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Latin American Journal of Fundamental Psychopathology On Line

versión On-line ISSN 1677-0358

Lat. Am. j. fundam. psychopathol. on line v.5 n.1 São Paulo mayo 2008

 

ARTIGOS

 

Um mundo arcaico de vastas emoções e pensamentos imperfeitos: reflexões sobre sonhos e atos agressivos na adolescência1

 

The stuff dreams are made of: appointments on dreams and agressivity on adolescence

 

 

Maria Vitória Mamede Maia* ; Nadja Nara Barbosa Pinheiro**

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Universidade Federal do Paraná

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo propõe uma reflexão sobre os atos anti-sociais freqüentemente encontrados na clínica com adolescentes. Inicia-se através da apresentação da teoria freudiana sobre os processos psíquicos presentes na formação dos sonhos, objetivando fundamentar sua importância para a economia psíquica no sentido de permitir a simbolização de algumas vivências que permaneceram sem sentido. Posteriormente apresenta a perspectiva winnicottiana sobre o desenvolvimento psíquico infantil naquilo que concerne à de-privação que suscita os atos anti-sociais entendidos como um apelo proferido ao ambiente, por acolhimento e compreensão. Finalizando, propõe uma co-relação entre sonhos e atos anti-sociais na medida em que ambos podem ser compreendidos como uma mensagem que clama por deciframento e compreensão que, uma vez efetivados, permitem a elaboração e a transformação psíquica. O processo psicanalítico é apresentado, então, como um vetor que permite que o paciente recupere sua capacidade de sonhar e, portanto, de se re-criar.

Palavras-chave: Sonhos, Tendência Anti-social, Adolescência, Clínica Psicanalítica.


ABSTRACT

The present paper reflects on antisocial tendency usually presented by adolescents at clinical setting. First, it presentS Freud´s theory on dream's formation, aiming to stress its importance to psychological economy in order to aloud that some non-sense experiences be symbolized. Then, it presents Winnicott´s perspective about child development focusing de-privation and antisocial tendency as an appeal to environment to be understood and sustained. At the end, a co-relation between dreams and antisocial tendency is proposed since both could be understood as a message to be interpreted, process which leads to elaboration and psychological transformation. Psychoanalytical clinic is presented as a vector which makes it possible.

Keywords: Dreams, Adolescence, Antisocial Tendency, Psychoanalytical Clinic.


RESUMÉ

Cet article propose une réflexion sur les actes anti-sociaux fréquemment retrouvés dans la clinique d'adolescents. Dans un premier moment, nous introduisons la théorie freudienne sur les processus psychiques que l'on retrouve dans la formation des rêves afin de justifier son importance par rapport à l'économie psychique, dans le but de permettre la symbolisation d'expériences dont le sens n'a pas été élaboré. Nous présentons ensuite la perspective winnicottienne du développement psychique de l'enfant par rapport à la déprivation qui suscite les actes anti-sociaux, compris ici comme un appel à l'accueil et à la compréhension lancé à l'environnement. Pour conclure, nous proposons une corrélation entre les rêves et les actes anti-sociaux, dans la mesure où les deux peuvent être interprétés comme un message qui demande d'être déchiffré et compris, ce qui, une fois accompli, permet l'élaboration et la transformation psychique. Le processus psychanalytique est donc présenté comme vecteur qui permet au patient de récupérer sa capacité de rêver et, par conséquent, de se re-créer.

Mots clés: Rêves, Tendance Anti-sociale, Adolescence, Clinique Psychanalytique.


RESUMEN

Este trabajo propone una reflexión sobre los actos anti-sociales que se encuentran frecuentemente en la clínica con adolescentes. Comienza a través de la presentación de la teoría freudiana sobre los procesos psicológicos en la formación de los sueños, para justificar su importancia para la economía psíquica de permitir la simbolización de algunas experiencias que carecerían de sentido. Más tarde se presenta la perspectiva winnicottiana sobre el desarrollo mental infantil en lo relativo a las privaciones que plantea las tendencias anti sociales, entendidas como un recurso, dado el ambiente, para la acogida y la comprensión. Por último, se propone una relación que existe entre los sueños y los actos antisociales, en tanto que puede entenderse como un mensaje que pide su comprensión que una vez hizo permete la transformación mental. El proceso psicoanalítico se presenta, entonces, como un vector que permite al paciente recuperar su capacidad de soñar.

