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Avaliação Psicológica

versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431

Aval. psicol. v.8 n.1 Porto Alegre abr. 2009

 

ARTIGOS

 

Teste de Memória de Relatos: elaboração de instrumento para seleção de policiais

 

Memory of Reports Test: construction of an instrument for the selection of police officers

 

 

Luciene Luiza Rezende*; Luiz Pasquali**

Universidade de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Considerando o contexto policial, construiu-se um teste psicológico composto de 32 itens para medir memória de relatos. As bases teóricas que embasaram a construção do teste foram o Paradigma do Falso Testemunho, teoria estudada no contexto criminológico, e a literatura sobre Representações Baseadas no Significado. O teste é composto do relato de uma história, seguido de uma avaliação do tipo reconhecimento. Os itens foram submetidos à análise de juízes, avaliação semântica, e em seguida foram aplicados a 319 sujeitos. Após a análise estrutural dos dados coletados, encontraram-se dois componentes: memória e inferência (KMO: 0,81 e alfas de Cronbach: 0,83 e 0,66, respectivamente). Realizou-se uma análise de regressão utilizando o método enter para cada um dos componentes, levando-se em conta os dados das variáveis demográficas e de autopercepção coletados. Os resultados mostram uma correlação negativa significativa entre os componentes do teste e a variável autopercepção geral da memória.

Palavras-chave: Teste psicológico, Memória, Inferência.


ABSTRACT

Considering the police context, a psychological test with 32 items was built to measure memory of reports. The theoretical bases for the test's construction were the Eyewitness Testimony Paradigm, analised on a criminological context, and the Meaning Based Representation literature. The test consists of a story narration, followed by an evaluation of the kind of recognition. All items were submitted to judges' analysis, semantics evaluation, and subsequently applied to a sample of 319 subjects. After the strutural analysis of the collected data, two components were found: memory and inference (KMO: 0.81 and the alphas of Cronbach: 0.83 and 0.66, respectively). A regression analysis was also realized for each of the components using the enter method. The predictive variables were the elements collected from demographical variables and self perception. The results showed a negative and significant correlation between the test components and the variable of general self perception of memory.

Keywords: Psychological test, Memory, Inference.


 

 

Introdução

O aumento do comportamento violento na sociedade exige ações efetivas para sua prevenção e combate, dentre elas, uma melhor qualificação de policiais. A polícia, de forma geral, possui a responsabilidade de prestar um serviço de qualidade à população, prevenindo o crime, reprimindo-o e ainda garantindo o respeito e o tratamento cordial às pessoas. Estudos demonstram que a profissão policial é uma das mais estressantes (Anchieta & Galinkin, 2005; Brito & Souza, 2004; Vasconcelos, 2000). Dessa forma, a realização de uma seleção de pessoal de qualidade para o cargo policial seria o primeiro passo para garantir tanto a presteza na realização do serviço, quanto o impedimento de que pessoas com estruturas de personalidades incompatíveis com as atividades policiais sejam efetivadas no cargo.

Uma medida que pode aumentar a eficácia e a precisão da seleção de pessoal é a utilização de instrumentos de medida construídos especificamente para o cargo que se deseja avaliar. De acordo com Pasquali (2001), existem poucos testes psicológicos construídos particularmente para serem utilizados em seleção de pessoal. Até o presente, não existem testes elaborados considerando o contexto da atividade policial. Diante da responsabilidade da seleção de pessoal com o cargo de policial, é natural a preocupação dos especialistas em avaliação no sentido de aperfeiçoar essa técnica. Por conseguinte, legítimos são os esforços para tornar a seleção de policiais mais específica e, portanto, mais eficiente.

O estudo da profissiografia do cargo de agente de polícia da Polícia Civil do Distrito Federal demonstrou que a memória de relatos é uma característica desejável para o bom desempenho dessa função (Cabral, 2004). A memória de relatos armazena uma seqüência de informações que obedece a uma lógica cronológica, fornecidas por estímulo verbal. Esse processo mnemônico encontra diversas nomenclaturas na literatura, tais como memória de materiais lingüísticos (Brewer, 1977), memória semântica (Anderson, 1974), memória do discurso ou memória de sentenças (Barsalou, 1993).

No Brasil existem apenas dois testes com parecer favorável do Conselho Federal de Psicologia que medem memória: o TMV (Teste de Memória Visual, do Laboratório de Pesquisa em Avaliação e Medida - LabPam) e o TEMPLAM (Teste de Memória de Placas para Motoristas, integrante da Bateria BFM2, Bateria de Funções Mentais para Motoristas, da Casa do Psicólogo). Contudo esses testes não avaliam memória de relatos. Diante dessa escassez e da importância já descrita de se aperfeiçoar a seleção de policiais, observa-se a necessidade da construção de instrumentos de medida para avaliar construtos psicológicos característicos da função policial, construídos de acordo com a realidade dessa profissão. Sendo a memória de relatos de crucial importância para a atividade investigativa, função precípua do cargo policial, o objetivo desse estudo foi a construção e a validação de um teste de memória de relatos para seleção de policiais.

