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Avaliação Psicológica

Print version ISSN 1677-0471On-line version ISSN 2175-3431

Aval. psicol. vol.1 no.1 Porto Alegre June 2002

 

ARTIGOS

 

Avaliação psicológica com crianças e adolescentes em situação de risco

 

Psychological Assessment of children and adolescents at risk

 

 

Claudio Simon Hutz; Débora Frizzo Macagnan da Silva

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo discute vários desafios e dificuldades que psicólogos enfrentam quando necessitam fazer avaliações psicológicas de crianças e adolescentes em situação de risco. O conceito de risco e a determinação de sua ocorrência são freqüentemente uma fonte de confusão e alguns critérios para sua determinação são apresentados. A necessidade de utilizar testes e outras técnicas de avaliação psicológica apropriadas o uso de instrumentos e métodos adequados para essa população são discutidos e algumas sugestões decorrentes de resultados de pesquisa recente são oferecidas. Várias questões metodológicas e éticas bem como alguns dos dilemas mais freqüentemente encontrados por psicólogos são discutidos e algumas soluções possíveis são apresentadas.


ABSTRACT

Psychological Assessment of Children and Adolescents at Risk. The present paper discusses several of the challenges and difficulties that are faced by psychologists who must do psychological assessment of children and adolescents at risk. The concept of risk and the identification of children and adolescents who are at risk is often a source of confusion. Some guidelines for its identification are provided here. The need to use appropriate tests and other psychological assessment techniques is discussed. Recent research is described to illustrate the possibilities that are available to psychologists in Brazil. Also, several methodological and ethical questions are discussed and some solutions for dilemmas faced by psychologists in this field are presented.


 

 

A avaliação psicológica de crianças e adolescentes em situação de risco é um dos principais e mais difíceis desafios que o psicólogo que trabalha com essa população enfrenta. Antes de discutir especificamente problemas e caminhos para a avaliação psicológica com essa população, é necessário definir com alguma clareza o que significa estar em situação de risco e reiterar algumas das razões básicas que tornam imperativo que processos avaliativos sejam realizados com eficiência e eficácia.

Considera-se que uma criança ou adolescente está em situação de risco quando seu desenvolvimento não ocorre da forma esperada para sua faixa etária, de acordo com os parâmetros de sua cultura (Bandeira, Koller, Hutz, & Forster, 1996). O risco pode ser físico (doenças genéticas ou adquiridas, problemas de nutrição, entre outros), social (exposição a ambiente violento, a drogas) ou psicológico (efeitos de abuso, negligência ou exploração). O risco pode ter suas origens em causa externa ou pode ser provocado pelo próprio indivíduo. As causas externas relacionam-se às condições adversas do ambiente. Comportamentos de risco referem-se a ações ou atividades realizadas por indivíduos que aumentam a probabilidade de conseqüências adversas para seu desenvolvimento ou funcionamento psicológico ou social, ou ainda, que favorecem o desencadeamento ou agravamento de doenças ou de riscos externos. Porém, para identificar um "aumento na probabilidade", é necessário conhecer a probabilidade total das "conseqüências adversas" na população geral.

O fato é que pouco se sabe atualmente sobre o desenvolvimento psicológico de populações que vivem em situação de risco social e pessoal. Apesar de grandes avanços nas últimas décadas, o conhecimento acumulado em psicologia sobre o desenvolvimento de crianças e adolescentes ainda apresenta lacunas (Emde, 1994; Huston, McLoyd, & Coll, 1994). Jessor (1993) chama a atenção para a falta de modelos teóricos e pesquisa empírica sobre o desenvolvimento de crianças e adolescentes que vivem em situação de risco e, mais especificamente, em situação de pobreza. Vários autores têm lamentado a falta de atenção dada ao estudo do desenvolvimento de seres humanos que vivem na pobreza ou fazem parte de minorias étnicas ou raciais (por exemplo, Fischer, 1993). A referência é feita especialmente à falta de estudos com segmentos da população norte-americana e ao fato de que a grande maioria dos estudos normativos sobre desenvolvimento psicológico tem sido feita com crianças e adolescentes brancos de classe média. Diz-se, com razão, que continua-se a estudar o desenvolvimento normal das crianças brancas de classe média e a patologia dos negros, dos hispânicos, dos imigrantes e dos pobres em geral.

