SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.1 número2Questionário de Vivências Acadêmicas (QVA-r): avaliação do ajustamento dos estudantes universitários índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Avaliação Psicológica

versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431

Aval. psicol. v.1 n.2 Porto Alegre nov. 2002

 

EDITORIAL

 

Responsabilidade Ética, Social e Política da Avaliação Psicológica

A Avaliação Psicológica e Educacional representa uma das principais contribuições da Psicologia para a sociedade. Ela pode prover melhorias significativas, importantes e socialmente relevantes em todos os setores: agências governamentais, educação, serviços, atividades laborais, programas sociais, entre tantos outros.

A Avaliação Psicológica afeta indivíduos, instituições e a sociedade como um todo. Isso acontece nos países em que a Psicologia é desenvolvida e o Brasil não é uma exceção. Os indivíduos afetados são estudantes, pais, professores, administradores, pessoas que procuram emprego, trabalhadores, gerentes, executivos; são também crianças em situação de rua, adolescentes em conflito com a lei e todos aqueles que vi-vem em situação de risco pessoal e social. Poucos, na nossa sociedade, escapam da Avaliação Psicológica. Quem deseja dirigir um automóvel, usar uma arma, adotar uma criança ou obter um emprego está sujeito a ser testado e avaliado. Rara é a instituição que não é afetada direta ou indiretamente: escolas, universidades, empresas, agências governamentais.

Indivíduos e instituições se beneficiam quando a Avaliação Psicológica contribui para que possam atingir seus objetivos. A sociedade se beneficia quando as realizações dos indivíduos e das instituições contribuem para o bem comum. As possibilidades da Avaliação Psicológica são imensas e seu potencial para melhorar a qualidade de vida das pessoas é extraordinário. Mas, ela também possui um potencial de causar dano às pessoas, às instituições e à sociedade como um todo se não dispusermos de métodos, técnicas e instrumentos apropriados e se psicólogos não estiverem qualificados para utilizá-los.

No Brasil, apesar de sua longa história, a Avaliação Psicológica ainda é incipiente como atividade profissional cientificamente embasada. Seu desenvolvimento foi prejudicado pelo preconceito, pela ignorância, pela confusão epistemológica e, até mesmo, por alguma confusão ideológica. Além disso, deficiências na formação e a ojeriza à matemática e à estatística, também contribuíram para dificultar o desenvolvimento de métodos, técnicas e instrumentos necessários para a Avaliação Psicológica. Psicólogos atuando nesta área queixam-se, historicamente, de serem marginalizados e desrespeitados, até mesmo pelos próprios colegas. Note-se que esta é uma queixa brasileira, não um fenômeno internacional.

O descaso e a desqualificação da área levaram a pouco investimento em treinamento e na produção de instrumentos adequados para a nossa realidade. Ainda hoje, usa-se no Brasil, testes que há muitos anos não são mais usados nos seus países de origem, instrumentos de validade desconhecida e com normas desatualizadas. Há muitos instrumentos novos e de boa qualidade, mas, freqüentemente, é difícil diferenciá-los de material que estaria melhor num museu do que nas estantes de uma loja de testes.

A falta de treinamento e de formação de qualidade pode levar um psicólogo a usar testes de forma mecânica, sem um entendimento claro do que está realmente sendo feito ou, o que é ainda mais grave, sem saber exatamente o que deve ser avaliado. Só é possível escolher instrumentos ou técnicas para fazer uma seleção quando se tem um perfil claro do cargo e das funções envolvidas, quando se sabe exatamente quais são as variáveis e processos psicológicos que devem ser avaliados e quando se estabeleceram com razoável precisão pontos de corte. A falta de consenso entre os psicólogos sobre quais são os instrumentos que devem ser usados para avaliar candidatos à obtenção de carteira de motorista exemplifica bem esse ponto. Não há muitos estudos científicos publicados mostrando claramente quais são as habilidades, aptidões, traços ou características de personalidade que são fundamentais para dirigir com segurança e quais são os escores mínimos ou máximos que indicariam aptidão ou inaptidão para conduzir um veículo. Avaliações feitas nessas condições são subjetivas. Outro psicólogo, igualmente habilitado, poderia chegar a conclusões diferentes, mesmo que os mesmos instrumentos fossem utilizados.