A fim de se construir um teste condizente com os estudos já publicados, é preciso considerar que recordamos com mais facilidade o significado de uma mensagem complexa quando comparado com a recordação das exatas palavras enunciadas no relato (Anderson, 1974). Dessa forma, temos mais facilidade para lembrar o essencial de um evento (memória do significado) e mais dificuldade para guardarmos o que é específico (memória estilística). Esse fenômeno é chamado por Anderson (2004) de Representações Baseadas no Significado, que também pode ser observado nas informações visuais (Bower, Karlin & Duek, 1975; Gernsbacher, 1985; Mandler & Ritchey, 1977).

A Psicologia Cognitiva também se utiliza das linguagens complexas para estudar o comportamento humano. Para estudar a memória, diferentes sistemas podem ser aplicados para representar mensagens complexas em unidades mais simples. Consegue-se com isto expressar o significado de frases e figuras resumindo as informações mais importantes da mensagem (Anderson, 2004). Uma dessas formas de representação, que é a mais comumente utilizada, é a representação proposicional (Frederiksen, 1975; Kintsch, 1974). O conceito de proposição é expresso por Anderson (2004) como sendo "a menor unidade de conhecimento que se pode sustentar em uma asserção separada; ou seja, é a menor unidade sobre a qual faz sentido fazer um julgamento de falso-verdadeiro" (p. 85). De acordo com essa proposta, podemos analisar a seguinte sentença:

Viviane, professora de uma escola exemplar, vai se casar em breve.

A decomposição da sentença acima produz as seguintes proposições:

A. Viviane é professora.

B. A escola na qual Viviane leciona é exemplar.

C. Viviane vai se casar em breve.

De acordo com a proposta de Kintsch (1974), representam-se as proposições da seguinte forma:

A'. (Viviane, professora)

B'. (escola, Viviane, exemplar)

C'. (Viviane, casar, breve)

A análise proposicional se mostra um meio eficaz de representação para sentenças complexas em termos de unidades simples e abstratas, tendo sido, então, a metodologia que subsidiou a construção dos itens do teste proposto neste trabalho.

A construção dos itens do teste também considerou as interferências que ocorrem no processo de armazenamento de informações. A literatura sobre a memória de sentenças complexas entende que, ao armazenarmos informações, integralizamo-las com outras informações já armazenadas, formando novas combinações sobre o evento original. Ao narrarmos determinado fato, podemos fazê-lo sem nos darmos conta de estarmos narrando uma mistura entre o evento original e informações que acreditamos que estavam presentes no evento original, mas que não estavam. De acordo com a teoria das representações baseadas no significado, quando não conseguimos recordar determinada informação, podemos recordar fatos relacionados e, assim, concluir a informação que não conseguimos recordar, produzindo uma inferência (Anderson, 2004). Quando inferimos, acreditamos estar recordando o que de fato ocorreu. O processo de reconstruções de fatos que desejamos lembrar pode, contudo, levar a recordações incorretas, sem que percebamos (Bransford & Franks, 1971; Sulin & Dooling, 1974). Estudos indicam que, na medida em que os sujeitos elaboram sobre as informações na fase de evocação, tendem a recordar inferências que não estudaram (Owens, Bower & Black, 1979).

Elizabeth Loftus iniciou uma linha de pesquisa sobre os efeitos da interferência na memória de informações reais. Seu trabalho começou com estudos sobre como a maneira de realizar uma pergunta pode alterar a resposta das pessoas. A autora argumenta que a forma como a pergunta é apresentada faz com que o sujeito reinterprete o evento, transformando permanentemente a memória original do evento (Loftus & Palmer, 1974). Loftus também estudou como a memória pode ser alterada por falsos pressupostos, ou seja, inserindo afirmações acerca da existência de um fato que não existia no evento original. Essa metodologia foi utilizada em diversos estudos, nos quais os resultados indicam que uma falsa proposição torna tendenciosa a resposta dos sujeitos (Loftus, 1975; Loftus & Hoffman, 1989; Greene, 1992). Os resultados dos estudos de Loftus atentaram para a vulnerabilidade do relato de testemunhas oculares. Mostraram que um relato pode ser influenciado não apenas por como a pergunta é feita, mas também por expressões anteriores e questões preliminares que são inseridas ao evento original (falsos pressupostos).

Uma vez demonstrada a ocorrência das interferências na memória pelos estudos iniciados por Loftus, as pesquisas se direcionaram à compreensão do contexto em que ocorre a inferência. Os resultados desses estudos mostraram que para a ocorrência do efeito da interferência, a discrepância entre o evento original e o falso pressuposto subseqüente não deve ser grande. Ao contrário, o falso pressuposto deve ser introduzido sutilmente ao sujeito, caso contrário o efeito não existirá ou será minimizado. Além disso, sujeitos que lêem o texto mais devagar e mais cuidadosamente são menos propensos a terem sua memória afetada por qualquer falsa pressuposição. Os estudos também demonstraram que pessoas com memória particularmente boa são mais resistentes à interferência (Greene, 1992).

Loftus e Hoffman (1989) contabilizaram o tempo de resposta dos sujeitos e observaram a diferença entre a velocidade da emissão de respostas do grupo controle e de indivíduos que foram enviesados propositadamente por um falso pressuposto ou pela elaboração da pergunta. Os resultados mostraram não existir diferença significativa entre os dois grupos, o que sugere que indivíduos não ficam inseguros ao responder, em que pese terem sua memória contaminada. Esse dado merece atenção na medida em que decisões judiciais podem ser tomadas com base na confiança que as testemunhas demonstram ao relatar os fatos que observaram ou ouviram. Essa segurança pode estar no desconhecimento da testemunha de estar relatando uma inferência e não o fato original. A testemunha, de fato, desconhece que seu relato pode estar cheio de imprecisões (Loftus e Hoffman, 1989).

