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Latin American Journal of Fundamental Psychopathology On Line

versão On-line ISSN 1677-0358

Lat. Am. j. fundam. psychopathol. on line v.5 n.1 São Paulo maio 2008

 

ARTIGOS

 

Freud e Hitchcock: comparação de quadros de fobia

 

Freud and Hitchcock: comparison between visions of phobia

 

 

Geovana C. Vargas* ; Isabel Cristina V. de Oliveira** ; Karla Carolina S. Ribeiro***

Universidade Federal da Paraíba

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A fobia pode ser definida como um medo irracional e persistente, cujo delineamento inicial partiu de estudos realizados por Sigmund Freud. Neste sentido, o presente artigo visa discutir o quadro da fobia a partir de referenciais dicotômicos, a psicanálise e os manuais de diagnóstico psiquiátrico, além de analisar mais aprofundadamente o caso do pequeno Hans tendo como eixo o filme "Quando fala o coração", dirigido por Alfred Hitchcock. A análise demonstrou que o caso Hans ultrapassa as barreiras do tempo, permanecendo um referencial extremamente válido para aqueles que utilizam a psicanálise como ferramenta de trabalho. Além disso, foi possível perceber o elo que liga a arte à vida.

Palavras-chave: Fobia; Psicanálise e Cinema; Pequeno Hans.


ABSTRACT

Phobia can be defined as an irrational and persistent fear, which initial delineation was left from studies carried out by Sigmund Freud. In this sense, the present article aims to discuss the picture of the phobia from different referential systems, the psychoanalysis and the manuals of psychiatric diagnosis, besides make a deeper analysis of the little Hans case taking the movie "Spellbound", directed by Alfred Hitchcock, as an axle. The analysis showed that Hans case pass beyond the barriers of time, remaining a reference extremely valid for those who use the psychoanalysis as a tool for work. Furthermore, it was possible to understand the link that connects the art to life.

Keywords: Phobia; Psychoanalysis and Cinema; Little Hans.


RESUMÉ

Phobie peut être définie comme une peur irrationnelle et persistante, qui a été la délimitation initiale à partir d'études réalisées par Sigmund Freud. En ce sens, le présent article a pour but de discuter l'image de la phobie a partir de différents systèmes de référentiels, la psychanalyse et les manuels de diagnostic psychiatrique, en plus de faire une analyse plus approfondie de l'affaire petit Hans pris le film «Spellbound», réalisé par Alfred Hitchcock, comme un essieu. L'analyse a montré que el cas Hans passer au-delà des barrières du temps, reste une référence extrêmement valable pour ceux qui ont recours à la psychanalyse en tant qu'outil de travail. En outre, il a été possible de comprendre le lien qui relie l'art à la vie.

Mots clés: Phobie; Psychanalyse et Cinema; Petit Hans.


RESUMEN

Fobia puede definirse como un miedo irracional y persistente, que se tuve la delimitación inicial en los estudios realizados por Sigmund Freud. En este sentido, el presente artículo tiene como objetivo discutir la imagen de la fobia por los diferentes sistemas de referencia, el psicoanálisis y los manuales de diagnóstico psiquiátrico, además de hacer un análisis más profundo del caso pequeño Hans teniendo la película "Spellbound", dirigida por Alfred Hitchcock, como un eje. El análisis demostró que el caso Hans ultrapasa las barreras del tiempo, seguindo como una referencia muy válida para los que utilizan el psicoanálisis como herramienta de trabajo. Por otra parte, es posible comprender el vínculo que une el arte a la vida.

Palabras clave: Fobia; Psicoanálisis y Cinema; Pequeño Hans.


 

 

Fobia, de phobos, deusa grega do medo, pode ser definida como um medo persistente e irracional que resulta em um evitamento consciente da atividade, situação ou objetos específicos temidos (Vilela, 2005). Tal conceituação é equivalente em diversas abordagens, entretanto, difere a respeito da etiologia, classificação, características e terapêutica do quadro. É ciente desta diversidade que o presente trabalho visa discutir esse fenômeno a luz de duas propostas teóricas extremamente dicotômicas, a psicanálise e a visão psiquiátrica, para em seguida analisar o caso do pequeno Hans tendo como eixo o filme "Quando fala o coração", dirigido por Alfred Hitchcock. A priori serão apresentadas algumas considerações sobre ambas as teorias, com a posterior comparação dos quadros de fobia de Freud e Hitchcock.

