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Avaliação Psicológica

versión impresa ISSN 1677-0471

Aval. psicol. vol.9 no.2 Porto Alegre ago. 2010

 

 

Novas tendências no ensino da avaliação psicológica

 

New trends in the teaching of psychological assessment

 

 

Caroline Tozzi Reppold1; Adriana Jung Serafini

Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre

 

 


Resumo

O presente artigo é um relato da experiência do curso de Psicologia da UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre) que, contrariando uma tendência verificada atualmente, contempla uma grande parte da carga horária para disciplinas da área de avaliação psicológica. Tal experiência possui um caráter inovador por dispor as disciplinas de acordo com os construtos a serem avaliados e, especialmente, por relacionar teoria e prática através de atividades multidisciplinares de avaliação desenvolvidas pelos alunos em hospital psiquiátrico. Faz parte também do currículo uma disciplina que possui como foco a elaboração e avaliação de programas e projetos psicossociais, o que se relaciona às ênfases do curso.

Palavras-chave: Avaliação psicológica; Currículo; Psicologia; Atividades multidisciplinares


Abstract

The present article describes the experience of the UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre) Psychology course. Opposite to the current trend in other Psychology courses, it shares a significant amount of time for psychological assessment classes. This experience brings up an innovative approach to the teaching of psychological assessment in Brazil by offering classes according to the constructs being studied. It also has the property to link theory with practice through multidisciplinary assessment activities in a psychiatric hospital. The curriculum of the course is also focused on the development and evaluation of psychological and public health programs, which is an emphasis of the course.

Keywords: Psychology assessment; Curriculum; Psychology; Multidisciplinary activities


 

 

Introdução

Há mais de uma década têm-se observado o interesse de gestores e pesquisadores na questão da formação de profissionais qualificados na área da avaliação psicológica. Contudo, é também uma realidade o fato de que, nos últimos anos, diversas universidades diminuíram de seu currículo o número de disciplinas destinadas ao ensino da avaliação psicológica (AP). Em uma investigação sobre o ensino AP nos cursos mineiros, Paula, Pereira e Nascimento (2007) indicam que os cursos de Psicologia oferecem uma média de três a quatro disciplinas nessa área.

Em 2002, o panorama do ensino da AP apresentado por Alves, Alchieri e Marques (2002) revelava que, em média, apenas 70% dos testes considerados por especialistas como indispensáveis para formação dos psicólogos eram ensinados nas disciplinas da área em diferentes universidades. Nessa mesma direção, Noronha e Alchieri (2004) argumentam, a partir de estudos realizados com estudantes de Psicologia sobre conhecimento na área de AP, que o ensino da avaliação psicológica e de suas técnicas utiliza-se, muitas vezes, de referenciais teóricos e científicos ultrapassados. Ou seja, bibliografia retrógrada e não oficial (resumos e apostilas elaboradas por professores), os quais não dão conta da produção atual na área.

Isso traz como conseqüência o despreparo dos futuros profissionais em relação ao domínio de técnicas de avaliação validadas e a competências diversas que estão na matriz do que as Diretrizes Curriculares (Conselho Nacional de Educação/Câmara Nacional de Educação Superior, 2004) definem como requisitos mínimos para atuação de um psicólogo. Citem-se, por exemplo, as competências de saber escolher e utilizar instrumentos e procedimentos de coleta de dados em Psicologia, realizar diagnóstico e emitir laudos e outros documentos psicológicos, nos quais haja uma triangulação dos dados obtidos por meio de técnicas como testagem, inquirição e observação. Ressalte-se, inclusive, que o uso de testes psicológicos é prática exclusiva do psicólogo. Contudo, com a redução da carga horária de disciplina de AP, torna-se evidente a dificuldade de os alunos conhecerem as técnicas avaliativas disponíveis e desenvolverem crítica em relação à abrangência da psicometria ou das técnicas projetivas e à possibilidade de realizar diagnósticos de forma coerente com os referenciais teóricos adotados pelo estudante/psicólogo.