A linha de pesquisa proposta por Elizabeth Loftus mostra como as pessoas esquecem detalhes de episódios e preenchem esses elementos faltosos com detalhes da sua experiência. Um dos motivos dessa pouca exatidão é o fato de que as pessoas confundem o que realmente observam sobre um incidente com o que ouvem de outras fontes, ou produzem inferências sobre o evento (Ceci, Loftus, Leichtman & Bruck, 1995; Loftus, 1975; Loftus, Miller & Burns, 1978; Loftus & Pickerall, 1995; Wright & Loftus, 1998; McCloskey e Zaragoza, 1985).

Apesar da característica natural e imperceptível da interferência no comportamento humano, na profissão policial a inferência pode ser prejudicial porque se trata de uma atividade que trabalha com fatos comprovados. O policial deve disponibilizar para o Poder Judiciário apenas os fatos, permitindo um julgamento mais imparcial possível. O relato repleto de inferências é possível a um policial, no entanto esse servidor deve reconhecer que se trata de uma conclusão plausível e não de um fato em si. Observa-se, portanto, a necessidade da construção de um teste de memória de relatos que permita avaliar não só a capacidade de memorização de um episódio, mas também se o indivíduo diferencia o que realmente experienciou de inferências possíveis.

 

Método

Para construir um teste adequado à realidade da profissão policial, foi necessário conhecer melhor as características dessa função. Realizou-se, portanto, uma entrevista livre com um grupo focal de policiais, composto por quatro servidores estrategicamente selecionados pela excelência no desempenho de seus trabalhos.

O primeiro quesito investigado nessa entrevista foi o tipo de avaliação da memória que mais se adequaria ao contexto da atividade policial. Os entrevistados indicaram que a recuperação livre seria a forma mais utilizada na atividade policial, tendo em vista a necessidade de escuta de envolvidos e posterior recuperação livre no momento de elaboração de relatórios ou de testemunhos perante juízes, por exemplo. Também ocorre que, quando os policiais vão redigir seus relatórios, muitas vezes utilizam algumas anotações que fizeram durante as investigações, o que se aproximaria da recuperação com pistas. A avaliação do tipo recuperação com pistas seria a recuperação da informação original de forma livre, porém, com a ajuda de uma dica. Eventualmente, ocorre na função policial a forma de reconhecimento, quando, por exemplo, o policial é solicitado a indicar, dentre várias pessoas que lhe são apresentadas, aquela que foi vista por ele em determinado episódio. Na avaliação do tipo reconhecimento são dadas várias opções para o sujeito, dentre elas aquela que corresponde à informação original, para que escolha a opção que corresponde à sua memória. Assim, os tipos de avaliação da memória mais freqüentemente utilizados por policiais seriam, respectivamente: a recuperação livre, a recuperação com pistas e, finalmente, o reconhecimento.

Também foram verificados quais estímulos sensoriais seriam mais utilizados na atividade policial, se verbais ou visuais. Foi verificado que a maior parte das informações que garantem o exercício da profissão é de natureza auditiva, para todos os cargos policiais. Os entrevistados esclareceram, ainda, que dificilmente visualizam o crime no momento de sua consumação. Os policiais são acionados, na maioria das vezes, após o crime já ter ocorrido e buscam elucidar o fato a partir das provas existentes.

Os policiais também sabem que as informações que lhe são narradas serão evocadas para fins de investigações ou para prestar declarações como testemunha. A partir disso, supõe-se que a memória mais utilizada na atividade policial seria a memória explícita em detrimento da memória implícita. A memória explícita contém as informações que podemos acessar conscientemente.

Quanto ao tempo de retenção das informações trabalhadas pelo policial, os entrevistados relataram que entre a escuta de relatos e a recordação dessas informações normalmente existe um lapso temporal significativo variando de alguns minutos, dias ou anos após o fato. Dessa forma, observa-se que a recuperação de informações na função policial parece acontecer, principalmente, com memória de longo prazo, com retenção mais prolongada.

Após a entrevista com o grupo focal, iniciou-se a construção do teste. Uma história foi elaborada atentando-se para que cada objeto da história, o episódio em si, bem como os nomes e as características das personagens, despertassem o quanto menos possível de conteúdos emocionais, já que tal variável poderia afetar de forma diferenciada os testandos (Pergher, Grassi-Oliveira, Ávila & Stein, 2006). Trata-se da narração de uma história cotidiana de indivíduos ordinários, tal qual ir a uma padaria. Ademais, o público alvo do teste não são policiais, mas pretendentes ao cargo. Por essa razão, os participantes desta pesquisa foram sujeitos não policiais.

Os itens do teste foram construídos a partir da história escolhida para o relato. A proposta de análise proposicional utilizada foi a de Kintsch (1974), na qual cada proposição é representada por relações e argumentos. Essa técnica também garantiu que todas as partes da história estivessem representadas nos itens. Foram extraídos 105 itens das proposições geradas, elaborados para serem julgados em termos de falso ou verdadeiro. Para evitar que o testando respondesse aleatoriamente falso ou verdadeiro quando não se recordasse de algum item, foi introduzida uma coluna não lembro. Dessa forma, havia três alternativas de resposta para cada item: verdadeiro, falso e não lembro.