Para a perspectiva psicanalítica, inicialmente, observa-se que a fobia tem como elementos principais o medo e a angústia, cuja ocorrência é dada por um recalcamento pela formação de símbolos, os quais são escolhidos pelo paciente depois de um evento traumático, pois, assim, ele pode retirar da consciência uma representação indesejável e transformá-la em uma representação fraca, mudando o seu afeto para outros objetos (Gurfinkel, 2001).

Antes de prosseguir com as considerações de Freud e alguns de seus seguidores sobre o tema aqui proposto, é pertinente destacar alguns conceitos relevantes para a discussão do assunto em tal teoria. O termo "afeto", por exemplo, já foi citado acima, mas pela formulação da assertiva não foi capaz de evocar algumas características da concepção lacaniana. Segundo esta visão, o afeto não é recalcado. Ao contrário, ele segue "deslocado, louco, invertido, metabolizado, [...] O que está recalcado são os significantes que o amarram" (Lacan, 1962/1963, p. 22). Dessa forma, a fobia manifesta-se já que o afeto, desamarrado, continuar a evocar os sentimentos desagradáveis que a representação recalcada não mais evoca, agora sob a forma de uma nova representação, o objeto fóbico.

A angústia também se constitui como um importante conceito para a abordagem deste tema e, para tanto, refere-se a traumas localizados no processo de amadurecimento humano. Quando o evento traumático ocorre, defesas são organizadas a fim de se evitar que a angústia volte a ser experienciada (Santos, 2002) e é com esta finalidade que o afeto é direcionado para uma nova representação, culminando na seqüência para a produção do sintoma.

As publicações realizadas por Freud nos anos de 1894 e 1895, como Obsessões e Fobias (1895), permitiram o delineamento do pensamento acerca da fobia, e, percebendo então as semelhanças com o quadro de histeria, passou a chamar "histeria de angústia" a neurose que tinha a fobia como sintoma central. Mas foi somente em 1909 que a fobia passa a ser uma entidade clínica independente ao invés de apenas um sintoma, decisão esta tomada com a análise do caso de um menino chamado Hans de apenas 5 anos que apresentava uma fobia por cavalos. Assim, surge uma especificação da neurose, que se diferenciava da histeria de conversão por manifestar seus sintomas no pensamento ao invés do corpo físico, de forma que permanecesse na esfera psíquica pela busca de um objeto no qual a pessoa liberava a angústia causada por um trauma.

Como, para Freud, tanto a histeria quanto a fobia apresentavam quadros clínicos semelhantes, ele pôde deduzir que em ambas havia um recalcamento sexual, que advinha do Complexo de Édipo e, principalmente, da angústia de castração. Hans, por exemplo, estava passando pela fase edípica, e, deste modo, sentia uma forte ligação com sua mãe e um ciúme do pai, o qual apresentaria um falo maior e, portanto, maior poder. Associando esta questão ao pipi dos cavalos, que, para ele, deveria assemelhar-se com o do pai por ele ser muito maior do que ele, e, como sabia que o pai tinha certo poder sobre a mãe, sofria uma culpa por desejar mal ao pai e, conseqüentemente, um medo de ser castrado, já que a falta do falo na irmã foi associada à castração (mais adiante retornaremos a este caso).

Dessa forma, presume-se que a etiologia da fobia para a psicanálise clássica, situa-se na frustração de um dos desejos infantis que nunca fora dominado na realidade externa, instaurando-se uma tensão conflitual na qual o ego é colocado em uma posição intermediária entre o id e a realidade externa (Gori, 2005). A ansiedade advinda desta relação é associada a determinado objeto/situação, e em conseqüência, passa simbolicamente a evocar toda a tensão e angústia decorrente do conflito.