Prova disso são os estudos de Noronha e colaboradores que discutem a limitação dos alunos em compreender as informações contidas em manuais psicológicos (Noronha, 2002) ou que referem a utilização de técnicas projetivas por parte de profissionais que afirmam trabalhar sob a perspectiva comportamental (Oliveira, Noronha, Dantas & Santarem, 2005) ou cognitivocomportamental (Oliveira, Noronha & Dantas, 2006). O desconhecimento da técnica e da relevância da mesma na prática profissional é evidente em vários estudos sobre o ensino da AP. Os resultados publicados por Noronha, Primi e Alchieri (2005) em um estudo que visava a investigar os instrumentos da prática de psicólogos e estudantes de Psicologia revelam que o número de testes desconhecidos/não utilizados é maior que o número de testes conhecidos/utilizados. Uma das razões disso, segundo os autores, é a falha na formação na área de AP. Nessa perspectiva, podem-se citar também os resultados da pesquisa de Paula, Pereira e Nascimento (2007), que revelam que, entre os maiores problemas relacionados à utilização de testes psicológicos, encontra-se a formação e treinamento deficiente e superficial nessa área durante a graduação. Cite-se ainda o estudo de Noronha, Nunes e Ambiel (2007), junto a uma amostra de alunos de Psicologia, que indicou que os discentes consideram pouco importante para o ensino da avaliação psicológica ter noções de Estatística e ter conhecimento de ampla gama de testes.

A dificuldade de compreensão dos parâmetros de avaliação de um teste é evidenciada também na pesquisa desenvolvida por Vendramini e Lopes (2008), que indica que informações sobre evidências de validade e evidências de precisão contidas nos manuais dos testes, são geralmente lidas por menos da metade dos psicólogos e menos de metade dos estudantes investigados em seu estudo. Questionados sobre a importância dessa leitura, apenas 29,2% dos profissionais estudados consideram-no importantes para atualização profissional. Entre os estudantes, somente 39,1% considera tal leitura útil para a utilização segura dos testes e 30,4% dos discentes afirmaram não ter interesse nessas informações.

Seguindo a mesma preocupação dos autores referidos anteriormente, de evidenciar a importância da avaliação psicológica na formação dos profissionais psicólogos, o propósito do presente artigo é apresentar a experiência inovadora de implantação do curso de Psicologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), o qual conta com sete disciplinas obrigatórias de psicometria/avaliação psicológica, além de disciplinas eletivas. Outro diferencial do curso é experiência de atividade multidisciplinar de avaliação que os alunos desenvolvem em hospital psiquiátrico, desde o segundo ano do curso, como exercícios práticos e supervisionados dessas disciplinas.

O curso de Psicologia da UFCSPA insere-se em uma instituição de ensino federal que tem como missão atuar no desenvolvimento, difusão e promoção de conhecimento integrado em saúde, com vistas à formação de profissionais das Ciências da Saúde que sejam autônomos e comprometidos ativamente com a qualidade da vida em âmbito individual e coletivo, através de ação interdisciplinar no ensino, na pesquisa e na extensão. Em 2009, a UFCSPA mantém oito cursos em andamento, todos com matrícula seriada. São eles: Medicina (em curso desde 1961), Nutrição, Biomedicina, Fonoaudiologia, Psicologia, Fisioterapia, Enfermagem e Farmácia. O curso de Psicologia teve início em 2008. Em atenção às propostas do Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI, trata-se de um curso noturno, com tempo mínimo de duração de cinco anos. Sua proposta curricular contempla duas ênfases: Gestão em saúde mental coletiva e Prevenção e promoção de saúde.

As ênfases do curso e o impacto das disciplinas de Avaliação Psicológica sobre essas

A ênfase em Processo de Gestão em Saúde Mental Coletiva visa a habilitar o profissional para o diagnóstico, planejamento e uso de procedimentos e técnicas específicas voltadas para analisar criticamente um conjunto de instituições e contextos e aprimorar os processos de gestão em saúde mental coletiva em distintas organizações e instituições. A Saúde Mental é hoje uma área multiprofissional e multidisciplinar, que inclui contribuições de disciplinas como a Psiquiatria, a Psicologia, a Epidemiologia, a Educação, a Sociologia e a Antropologia. A formação de profissionais da Psicologia com ênfase em Saúde Mental Coletiva justifica-se, nessa linha, pela necessidade de expansão dos serviços de atenção à saúde mental e de avaliação da transição do modelo centrado no hospital para a implantação de serviços baseados na comunidade (novos modelos de assistência hospitalar, ambulatórios especializados e sua relação com a rede básica de saúde, oficinas terapêuticas, entre outros). O impacto destas mudanças sobre os serviços, os profissionais e os usuários, carece de estudos de avaliação destas novas práticas, capazes de alavancar o planejamento e a execução das políticas de saúde mental. Nesse sentido, compreende-se que para tal ênfase são imprescindíveis os conhecimentos da avaliação psicológica que subsidiem a formulação e avaliação de melhores práticas de saúde mental em nível de atenção primária e secundária, principalmente.