Para garantir a avaliação da memória de longo prazo, foi elaborada uma tarefa interpolada, visando distrair a atenção dos testandos no período compreendido entre a narração da história e a resposta aos itens do teste. A tarefa interpolada consiste do preenchimento de um questionário demográfico e busca, por um período superior a 30 segundos, evitar que os respondentes repitam mentalmente a história narrada (Nelson, 1971).

A avaliação da adequação do número de itens a serem inseridos no teste foi feita solicitando-se que alguns sujeitos respondessem a uma amostra de 94 itens. Os sujeitos relataram que a partir do 50º item começaram a sentir os efeitos do cansaço. Foi estabelecido, então, que o número de itens que compõem o teste deveria ser próximo de 50.

Em seguida realizou-se a análise teórica dos itens, conforme orientações de Pasquali (1999). Inicialmente foi realizada a análise semântica, sendo que todo o material do teste, inclusive as instruções e a história, foi avaliado quanto à compreensão e adequação, tanto pelo extrato mais alto da população alvo do teste (pós-graduação completa), quanto pelo extrato mais baixo (ensino médio em conclusão). Solicitou-se a seis sujeitos com grau de escolaridade de ensino médio lerem todo o material do teste e averiguar a compreensão de todas as palavras individualmente, bem como dentro de uma perspectiva contextual. A mesma análise foi realizada por indivíduos com pós-graduação completa. Após a análise, foram realizadas algumas modificações para adequação da linguagem utilizada no teste.

Posteriormente, os itens foram submetidos a uma avaliação de conteúdo por um especialista e pesquisador em cognição para avaliação de sua pertinência quanto ao construto memória de relatos. Essa avaliação resultou na reestruturação de 17 itens.

Uma análise de juízes foi necessária para a construção do gabarito do teste, tendo em vista a literatura ter mostrado que há uma natural dificuldade de diferenciação entre o que é verdadeiro (evento original) e o que é inferência. Havia itens cuja clareza era maior quanto ao fato de serem verdadeiros ou falsos em relação à história. Porém, alguns itens apresentavam maior dificuldade de distinção, principalmente aqueles que compunham uma inferência sobre a história. Portanto, os itens do teste foram apresentados a seis juízes, os quais avaliaram, separadamente, se o conteúdo dos itens era verdadeiro, falso ou inferencial. Foi utilizado o critério de concordância de 80% entre os juízes para conclusão do gabarito. Todos os juízes possuíam escolaridade pós-graduação, por entender-se que indivíduos nessa condição provavelmente possuem senso crítico mais apurado.

O Teste de Memória de Relatos utiliza estímulo sensorial verbal com vistas a garantir a validade ecológica do teste, ou seja, uma proximidade entre o desempenho avaliado pelo instrumento de medida e o desempenho em situação real. Para que houvesse a padronização do estímulo a ser apresentado aos testandos, todo o texto, incluindo as instruções iniciais, foi gravado em um Compact Disc - CD. Assim, todas as pessoas testadas estiveram sob as mesmas condições de estímulo auditivo para que o tipo ou a entonação de voz, o ritmo de leitura da história do teste ou das instruções fossem variáveis mais bem controladas.

Três vozes foram apresentadas a um grupo de 65 pessoas para selecionar aquela que fosse mais clara e que tivesse uma entonação mais agradável aos ouvidos dos testandos. A voz utilizada no teste obteve mais de 78% da preferência dos sujeitos.

Participaram do estudo 319 sujeitos com nível superior e estudantes do ensino médio. Nenhum sujeito havia exercido atividade policial até o momento da pesquisa. As características da amostra acerca do sexo, escolaridade, existência da atividade laboral e idade podem ser observadas na Tabela 1. De acordo com os dados, a amostra demonstra uma distribuição igualitária no que se refere à variável sexo. A maior parte dos testandos possui nível de escolaridade de ensino médio (54,5%) e não trabalha (55,2%). No que se refere à idade, a maioria dos sujeitos possuía idade entre 15 e 25 anos (72,7%; amplitude = 15 a 55; média = 23,63).

 

 

Resultados e Discussão

O teste proposto compõe-se do relato de uma história e de itens a serem respondidos a partir desse relato. Os sujeitos foram instruídos a memorizar a história e em seguida responder a 53 itens referentes ao relato. O julgamento dos itens é feito em termos de verdadeiro ou falso, o que caracteriza uma avaliação do tipo reconhecimento. O tempo de administração do teste proposto é de cerca de 25 minutos, que compreende a apresentação do aplicador, a aplicação do teste e a retirada do aplicador do recinto. Também é importante explicitar que o teste construído não será mostrado neste trabalho, tendo em vista que foi construído para ser utilizado em seleções de pessoal e sua disponibilização ao público poderia facilitar tentativas deliberadas de fraudes, invalidando suas aplicações.