Freud, segundo Gurfinkel (2001), dividiu a fobia de acordo com o tipo de medo manifestado, resultando em dois tipos: fobias comuns, que seriam aquelas em que a pessoa apresenta medo de animais, escuro, entre outros, e fobias contingentes, no qual está inserida a agorafobia e outros medos relacionados à locomoção. Ambas, como se pode observar, procuram representações adequadas para ser alvo da fobia, pois é muito mais simples o medo de cavalos, no caso de Hans, do que admitir conscientemente um medo de ser castrado pelo pai.

A terapêutica utilizada por Freud no caso de Hans, em específico, é semelhante àquela proposta para a interpretação dos sonhos, ou seja, recolhia elementos do cotidiano, já que os sonhos seriam a expressão dele, e utilizava associações livres até que este material se relacionasse com o conteúdo de significação para o sujeito, aquele que ele preferiu retirar da consciência. Além disso, existem outras formas terapêuticas, propostas pela psicanálise, como a associação livre, interpretação de sonhos, análise dos esquecimentos, dos chistes, atos falhos e, no caso de crianças, de desenhos, pois eles permitem a representação do recalcado. A transferência do cliente para o seu analista também se constitui como um importante evento para a evolução da terapêutica e permite que este primeiro (re)experiencie problemas associados a pessoas que não estão na sessão (Holmes. 2001), de forma que são realçados questões relevantes para a sublimação dos traumas. Em suma, a respeito de todo o tratamento da fobia, não se trata de uma pesquisa limitada às mesmas, "estas conduzem a outras regiões da experiência, como é próprio do inconsciente" (Bastos, 2007, p. 321).

Contrapondo-se a esta concepção psicanalítica acerca da fobia, tem-se a visão da Psiquiatria, que através do CID-10 (1993) e do DSM-IV (1995) propõe que a mesma caracteriza-se pelo aparecimento de ansiedade severa, desproporcional e persistente quando o paciente é exposto a uma situação ou objeto fóbico específico. Em função da natureza biomédica da psiquiatria, é impossível dissociar os aspectos fisiológicos da conceituação da fobia. Portanto, essa se origina através da variação de níveis do neurotransmissor GABA (ácido gama-aminobutírico) em combinação com eventos condicionantes (Holmes, 2001): baixos níveis de GABA podem tornar os indivíduos mais condicionáveis, que, por sua vez, responderiam com medo e ansiedade ao serem confrontados com um estímulo.

De acordo com o CID-10 (1993), a fobia consiste em um grupo de transtornos nos quais uma ansiedade é desencadeada exclusiva ou essencialmente por situações nitidamente determinadas que não apresentam no momento nenhum perigo real. Por este motivo, estas situações são evitadas ou suportadas com temor, nas quais as preocupações do sujeito podem estar centradas sobre sintomas individuais tais como palpitações ou uma impressão de desmaio, e freqüentemente se associam com medo de morrer, perda do autocontrole ou de ficar louco. A simples evocação de uma situação fóbica já é suficiente para desencadear em geral uma ansiedade antecipatória.

Logo, a fobia, para esta visão, é definida em função da natureza da ansiedade a um objeto ou situação particular, natureza esta específica e localizada, diferente do que ocorre nos transtornos de pânico e de ansiedade generalizada, nos quais a ansiedade é difusa. Por este motivo, observa-se nos transtornos fóbicos "uma separação inapropriada dos aspectos cognitivos e emocionais do funcionamento psicológico" (Holmes, 2001, p. 86). Outra característica importante dessa abordagem é que o indivíduo tem consciência da irracionalidade do seu medo, sendo essencial, portanto, para distinguir um indivíduo com fobia de um outro que está experienciando um delírio.

O pensamento fóbico é tão automático quanto o obsessivo, e, como proposto, o paciente tem plena consciência do absurdo de seus temores ou, ao menos, reconhecem-nos como infundados na intensidade que se manifestam. Os temores resistem a qualquer argumentação sensata e lógica, os quais apenas serão considerados como fóbicos quando forem injustificáveis pelo próprio paciente e, concomitantemente, forem capazes de produzir reações adversas comandadas pelo sistema nervoso autônomo (Ballone, 2005).