No Brasil, igualmente, a produção de conhecimentos científicos sobre crianças e jovens que se desenvolvem em situações desvantajosas como a rua ou em situações de pobreza ainda é incipiente, apesar do grande contingente da população que cresce em tais circunstâncias (Hutz & Koller, 1997). Percebe-se uma lacuna entre a realidade concreta do desenvolvimento de nossas crianças e jovens e a produção do conhecimento no país, lacuna esta que nos últimos anos começa a ser preenchida por alguns grupos de pesquisadores, como o grupo do CEP-RUA- UFRGS.

Uso de drogas, lícitas e ilícitas, comportamento sexual promíscuo, relações sexuais desprotegidas, família desestruturada, falta de modelos apropria-dos, socialização inadequada para promover o respeito pela vida e pela dignidade dos seres humanos, etc., são fatores que colocam em situação de risco, crianças e adolescentes em todas as classes sociais, inclusive nos países desenvolvidos. No Brasil, quem conhece a realidade das melhores escolas de Nível Médio do país ou quem observa o comportamento de adolescentes ricos nas madrugadas das grandes cidades, sabe bem que não são apenas os filhos dos pobres que estão em situação de risco. A situação não é muito melhor em outros países. Dryfoos (1990) realizou estudos epidemiológicos usando uma escala de avaliação de exposição a situações de risco e concluiu que cerca de metade dos adolescentes norte-americanos encontram-se em situação de risco moderado a elevado. Esta estimativa parece ser um exagero porém tem sido confirmada por outros estudos (ver, por exemplo, Kazdin, 1993).

Apesar das deficiências, tanto no campo teórico como no campo de pesquisas empíricas sabe-mos que diante das situações de risco algumas crianças e jovens conseguem se desenvolver adequadamente, isto é, conseguem alcançar um bom funcionamento nos domínios social e psicológico (o que inclui competência social, interações interpessoais positivas, habilidades em lidar com adversidades e envolvimento em atividades sociais) e não apresentam disfunções ou psicopatologias que impeçam ou prejudiquem a vida diária (Kazdin, 1993). Estas crianças e jovens que vivem bem apesar das situações adversas são denominadas resilientes.

O presente trabalho, porém, terá seu escopo restrito a populações que apresentam, entre outros, um fator de risco universal: a miséria. Dentro deste grande grupo, vamos focar mais detalhadamente a questão da avaliação psicológica com crianças em situação de rua e com adolescentes que transgridem a lei de forma sistemática e violenta, denominados jovens em conflito com a lei. Tais adolescentes, em decorrência de seus atos infracionais, cumprem medidas sócio-educativas de privação de liberdade e semi-liberdade previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) em instituições governamentais. Tanto a literatura internacional (Farrington, 1995; Garbarino, 1999; Likker, 1995; Loeber & Hay, 1997; Wandersman & Nation, 1998) como a nacional (Assis, 1999) têm enfatizado as relações entre o desenvolvimento do comportamento infrator e o fato de viver em situação de pobreza e ou de rua. Obviamente não se está falando de uma relação causal. A pobreza se torna um fator de risco para o desenvolvimento de atos delituosos por seus efeitos diretos e indiretos sobre a família e vizinhança da criança e do adolescente. Famílias pobres têm que lidar com uma série de dificuldades e restrições que competem pela atenção e disponibilidade dos adultos. Dessa forma, resta menos tempo, menos energia e menos disposição para que a família exerça as tarefas parentais de forma competente: cuidar, proteger, disciplinar, monitorar e supervisionar seus descendentes. Devido às restrições econômicas es-tas famílias têm dificuldades em prestar uma assistência médica básica aos seus filhos e, além disso, vivem em situações (por exemplo, várias pessoas dormindo no mesmo cômodo) que facilitam a promiscuidade e dificultam a intimidade. Em bairros pobres, devido ao constante fluxo de moradores, é mais difícil estabelecer laços afetivos e duradouros que poderiam ajudar a criança. Além disso, pais podem encontrar dificuldades em escolher alguém confiável e seguro que possa substituí-los nos cuida-dos com os filhos enquanto eles trabalham. Em bairros mais pobres, a heterogeneidade cultural, religiosa e étnica implica numa grande diversidade de crenças, opiniões e expectativas sobre o que é normal ou correto em termos de comportamento para uma criança ou jovem. Isto também colabora para a dificuldade, entre os vizinhos, de monitorar, super-visionar e avaliar os comportamentos infantis e, consequentemente, intervir quando uma criança ou jovem da própria ou de outra casa, começa a apresentar dificuldades. Além disso, sinais de declínio e falta de controle social como a presença de atividades ilícitas (como, por exemplo, tráfico de drogas), de vandalismo e um clima de permissividade com a violência, tornam estas áreas locais inadequados para um desenvolvimento saudável e que dificultam a tarefa familiar de proteger e cuidar. As famílias pobres podem, portanto, ser consideradas famílias vulneráveis, frágeis para desempenhar suas funções básicas, que são o provimento das necessidades básicas e a socialização de seus filhos.