Cabe ressaltar que todos os cuidados éticos necessários foram rigorosamente tomados em todas as etapas deste estudo. Os juízes e os sujeitos que compuseram as amostras dessa pesquisa foram informados sobre a natureza acadêmica da pesquisa. Eles participaram voluntariamente do processo e sabiam que não teriam qualquer tipo de benefício ou punição se não participassem. O grupo também foi orientado quanto à não identificação.

Os dados foram analisados pelo Pacote Estatístico para Ciências Sociais, SPSS, versão 11.5, utilizando especialmente a análise dos componentes principais (PC) e a regressão múltipla.

Inicialmente foi realizada uma análise da fatorabilidade da matriz por meio da análise dos componentes principais, que mostrou um KMO de 0,74. Em seguida foi feita uma análise dos componentes principais para definir o número de componentes a serem extraídos, utilizando-se o critério da Análise Paralela de Horn. A literatura mostra que a Análise Paralela é um critério relativamente preciso, havendo pouca fundamentação para utilizar outros critérios de definição do número de componentes (Laros, 2005; Laros & Puente-Palacios, 2004). Observa-se na Tabela 2 que o componente 6 é aquele no qual os valores dos autovalores empíricos começam a superar os valores aleatórios, tendo sido o número máximo de componentes extraídos nas análises.

 

 

Para a extração dos componentes utilizou-se o método de análise dos componentes principais. Optou-se por esse método em detrimento da análise fatorial uma vez que se trata de um instrumento pioneiro, sem um histórico de pesquisa que permitisse a elaboração de hipóteses a priori, o que torna a análise dos componentes principais mais recomendada. Os resultados dos autovalores e a porcentagem da variância explicada dos primeiros 10 dos 53 componentes são mostrados na Tabela 3.

 

 

A extração dos componentes mostrou que, a despeito do número de componentes extraídos, a interpretação sugere que o agrupamento de itens refere-se à inferência ou ao tempo em que os fatos aconteceram na história. Quanto ao tempo dos acontecimentos dos fatos na história, existem dois blocos temporais. Um que se refere ao início da história até o meio dela e outro que se refere aos acontecimentos do meio para o fim da história. No corpo do teste ainda havia questões que não se referiam ao tempo dos fatos em si e nem à inferência, mas a questões gerais da história, de sua estrutura, tais como o número de personagens que a compuseram. Contudo, não foi separado um componente para esse tipo de item.

Os resultados das análises mostraram que a extração com seis, cinco e quatro componentes produzem estruturas complexas, com itens demonstrando cargas altas (maiores que 0,32, de acordo com Tabachnick e Fidell, 2001) em mais de um componente, além de itens com cargas negativas. A interpretação dos agrupamentos de itens ficou prejudicada nessas análises, sendo que a análise da confiabilidade dos componentes foi considerada insatisfatória, tornando tais estruturas não recomendadas.

Estruturas mais simples foram obtidas com extrações de três e dois componentes. A interpretação dos componentes com essas estruturas ficou bastante clara. Na estrutura com três componentes tem-se o primeiro agrupamento com itens que se referem predominantemente ao final da história, o qual foi nomeado memória tardia. O segundo componente trata-se dos itens inferenciais. O terceiro componente, com itens cujo conteúdo expressa o início da história, foi nomeado memória recente. A análise da extração de três componentes está de acordo com o que a teoria sobre memória afirma. A literatura mostra que, numa seqüência de informações aprendidas, a memória funciona melhor para informações fornecidas por último, caindo o desempenho para lembrar das informações que foram fornecidas inicialmente e piorando ainda mais para as informações que foram dadas intermediariamente, produzindo a chamada curva teórica do efeito de posição serial (Pergher & Stein, 2003). Esse, talvez, seja o motivo pelo qual foram separados dois componentes, um para itens que medem as últimas informações apresentadas e outro com itens que medem as primeiras informações apresentadas. Não foi separado um componente para informações intermediárias, mesmo quando extraídos seis componentes, sugerindo a dificuldade que os sujeitos tiveram para armazenar informações intermediárias do relato.

Ao se avaliar a confiabilidade dos três componentes extraídos, observou-se que os índices de fidedignidade produzidos pelo terceiro componente foram considerados insatisfatórios (alfa de Cronbach e lambda de Guttman = 0,47), tornando a estrutura com três componentes não recomendada.

Foi rodada uma nova extração com dois componentes. Inicialmente, o método de rotação utilizado foi oblíquo (promax) para verificar a existência de correlação entre os componentes. A rotação produziu componentes com uma correlação de 0,34. Esse resultado indica que os componentes possuem uma dependência entre eles, o que torna uma rotação ortogonal não recomendada. A interpretação do conteúdo dos agrupamentos de itens mostrou que o primeiro componente refere-se à memória e o outro avalia inferência.

Em função da maior clareza na interpretação dos componentes, da análise do scree plot, da aproximação com a teoria e da análise da confiabilidade dos componentes, optou-se pela extração de 2 componentes. Com base nessa decisão, foi rodada uma nova extração com 2 componentes, eliminando-se, entretanto, os itens com cargas inferiores a 0,32 para verificar a estrutura definitiva do instrumento (Tabachnick e Fidell, 2001). A eliminação dos itens justifica-se porque, em razão de sua carga muito baixa, é possível que tenham sido mal elaborados, ou os respondentes os entenderam de forma diferenciada, ou ainda ficaram excessivamente difíceis, tendo, possivelmente, provocado confusão. Além disso, foi retirado um item do segundo componente, cuja carga era negativa, para tornar a estrutura ainda mais simples, já que sua ausência não interfere na confiabilidade do instrumento.

