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Latin American Journal of Fundamental Psychopathology On Line

versión On-line ISSN 1677-0358

Lat. Am. j. fundam. psychopathol. on line v.5 n.1 São Paulo mayo 2008

 

RESENHA

 

Complexo de Édipo: novas mulheres, novos homens, novas psicopatologias

 

 

Caterina Koltai*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

MIGUELEZ, Nora Beatriz Susmanscky de. Complexo de Édipo: novas mulheres, novos homens, novas psicopatologias. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 182.

O livro de Nora tem o sabor daqueles romances que nos acompanham ao longo da vida e nos quais, a cada nova leitura descobrimos algo novo, algo que tinha passado despercebido na leitura anterior, o que faz com que jamais nos cansemos dele. Participei das bancas de qualificação e defesa da tese que deu origem a este livro, e ao reler o texto para a resenha, eis que descubro que gosto ainda mais dele.

Gosto do estilo da autora, de sua honestidade intelectual e de sua liberdade de pensamento, da "iconoclastia" com a qual vai colocando suas questões e vai se colocando em xeque sem jamais esquecer que o analista é feito do mesmo estofo que seus analisandos. A autora trabalha com um amplo espectro de autores e, através do incessante diálogo que estabelece com eles, vai formulando e reformulando suas questões de uma forma que só quem se autoriza a pensar em nome próprio é capaz. A escrita de Nora é de alguém para quem a prática da psicanálise já deixou de ser, se é que algum dia o foi, sinônimo de pertencimento a uma seita, servidão voluntária a um mestre.

A primeira frase do livro ilustra perfeitamente o que estou querendo dizer quando, de modo aparentemente ingênuo, ousa se perguntar aquilo que todos pensam saber, ou seja, o que é mesmo o complexo de Édipo, questão que para ela nada tem de óbvio, muito pelo contrário, convida a reflexão justamente pelo seu grau de universalidade e transcendência na obra freudiana. Ela aceita o desafio de, mais uma vez olhar para esse tal complexo, com o mesmo prazer que se aceita uma contradança e sai rodopiando em torno desse "complexo nuclear", perguntando-se se ele é ou não um predicado para todo sujeito humano de qualquer época histórica e cultural e qual sua relação com as antigas e novas psicopatologias.

Questões, convenhamos, mais do que pertinentes, num momento em que muitos autores já decretaram a morte do pai enquanto outros vêm falando, não mais apenas em novas patologias, mas numa nova constituição subjetiva. São, grosso modo, essas as questões que a autora discute com brio e competência ao longo de um livro dividido em cinco capítulos, além de uma introdução e uma conclusão. No primeiro deles, intitulado "O complexo de Édipo", acompanha Freud em sua formulação desde a "Carta 69", de 1897 até o "Esquema da psicanálise", de 1940, e presenteia o leitor com sínteses que facilitam a compreensão das transformações ocorridas no pensamento freudiano. A primeira síntese compreende o período que vai da "Carta 69" a "Totem e Tabu" (1913) , a segunda síntese enfoca basicamente as mudanças introduzidas por Freud no período que vai da concepção de "Totem e tabu" ao de "O ego e o id" (1923), enquanto que a terceira e a última sintetizam respectivamente as importantes novidades introduzidas no ego e no id , e o recentramento da problemática edipiana no complexo de castração.

No segundo capítulo a autora dá início ao seu intrigante diálogo com seus pares, em torno da provocativa questão: será que ainda se fazem bons neuróticos como antigamente? Nesse momento seus principais interlocutores são franceses, entre eles J.A. Miller que ocupa um lugar, digamos, à parte e principalmente aqueles que , segundo ela, formam o trio "nostálgico e saudosista" do pai: Melman, Rassial e Lebrun que, em seus escritos, condenam os sujeitos contemporâneos, constituídos de modo diferente do de antigamente, a adolescência generalizada, quando não a loucura ou perversão. Sua crítica é contundente, ainda que a meu ver um pouco injusta para com Lebrun, autor bem menos nostálgico e mais aberto ao diálogo que os outros dois e que embora constate a ruptura com a tradição, não me parece sentir uma falta nostálgica dela, sendo capaz de distinguir declínio do patriarcado do declínio da função paterna. Mais que isso, me parece concordar com a autora, ao insistir no fato de que o inconsciente de um sujeito está longe de ser habitado unicamente por representações familiares. Mas essa é minha leitura, não parece ser a dela, e se me permito retomar essa nossa divergência é apenas para dar continuidade ao diálogo que venho travando com ela a esse respeito.