Houve uma época em que muitas universidades exigiam um exame psicotécnico para quem quisesse estudar psicologia. Hoje, felizmente, isso praticamente não acontece mais. E nem por isso os psicólogos que não foram "aprovados" no psicotécnico são mais desajustados, infelizes, ou incompetentes do que seus colegas que foram submetidos a essa avaliação. O que estava sendo feito então? Quantas pessoas foram impedidas de estudar psicologia simplesmente porque não apresentavam as características que alguns psicólogos, no seu imaginário, julgavam imprescindíveis para ser um bom psicólogo? O mesmo problema continua ocorrendo em alguns casos em que seleções são feitas sem que se conheça exatamente o perfil do cargo ou função. Reitera-se então a mesma questão: quantas pessoas qualificadas estão sendo impedidas de assumir cargos, conseguir empregos ou promoções por não atenderem critérios de desempenho em exames psicológicos que não foram estabelecidos de forma científica?

A situação da Avaliação Psicológica é crítica, mas isso não é novidade. A novidade é que, finalmente, há uma consciência clara de todos - psicólogos que trabalham na área, sociedades científicas e Conselho Federal de Psicologia - que as dificuldades devem ser enfrentadas e superadas. Ainda há divergências sobre as estratégias, mas é muito positivo observar que há consenso sobre a necessidade de dar mais atenção à área de Avaliação Psicológica, aprimorar a formação de psicólogos e desenvolver instrumentos, métodos e técnicas de avaliação modernos, válidos, adaptados à nossa realidade, com normas precisas e atualizadas.

O Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP) tem posições claras a respeito dessa questão, expressas no seu programa de gestão e em outros documentos, como, por exemplo, a manifestação conjunta do Grupo de Trabalho em Avaliação Psicológica da ANPEPP, IBAP e SBRo em defesa da Avaliação Psicológica, publicado neste número da revista. Consideramos que várias ações devem ser tomadas. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que a Avaliação Psicológica é uma área. A idéia de que a Avaliação Psicológica não é uma área, mas um conhecimento que se espraia por toda a Psicologia, reflete desconhecimento e confusão entre a realização de diagnósticos em áreas específicas (que todo o psicólogo deve ser capaz de fazer) e o campo da Avaliação Psicológica que envolve a construção, o desenvolvimento, o aperfeiçoamento, a investigação sistemática de instrumentos, métodos e técnicas e suas relações e interações. É preciso reconhecer que a área da Avaliação Psicológica envolve muito mais do que a realização de diagnósticos numa área específica. A Avaliação Psicológica deve ser considerada como uma área embasadora e instrumentalizadora na Psicologia, como são, por exemplo, a Psicologia do Desenvolvimento, a Psicologia Experimental, a Psicopatologia, entre outras. Esses campos produzem conhecimentos necessários à aplicação, à prática profissional em qualquer área da Psicologia.

Portanto, é fundamental que a Avaliação Psicológica seja reconhecida como área e que se possibilite o registro do título de especialista nesta área. Mas é preciso ter claro que um especialista em Avaliação Psicológica não é simplesmente um psicólogo que há mais de 30 anos vem aplicando os mesmos testes nas mesmas pessoas do mesmo jeito. O especialista em Avaliação Psicológica é, no mínimo, fluente em psicometria, conhece com profundidade e se mantém atualizado nas áreas básicas da Psicologia, é capaz de dar contribuições significativas para o desenvolvimento de sistemas ou métodos de avaliação e de avaliar a adequação de instrumentos e procedimentos usados para fins de diagnóstico.

É também fundamental regulamentar a área, controlando a qualidade dos instrumentos e também a formação de psicólogos. Os melhores instrumentos, nas mãos de psicólogos que não foram devidamente treinados para utilizá-los, serão mal usados. Para garantir uma formação de qualidade para os psicólogos é necessário desenvolver um currículo mínimo nesta área para os cursos de graduação, produzir bibliografias adequadas e atualizadas, treinar ou reciclar professores e profissionais.

Enfim, se queremos uma Avaliação psicológica responsável e ética, que beneficie indivíduos, instituições e a sociedade em geral, temos que desenvolver um projeto nacional de longo prazo envolvendo as universidades, os Conselhos Federal e Regionais de Psicologia, as sociedades científicas, os editores e usuários de testes e outras técnicas. O IBAP, em conjunto com a SBRo e outros grupos organizados, pode e deve liderar o movimento pela organização da Avaliação Psicológica no Brasil, garantindo aos psicólogos a possibilidade de um exercício profissional digno e ético e disponibilizando para a população do nosso país os benefícios de serviços psicológicos eficientes e eficazes.

Novembro, 2002
Claudio S. Hutz
Editor

Creative Commons License