A eliminação dos itens mencionados produziu as seguintes modificações: 1) o KMO elevou-se de 0,73 para 0,81; 2) o total de variância explicada pelos 2 componentes que antes era de 16,36% elevou-se para 25,50% e, finalmente, 3) o scree-plot pareceu separar um pouco mais os componentes, tornando mais clara a recomendação para dois componentes, conforme mostra Figura 1.

Os resultados das análises feitas a partir da eliminação dos itens com cargas baixas são mostrados na Tabela 4. De acordo com os resultados, observa-se que 20 itens compõem o primeiro componente e 12 itens compõem o segundo componente.

 

 

 

A avaliação da fidedignidade dos itens foi verificada pelo Alfa de Cronbach e pelo Lambda de Guttman, conforme mostrado na Tabela 5. Os resultados mostraram que o primeiro componente possui Alfa de 0,83 e Lambda de 0,84, o segundo componente 0,66 e 0,67, respectivamente. Os valores são considerados satisfatórios, apesar de os índices do segundo componente indicarem que seus resultados devem ser analisados com cautela.

Foi realizada a análise dos escores dos sujeitos nos 2 componentes extraídos. O objetivo foi verificar a adequação do instrumento em termos da distribuição de freqüência dos componentes avaliados. Se os escores se distribuírem normalmente em torno da média, tem-se uma medida de validade do teste, uma vez que os construtos psicológicos são distribuídos normalmente na população (Hays, 1963: Stigler, 1986: Pasquali, no prelo). A Tabela 5 e a Figura 2 mostram os resultados das análises.

 

 

 

A análise dos resultados mostra que os participantes obtiveram escores relativamente bem distribuídos em ambos os componentes. A média dos escores dos sujeitos no componente memória foi 13,45 (DP= 4,46), sendo que o valor máximo que se poderia atingir era 20, caso o sujeito acertasse todos os itens. Isso significa que a maioria dos sujeitos obteve mais acertos que erros entre os itens do componente. Já no caso do componente inferência, a média dos escores dos sujeitos foi 4,45 (DP = 2,59), sendo que o valor máximo desse componente seria 12. Dessa forma, a maioria dos sujeitos errou mais do que acertou as respostas dos itens desse componente, e nenhum dos respondentes acertou todos os itens desse grupo. Assim, os dados sugerem que os sujeitos têm mais facilidade para responder aos itens de memória do que aos itens de inferência. Esses dados corroboram a literatura, porque evidenciam a dificuldade de diferenciar uma inferência dos eventos originais, tendo em vista que o natural seria tomar a inferência como um fato (Anderson, 2004; Sulin & Dooling, 1974; Owens, Bower & Black, 1979; Loftus & Palmer, 1974; Loftus, 1975; Loftus & Hoffman, 1989; Greene, 1992).

O tempo que cada sujeito levou para preencher a folha de respostas foi contabilizado e posteriormente analisado. Os resultados dessa análise mostraram que mais de 80% (87,9%) das pessoas submetidas ao teste concluíram o preenchimento da folha de respostas antes de 8 minutos decorridos após o comando para iniciarem o preenchimento. Dessa forma, concluiu-se que esse deve ser o tempo máximo que os futuros testandos devem possuir para o preenchimento da folha de respostas na situação real de testagem.

Foi realizada uma análise de regressão múltipla, utilizando-se o método enter. Avaliou-se cada um dos dois componentes levando-se em conta dados das variáveis demográficas e de percepção coletados na tarefa interpolada. As variáveis investigadas no questionário demográfico foram: sexo, escolaridade, idade e se o sujeito trabalha ou não. Os dados sobre autopercepção podem ser observados na Tabela 6. De acordo com resultados, a maioria dos sujeitos percebe que possui boa memória, tanto geral, quanto visual ou verbal.

 

 

Na análise de regressão avaliaram-se os dados que mostraram uma correlação bivariada significativa com os componentes do teste. Para o caso do componente memória foram avaliadas as variáveis autopercepção geral da memória, autopercepção da memória verbal e escolaridade. Os resultados dessa análise são mostrados na Tabela 7.

 

 

De acordo com os resultados, a correlação das variáveis analisadas com o componente memória explica 9% da variância (R²= 0,09), quase toda ela devido à variável autopercepção geral de memória (beta= -0,20). Os resultados mostram que o componente memória está correlacionado significativa e negativamente com a variável percepção geral da memória (beta = -0,20, p<0,001).

No caso do componente inferência, foram avaliadas as variáveis sexo, idade, escolaridade, autopercepção geral de memória, autopercepção da memória visual e autopercepção da memória verbal. Os resultados são apresentados na Tabela 8.

 

 

De acordo com a Tabela 8, a correlação das variáveis mencionadas com o componente inferência explica 13% da variância (R²= 0,13), sendo que, como no componente memória, a maior parte dessa variância é explicada pela variável autopercepção geral da memória (beta = -0,17). Conforme o padrão apresentado no componente memória, os resultados mostram que o componente inferência está correlacionado significativa e negativamente com a variável autopercepção geral da memória (beta = -0,17, p<0,01).