Essa consciência da forma irracional que o medo se manifesta não se configura como um nítido ponto de separação entre as abordagens aqui discutidas. É proposto pela psicanálise que os conflitos capazes de gerar ansiedade, e conseqüentemente, sentimentos de fobia, se dão em âmbito inconsciente; entretanto, isto não significa que os indivíduos permaneçam sem consciência da proporção dos seus medos. Esta "inconsciência" que a psicanálise se refere aponta para a etiologia dos medos, e não a respeito da dimensão que eles se manifestam.

Retomando a perspectiva do CID-10 (1993), a classificação nela proposta destaca três tipos principais: Agorafobia (medo de deixar seu domicílio, medo de lojas, de multidões e de locais públicos, ou medo de viajar sozinho em trem, ônibus ou avião); Fobias Sociais (medo de ser exposto à observação atenta de outrem, que leva a evitar situações sociais); e Fobias específicas (medos limitados a situações altamente específicas tais como a proximidade de determinados animais, locais elevados, trovões, escuridão, viagens de avião, espaços fechados, utilização de banheiros públicos, ingestão de determinados alimentos, cuidados odontológicos, ver sangue ou ferimentos) (CID-10, 1993).

Corroborando esta visão psiquiátrica da fobia, o DSM-IV (1995) semelhantemente a define como um medo específico intenso o qual, na maioria das vezes, é projetado para o exterior através de manifestações próprias do organismo. Estas manifestações incluem vertigens, pânico, palpitações, distúrbios gastrintestinais, sudorese e perda da consciência por lipotimia, que são externadas quando o paciente depara-se com o objeto (ou situação) fóbico.

Vilela (2005), baseada no Diagnóstico e Manual Estatístico de Doenças Mentais, declara a divisão das fobias tal qual ele é proposta pela CID-10 (1993). A agorafobia é didaticamente melhor definida como uma ansiedade de estar em locais ou situações das quais escapar poderia ser difícil (ou embaraçoso) ou nas quais o auxílio pode não estar disponível na eventualidade de ter um Ataque de Pânico ou sintomas tipo pânico.

A fobia social consiste no medo de humilhação ou desconforto em locais públicos, o qual difere da agorafobia por esta última não estar preocupada com a reação de outras pessoas ao seu comportamento (DSM-IV, 1995). Este quadro da fobia está sendo, ultimamente, o alvo de muitas pesquisas, como por exemplo, uma realizada por Terra, Figueira e Athayde (2003). Estes fizeram um estudo que objetivava estabelecer uma relação temporal entre fobia social e a dependência de substâncias psicoativas, do qual foi verificado que o quadro da fobia estava correlacionado com tal dependência e que esta prática foi estabelecida com a finalidade de atenuar a angústia dos pacientes fóbicos. Em outras palavras, "eles bebiam para aliviar o medo" (Terra, Figueira & Athayde, 2003).

Por fim, têm-se as fobias específicas que se apresentam mais freqüentemente que as anteriores, especialmente em indivíduos do sexo feminino. Um exemplo delas refere-se ao filme "Aracnofobia", que mesmo com a fantasia criada pelos efeitos especiais, traz como plano de fundo, a fobia de pessoas a aracnídeos, uma característica típica deste quadro (medo extremado de insetos e animais peçonhentos).

As diretrizes terapêuticas propostas por Vilela (2005) apontam para a psicoterapia orientada para o Insight, no qual o terapeuta deve impelir os pacientes fóbicos a explorarem a situação fóbica e experimentarem a ansiedade e o insight resultante. Essa terapia permite que o paciente compreenda a origem da fobia e o ajuda a desenvolver formas mais saudáveis para lidar com estímulos ansiogênicos. Outro tratamento utilizado refere-se à terapia de exposição, cuja técnica consiste na dessensibilização sistemática, onde o paciente é estimulado a pensar repetidamente no problema até que a ansiedade seja reduzida a níveis mínimos.