Ressalte-se que as práticas de gestão em saúde mental coletiva, contempladas nesta ênfase, não se limitam na organização e controle de unidades produtoras de cuidados, tradicionalmente mais ligadas ao papel do administrador público de unidades de saúde, mas refere-se ao novo perfil de profissional gestor em saúde mental. Os psicólogos, através desta ênfase, deverão estar aptos para a avaliação crítica e formulação de políticas e programas de saúde mental; avaliação de serviços em saúde mental; geração de conhecimentos aplicáveis aos sistemas locais de saúde, integrando o componente da saúde mental nas práticas de saúde; práticas de saúde mental na atenção básica, nos ambulatórios especializados, nos NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial) e CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e no hospital geral; participação e atuação em conselhos de saúde, comissões e fóruns de políticas públicas; e apoio à construção de redes cooperativas, solidárias e comprometidas com a produção de saúde.

A ênfase em Processos de Prevenção e Promoção da Saúde consiste na concentração em competências que garantam ações de caráter preventivo, em nível individual e coletivo, voltada à capacitação de indivíduos, grupos, instituições e comunidades para protegerem e promoverem a saúde e qualidade de vida, em diferentes contextos em que tais ações possam ser demandadas. Esta ênfase diferencia-se da primeira no sentido de se voltar não especificamente à saúde mental coletiva, mas para a promoção e prevenção de saúde como um todo, tanto em nível individual quanto coletivo. É uma ênfase que permite que o aluno faça uso de diferentes abordagens e intervenções, coerentes com correntes teóricas apresentadas ao longo do curso. A atuação do profissional na área de Prevenção e Promoção da Saúde pode se dar tanto em contextos clínicos, como institucionais; o que define o tipo de intervenção do psicólogo que trabalha nesta área não é o local (consultório ou unidade básica em saúde), mas esta abordagem promocional e preventiva que fundamentará sua prática. O profissional de Psicologia voltado à Prevenção e Promoção da Saúde é apto tanto para intervenções e capacitações em diferentes contextos (exemplo: escola, comunidade, empresas) e agentes (exemplo: pais, professores, alunos, pacientes, entre ouros). Esse profissional apresenta domínio para prevenção, promoção, orientação e intervenção em situações típicas do desenvolvimento humano e de adversidades psicossociais (situações de risco em geral), levando à prática as contribuições correntes da pesquisa científica em psicologia. Nessa linha, também é imprescindível os conhecimentos da AP, a fim de que os alunos possam ter recursos para avaliar o que é esperado em cada faixa do desenvolvimento e na dinâmica de grupos específicos, potenciais a serem trabalhados em âmbito preventivo, eficácia dos tratamentos e programas psicossociais propostos, entre outras.

Estrutura curricular da Psicologia na UFCSPA e a inclusão da AP nos eixos estruturantes

Embora as disciplinas do curso estejam distribuídas ao longo dos seis eixos estruturantes propostos pelas Diretrizes curriculares do curso de Psicologia (CNE/CES, 2004), é sobretudo nos eixos de Fundamentos Teóricos e Metodológicos (FTM) e de Procedimentos para Investigação Científica e a Prática Profissional (PICPP) que as disciplinas da área de avaliação psicológica se enquadram. No eixo de FTM, encontram-se as disciplinas de Estatística (30 h) e Fundamentos de Psicometria (FP) (30h), ambas programadas para o primeiro ano do curso (segundo semestre). FP estuda os fundamentos teóricos e metodológicos da psicometria, enfatizando o processo de construção, validação e normatização de instrumentos psicológicos. Capacita os alunos para aplicação de métodos e técnicas de medida em ciências do comportamento e para o julgamento das qualidades psicométricas dos instrumentos psicológicos.