Os resultados da análise de regressão, portanto, sugerem que os sujeitos que acreditam possuir boa memória geral demonstram um desempenho inferior para os itens do componente memória e inferência, e vice-versa.

Uma vez que o Teste de Memória de Relatos foi construído para utilização em seleção de pessoal, foi realizada uma análise dos percentis a fim de estabelecerem-se normas preliminares para avaliação dos escores do teste. Cabe ressaltar que outras pesquisas são sugeridas para estabelecer uma Tabela de normas com valores mais confiáveis. As normas são expressas em escores percentílicos. Os valores encontrados são mostrados na Tabela 9.

 

Conclusão

As análises estatísticas realizadas produziram resultados satisfatórios de acordo com os padrões estabelecidos pela Psicometria. Foram obtidos 32 itens agrupados em dois componentes - memória e inferência. A avaliação da fidedignidade do teste foi considerada satisfatória, embora os dados produzidos pelo componente inferência devam ser avaliados com cautela. Os resultados apresentados são promissores por indicarem que o teste construído representa uma medida válida e fidedigna do construto memória de relatos.

Foi verificado que o componente memória se divide temporalmente entre memória recente (com itens que se referem às informações fornecidas no final da história) e memória tardia (com itens que se referem às informações fornecidas no início da história). Os itens correspondentes à memória recente obtiveram cargas maiores e índices de confiabilidade melhores quando comparados aos itens correspondentes à memória tardia. Para os itens que correspondem às informações intermediárias da história não foi separado um agrupamento, mesmo quando extraídos seis componentes. O fato de os respondentes terem demonstrado maior facilidade para responder aos itens referentes ao componente memória recente que aos itens do componente memória tardia pode ter contribuído para que os índices psicométricos daquele conjunto (memória recente) se apresentassem melhores. A dificuldade de acertar os itens referentes às informações intermediárias da história pode ter contribuído para a diminuição da percepção de similaridade desse conjunto e, dessa forma, para que não houvesse a separação de um agrupamento de tais itens nas análises. Esse resultado está de acordo com a literatura, que demonstra a existência de uma curva teórica do efeito de posição serial para nossa memória. Temos mais facilidade para memorizar as informações fornecidas por último, caindo o desempenho para informações apresentadas inicialmente e maior dificuldade para as informações que foram fornecidas intermediariamente (Pergher & Stein, 2003). No entanto, estatisticamente, a composição contemplando os agrupamentos memória recente, memória tardia, além do agrupamento inferência, produziu índices de fidedignidade não satisfatórios, o que tornou a estrutura com três componentes não recomendada. Dessa forma, no teste proposto neste trabalho optou-se por uma estrutura com apenas dois componentes, memória e inferência. Futuros estudos podem ser realizados objetivando melhorar os itens que se referem à memória tardia para que se consiga uma estrutura com três componentes, o que parece se adequar melhor ao que sugere a literatura.

 

 

Uma vez definida a estrutura com dois componentes, observou-se que os sujeitos obtiveram um desempenho melhor ao responderem aos itens do componente memória, demonstrando maior dificuldade para responderem aos itens do componente inferência. Esse dado corrobora a literatura, que mostra haver uma dificuldade de diferenciar uma inferência dos eventos originais. (Anderson, 2004; Sulin & Dooling, 1974; Owens, Bower & Black, 1979; Loftus & Palmer, 1974; Loftus, 1975; Loftus & Hoffman, 1989; Greene, 1992).

O teste construído foi idealizado para melhorar as seleções de policiais. Dessa forma, o instrumento foi desenvolvido atendendo essa realidade, respeitando o contexto dessa profissão e buscando a maneira mais eficaz de atender esse propósito. O cuidado em garantir uma equivalência entre a medida e o contexto real de trabalho demonstra uma maior qualidade do instrumento construído.

Talvez uma forma de melhorar as análises do instrumento seria a retirada da coluna não lembro. A introdução da coluna não lembro foi uma tentativa de diminuir as respostas aleatórias dos sujeitos e permitir que apenas os componentes memória e inferência estivessem presentes ao responder. No entanto, é possível hipotetizar que a coluna não lembro tenha produzido inclusão de, ao menos, mais uma variável no momento em que os sujeitos respondiam ao teste: a segurança/autoconfiança. Existe a possibilidade de que pessoas que são mais inseguras tenham respondido com maior freqüência não lembro quando não tinham certeza daquela resposta, ao passo que pessoas mais seguras possivelmente tenham respondido aquilo que lhes parecia o certo, visto que confiavam mais em sua memória. Se a variável segurança/autoconfiança realmente interferiu nas respostas dos sujeitos, a memória e a inferência não foram os únicos construtos atuando quando o sujeito respondia aos itens. A coluna não lembro sequer impediu as respostas em branco. Mesmo tendo a opção de dizer que não se lembra e com a instrução para responder a todos os itens, a maioria dos sujeitos (97,8%), por alguma razão desconhecida, se absteve de responder ao menos um item. É razoável supor que, retirando a coluna não lembro, as porcentagens de variância explicadas aumentariam e as análises estatísticas melhorariam como um todo.