A farmacoterapia também é sugerida como forma de tratamento para a fobia, através da administração de antidepressivos tricíclicos, Seletivos de Recaptação Serotoninérgicos (ISRS), antidepressivos atípicos ou benzodiazepínicos, cada um destes apresentando suas vantagens e contra-indicações para cada caso. É importante ressaltar que há contestações a respeito da terapia medicamentosa em combinação com a psicológica, sob a alegação de que o medicamento pode mascarar os sintomas da doença, prejudicando a avaliação e o andamento da terapia psicológica (Medeiros, 2006). Por fim, ainda são recomendadas a terapia de apoio e a terapia familiar.

Conclui-se, dessa forma, que ambas as visões apresentam algumas similitudes nas características da fobia, mas apresentam diferenças gritantes em sua interpretação dos fenômenos. As orientações contidas na Classificação Internacional de Doenças e no Manual Diagnóstico e Estatístico para Doenças Mentais foram apresentadas com o intuito de fazer um contraponto à visão proposta por Freud acerca dessa temática, apenas com vistas de ampliar tal discussão. A visão defendida pela psicanálise clássica, por sua vez, foi posto em foco para familiarizar o leitor com determinados conceitos e fundamentar a interpretação do caso Hans em função da proposta psicopatológica do filme "Quando fala o coração", na seqüência.

 

Quando fala o coração: um quadro fóbico

Ao referirmos-nos ao tema em questão, vem à nossa mente um dos mais famosos casos de Freud (1909/1996), o pequeno Hans, o qual pode ser considerado o caso-modelo da fobia. Hans apresentava um medo persistente de cavalo, pois acreditava que seria mordido por eles. Com o nascimento de sua irmã e a conseqüente privação dos cuidados maternos, os sintomas do menino começam a aparecer. A partir de então passa a utilizar-se de uma satisfação auto-erótica, com a prática de masturbação, a qual seus pais condenavam.

O indício neurótico de Hans surgiu entre seus 3 e 5 anos, período da fase fálica. O garoto demonstrava grande interesse pelo órgão genital e origem dos bebês, o que veio a se intensificar com o nascimento da irmã, mais uma a competir pelo amor de sua mãe, fato que alimenta em Hans a vontade de que a mesma morresse. Tal fase é marcada pelo complexo de Édipo, no qual o menino nutre um imenso desejo pela mãe e o pai é visto como grande rival que pode castigá-lo por ter fantasias proibidas, de copular com a mãe, castrando-o. Deve-se ter em mente que é neste período que a criança descobre a diferença entre os sexos, e elas crêem que o fato da menina não possuir um pênis é devido à perda do mesmo como castigo a desejos proibidos.

Neste entrelaçado de conflitos, Hans associa o pai à figura do cavalo, o qual possui um "pipi" grande, e desloca, então, o afeto da função pai para o objeto cavalo, eclodindo com o medo a este animal, e o temor de que este o mordesse, representando o anseio de perda de seu órgão genital.

Freud tratou este caso com associações livres, análises dos sonhos, obtendo bons resultados. Ele reencontra com Hans aos 19 anos e constata que o rapaz apresenta mínimas lembranças daquela época, de forma que a análise não havia sido preservada devido à amnésia infantil, um fenômeno universal.

Ao se reportar ao filme "Quando fala o coração", dirigido por Alfred Hitchcock, e analisá-lo tendo como referência o caso Hans, podem ser percebidas inúmeras semelhanças no que concerne ao quadro fóbico. Inicialmente o roteiro do filme será descrito para melhor compreensão. A estória se inicia em um hospital psiquiátrico, onde um grupo de psicanalistas espera um novo diretor, o famoso psicanalista dr. Edwardes. Entretanto, a pessoa que se apresenta sendo o notável doutor na verdade era um dos seus pacientes, o qual é suspeito de sua morte (representado por Gregory Peck).

Para completar este emaranhado de suspense, uma psicanalista do grupo do hospital, dra. Constance (representada por Ingrid Bergman) se apaixona pelo dito paciente "criminoso" e tenta investigar seu inconsciente. No entanto, a analista se esbarra em alguns obstáculos, tendo em vista que ele apresentava amnésia e um considerável complexo de culpa.

