nas fases precoces de seu processo de estruturação e apoiada nas sensações corporais, de forma particular nas funções da pele, dentre as quais Anzieu (1985) destaca a função de invólucro ou envelope. A pele como invólucro contém e retém no seu interior os precipitados da relação com o outro: a relação de amamentação, os cuidados em geral, o banho de palavras etc. (p. 97-108).

A constituição do eu, como precipitação da imagem especular no momento do narcisismo, enfatiza o aspecto visual da relação com o outro. Com o conceito de eu-pele, Anzieu salienta a importância dos vários envelopes que se constituem na relação com o outro, além do envelope visual: os envelopes sonoros, olfativos, gustativos, térmicos, entre outros. Tantas sensações vividas nessa relação e que incluem, evidentemente, o caráter libidinal do investimento do outro no corpo da criança.

O conceito de eu-pele coloca também em relevo o papel da superfície corporal como lugar de inscrição dos traços deixados pela relação significante do adulto com a criança. Ou seja, o registro sensorial está imerso, desde o início, no universo simbólico. As mensagens dos adultos, em particular dos pais, chegam até a criança e inscrevem-se em sua pele, por assim dizer, e é isso que exigirá a passagem de um eu-corporal para um eu instância psíquica. As sensações corporais da criança e suas percepções em geral são registros de sua relação com o outro e essa relação proporciona-lhe contenção, holding, mas, ao mesmo tempo, propõe-lhe significantes que excitam, que instigam o trabalho psíquico, instigam a associações, transposições, enfim a simbolizações.

O eu-pele é uma metáfora da contenção e significa, também, a ligação dos pontos dispersos de um corpo que foi fragmentado em zonas erógenas pela inscrição da pulsão. "Uma pele para as palavras" é uma metáfora para as primeiras ligações egóicas e alude ao título de outro livro de Anzieu: Uma pele para os pensamentos (Anzieu & Tarrab, 1986). Com esta expressão Anzieu indica que a configuração inicial do eu, como eu-pele, é um requisito necessário à passagem para uma configuração posterior, o eu-pensante. Assim, o funcionamento de um eu-pele é um requisito para o confronto com as interdições, a começar pela interdição de tocar, ainda num plano muito concreto, passando pelo reconhecimento e pela aquisição do "não", até às interdições edípicas, já no registro simbólico.

A fecundidade do conceito de eu-pele para a clínica com a criança autista reside, a meu ver, em dois pontos principais. O primeiro deles é justamente a definição do eu-pele como uma configuração inicial da instância egóica, que se faz pela precipitação de uma imagem especular, narcísica, mas cujas fronteiras constituem-se pela participação de uma gama enorme de elementos sensoriais. Esse ponto indica-nos a importância do trabalho com os envelopes sensoriais como uma tentativa de recolocar em marcha um processo de constituição psíquica que teria ficado bloqueado, em um momento muito precoce, e em que certas sensações, que deveriam metaforizar-se abrindo a via da simbolização, ficaram fixadas e estagnadas.

O segundo ponto é o fato de que o eu-pele aponta para a importância do papel do outro na constituição do psiquismo, não apenas na sua função decontenção,mas também no seu caráter excitante, provocador da fragmentação auto-erótica. Dito de outra forma, essa noção contempla tanto o papel de holdingque o adulto exerce para a criança, quanto o papel de quem inscreve, no corpo desta, significantes investidos pela pulsão e, portanto, comprometidos com suas próprias fantasias inconscientes. Esse segundo ponto indica, por sua vez, a atenção que deve ser dada ao trabalho com os pais no atendimento da criança autista, no sentido, principalmente, de proporcionar-lhes um espaço de contenção para sua própria angústia. Pois o trabalho, igualmente importante, de recolocar em marcha o seu desejo em relação à criança, visando a superar os pontos de estagnação determinados por conflitos passados que são atualizados na relação com ela e com o infantil que esta mobiliza neles, é tarefa para a análise pessoal de cada um deles.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua Bambuí 25/1600
30210-490 Belo Horizonte, M.G.
E-mail: mtmelocarvalho@terra.com.br

Recebido em janeiro de 2008
Aceito em março de 2008

 

 

* Professora do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da UFMG (Belo Horizonte, MG, Brasil), Doutora em psicanálise pela Universidade de Paris VII, autora do livro: Paul Federn – une autre voie pour la théorie du moi. Paris, PUF, 1996.

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