No terceiro capítulo, com seu belo título "Habemus superego", a autora dialoga com seus pares brasileiros. Grupo menos homogêneo que o anterior, é constituído, em sua maioria, por analistas do Rio de Janeiro tais como Joel Birman, Jô Gondar, M.C. Antunes e T. Coelho dos Santos. Sua originalidade reside em que todos esses autores parecem ter sido profundamente marcados pelos trabalhos de Foucault, além de manterem um incessante diálogo também com as obras de Deleuze, Derrida , Negri e Zizek, razão pela qual, embora reconheçam que o poder paterno definhou, posicionam-se de outra maneira face a isso, longe do tom nostálgico e de certo modo anti-histórico que ela identificou no trio anterior e que tanto a incomodou. Para esses autores de certo modo "já era" e reconhecem sem choro nem vela que as subjetividades contemporâneas se situam total ou parcialmente fora da simbolização.

Em "O pai nosso de cada dia" título do quarto capítulo, Nora nos apresenta a Michel Tort e sua obra La fin du dogme paternel (2005), autor que se tornou seu principal interlocutor, graças ao que ela nomeia sua crítica vigorosa. A grata surpresa desse encontro e o prazer da sintonia entre o pensamento de ambos é patente e explícita , visto que ela afirma ser-lhe extremamente grata por poder compartilhar com ele algo que vinha de certo modo experimentando na solidão. Mas o que diz o autor de tão interessante, para que ela rodopie com ele com tanto prazer? À primeira vista nada que outros já não tenham dito antes dele: interroga os efeitos da crise do patriarcado, só que o faz de outro modo, sem chorar o leite derramado, sem lamentar a crise das formas de subjetivação do passado. Tanto para Tort quanto para Nora, o complexo de Édipo alimentado "pela solução paternal" não passa de uma lei possível que correspondeu à ordem antiga, mas podem vir a existir outras.

A obra de Tort, um verdadeiro catatau, é densa em sua dupla vertente: psicanalítica e política. É essa última que mais parece ter seduzido nossa autora que admira o poder de denúncia do autor, fazendo sua a pergunta de Tort: onde é que foram parar os analistas que da vanguarda que foram um dia, vem se transformando, sem se dar conta, em defensores da "tradição, família e propriedade"? A revisão histórica e política que Tort faz da "crença" no pai, areja, segundo ela, o pensamento libertando-o da prisão em que vulgata psicanalítica o colocou; não há o que temer, o pai teve sim, e de certo modo ainda tem, papel importante na constituição subjetiva, mas o fez enquanto agente de todo um sistema de poder que vem mudando e é preciso reconhecer que os simbólicos não só são múltiplos como historicamente cambiantes.

Essa é uma verdade com a qual não temos como não concordar. só gostaria de lembrar que além de Tort, também outros autores vêm se recusando a situar o Édipo no cerne da psicopatologia, sem por isso deixar de considerar o dito complexo um momento fundamental e necessário da elaboração teórica freudiana. Há o próprio Miller, citado pela autora, e eu gostaria de lembrar o livro de Radmila Zygouris, Nem todos os caminhos levam a Roma, no qual a autora também se opõe à eterna invocação das tradições como necessárias à simbolização, e ao universal da função paterna enquanto causa única da lei e da subjetividade.

No quinto e ultimo capítulo a autora passeia, mais uma vez, pelo complexo de Édipo, pelo sistema patriarcal, por Freud e o patriarcado, o patriarcado hoje, o poder do pai e os novos poderes, para desembocar na questão-chave das novas patologias. Elas existem mesmo, se pergunta ela, retomando seu tom falsamente ingênuo do início? De onde será que vem essa verdadeira epidemia das novas doenças contemporâneas? E o que tudo isso revela? Novos modos de subjetivação? As perguntas que ela se coloca são múltiplas e não cabe ao resenhista anunciar as respostas, a ele só cabe alimentar a curiosidade do leitor. É o que espero ter conseguido fazer e como na história de Joãozinho e Maria, deixo uma última pedrinha: procurem do lado da histeria.

 

 

Endereço para correspondência
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Ciências Sociais, Departamento de Sociologia.
Rua Ministro de Godói, 969 4º andar – Perdizes
05414001 - São Paulo, SP – Brasil
E-mail: caty@osite.com.br

 

 

* Socióloga, psicanalista, Doutora em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. (São Paulo, SP, Brasil).

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