No desenrolar da análise terapêutica a psicanalista percebe que a fobia do paciente estava direcionada ao que fosse branco com listras. Ela, porém, só irá descobrir as causas da fobia, após interpretar um sonho do paciente e seguir as pistas ali ancoradas. Assim, ela retorna ao último lugar em que ele (o paciente) esteve com Edwardes, possibilitando então um resgate das lembranças perdidas. Deste modo, é possibilitado ao paciente relembrar seu nome, Jack Brown, como também as memórias presentes e passadas.

Jack, na verdade, perdeu a memória após ver o doutor levar um tiro e cair em um precipício, enquanto esquiava. Esta cena de homicídio o remeteu ao passado quando brincava com o irmão mais novo e por um acidente o mata em uma grade. Tal representação produz nele um afeto que vai contra seu "eu", ocorrendo então uma separação entre o afeto e a representação; este afeto livre se desloca para o objeto grade, surgindo a fobia. Já a fobia ao branco se deve ao fato de que o segundo trauma (morte do médico), reviveu o primeiro e este também foi recalcado, ligando-se à primeira representação, criando então a fobia ao branco com listras (neve e grade). Neste contexto surge o recalque e a amnésia infantil, um sistema de defesa que leva ao esquecimento do primeiro trauma, que ressurge na fase adulta para preservar o indivíduo do afeto incompatível ao "eu".

A partir do que foi relatado, que ligações são possíveis de serem encontradas entre este caso e o do pequeno Hans? Vamos por partes. Em Hans o nascimento da irmã incita certos sintomas. A irmã é uma rival, que pode representar a função pai, nutrindo por ela então o desejo de morte, para poder desfrutar de todo carinho da mãe. No filme este fato também se repetiu, no qual se atribui à figura do irmão a função pai, por este representar uma lacuna na função mãe. Jack ao aspirar à morte do rival, neste caso do irmão, que veio a falecer por intermédio seu, criou então uma representação e um afeto a ele atribuído que favorece o surgimento de um complexo de culpa e um deslocamento deste afeto a outro objeto - as listras -, os quais vêm se associar e apresentar seus sintomas no futuro.

Como no caso de Hans a problemática surge na infância no período Edipiano. Freud afirma que o trauma ocorrido na infância pode eclodir na fase adulta na forma de neurose, quando o indivíduo revive uma situação parecida. No drama cinematográfico isto é comprovado quando Jack presencia a morte de seu psicanalista. Acreditamos que ocorreu uma transferência da função pai, por esta não ser representativa para o sujeito, para o analista, e o paciente então almeja sua morte, o rival que compete pelo amor da mãe, quem, por ser mais forte que ele, a possui. Mas, uma vez que o desejo de Jack se torna realidade e as lembranças do passado se confundem com a do presente, o trauma, então, ressurge.

Neste conflito psíquico o afeto inadequado da representação do passado se une com a do presente que revive o trauma, ocorre então o deslocamento do afeto das representações para outros objetos: listras (morte do irmão na grade) sobre o fundo branco (morte do psicanalista na neve).

O paciente consegue se restabelecer ao relembrar do trauma que estava recalcado, através da abordagem psicanalítica, da mesma forma que Hans, através de associações livres e análise de sonhos.

O caso Hans é conhecido mundialmente e tem sido enunciado em diversas situações, dentre elas podemos citar uma banda chamada Alan Parson's Project, que gravou, em 1990, um CD intitulado "Freudiana" dedicado à vida e obra de Freud. Nesta obra uma das músicas é destinada ao pequeno Hans (intitulada "Little Hans"), onde a história dele é contada de forma bastante criativa, colocando o problema do medo de ser mordido por cavalos logo no início.1

A partir do que foi exposto pôde-se perceber a fundamental importância da análise do caso Hans para o delineamento do quadro da fobia, que ainda está muito presente no cotidiano das pessoas, sendo uma das principais queixas/demandas aos consultórios de psicoterapia. As inúmeras menções ao caso estudado por Freud, seja em obras acadêmicas ou artísticas, demonstram que ele, ainda hoje, apesar de existirem novas (e revolucionárias) formas de tratamento, serve como referência para terapeutas do mundo todo, ultrapassando as barreiras do tempo.