Palabras clave: Sueños, Actos Anti-sociales, Adolescencia, Clínica Psicoanalítica.


 

 

Introdução

Ultimamente tem sido cada vez mais freqüente recebermos em nossos consultórios adolescentes que apresentam comportamentos considerados extremamente agressivos e inconvenientes. Indisciplina na escola, discussões familiares, brigas nas ruas entre grupos rivais... as queixas são múltiplas e intermináveis. Diante delas, tanto a família quanto a escola se sentem impotentes e procuram nosso auxílio, na esperança de encontrarem, aí, respostas plausíveis para suas angústias e incertezas.

É sobre a especificidade dessa tarefa clínica que propomos uma reflexão, sem termos a mínima pretensão de sermos conclusivas. Nesta, partimos do princípio de que podemos entender tais comportamentos agressivos como um apelo perpetrado por esses adolescentes em busca de compreensão e acolhimento. Ou seja, podemos entendê-los como um movimento psíquico que aponta para vivências infantis que, por não terem encontrado outras maneiras de elaboração e simbolização adequadas, retornam no plano emudecido da atuação.

O presente trabalho inicia-se pela tentativa de promover um entendimento das múltiplas formas por meio das quais o material psíquico pode receber modos distintos de expressão. Tomamos, para tanto, o paradigma freudiano do processo onírico pois acreditamos que o sonhar possibilita, entre outras coisas, a simbolização de experiências arcaicas que permaneceram sem representatividade significante. Este movimento aponta para a incessante tarefa psíquica de organização da subjetividade que se efetua na dialeticidade entre o sujeito e seu ambiente. Ponto sobre o qual nos debruçaremos tomando como referência a perspectiva de Winnicott para nela fundamentarmos o nosso entendimento sobre as condutas anti-sociais como decorrentes de uma falha imposta, pelo ambiente, ao processo de desenvolvimento afetivo do bebê. Relacionando essa falha ao momento de constituição do espaço transicional, os atos anti-sociais podem ser entendidos como uma patologia da transicionalidade e, por esse motivo, ter como forma de expressão o plano da ação, da atuação e não o das simbolizações. Neste ponto de articulação entre a possibilidade de sonhar e de não sonhar insere-se nossa proposta de entendimento da clínica psicanalítica como um potencializador da transformação, na medida em que por meio dela, nos é dada a chance de reatualizar o momento inicial de construção subjetiva da relação mãe/bebê a qual permite, entre outras coisas, refundar, no paciente, a possibilidade de sonhar e simbolizar em vez de atuar. Nesse sentido, a clínica, ao abrir espaços de discursivida de, via movimento transferencial, visaria, sobretudo, o encontro de novas formas de elaboração e significação para essas vivências primitivas que, ao serem simbolizadas, encontrariam outros modos de expressão que não a atuação pura.

 

Sonhos: modos de organização e de expressão do material psíquico

Ao apresentar sua proposta original de que os sonhos possuem um sentido oculto que pode ser desvelado pelo processo de interpretação, Freud (1900) observa que tal processo só é possível se tomarmos como ponto de partida a distinção entre os seus conteúdos latente e manifesto. Equivocadamente, afirma o autor, todas as tentativas anteriores, impetradas com o intuito de interpretar os sonhos, levaram em conta apenas o conteúdo manifesto deste, ou seja, o sonho tal como ele se apresenta em nossa consciência desperta. Porém, nos alerta o autor, no processo de interpretação devemos levar nossa atenção para uma outra classe de material psíquico, denominado de conteúdo latente, ou, mais precisamente, "os pensamentos do sonho", na medida em que esses constituem a matéria prima a partir da qual os sonhos são formados. À interpretação, então, caberá a tarefa de revelar as relações entre esses dois conteúdos e entender como os pensamentos do sonho se transformaram em conteúdo manifesto.