Crianças em situação de rua e jovens em conflito com a lei são segmentos especiais e não representativos de toda a população de risco, mas que atualmente tem recebido considerável atenção de pesquisadores, especialmente na última década. Esta atenção tem sido impulsionada pelo fenômeno crescente dos homeless nos Estados Unidos e pela crescente visibilidade da violência envolvendo crianças e jovens na América Latina. No Brasil, nas últimas décadas, o envolvimento de jovens em situações de conflito com a lei, além de estar se tornado uma importante fonte de mortalidade juvenil, tem preocupado toda a sociedade por suas repercussões, tanto concretas como percebidas, em termos de violência urbana (Minayo & Souza, 1998; 1999). Jovens em conflito com a lei, bem como crianças em situação de rua não são apenas um problema de segurança pública ou de saúde pública. Elas representam um problema social grave, inclusive pelas implicações morais de ter uma parte da população vivendo em condições tão precárias. Portanto, tais temas requerem um posicionamento efetivo de toda sociedade, inclusive do meio acadêmico que produz e transmite conhecimentos científicos que podem alterar uma realidade cruel e desumana para todos.

Há inúmeras razões para realizar avaliação psicológica com crianças e adolescentes em situação de risco. Há pesquisadores interessados em descrever essa população, compará-la com crianças e adolescentes que se socializam de forma mais tradicional e gerar conhecimentos que possam ser utilizados para reduzir a vulnerabilidade, aumentar a resiliência e melhorar a qualidade de vida de crianças e adolescentes em situação de risco. Acreditamos que o conhecimento gerado pela pesquisa levará eventualmente à formulação de programas e políticas sociais capazes de contribuir para a inserção social dessas crianças e adolescentes e para que eles possam desenvolver habilidades necessárias para sua inserção como membros produtivos da sociedade, exercendo sua cidadania de forma plena. Temos, portanto, necessidade de fazer avaliações psicológicas para fins descritivos e comparativos na atividade de pesquisa.

No caso específico dos adolescentes em conflito com a lei, as avaliações psicológicas são fundamentais para embasar intervenções em grupo ou individuais que promovam a desistência do comportamento infracional, bem como sua reinserção em suas comunidades de origem através de outros modos de vida, que não se baseiem no uso da agressão e da violência como formas de resolução de problemas. Na realidade brasileira atual, as intervenções com adolescentes em conflito com a lei não têm se mostrado eficazes na modificação deste tipo de comportamento. A incidência de reincidências no cometimento de atos infracionais é elevada (Oliveira & Assis, 1999). Tal constatação reitera a importância da avaliação psicológica como uma das possíveis ferramentas para alterar este quadro, tornando as intervenções mais efetivas.

Outra importante necessidade de avaliação psicológica surge no contexto de avaliação de pro-gramas institucionais. Esses programas são freqüentemente desenvolvidos com o objetivo de profissionalizar adolescentes em situação de risco. Em projetos deste tipo, não é suficiente saber se o adolescente aprendeu ou se tornou capaz de executar algumas tarefas na oficina ou na empresa que organiza o treinamento. É fundamental avaliar mudanças mais profundas. Basicamente, é necessário determinar se, ao término do treinamento, esses indivíduos encontram-se efetivamente preparados para ingressar no mercado de trabalho, se houve redução na exposição a riscos, se há mais fatores de proteção operando. Enfim, se eles se tornaram mais resilientes, menos vulneráveis e se es-tão mais próximos do objetivo ideal de se tornarem membros produtivos da sociedade, capazes de exercer sua cidadania.

Há razões pragmáticas e éticas para fazer esse tipo de avaliação em programas institucionais. As razões pragmáticas são simples: Esses programas custam caro. Órgãos e agências financiadoras insistem cada vez mais em avaliações de impacto, de eficiência e de eficácia. É fundamental mostrar clara e objetivamente que as metas do programa estão sendo atingidos. A incapacidade de fazer esse tipo de avaliação levará inexoravelmente à perda de financiamento e à interrupção de programas cujos resultados poderiam estar beneficiando grupos em situação de risco.