 

Considerações Finais

Foi observado com a perspectiva psicanalítica que a angústia e o medo estão inter-relacionados para a etiologia da fobia, cuja terapêutica concentra-se em evocar conteúdos inconscientes. A psiquiatria, por sua vez, propõe uma origem associada a aspectos fisiológicos em combinação com eventos condicionante da realidade externa, no qual o tratamento é baseado em formas mais saudáveis de se lidar com os estímulos ansiogênicos ou, mais freqüentemente, com administração medicamentosa.

A apresentação de tais percepções forneceu subsídios para a discussão do caso Hans e do filme do Hitchcock, sob a luz da psicanálise, no qual nos permite extrair algumas considerações. Inicialmente, é possível perceber que o caso Hans ultrapassa as barreiras do tempo, permanecendo um referencial extremamente válido para aqueles que utilizam a psicanálise como ferramenta de trabalho. Neste momento, é importante ressaltar que o objetivo deste ensaio não foi apresentar uma contribuição bibliográfica ou teórica dentro do âmbito psicopatológico, tampouco objetiva tomar um posicionamento teórico acerca de qual teoria é melhor ou mais adequada para determinado quadro. A análise feita somente pela versão psicanalítica justifica-se em função da equivalência da interpretação para ambos os casos, embora reconheçamos que a abordagem psiquiátrica, ou melhor, que múltiplas abordagens podem ser úteis para uma compreensão ampliada e holística da doença e do paciente.

De qualquer forma, comparando-se as análises, observa-se a cumplicidade entre a realidade externa e a arte, de forma que esta última articula o íntimo mais obscuro, o mundo interior, desejos, anseios e frustrações com este primeiro. A motivação da arte tem "origem nos mesmos conflitos que levam sujeitos a desenvolver neuroses" (Lins, 2007, p. 47). Dessa forma, o paralelo existente entre um caso verídico relatado há quase um século e uma histórica fictícia em telas de cinema nos sugere reflexões para o quadro fóbico na contemporaneidade e, sobretudo, como se dá o confronto de tais casos com as idéias prevalecentes na atualidade.

A fobia na contemporaneidade apresenta-se focada no que os manuais diagnósticos nomeiam de fobia social, expressada através de um número expressivo de publicações contemplando o tema. Para a terapêutica deste tipo em específico, são desenvolvidos tratamentos (como o farmacológico e o cognitivo-comportamental, por exemplo) mais imediatistas visando minimizar os sintomas e fazer com que os indivíduos adquiram uma postura mais segura em situações sociais (Dïel Rey, 2001).

Neste âmbito, com tal prevalência e forma de tratamento, observamos um caminho diverso do que aqui foi discutido. Os casos aqui enfocados tratavam-se de fobias comuns/específicas (cavalos e branco com listras); enquanto a fobia social apresenta-se de forma mais contingente/difusa, manifestando-se através dos sintomas: ansiedade antecipatória, sintomas físicos, esquiva e baixa auto-estima (Nardi, 1999). Talvez em função da dimensão dos sintomas apresentados (vida social comprometida), os tratamentos mais em destaque sejam aqueles que assegurem uma melhora imediata, ao contrário do que as numerosas sessões de psicanálise carecem.

Para finalizar, ressalta-se que com a comparação entre a fobia na atualidade e os quadros discutidos ao longo do trabalho não entram em conflito ou contradizem com as idéias aqui defendidas. Reiteramos a relevância e a atualidade do caso Hans para o estudo da temática, sob a alegação que a terapêutica em foco nos dias atuais supre as demandas nos casos prevalecentes. Isto é, preconizamos a análise de casos de forma particular, de forma que o profissional com base na sua bagagem teórica e prática adquirida e nos subsídios apontados em discussões e estudos de casos possa optar por um tratamento mais eficaz para o seu cliente.

 

Referências

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Recebido em outubro de 2007
Aceito em março de 2008

 

 

* Psicóloga graduada pela Universidade Federal da Paraíba e mestranda em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco.
** Psicóloga graduada pela Universidade Federal da Paraíba.
***Licenciada em Psicologia e mestranda em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba.
1 Little boys always love to play, but something it's not quite right/ Little Hans won't come out today, he's scared of a horse that might bite.

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