Assim, podemos perceber que Freud compreende os sonhos como um texto interpretável, desde que se leve em conta a existência de dois modos distintos de ordenação do material psíquico. Para entender como esse processo se dá, o autor levanta algumas hipóteses em relação à constituição do aparelho psíquico ao longo de seu processo de desenvolvimento. Nesse entendimento, Freud (1900) parte do pressuposto do profundo estado de desamparo do ser humano ao nascer. De forma distinta dos outros animais, o bebê, ao nascer, é totalmente incapaz de prover sua própria sobrevivência. Para isso ele necessita, radicalmente, da presença de alguém que dele cuide e o mantenha vivo. Tal fato indica a importância do meio ambiente - entendido em seu sentido amplo - na constituição do sujeito. Nessa perspectiva não há nada que indique a existência de um aparelho psíquico ao nascer, porém há a potencialidade de que este venha a se constituir a partir das consecutivas repetições das primeiras experiências de satisfação vivenciadas na relação bebê / ambiente. A princípio, seguindo o modelo do arco-reflexo, o sistema nervoso responde a cada estímulo sensorial através da descarga motora. Alerta-nos Freud (1900), entretanto, que as necessidades vitais, como a fome, por exemplo, imprimem uma tensão que não cessa através da motilidade, somente por uma ação específica (a alimentação) capaz de eliminar a estimulação na fonte. Ação que o bebê é incapaz de realizar, ficando dependente de alguém que faça por ele, alimentando-o.

Para Freud, é justamente essa transformação de uma sensação de desprazer em prazer que funda as primeiras experiências de satisfação. Estas vão se repetindo ao longo do tempo e imprimem os primeiros traços, as primeiras marcas mnêmicas, a partir das quais os rudimentos do aparelho psíquico vão sendo constituídos. As vivências iniciais do bebê vão sendo, progressivamente, registradas por meio dos percursos mnêmicos traçados a partir de trilhamentos diferenciais. Este registro se faz, inicialmente, no campo das imagens sensoriais (acústicas, sinestésicas, olfativas) as quais, a partir do momento em que o bebê adquire a fala, vão recebendo novas formas de articulação. O acesso à linguagem permite a promoção de uma nova forma de organização da trama psíquica ao permitir que seu material constituinte se articule com um valor significante e se distribua diferentemente, em termos tópico e econômico, no interior do aparelho psíquico, simultaneamente o constituindo.

O progressivo desenvolvimento do aparelho psíquico em sua constante tarefa de organizar e distribuir os estímulos que nele chegam, se forma, portanto, a partir de sua relação com o meio ambiente em que está inserido. Índice da alteridade, a linguagem se apresenta como organizadora da trama imagética em sua potencialidade significante (no plano do Inconsciente) que adquire sentidos e significados (no plano do Pré/Consciente-Consciente), permitindo o crescente processo de significação do vivido através do acesso à linguagem conquistado pelo bebê. Por essa razão, segundo Freud, cada um dos sistemas (Mn, ICS e CS) se refere a modos distintos de organização do material psíquico: imagens sensoriais, no primeiro; condensações e deslocamentos operando no segundo; raciocínio lógico/racional no terceiro.

Nos sonhos, regressivamente, os pensamentos são transformados em imagens, ou seja, "a trama dos pensamentos oníricos decompõe-se em sua matéria-prima" (Freud, 1900, p. 498). Este fato nos indica que nos sonhos ocorre uma retomada dos processos mais primitivos de funcionamento do aparelho psíquico, abrindo mão da conquista operada pela linguagem ao substituir a palavra pela imagem que lhe deu fundamento. Segundo Freud (1900), o processo regressivo perpassa três possibilidades: há uma regressão tópica, ou seja, um movimento que vai do CS para o ICS; uma regressão temporal, isto é, uma reativação das lembranças infantis recalcadas e uma regressão formal, implicando retomada dos métodos mais arcaicos de funcionamento do aparelho psíquico, daí o caráter imagético do sonho.