O currículo é organizado de modo que, no segundo ano, são oferecidas as disciplinas de Técnicas de Avaliação Psicológica (TAP) I e II, cujo propósito é o ensino das técnicas psicométricas. Todas as TAPs fazem parte do eixo intitulado “Procedimentos para Investigação Científica e a Prática Profissional” e tem como carga horária 45h para parte teórica e 45h parte prática. A distribuição dos temas abrangidos em cada disciplina é determinada pelo construto coberto pelo teste e não pela distribuição etária, como ocorre com freqüência em outras universidades. TAP I tem como foco a avaliação cognitiva. A disciplina desenvolve o tema da avaliação psicológica de habilidades e competências cognitivas. Os conteúdos programáticos da disciplina incluem 1) Funções, origem, natureza e uso dos testes psicométricos na avaliação psicológica de habilidades e competências cognitivas; 2) Técnicas psicométricas de investigação na avaliação psicológica de habilidades e competências cognitivas; 3) Entrevista inicial, rapport, aplicação, interpretação, devolução e redação de laudo dos testes de inteligência e 4) Implicações e procedimentos éticos e requisitos legais para a aplicação dos testes de inteligência. Por sua vez, TAP II tem como foco a avaliação de personalidade. A disciplina apresenta diferentes instrumentos que mensuram características de temperamento, personalidade e ajustamento emocional e que servem para utilização em faixas etárias diversas. Além disso, como ocorre em TAP I, construtos norteadores dos testes estudados são discutidos ao início da disciplina, de modo que os alunos possam compreender a pertinência teórica dos itens ao teste e as possíveis variáveis a serem analisadas para validade convergente/divergente.

No segundo ano é oferecida também uma disciplina eletiva sobre atualização em AP, cujo propósito é apresentar outros instrumentos aos alunos que podem ser utilizados em contextos diversos e em projetos de pesquisa que estejam sendo por eles desenvolvimentos em outras disciplinas.

TAP III, oferecida no terceiro ano, tem como objetivo o ensino de técnicas projetivas, de uso individual e coletivo. Nessa mesma etapa do curso, são oferecidas também as disciplinas “Avaliação e intervenção neuropsicológica”, do eixo PICPP, e “Psicodiagnóstico” (60h), essa integrante do eixo FTM. Psicodiagnóstico, formatado em modelo teórico-prático, tem como objetivo integrar os diferentes conteúdos aprendidos e exercitar a triangulação de informações advindas de fontes diversas, bem como a compreensão clínica dos casos avaliados com base no respaldo teórico obtido nas disciplinas de outros eixos, como Saúde Mental e Psicopatologia, Sistemas e Teorias Psicológicos I e II, Psicofarmacologia, Neurociência e Comportamento, Psicologia do desenvolvimento I, II e III, que contemplam a avaliação dos fenômenos psicológicos e das práticas de intervenção.

No terceiro ano, ocorre a disciplina intitulada “Modelos de Projetos em Saúde Mental em Diferentes Contextos: Comunidade, Escola, Trabalho, Clínica e Instituições”, com 125 horas de duração. O propósito dessa é a avaliação de sistemas e programas de saúde, vinculados sobretudo ao Sistema Único de Saúde. Não tem como objetivo restringir-se a ações individuais de consultoria, mas projetar práticas que podem ser executadas tendo em vista não somente os usuários, mas os agentes de saúde e os demais setores envolvido no sistema de saúde, a incluir as políticas públicas de intervenção. Troccóli e colaboradores (2008) referem que o interesse da avaliação de programas é confluente entre pesquisadores da área da Psicometria, Estatística, Metodologia da Pesquisa, Psicologia Social e Avaliação Institucional. Recentemente, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico propôs que a Avaliação de Programas como uma subárea da Psicologia Social, fomentando novo foco de interesse entre os pesquisadores.

No quarto ano, tendo os alunos já escolhido sua(s) ênfase(s) curricular(es), são ofertadas como obrigatórias as disciplinas “Elaboração e avaliação de Modelos de Práticas em Processos de Gestão em Saúde Mental Coletiva”, de 45 horas para os alunos da ênfase em Gestão em saúde mental coletiva e “Elaboração e avaliação de Modelos de Práticas em Promoção da saúde”, também de 45 horas, para a ênfase de processos de prevenção e promoção de saúde. O objetivo dessas disciplinas é que os alunos tenham subsídios para elaborar um trabalho prático referente à ênfase escolhida, o qual inclui práticas de avaliação psicológica e intervenções.