Mesmo que não houvesse imposições externas de avaliação, há razões éticas que nos obrigam a realizá-la. Um programa deficiente, que não atinge seus objetivos e que, por falta de avaliação, não traz embutido pelo menos alguns mecanismos de correção, pode provocar danos generalizados e graves prejuízos para sua população alvo. Exatamente o grupo que o programa pretende beneficiar pode se tornar vítima de procedimentos ou práticas inadequadas qu são capazes de aumentar a vulnerabilidade. Não se trata apenas de desperdício de dinheiro. Trata-se de desperdício de vidas. Na melhor das hipóteses, crianças e adolescentes que participam destes pro-gramas não vão sair deles melhores do que quando entraram. Desperdiça-se portanto a oportunidade de mudar suas vidas. A detecção precoce da ineficácia desses programas permite aprimorá-los ou encerrá-los, direcionando recursos para outros pro-gramas capazes de fazer uma diferença nas vidas dessas crianças e adolescentes.

Mesmo no nível da pesquisa mais básica, há também uma obrigação ética de assegurar que a avaliação psicológica está sendo feita de forma adequada e com instrumentos apropriados. O conhecimento produzido por nossos estudos sobre o desenvolvimento em situação de risco freqüente-mente embasa a adoção de políticas sociais e leva a tomada de decisões que afetam a vida dessas populações. O erro pode ter um custo elevado para comunidades inteiras.

É portanto imperioso que o psicólogo examine muito cuidadosamente os objetivos da avaliação, defina criteriosamente o que vai ser avaliado e certifique-se de que os instrumentos e métodos que vai utilizar são confiáveis, fidedignos e válidos para realizar a avaliação desejada com grupos em situação de risco. Instrumentos cujas normas foram desenvolvidos com amostras de estudantes universitários ou com crianças e adolescentes de nível sócio econômico médio ou elevado, dificilmente serão adequados para esses grupos. A falta de instrumentos apropriados certamente não justifica o uso de instrumentos de validade desconhecida.

A primeira questão consiste em definir o que se deseja efetivamente avaliar quando se trabalha com grupos em situação de risco. Evidentemente, não é possível listar e muito menos discutir as inúmeras variáveis e processos que podem ou devem ser avaliados. Geralmente é útil e necessário avaliar variáveis sócio-psicológicas e sócio-demográficas que podem potencialmente se relacionar com resiliência, vulnerabilidade e fatores protetivos. Mecanismos, fatores ou processos protetivos são todas aquelas influências que modificam, melhoram ou alteram a resposta dos indivíduos a ambientes hostis que predispõem a conseqüências mal adaptativas (Hutz, Koller & Bandeira, 1996). Na avaliação de um programa de profissionalização, por exemplo, deve-se investigar se esse programa produziu um aumento ou melhoria qualitativa nas re-des de apoio social, mudanças nos estilos atribucionais, modificações nas estratégias para lidar com problemas pessoais, familiares, acadêmicos, e assim por diante.

No caso dos jovens em conflito com a lei é importante que a avaliação psicológica permita acessar de forma eficiente características individuais relacionadas com o surgimento e a persistência do comportamento infrator. A literatura sobre psicopatologia do desenvolvimento (Farrington, 1995; Garbarino, 1999; Loeber & Hay, 1997) tem sido unânime ao elencar algumas destas características, consideradas fatores de risco individuais para o envolvimento em atos delituosos: baixa auto-estima, baixos níveis de inteligência, altos índices de depressão, estilo atribucional disfuncional, locus de controle externo, ausência de habilidades sociais e estratégias de resolução de problemas baseadas na agressividade. Por outro lado, uma alta auto-estima, baixos índices de depressão, locus de controle interno e a presença de habilidades sociais e de resolução de problemas são fatores que protegem contra o cometimento de atos infracionais. Percebe-se que as mesmas características podem ser fatores de risco ou fatores de proteção, conforme se apresentem ou interajam na vida do indivíduo.