Se o sonhar nos remete à nossa infância recuperando e reorganizando vivências e experiências relativas a momentos primitivos de nosso viver, podemos entendê-lo como fundamental para a economia psíquica e para a clínica psicanalítica posto que esta, tal como os sonhos, introduz a possibilidade de algumas vivências primitivas poderem alcançar novas formas de expressão. Para que tal possa ser alcançado, o paciente é lançado, via movimento transferencial, a um estágio primitivo de desenvolvimento afetivo, em que, pela relação estabelecida entre ele e sua mãe, a construção de seu mundo interno e externo estava sendo processada. Momento princeps de organização da subjetividade ao qual o paciente se vê lançado, na clínica, em uma tentativa inquieta de recuperar sua congruência afetiva, extremamente importante para sua saúde psíquica. É no contexto dessa experiência que tentaremos produzir uma compreensão para as condutas anti-sociais.

 

Quando não há espaço para os sonhos: o que revelam as condutas anti-sociais

Ao tentar entender os comportamentos anti-sociais, Winnicott igualmente retorna aos primeiros momentos de constituição subjetiva para desvelar, aí, seus fundamentos a partir da relação que vai sendo estabelecida entre o bebê e seu ambiente. Baseando-nos em suas considerações, acreditamos poder entender congruência afetiva como uma unidade que se amalgama entre o experienciado e o registrado em forma de afeto. Movimento que se inaugura a partir do interjogo constituído entre o tempo de espera pela volta da mãe (ambiente) e a confiança que o bebê possui que a mãe retornará, surgindo daí um espaço de diferenciação. Nesse espaço introduzido na unidade mãe/bebê evidencia-se, por parte do bebê, um ato de apossamento, um ato de descoberta de um objeto que tem como finalidade básica ser acalmador da angústia suscitada no bebê pelo tempo de espera pelo retorno materno. Nem interno nem externo, este objeto, denominado por Winnicott (1953) de objeto transicional, posto que transita entre esses dois pólos, permite que o bebê passe de um estado de dependência absoluta em relação ao seu cuidador, para um estado de dependência relativa. Neste último, o bebê pode perceber haver um outro, um "não eu" diferenciado dele, cuja função é a de estabelecer, pela primeira vez, a possibilidade de haver um esboço de simbolização onde anteriormente havia somente apercepção e fusão. É neste espaço transicional que o símbolo pode ser gestado, ampliado e apossado. Neste espaço é que a cultura irá habitar, assim como toda a criação não somente do bebê singular, mas igualmente de todo um percurso humano significativo para ele.

Porém, quando há, na constituição e na gestão deste espaço potencial uma quebra de ritmo, de fidedignidade, introduzida pela mãe, que demora a voltar mais do que o esperado, que desvia seu olhar antes do tempo ou para além do tempo de espera já suportado pelo bebê, o que ocorre é o nascer de uma desconfiança, pequena no início, mas gradualmente aumentada pelas repetições das falhas maternas para além do suportável por seu bebê. Essa desconfiança no mundo que acabara de ser criado no interjogo entre mãe e filho constitui, ao longo do tempo, um limite a uma área que é, em potencialidade, ilimitada. A progressiva limitação a essa área da criação instaura aquilo que Winnicott (1958) denominará de ciclo maligno em detrimento do ciclo benigno anteriormente constituído. Neste, há a diminuição da capa cidade simbólica do bebê e, conseqüentemente, o aumento da atuação sobre o meio. Segundo o autor, esse movimento se instala porque, neste processo, o bebê, usado sempre de forma prototípica pelo autor, já sabe a quem imputar o erro ou a falha excessiva: ao meio que o circunda. Assim este bebê irá incomodar o ambiente que o circunda, utilizando-se de atitudes cada vez mais agressivas e hostis. Objetiva, com seu ato, que o ambiente volte a lhe dispensar os cuidados anteriormente oferecidos. Por esse motivo Winnicott (1956) afirma que na tendência anti-social o que existe é um desapossamento, uma de-privação e não uma simples carência. Assim, nos comportamentos anti-sociais haveria a atuação deste desapossamento através do roubo, da destrutividade e da mentira.

Maia (2007), ao estudar a questão da tendência anti-social em Winnicott, diz-nos que esta, ao ser analisada dentro da questão do desapossamento, é concebida como sendo uma patologia da transicionalidade porque está relacionada a uma falha ambiental ocorrida durante a fase de dependência relativa, fase esta em que a transicionalidade já está se efetuando. Como bem marca Winnicott (1955, p. 200), "as crianças incluídas na categoria de desajustadas, ou não tiveram objeto transicional ou o perderam" .

