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Avaliação Psicológica

versão impressa ISSN 1677-0471

Aval. psicol. vol.11 no.1 Itatiba abr. 2012

 

 

Transtornos psicológicos em adolescentes socioeducandos

 

Psychological Disorders in Adolescents Socio-Learners

 

Trastornos psicológicos en adolescentes socio educandos

 

 

Carolina Cardoso de Souza1; Ana Cristina Resende

Pontifícia Universidade Católica de Goiás

 

 


RESUMO

O presente trabalho aborda dois estudos de caso e teve como objetivo fazer a descrição da personalidade de um adolescente que cometeu furto e de uma adolescente que cometeu um homicídio. No momento da avaliação psicológica ambos cumpriam medidas socioeducativas de internação. Foram utilizados como instrumentos de coleta de dados uma entrevista semiestruturada, o Teste das Matrizes Progressivas Raven e o Método de Rorschach (Sistema Compreensivo). O adolescente que cometeu furto revelou indícios de ansiedade, sentimentos de culpa e remorso, e outras características que facilitariam seu engajamento em um processo terapêutico. Já a adolescente que cometeu homicídio demonstrou traços de constrição afetiva, ausência de ansiedade e remorso. Este estudo conferiu diferentes transtornos psíquicos nos participantes, bem como a necessidade de serviços psicológicos mais pertinentes à demanda particular de cada um deles, especialmente no caso de socioeducandos que apresentam algum transtorno mental e acabam isolados de qualquer tratamento ou atendimento específico.

Palavras-chave: adolescentes; socioeducandos; transtorno mental; transtorno de conduta; método de Rorschach.


ABSTRACT

This paper discusses two case studies that aimed to describe the personality of a teenager who committed theft and a teenager who committed a murder. At the time of psychological assessment met both educational measures hospitalization. Were used as instruments to collect data a semi-structured interview, the Raven Progressive Matrices Test and the Rorschach method (Comprehensive System). The teenager who committed theft revealed signs of anxiety, feelings of guilt and remorse, and other features that facilitate their engagement in a therapeutic process. Already the teenager who committed murder showed traces of affective constriction, anxiety and lack of remorse. This study has given various psychological disorders in the participants, as well as the need for psychological services more relevant to the particular demands of each, especially for socio-learners who have some mental disorder and end isolated from any specific treatment or care.

Keywords: adolescents; socio-learners; mental disorder; conduct disorder; the Rorschach method.


RESUMEN

El presente trabajo plantea dos estudios de caso y tubo como objetivo hacer la descripción de la personalidad de un adolescente que cometió hurto y de una adolescente que cometió un homicidio. En el momento de la evaluación psicológica, ambos cumplían medidas socio educativas de ingreso. Fueron utilizados como instrumentos de recolecta de datos una entrevista semiestructurada, el Test de Matrices Progresivas Raven y el Método de Rorschach (Sistema Comprensivo). El adolescente que cometió hurto reveló indicios de ansiedad, sentimientos de culpa y remordimiento, y otras características que facilitarían su encuadramiento en un proceso terapéutico. La adolescente que cometió homicidio demostró trazos de constricción afectiva, ausencia de ansiedad y remordimiento. Este estudio confirió diferentes trastornos psíquicos a los participantes, así como la necesidad de servicios psicológicos más concernientes a la demanda particular de cada un de ellos, especialmente en el caso de socio educandos que presentan algún trastorno mental y acaban apartados de cualquier tratamiento o atendimiento específico.

Palabras-clave: adolescentes; socio educandos; trastorno mental; trastorno de conducta; método de Rorschach.