No entanto, uma vez definidas quais as características ou qual o foco da avaliação psicológica, um novo desafio se impõe ao profissional: Psicólogos que trabalham com populações em situação de risco rapidamente descobrem que os métodos e técnicas tradicionais de avaliação psicológica são inadequados para investigar essas variáveis. Além de não terem sido desenvolvidos com esse objetivo, a maioria dos instrumentos não está devidamente adaptada e validada para uso com populações em situação de risco no Brasil. Pesquisadores têm utilizado instrumentos como o Desenho da Figura Humana, teste de Bender, vários testes de inteligência e personalidade com resultados insatisfatórios. Esses testes, além de serem geralmente inadequados para populações de baixa escolaridade, marginalizadas, vivendo em estruturas sociais e familiares diversas, simplesmente não medem as variáveis que realmente queremos e precisamos avaliar.

Porém, nas últimas duas décadas, a pesquisa no campo da resiliência levou ao desenvolvimento de vários instrumentos e métodos promissores para uso com populações em situação de risco. São instrumentos (testes e entrevistas padronizadas) que permitem avaliar uma quantidade razoável de variáveis tais como redes de apoio social, estilos atribucionais, auto-estima, coping (estratégias para lidar com problemas), nível de exposição a fatores de risco, ajustamento emocional, desempenho acadêmico, bem-estar subjetivo e qualidade de vida, entre outros. Pesquisadores também estão aprendendo a fazer novos usos de antigos instrumentos. Técnicas gráficas, por exemplo, têm sido usadas para investigar níveis de estereotipia de crianças em situação de rua com relação a crianças de classe média e vice-versa e na investigação de abuso sexual e maus-tratos.

Cabe destacar aqui o uso da entrevista como uma das alternativas mais eficientes neste contexto de avaliação psicológica com populações específicas. A entrevista tem sido utilizada com sucesso como forma de avaliação com adolescentes em conflito com a lei, permitindo uma avaliação eco-logicamente válida (Silva, 2001). No entanto, seu uso apresenta inúmeras dificuldades e desafios. É necessário um determinado grau de conhecimento prévio de técnicas de entrevista, bem como um conhecimento teórico aprofundado dos conceitos que serão investigados.

As características específicas da população de adolescentes em conflito com a lei também impõem desafios à tarefa de entrevistá-los. Questões típicas da adolescência (comportamento desafiador e questionador, conflito com figuras de autoridade) aliam-se à complexidade da história desenvolvimental e do contexto destes adolescentes. Muitas vezes esses adolescentes demonstram dificuldades de falar sobre seus sentimentos, pensamentos e relacionamentos interpessoais, além de apresentarem poucas habilidades de comunicação verbal e baixo repertório auto-descritivo. Além disso, devido a suas vivências anteriores, marcadas por interações pessoais hostis e agressivas, estes jovens têm grande dificuldade em formar um vínculo de confiança com um adulto. E sabemos nós que o estabeleci-mento de um bom vínculo é fundamental para que uma entrevista transcorra de modo eficiente e agradável tanto para o entrevistador como para o entrevistado. O estabelecimento de um vínculo de confiança é importantíssimo nesta tarefa. O envolvimento do jovem com a justiça dificulta este vínculo, uma vez que muita informação obtida através da entrevista poderia ser utilizada nos trâmites legais. Aqui, o sigilo profissional e a conduta ética do psicólogo são imperativos para que a avaliação se torne viável e não prejudique o adolescente.

Outra questão a ser levada em conta no uso da entrevista com populações em situações de risco, especialmente no momento da análise e interpretação dos dados obtidos, é a questão do viés inerente a toda medida de auto-relato, que aqui está potencializado. Crianças em situação de rua e, especialmente, adolescentes em conflito com a lei, tendem a fornecer respostas socialmente desejáveis, respostas que agradem aos adultos ou que contribuem, de uma forma ou de outra, para a construção de uma imagem positiva de si mesmo perante os outros.

Ainda é necessário enfatizar que avaliação psicológica requer treinamento e conhecimento aprofundado e atualizado de psicologia do desenvolvimento, teorias da personalidade e psicopatologia. Não basta aprender a aplicar testes. O conhecimento dos instrumentos, de como foram construídos, de suas características psicométricas e de suas limitações é, evidentemente, imprescindível. Mas o conhecimento de teoria psicológica não é substituível por sofisticação psicométrica.

A avaliação psicológica com crianças e adolescentes em situação de risco requer mais ainda. É necessário conhecer essa população, compreender seu contexto desenvolvimental e saber como abordá-los, procurando entender a sua linguagem e sua cultura e respeitá-las. O psicólogo deve adotar uma postura de auto-avaliação constante, no sentido de jamais querer impor seus valores e jamais julgar o comportamento de quem está sendo avaliado. Esta auto-vigilância, que se traduz numa conduta amistosa e aberta, é uma condição fundamental para o estabelecimento de uma situação de avaliação não ansiogênica e eficiente.