Assim, podemos entender que a patologia do brincar, ou da transicionalidade, advém principalmente do fator temporal, mais especificamente da falha no tempo de retorno da mãe, pois para que a mãe continue a existir internamente na criança, há a necessidade de ela ser reafirmada pela sua presença real de tempo em tempo. O que nos permite compreender que a criança anti-social reivindica com seu ato o pagamento pelo seu abandono. Mas essa reivindicação é inconsciente: ela, na verdade, não sabe o que faz ou qual seria o motivo que norteia seus gestos agressivos. Ela parte de uma perplexidade. Algo falta a ela que antes lá havia, algo se esvaeceu na quebra do tempo de espera pelo retorno tido como certo da mãe – ela não veio. Postula-se, nesse momento, um enigma, já que o que foi sentido por essa criança não pode ser falado por ela: o pressentimento humano existente se quebra e algo maior se impõe ao bebê antes do tempo.

Por essas razões, Winnicott entende o ato anti-social como um apelo ao ambiente para que ele reconheça um débito seu para com a criança. Mas ele também marca que esse apelo é um apelo fadado ao fracasso porque a busca é simbólica, mas a atitude anti-social é da ordem da atuação. Se pararmos para analisar o que nos "fala" o ato anti-social, diremos que ele nos aponta exatamente para aquilo que não pode ser falado, simbolizado, sendo, portanto, atuado e gestualizado em movimentos cada vez mais amplos, saindo do círculo familiar até atingir os limites da sociedade.

Assim, ao lidarmos na clínica com crianças e adolescentes agressivos, teremos que lidar com o "estranho" que as habita, ou com o "estranho" que habita aqueles que sofreram fracassos e alterações no espaço transicional. E o estranho que lhes habita advém da quebra de confiança, de fidedignidade e permanência do meio que os envolve. A conseqüência dessas quebras é que há um não-desenvolvimento pleno da ilusão e o reconhecimento da realidade compartilhada ou objetiva fica intolerável. Não tendo bem estabelecido o espaço transicional, o brincar fica comprometido ou, às vezes, sequer pode aparecer na vida de uma criança. Quando não é possível brincar, aparecem a submissão e o sentimento de vazio: a criança se aborrece, se isola ou fica indiferente ou hostil. O que podemos perceber, em todos os casos, é um grande empobrecimento da capacidade criativa, elaborativa. São crianças e adolescentes que apresentam uma grande dificuldade de fantasiar, de manipular fantasiosamente os mundos subjetivo e objetivo, de brincar plasticamente com as realidades interna e externa. São crianças e adolescentes, enfim, que não conseguem sonhar.

 

Entre o sonho e a realidade: uma proposta de compreensão

Nosso trajeto, neste pequeno artigo, nos conduz a algumas possibilidades e tentativas de compreensão sobre as condutas anti-sociais apresentadas por inúmeros jovens que encontramos cotidianamente em nosso trabalho clínico.

Inicialmente indicamos a trajetória freudiana de compreensão sobre os processos oníricos, os quais apontam para um momento princeps de constituição subjetiva que permite, pela via da imagem-percepção, a progressiva elaboração das realidades interna e externa de cada sujeito. Nessa perspectiva, fica explícito o valor dos processos oníricos para a economia psíquica, no sentido de que o sonhar fornece a possibilidade de - através de um movimento regressivo tomado pela energia psíquica - ir promovendo formas alternativas e complementares de simbolização para inúmeras experiências que permaneceram sem possibilidades de elaboração. Nesse sentido, as imagens oníricas, ao se entrelaçarem umas com as outras, vão constituindo uma trama, uma cena, um enredo, ou seja, percorrem um processo de simbolização que, por sua vez, abre inúmeras possibilidades de entendimento e de elaboração. Aqui se inserindo, acreditamos, o caráter fundamental do sonhar em nossas vidas, pois através de seus mecanismos formuladores, os sonhos nos permitem reconstruir, ininterruptamente, nossa realidade interna/externa, ao nos fornecerem a área no interior da qual tudo aquilo que não pôde ser dito ou até mesmo pensado, retorne em imagens-sensoriais-oníricas que, ao se entrelaçarem, ao se apresentarem como um enigma a ser desvelado, e portanto reconstruído, permitem uma constante reordenação e elaboração do vivido.