 

 

A adolescência é a fase mais complexa e dinâmica do ponto de vista físico e psicológico na vida do ser humano. Do ponto de vista psicológico, o enfoque principal deste estudo, o adolescente passa por desequilíbrios e instabilidades, demonstrando períodos de elevação e de introversão, alternando entre audácia, timidez, descoordenação, urgência, desinteresse ou apatia, que se sucedem ou são concomitantes com conflitos afetivos, crises religiosas, intelectualizações e postulações filosóficas. Segundo Aberastury e Knobel (1992), cabe dizer que há uma verdadeira patologia normal do adolescente, no sentido de que ele exterioriza seus conflitos de acordo com sua estrutura e suas experiências, constituindo uma síndrome normal da adolescência. Esse processo é necessário para que o adolescente estabeleça a sua identidade, sendo esse o objetivo fundamental desse momento da vida.

O estado de agitação da adolescência é algumas vezes confundido com psicopatologia, como também pode ser exacerbado por algum distúrbio subjacente que já estava presente, mas pouco evidente até então. No entanto, não se pode ignorar que as dificuldades psicológicas na adolescência podem evoluir para transtornos psiquiátricos na vida adulta (Petersen e cols., 1993).

Um transtorno de conduta na adolescência, por exemplo, pode ser confundido com comportamentos inadequados, típicos dessa fase marcada pela instabilidade emocional e por várias mudanças no corpo que repercutem diretamente na evolução da personalidade. Crianças e adolescentes que apresentam um modo repetitivo e persistente de comportamentos violentos, agressivos ou desafiadores por um período de no mínimo seis meses – com níveis excessivos de brigas, crueldade com pessoas e animais, destruição de propriedade, roubo, e outras sérias violações de regras – são diagnosticados, segundo a Classificação dos Transtornos Mentais e de Comportamento (CID-10) (OMS, 1993) e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-IV-TR (APA, 2001), com transtorno de conduta.

A incidência do transtorno de conduta está relacionada de forma significativa a fatores socioeconômicos. Vários autores também afirmam que nenhum fator isolado pode explicar o desenvolvimento desse transtorno em crianças e adolescentes, vários aspectos biopsicossociais contribuem para o seu surgimento (Arreguy, 2010; Cartagena, Orozco & Lara, 201; Gomides, 2009; Kaplan & Sadoc, 2007). Esses aspectos serão descritos logo abaixo, no item referente aos fatores que predispõem ao comportamento violento em adolescentes.

Além do Transtorno de Conduta, há vários transtornos mentais2, que tornam os adolescentes menos capazes ainda de entender o caráter ilícito de seus comportamentos delituosos. Nessa situação, não é possível nem a aplicação da medida socioeducativa que incumbe aos jovens que cometem atos infracionais. Nesses casos de transtornos mentais, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) prevê medidas de proteção (art. 101, V) com requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial. O complicado nesses casos de transtornos mentais é a inexistência de uma melhor definição de onde essa medida poderá ser cumprida, uma vez que não se tem notícias de institutos psiquiátricos forenses que recebam adolescentes, pelo menos na maioria dos estados brasileiros. Assim, ao menos em princípio, esses jovens acometidos de doenças mentais acabam à mercê do sistema, isolados de qualquer tratamento ou atendimento específico (Adams, 2008). Na revisão bibliográfica desse autor, os principais transtornos mentais que acometem os adolescentes são:

a) Transtornos de humor: que incluem as doenças depressivas, comuns na adolescência em suas mais variáveis formas de manifestação, tais como o humor deprimido (tristeza), acentuada irritabilidade, insônia ou excesso de sono, perda ou ganho de peso, desinteresse em atividades rotineiras, entre outras;

b) Transtornos do uso de substâncias psicoativas: que é um comportamento bastante comum observado na adolescência, decorrente da própria instabilidade emocional e da tentativa de ser aceito por um grupo, vivenciadas pelo jovem neste período; obsessivo-compulsivo;

d) Transtornos psicóticos: caracterizados pelo prejuízo nítido do teste da realidade, pela conduta bizarra, desorganizada, catatônica, além dos delírios e alucinações.