Deve-se considerar que, embora as disciplinas de AP estejam centradas em dois eixos estruturantes, é corrente uma articulação entre as disciplinas desses e dos demais eixos. Exemplos disso são o fato de conteúdos referentes à elaboração de entrevistas serem estudadas também nas disciplinas de Psicologia do Desenvolvimento ou a proposta de um mesmo trabalho proposto aos alunos ser avaliado, concomitantemente, por mais de uma disciplina, sob diferente enfoque, considerando as especificidades de cada disciplina e a possibilidade de integração dos conhecimentos. Outro exemplo é a proposta de exercício prático dos conhecimentos sobre avaliação psicológica desenvolvida pelos alunos em um hospital psiquiátrico, o qual requer conhecimentos do campo da Psicometria, da Avaliação Psicológica, do Desenvolvimento Humano e da Psicopatologia, estudados previamente.

Proposta de prática de avaliação psicológica em hospital psiquiátrico

A UFCSPA prima pela formação de profissionais que atuem de forma multidisciplinar. Além disso, a universidade incentiva o desenvolvimento de atividades de extensão voltadas para o atendimento da comunidade na área da saúde. Dessa forma, a proposta de prática de avaliação psicológica em hospital psiquiátrico surgiu, tanto de uma necessidade acadêmica, pois a partir dela os alunos poderiam experenciar a aplicação de instrumentos e técnicas psicológicas, quanto de uma demanda da própria comunidade. Assim, foi constituída uma parceria entre o Serviço de Internação Psiquiátrica do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV) e o Curso de Psicologia. Esse convênio pode ser considerado uma extensão de um vínculo já existente entre as duas instituições de ensino (UFCSPA) e de assistência (HMIPV), já que os alunos de outros cursos já realizavam práticas e estágios no hospital.

A Internação Psiquiátrica do HMIPV conta com 24 leitos, destinados somente à internações de mulheres. Lá são atendidos todos tipos de transtorno psiquiátrico . Trata-se, contudo, de uma unidade de referência para internação de gestantes com patologia psiquiátrica, e para usuárias de drogas em crise aguda. A ala psiquiátrica possui atendimento multidisciplinar, oferecido por profissionais enfermeiros, médicos psiquiatras, neurologista, clínico, assistente social, psicóloga, terapeuta ocupacional, além de outros especialistas que atendem em sistema de consultoria.

A demanda inicial do Serviço de Psiquiatria diante da possibilidade de um trabalho de avaliação psicológica referiu-se à necessidade de avaliações cognitivas que auxiliassem, especialmente, no estabelecimento de um diagnóstico diferencial e de um plano terapêutico seqüencial dos pacientes internados. A disciplina de TAP I, por abranger as técnicas para avaliação das funções cognitivas, serviu, nesse sentido, como campo para ensino e prática. Ao longo da disciplina, os alunos estudaram instrumentos como o, BPR-5, TNVRI, R-1, Matrizes Progressivas Coloridas de Raven, Raven Escala Geral. Porém, grande parte da carga horária da disciplina foi dedicada ao treinamento para aplicação, levantamento e interpretação das Escalas Wechsler para Adultos e Crianças (WAIS-III e WISC-III). O WISC-III e o WAIS-III foram os testes eleitos, em primeira instância, para a utilização na atividade prática realizada no hospital, em razão da possibilidade que oferecem para mensurar a inteligência de uma forma geral (medida de QI), e pela sua abrangência na avaliação das habilidades cognitivas.

Após a etapa de treinamento, os alunos da disciplina foram orientados a estabelecer contato com o Serviço de Psiquiatria do HMIPV. O primeiro contato era realizado com a secretária do serviço que agendava a visita dos alunos. Após o agendamento, fora realizada uma reunião entre o aluno e o médico residente responsável, a fim de que o caso do paciente a ser avaliado fosse discutido. A seguir o aluno era encaminhado ao local da testagem.

As pacientes que deveriam ser avaliadas foram determinadas pela equipe médica, de acordo com alguns critérios definidos, em conjunto com as docentes da disciplina. Entre eles, estabeleceu-se que deveria haver uma dúvida real quanto à capacidade cognitiva da paciente e que esta não poderia estar fazendo uso de medicação que pudesse de alguma forma interferir nos resultados da testagem, como benzodiazepínicos. A paciente também não poderia se encontrar em estado de surto psicótico.