Sobre esse ponto, conectamos o sonhar e as condutas anti-sociais, posto que, ali onde há um espaço menor para sonhar, não há, também, muitas possibilidades de transformação, simbolização e reconstrução. O que resulta é o puro ato de retaliação, agressividade em débito, enigma sem formulação, mas que busca uma possibilidade de compreensão.

Tal qual o processo onírico há no ato anti-social um enigma a ser desvendado, onde o conteúdo manifesto, a agressão, a destruição, o roubo, a mentira, estão no lugar de uma busca de sentido, de uma busca de afeto, de limites, seu conteúdo latente. Porém, esse movimento se perde, na maioria das vezes, no redemoinho da incompreensão e dos apelos jogados ao vento, uma vez que se engatam na cadeia destrutiva de uma crescente agressividade que pode levar ao rompimento com as regras e leis que organizam o pacto social. Exatamente por isso, nossa proposta de trabalho se coloca no esforço de entendermos os atos agressivos e anti-sociais como um apelo, enigmas que portam uma mensagem cifrada em busca de entendimento, decifração e acolhimento. Nesse movimento, pontuamos que o trabalho terapêutico nos oferece a oportunidade de re-construção da área de ilusão entre mãe/bebê no interior da qual o enigma lançado possa ser acolhido. Assim, ao reinventar esse espaço potencial, o processo clínico cria condições plausíveis de oferecer, ao paciente, a possibilidade de novamente poder vir a sonhar com uma vida afetiva, com um outro que o respeite como ser humano, com um mundo possível de se viver e não somente ter pesadelos acordados ou dormindo, onde o dormir, o descansar, não ficam protegidos pelo sonho.

Como imagem final sobre o que até agora refletimos, convidamos o poeta Manoel de Barros (2002) a se expressar por meio de metáforas, sobre o espaço que falta a esses jovens que se utilizam da agressividade como meio de comunicação:

 

Desde criança ele fora prometido para ser lata.
Mas era merecido de águas, de pedras, de árvores, de pássaros.
Por isso quase alcançou ser mago.
(Manoel de Barros, 2002, p. 45)

 

Referências

BARROS, M. Retrato do artista quando coisa. São Paulo: Record, 2002.         [ Links ]

FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.Rio de Janeiro: Imago, 1986, v. V.         [ Links ]

MAIA, M. V. Rios sem discurso: reflexões sobre a agressividade da infância na contemporaneidade. São Paulo: Vetor, 2007.         [ Links ]

WINNICOTT, D. (1953). Objetos transicionais e fenômenos ftansicionais. In: Winnicott, D. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 23-29.         [ Links ]

_____. (1955). Influências de grupo e a criança desajustada: o aspecto escolar. In: Winnicott, D. Privação e delinqüência.São Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 52-60.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Maria Vitória Mamede Maia
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Rio de Janeiro, RJ
Telefone/fax: (21) 33254846
E-mail: mvitoriamaia@gmail.com

Nadja Nara Barbosa Pinheiro
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Telefone/fax: (41) 3310 2648
E-mail: nadjanbp@ufpr.br

Recebido em janeiro de 2008
Aceito em março de 2008

 

 

* Psicóloga, Psicopedagoga Clínica, Professora de Literatura Brasileira e Teoria Literária. Mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ; Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-RJ, Psicopedagoga do NOAP - PUC-RJ - Núcleo de Orientação e atendimento psicopedagógico. (Rio de Janeiro, RJ, Brasil).
** Psicóloga, Especialista em Psicoterapia (IPUB-UFRJ), Mestre em Psicologia (UFRJ), Doutora em Psicologia Clínica (PUC-RJ), Professora Adjunto da UFPR, Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre o Desenvolvimento Humano (NEDHU/UFPR) e do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS/PUC-RJ). (Curitiba, PR, Brasil).
1O presente artigo foi apresentado no XII Colóquio Winnicott – Winnicott na História da Psicanálise. Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana, São Paulo, 2007.

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