A questão do adolescente em conflito com a lei constitui, hoje, um grande problema social que tramita com muita frequência no contexto judiciário. Conforme o Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei (Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2009), o número de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas de internação em todo o Brasil passou de 9.555 adolescentes no ano de 2002, para um quantitativo de 16.940 adolescentes no ano de 2009.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, é considerado ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal, conforme o art. 103. De acordo com o art. 122, a medida de internação só poderá ser aplicada quando: tratar- -se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; por reiteração no cometimento de outras infrações graves; ou por inadimplência frequente e injustificável de alguma medida anteriormente imposta, como por exemplo, o não cumprimento da prestação de serviços à comunidade, da liberdade assistida ou do regime de semiliberdade (ECA, 1990).

Fatores que Predispõem o Adolescente ao Comportamento Violento

De acordo com alguns autores, crianças de classes sociais desfavorecidas, com déficits intelectuais e de atenção, que possuem apenas um dos pais, que foram negligenciadas ou fisicamente abusadas e que possuem problemas escolares constituem um grupo de risco para o desenvolvimento de comportamentos violentos (Arreguy, 2010; Cartagena e cols., 2010; Gomides, 2009; Kaplan & Sadoc, 2007). Entretanto, também já foi observado que um número significantemente grande de crianças que se encontravam sob as mesmas condições de vida, de vitimização e de déficits, não se engajaram nesses tipos de comportamentos. Pelo contrário, essas crianças tornaram-se adultos produtivos e pró- -sociais (Bartol, 2008; Lösel & Bender, 2003).

Pesquisas sugerem que é a combinação de vários fatores de risco, por certo período de tempo, especialmente durante a infância, que encoraja o indivíduo ao comportamento violento. Dentre os fatores de risco, os mais citados são listados abaixo.

Fatores familiares e situacionais: ser vítima de maus tratos, de abuso físico e psicológico; ser filho de pais ausentes; falta de competência parental; ter irmãos com problemas de conduta; fácil acesso às armas e às drogas psicoativas; ter apresentado comportamentos delituosos anteriormente; histórico de várias fugas da escola e baixo desempenho escolar (Bailey & Whittle, 2004; Bartol, 2008; Cartagena e cols., 2010; Farrington, 2003; Farrington & Loeber, 2000; Heide, 1997; Krug, Dahlberg, Mercy, Zwi & Lozano, 2002; Craidy, 1998; Mclaughlin, Daniel & Joost, 2000; Pacheco & Hutz, 2009).

Fatores sociais: morar em bairro violento; fazer parte de uma gangue que pratica violência; ser testemunha de violência; escolas despreparadas para receber os jovens e para lidar com o bullying; a desigualdade de oportunidades em termos de acesso aos sistemas de saúde, de educação, de lazer, de trabalho e de bem estar social; falta de políticas públicas (Krug e cols., 2002; Farrington & Loeber, 2000).

Fatores genéticos e vulnerabilidade biológica: influências hereditárias; lesões e complicações associadas à gravidez e ao parto, que poderiam produzir danos neurológicos, que, por sua vez, poderiam levar à violência; possuir frequências cardíacas baixas – estudadas principalmente entre os meninos – que estão associadas à busca de emoções e situações de risco, ambas as características podem predispor os meninos à agressão e à violência na tentativa de aumentar os níveis de estímulo e excitação (Farrington, 2003; Flores, 2002; Heide, 1997; Ortiz & Raine, 2004).

Fatores de personalidade: baixa autoestima; autoimagem negativa; depressão; baixo nível intelectual; impulsividade; falta de habilidades sociais e interpessoais; problemas de atenção; nervosismo e ansiedade; pouco juízo crítico; tédio; raiva e ressentimentos; poucos recursos eficientes para enfrentar situações mais complexas; autocentramento; transtornos de personalidade, especialmente o transtorno de conduta, ou sintomas de transtorno psicótico; ideações suicidas (Cartagena e cols., 2010; Hill- -Smith, Hugo, Hughes, Fonagy & Hartman, 2002; Tarolla, Wagner, Rabinowitzv & Tubman, 2002).