É também necessário estar preparado para lidar com os resultados que eventualmente serão obtidos. Não é possível simplesmente juntar os protocolos, analisar os dados e escrever um relatório ou publicar um artigo. Quem trabalha com crianças e adolescentes em situação de risco tem que ser, antes de tudo, um educador, um agente de saúde. É necessário repassar informações, fazer encaminhamentos e agir eficazmente quando situações graves (abuso sexual ou físico, por exemplo) são detectadas. Para isso, quem trabalha ou pesquisa com essa população deve estar familiarizado com os princípios éticos que regem essa atividade e também com os recursos disponíveis na comunidade (ver, por exemplo, Resolução CFP 016/2000; Hutz & Spink, 2000).

Finalmente, é importante lembrar que a avaliação de crianças em situação de rua e de jovens em conflito com a lei pode ocorrer, muitas vezes, em instituições que atendem estas populações. Neste contexto, dependendo das características específicas, das deficiências e do momento histórico das instituições em questão, surgem crenças e expectativas irreais quanto à presença ou atividade do psicólogo. Algumas vezes, este profissional é percebido como um ser messiânico, dotado de instrumento e técnicas mágicas, que revelarão uma verdade pronta. Concomitantemente a isto, podem surgir atitudes hostis e de desconfiança em relação ao psicólogo, que pode ser percebido como um ser invasivo, que quer se apropriar de uma realidade não compartilhável com os demais. Novamente, diante destas situações, o psicólogo deve atuar a partir de todo seu background teórico, técnico e ético, demonstrando confiança, firmeza e flexibilidade. Tais atributos permitem um convívio harmônico com a instituição, que não reforce estereótipos comuns referentes aos profissionais da área psi e que permita um trabalho tecnicamente eficiente e ético.

Apesar da complexidade da tarefa e de todas as questões acima, às quais o psicólogo deve estar atento, é importante salientar que o momento da avaliação psicológica com adolescentes e crianças em situação de risco pode e deve se tornar um momento de resgate de saúde. Este momento de entrevista ou de aplicação de testes muitas vezes é vivenciado pela criança ou adolescente, como muito positivo, pois constitui-se em um dos poucos momentos nos quais um outro ser humano se dispôs a escutá-lo e se interessou pelo o que ele tem a dizer, sem outro interesse que não o seu bem-estar. A avaliação se constitui, então, também em um momento de intervenção, já que propicia a experimentação de uma relação interpessoal respeitosa e amistosa, experiência esta rara nas histórias de vida destes jovens e crianças, geralmente marcadas por interações agressivas, exploratórias e não afetivas.

Por outro lado, para o psicólogo que trabalha com avaliação de populações em situação de risco, esta tarefa representa uma dupla oportunidade de crescimento pessoal e profissional. Esta atividade exige uma constante busca de aprimoramento teórico e técnico e de atualização com a produção nacional e internacional em psicologia enquanto ciência e profissão. Aliado a este aprimoramento técnico, o trabalho com esta população específica oferece ao profissional riquíssimas experiências, que impõem um constante questionamento sobre sua postura, seus valores e, principalmente, sobre o compromisso que ele tem diante da realidade social que ora se apresenta.

No Brasil, é difícil falar em políticas de atendimento e intervenção com crianças de rua e adolescentes autores de ato infracional sem se reme-ter a questões estruturais e sociais mais amplas e sem se referir ao contexto político e econômico atual. A atual desigualdade social e a ausências de políticas consistentes e persistentes de atendimento a população infantil e jovem de baixa renda contribuem para que crianças e adolescentes vivam em situações de risco crônicas para um desenvolvimento saudável. Mudanças neste panorama so-mente são viáveis em longo prazo. No entanto, os psicólogos que atuam na área da avaliação podem contribuir de alguma forma, levando em consideração, no seu trabalho cotidiano, os aspectos aqui abordados. Assim, o trabalho psicológico não se transformará em mais um fator de risco para o desenvolvimento destas crianças e jovens. Ao contrário, a intervenção do psicólogo pode e deve se constituir em um fator de proteção.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Instituto de Psicologia - UFRGS
Ramiro Barcelos, 2600
90035-003 Porto Alegre - RS
E-mail: hutzc@ufrgs.br

Recebido em 25/02/2002
Aceito em 20/05/2002

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