As análises de regressão mostraram que há uma correlação negativa significativa entre a variável autopercepção geral da memória e os componentes memória e inferência. De acordo com os resultados da análise de regressão, a maioria dos sujeitos que acreditava ter uma boa memória teve um desempenho inferior no teste construído e vice-versa. Talvez a correlação encontrada esteja mais fortemente relacionada com o componente inferência e com características de personalidade dos indivíduos. Ou seja, o sujeito pode demonstrar uma boa capacidade para reter o significado geral da história e isso lhe é suficiente no dia-a-dia, sendo plausível auto-atribuir-se uma boa memória. No entanto, quando lhe é exigido não só a capacidade de armazenar o significado principal de um relato, mas fazê-lo de tal maneira e com tanto rigor que lhe permita diferenciar o que realmente ouviu de uma inferência plausível, isso se torna mais difícil e o desempenho na tarefa não é tão bom quanto ele acredita que seria. Já os sujeitos que são mais cuidadosos em auto-atribuir-se uma boa percepção de memória parecem ser mais criteriosos também ao analisar a história que lhes foi contada. Dessa forma, esses sujeitos demonstram um desempenho melhor ao responderem aos itens, porquanto, uma vez que são mais criteriosos, conseguem diferenciar melhor o evento original de uma inferência. Ainda assim, outras pesquisas são sugeridas para melhor avaliar esse fenômeno.

É importante tecer algumas considerações sobre a forma de avaliação de memória utilizada no Teste de Memória de Relatos. Embora a forma de avaliação de recuperação livre pareça ser a mais utilizada na atividade policial, a forma de reconhecimento também faz parte do cotidiano de seu trabalho. Neste estudo, optou-se pela forma de avaliação de reconhecimento, visando a uma solução de compromisso entre a realidade policial e a celeridade e praticidade do instrumento, elementos norteadores da Psicometria e da Seleção de Pessoal. Avaliar a memória por meio da recuperação livre despenderia tempo em demasia, enorme quantidade de pessoal, energia e recursos financeiros, que quase inviabilizariam o processo. Ademais, a avaliação por meio do reconhecimento não compromete a validade do instrumento visto que, a despeito da forma de avaliação, continua-se avaliando memória de relatos, em que pese a forma de avaliação poder evocar processos diferenciados de recuperação da memória do indivíduo. Pesquisas no sentido de verificar se a forma de avaliação altera os resultados do teste construído são, portanto, sugeridas.

A literatura mostra que existe um critério de funcionalidade na seleção de informações a serem armazenadas quando fornecidas por estímulos visuais (Mandler e Ritchey, 1977). É possível especular que possa haver essa relação também no que se refere às informações fornecidas por estímulos verbais. Nesse sentido, sugere-se que seja verificado empiricamente se o Teste de Memória de Relatos reproduz essa especulação teórica da funcionalidade da informação registrada na memória visual.

Considera-se que a metodologia utilizada no presente estudo foi adequada, visto que expõe o sujeito a uma narração complexa. A seqüência de fatos rica em detalhes foi repleta de inferências possíveis, o que garante uma maior proximidade com a realidade da profissão policial.

Embora os resultados tenham mostrado a validade do Teste de Memória de Relatos, devem-se ressaltar alguns pontos: é recomendável que sejam feitos outros estudos antes de sua sujeição ao Conselho Federal de Psicologia para averiguação de sua qualidade técnica, conforme resolução n. 002/2003 desse Conselho; e, mesmo que a avaliação do Teste de Memória de Relatos pelo CFP seja no sentido de que os requisitos de qualidade necessários à sua inclusão no mercado estejam contemplados, há que se considerar a sua correta aplicação e interpretação, bem como sua constante evolução e enriquecimento por meio de estudos futuros e observações clínicas, conforme sugere Anastasi (2000).

O Teste de Memória de Relatos pode melhorar a seleção de policiais, além de representar um avanço na área da seleção de pessoal por ter sido elaborado visando especificamente a esse fim. O incipiente campo de testes construídos para seleção insere novas questões a serem debatidas acerca da validade preditiva desse tipo de trabalho, cuja literatura ainda é escassa em nosso meio. Além disso, discussões acerca da validade concorrente do construto aqui estudado podem lançar novos olhares sobre a compreensão da memória como um todo.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: luciene.luiza@gmail.com

Recebido em Fevereiro de 2008
Reformulado em Setembro de 2008
Aceito em Novembro de 2008

 

 

Sobre os autores:

* Luciene Luiza Rezende: Psicóloga pela Universidade de Brasília, onde defendeu a tese de mestrado com elaboração de instrumento para avaliar memória de relatos, instrumento útil para seleção de pessoal, particularmente na área de segurança pública. Atua junto à Polícia Civil do Distrito Federal.
** Luiz Paquali: Formado em Pedagogia, Filosofia, Teologia e Psicologia. É Docteur en Psychologie pela Université Catholique de Louvain, Bélgica. Lecionou em Michigan, EUA, por três anos, um ano na Puc/RS e na Universidade de Brasília, UnB. Publicou centenas de artigos científicos sobre metodologia, instrumentação psicológica e teoria da ciência. Elaborou dezenas de testes psicológicos e vários livros. É consultor de órgãos do governo na área da Educação tais como Capes, Cnpq, SAPERG e FAPESP e de revistas científicas de psicologia. Conduz dois laboratórios na Unb, um de pesquisa em instrumentação psicológica e outro de ensino via computador.

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