O presente estudo está focado neste último aspecto, no estudo das características de personalidade de adolescentes que cometeram atos infracionais. Diante do que já foi exposto, entende-se que, com o adolescente, os clínicos devem delinear com cuidado aspectos relacionados a um estado provocado pela agitação normal da adolescência ou um problema relacionado a características de personalidade disfuncionais. A avaliação do funcionamento da personalidade é crucial para uma intervenção clínica e para um plano de tratamento (Weiner & Del Claudio, 1976).

No processo de avaliação psicológica são utilizados instrumentos técnicos como: entrevistas, testes, observações, estudos de campo, dinâmicas de grupo, escuta, intervenções verbais (Bernardes, 2005). O psicodiagnóstico é o primeiro passo a ser tomado e dele dependem as condutas terapêuticas a serem seguidas. O Método de Rorschach é um dos métodos projetivos mais utilizados mundialmente em avaliação psicológica, com propriedades psicométricas consideradas adequadas para avaliar os aspectos saudáveis, de potencialidade e os aspectos psicopatológicos de jovens e adultos considerados normais ou com alguma psicopatologia (Gacono, Evans & Viglione, 2008; Meyer & Viglione, 2008).

Método de Rorschach e Adolescentes em Conflito com a Lei

As características de personalidade mais comuns entre adolescentes em conflito com a lei, abordadas em dois estudos brasileiros publicados, que se destacam por utilizarem o Método de Rorschach no Sistema Compreensivo são: bloqueios emocionais, insegurança, ansiedade, agressividade, dissimulação, depressão e imaturidade devido à infantilidade apresentada nos aspectos de percepção. Apesar de apresentarem uma tendência natural para se dirigir ao meio, os adolescentes demonstraram inadaptação ao ambiente social devido aos bloqueios e retraimentos afetivos. Revelaram, ainda, dificuldades de engajar-se em novas situações, retraimento emocional, medo de envolvimento pessoal, sentimentos de angústia e de culpabilidade (Durat, 2006; Gonçalves, 2004).

O estudo de Durat (2006), utilizando como principal instrumento de coleta de dados o Método de Rorschach, investigou a personalidade de adolescentes com idades entre 12 e 17 anos, que cometeram atos infracionais, analisando a diferença entre aqueles que cometeram furtos e aqueles que cometeram homicídios. Os dados revelaram que os adolescentes que cometeram homicídio, apresentavam uma tendência hostil em relação ao meio, de oposição negativa, desconsiderando o ambiente e as pessoas como uma atitude de autoafirmação, revelando uma tendência a evitar estímulos afetivos. Outro dado relevante desse estudo foi a falta de ansiedade, tensão e nervosismo apresentada pelos adolescentes que cometeram homicídio, denotando indícios de não sentirem necessidade de mudar sua maneira de agir, pensar e sentir.

Já os adolescentes que cometeram furtos apresentavam características de ansiedade e nervosismo, indicando estado psicológico indesejável e desagradável. Devido à insatisfação que sentiam consigo mesmos, esses adolescentes tinham maior motivação para mudanças no sentido de reduzir níveis de desconforto do que os adolescentes homicidas.

Por sua vez, Gonçalves (2004) realizou um estudo com oito adolescentes autores de atos infracionais, do sexo masculino, com idade entre 13 e 18 anos, internos em uma instituição destinada a atender jovens que cumpriam medidas socioeducativas, privados de liberdade. Os instrumentos utilizados foram um roteiro de entrevista semidirigida e o Método de Rorschach. Ao analisar os resultados, pôde-se concluir que os adolescentes demonstraram conteúdos simbólicos de agressividade, dissimulação, insegurança, constrição afetiva, depressão, insegurança emocional, medo de envolvimento pessoal, sentimentos de angústia, de culpabilidade sexual e até de conflitos com figuras parentais. Além disso, demonstraram desejo de estabelecer vínculos familiares.