Ao final da atividade de aplicação, os alunos receberam supervisão em horário extra-classe. A supervisão teve como objetivo identificar dificuldades e erros de aplicação, auxiliar no levantamento do teste e discutir com os alunos elementos para interpretação dos resultados. Posteriormente, os alunos também receberam suporte no momento de elaboração do documento com os resultados de testagem. Ao final do processo da avaliação, esse documento foi entregue ao médico solicitante pelos próprios alunos, em uma segunda reunião agendada com o propósito de discussão clínica do caso avaliado. O documento com o resultado da avaliação ficou anexado ao prontuário da paciente.

A atividade desenvolvida pelos alunos no HMIPV possibilitou, além da união da prática aos conhecimentos teóricos adquiridos durante a disciplina, a discussão de aspectos éticos relacionados. Os alunos mostraram-se bastante preocupados, desde o início, com a implicação da avaliação que seria realizada, com a necessidade de sentirem-se realmente preparados e treinados para a aplicação do teste e com a realidade de, pela primeira vez, assumirem atividades profissionais diante de um paciente. A preparação dos alunos incluiu não só o treinamento da técnica, mas também a orientação quanto à postura ética necessária e a preparação para lidar com eventuais problemas que pudessem ocorrem durante a avaliação. A tarefa foi bem avaliada pelos alunos participantes, especialmente pelo fato desta possuir uma utilidade real em benefício da comunidade.

O vínculo entre o Serviço de Psiquiatria e o Curso de Psicologia foi mantido ao longo das próximas disciplinas, nas quais os alunos tem a

possibilidade de realizar avaliações de personalidade nas disciplinas de TAP-II e TAP-III. Esse campo de atuação também deverá se ampliar a partir da disciplina de Psicodiagnóstico, em que os alunos deverão avaliar um caso de forma integral. Nesta última disciplina, espera-se que ocorra o estabelecimento de um vínculo ainda maior entre os alunos e a equipe de profissionais do HMIPV.

 

Conclusão

O objetivo do presente relato foi apresentar a forma como a avaliação psicológica insere-se no currículo do curso de Psicologia da UFCSPA, que tem como enfoque a formação em saúde. A estrutura curricular desse curso conta com sete disciplinas obrigatórias relativas à avaliação psicológica, o que vai de encontro à tendência atual de outros cursos de Graduação em Psicologia que têm minimizado as disciplinas de avaliação psicológica em sua grade curricular. As implicações dessa redução de carga horária destinada ao ensino da avaliação têm sido relatadas constantemente em artigos que mostram a falta de habilidades dos alunos e psicólogos em escolher testes apropriados a seus fins, bem como a utilização de testes de forma equivocada quanto à sua administração e interpretação (Noronha, Nunes & Ambiel, 2007, Noronha, 2002, Oliveira, Noronha & Dantas, 2006, Oliveira, Noronha, Dantas & Santarem, 2005, Primi & Alchieri, 2005, Vendramini & Lopes, 2008).

A proposta é relevante por atrelar desde cedo a aplicação de testagem em hospital psiquiátrico, onde existe uma demanda real e a possibilidade de interlocução com a equipe que atende o paciente avaliado, o que aumenta a responsabilidade do exercício de avaliação. O currículo ainda apresenta um diferencial quanto à estruturação das disciplinas de AP que se mostram apresentadas por temática (Ex: avaliação da personalidade, da cognição), ao invés de faixas desenvolvimentais. Outra inovação desse currículo é a proposta de uma disciplina que tenha como foco a elaboração e avaliação de programas e projetos psicossociais, o que coaduna com as ênfases do curso à medida que tais programas devem ir ao encontro das necessidades reais do Sistema Único de Saúde. Embora ainda seja incipiente a proposta, uma vez que o curso ainda não tem turma formada, a intenção desse relato é difundir uma idéia que tem tido aprovação dos alunos e da comunidade, aumentando a adesão dos discentes ao curso e suprindo uma demanda social, de modo que essa idéia possa ser replicada por outras instituições. Ou ainda, servir como fonte de reflexão para outros agentes de formação sobre a importância da área da avaliação psicológica no ensino em Psicologia.

 

Referências

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Recebido em Dezembro de 2009
Reformulado em Junho de 2010
Aprovado em Agosto de 2010

 

 

Sobre os autores:

Caroline Tozzi Reppold:Doutora em Psicologia/UFRGS. Professora adjunto da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre/Porto Alegre.
Adriana Jung Serafini:Doutora em Psicologia/UFRGS. Professora substituto da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre/Porto Alegre.

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E-mail:carolinereppold@yahoo.com.br

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