Segundo a literatura estrangeira pesquisada sobre o Método de Rorschach, os adolescentes que cometeram atos infracionais demonstraram-se predominantemente com algumas características tais como: imaturidade na modulação dos afetos com tendência a violentas descargas emocionais (FC<CF+C e C>1) (Corredor, 2000; Olin & Keatinge, 1998); dificuldades de lidar com sentimentos de raiva além de apresentarem um comportamento opositor excessivo (S↑) (Gacono & Meloy, 1994; Olin & Keatinge, 1998); narcisismo pernicioso, determinação hostil em explorar e manipular o outro para atingir seus próprios fins, sem remorso ou arrependimento (Corredor, 2000; Gacono e cols., 2008; Loving & Russell, 2000; Olin & Keatinge, 1998); expressão da agressão de modo mais primitivo, muitas vezes exercida no dia a dia como uma conduta natural de resolução de problemas e, portanto, pouco consciente do seu papel nocivo nas relações interpessoais (Ag c↑ e AG↓) (Baity & Hilsenroth, 1999; Corredor, 2000; Fernández & Méndez, 1999; Gacono & Meloy, 1994); distanciamento das relações interpessoais (Fernández & Méndez, 1999; Gacono e cols., 2008; Loving & Russell, 2000); maior predominância de distúrbios do pensamento do que na população em geral, com tendência a interpretar o que as pessoas fazem e falam de modo equivocado (PTI↑ ou SCZ↑ ou M-↑) (Gacono e cols., 2008; Gacono & Meloy, 1994); mais resistência e cautela na situação de teste do que as pessoas da população em geral (R↓, L↑, PER↑ e Rejeições↑) (Gacono e cols., 2008; Olin & Keatinge, 1998); baixa autoestima (Ego↓) (Gacono e cols., 2008; Gacono & Meloy, 1994); relacionamentos interpessoais problemáticos e conflituosos (PHR>GHR) (Gacono e cols., 2008); juízo crítico e coerência rebaixados ( F+%↓) (Olin & Keatinge, 1998); maior predominância de aspectos depressivos do que a população em geral (DEPI↑); poucas demandas afetivas estressantes, tais como remorso, culpa, ansiedades e angústias (Somb↓); distanciamento de situações emocionalmente carregadas (Afr↓) e pouca capacidade de lidar com situações emocionalmente complexas, respondendo a elas de modo inadequado e grosseiro (Blends↓), bem como pensamentos excêntricos e incomuns com mais frequência do que as pessoas da população em geral (Xu%↑) e poucos recursos eficientes para lidar com as demandas da vida diária (Gacono e cols., 2008). Além disso, observou-se mais frequência de estilo de vida evitativo do que em outros adolescentes (EB evitativo), percepções de si e do outro distorcidas e baseadas em fantasias (H<(H)+(Hd)+Hd), pouca capacidade de introspecção e autocrítica realista (FD↓), pouca ou nenhuma disponibilidade para a cooperação interpessoal (COP↓), predisposição para o isolamento e retraimento social, (Índice de Isolamento↑) e falha em atentar para detalhes importantes da situação, revelando superficialidade, um exame rápido e pouco cuidadoso da situação, o que leva a pessoa a cometer mais erros e a tomar decisões precipitadas (Zd<-3) (Gacono e cols., 2008; Gacono & Meloy, 1994).

De uma forma geral, o objetivo do presente trabalho foi caracterizar os diferentes aspectos estruturais e dinâmicos da personalidade, por meio do Método de Rorschach, de dois adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas privados de liberdade. Entende-se que estudos como este podem contribuir em trabalhos de intervenção e encaminhamentos mais pertinentes às necessidades psicológicas desses adolescentes, bem como poderá auxiliar na prevenção de comportamentos infracionais. As informações referentes à personalidade desses adolescentes podem ser usadas para chegar a conclusões e fazer recomendações de serviços psicológicos relacionados à demanda, visto que, em vários casos, como aqueles em que se revelam transtornos mentais, ainda não há solução do ponto de vista prático ou legal – em que pese a possibilidade de medida de proteção.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo dois adolescentes, naturais de Goiânia, ambos de 17 anos e que no momento deste estudo cumpriam medidas socioeducativas privados de liberdade há cerca de seis meses. Para garantir a privacidade da identidade dos participantes, eles receberam nomes fictícios de Paulo e Lia.

Paulo, solteiro, sem filhos, com oito anos de estudo, julgado e destinado a cumprir medida de internação por ter cometido o furto de uma bicicleta, após ter tido várias passagens pela polícia por motivo de roubos e furtos. As informações a respeito da vida de Paulo foram obtidas por meio da entrevista com o adolescente, da consulta ao seu prontuário e da entrevista com uma tia materna.

O adolescente foi entregue a sua avó paterna para que fosse criado por ela e por seu pai, que pouco se preocupava com ele, quando ele tinha um ano de idade. Desde os cinco anos de idade, quando entrou na escola, demonstrava problemas de conduta. Era muito desobediente, brigava bastante com os colegas e era expulso da sala de aula frequentemente. Iniciou o uso de drogas aos oito anos, especialmente bebidas alcoólicas e maconha e mais tarde passou a consumir cocaína, eventualmente. Aproximadamente aos 13 anos, ele roubava para comprar drogas. Depois da primeira passagem pela polícia, suas tias maternas resolveram ajudá-lo e ele foi morar com uma delas. Ele roubou o computador dessa tia para comprar drogas e ficou sem a ajuda de todos os seus familiares, paternos e maternos, que declaram ter desistido de ajudar o jovem.

Na instituição onde se encontrava, o adolescente apresentava condutas impulsivas e agressivas. Ele costumava dar golpes pelas costas, nunca enfrentando de frente uma briga. Paulo tinha crises de comportamentos inadequados como comer insetos, hábito de pegar nos genitais dos outros adolescentes, e os agentes da instituição desconfiavam que ele estivesse simulando distúrbios psicopatológicos do tipo psicóticos, uma vez que suas reações em algumas situações lhes parecem muito exageradas. Por esse motivo, o adolescente eventualmente era medicado com antipsicóticos para que suas reações intempestivas fossem controladas.

Lia, também solteira e sem filhos, com nove anos de estudo, foi julgada e destinada a cumprir medida de internação por ter participado do homicídio de uma pessoa que comprou sua droga e não pagou. A vítima, um ex-companheiro de Lia, foi executada com uma arma de fogo. As informações a respeito da vida de Lia foram obtidas por meio da entrevista com a adolescente, da consulta ao seu prontuário e da entrevista com a avó materna.

A adolescente e seus dois irmãos foram criados pela avó, pois a mãe faleceu vítima de acidente quando ela tinha dois anos de idade. O pai, que tinha envolvimento com o crime, foi assassinado quando a jovem tinha três anos. Há um ano, o irmão mais novo de Lia, de quinze anos, tinha sido assassinado por ter se envolvido em uma briga. Nesse ano, seu irmão mais velho, de vinte anos, foi preso e condenado a quinze anos de prisão por ter se envolvido em vários crimes, os quais Lia não sabia detalhar. Ela relatou que quando criança gostava de fazer pequenos furtos no supermercado com seus colegas só por diversão.

Aos 16 anos, Lia fugiu de casa, parou de estudar e se envolveu com o tráfico de drogas. Já se relacionou com vários homens e terminou com o último namorado porque se cansou de namorar. A adolescente nunca teve reprovações na escola, mas já havia sido suspensa várias vezes por motivos de indisciplina. Em relação ao uso de drogas, ela afirmou que só experimentou maconha e que gostava de tomar bebidas alcoólicas quando ia a festas. Observou-se que, na instituição, Lia tinha pouco envolvimento emocional e afetivo com familiares e pessoas ao seu redor. Não costumava se envolver em conflitos na instituição, mas demonstrava satisfação quando aconteciam situações conflituosas.

Instrumentos

Entrevista semidirigida com os adolescentes: o roteiro foi elaborado utilizando como base algumas questões da Escala Hare de Psicopatia (Morana, 2004) e do Questionário Multimodal (Lazarus, 1980). Essa entrevista buscou fazer um resgate histórico, procurando compreender como os comportamentos inadequados surgiram e se estabeleceram ao longo da vida dos adolescentes. As respostas às questões foram estudadas e analisadas em suas complexidades e contradições que apresentaram. A entrevista enfocou aspectos sociodemográficos, constituição e organização familiar, vida escolar (início dos estudos; quantidade de escolas que passou no ensino fundamental e ensino médio; frequência escolar; casos de reprovação, expulsão ou advertências; comportamento na escola; relação interpessoal com professores e colegas), ocupações com e sem remuneração, aspectos relacionados à saúde e à sexualidade; o envolvimento com ato infracional, drogas usadas, expectativas e projetos para o futuro. Aspectos tais como se o examinando tinha como alvo um tipo particular de vítima, o grau de dano causado à vítima, o padrão de interação entre a vítima e o (a) adolescente, os recursos e a armas que geralmente usavam também foram questionados e o comportamento durante a entrevista também foi observado.

Entrevista semidirigida com os responsáveis: com o objetivo de coletar dados da infância e adolescência, bem como para levantar outros pontos de vista a respeito do adolescente. A entrevista dos parentes seguia o mesmo roteiro da entrevista com o adolescente, para confirmar os dados colhidos.

Prontuários dos adolescentes: utilizado para levantar informações sobre os adolescentes no período de internação, sobre o tempo de internação, sobre o (s) ato (s) infracional (nais) cometido (s) e para confirmar informações colhidas nas entrevistas.

Teste das Matrizes Progressivas Raven: teste de inteligência geral que revela a capacidade de um indivíduo observar, pensar, apreender e desenvolver um método sistemático de raciocínio (Raven, 1997).

Método de Rorschach (Sistema Compreensivo): É composto por dez cartões, contendo manchas de tinta, os quais servem de estímulos pouco organizados que levam o indivíduo em avaliação a expressar conteúdos associativo-perceptivos representativos de seu mundo interno. A aplicação e a interpretação do teste seguiram as orientações padronizadas descritas no manual de Exner (2003).

Procedimento

Os dois estudos de caso foram selecionados dentre os primeiros testes aplicados durante a coleta de dados do projeto de pesquisa "Estudo da personalidade do adolescente que cumpre medidas socioeducativas" que foi aprovado pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e que ainda está em andamento. No projeto, os critérios de inclusão de participantes foram: todos os adolescentes cumprindo medidas socioeducativas de internação que se disponibilizassem a colaborar com o estudo e cujos pais ou responsáveis dessem o consentimento para participação deles durante os meses de julho a dezembro de 2010. Após aceitação do Comitê, foi realizado contato com a Secretaria de Cidadania e Trabalho, responsável pelas instituições que agregam adolescentes autores de atos infracionais e que cumprem medidas socioeducativas privados de liberdade. Após a autorização da gerente do sistema socioeducativo, foi feito o contato com dois Centros de Atendimento Socioeducativo, onde foi apresentada a proposta do presente estudo, bem como a justificativa, objetivos e metodologia.

Após a aprovação do estudo pelos dois centros, os pais ou responsáveis pelos adolescentes foram contatados, informados e esclarecidos acerca dos procedimentos da avaliação, e autorizaram a participação dos adolescentes por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Logo em seguida, os adolescentes foram esclarecidos sobre a justificativa, os objetivos e a metodologia do estudo e também concordaram em assinar o TCLE.

Após essa etapa, foi iniciada a coleta de dados de forma individual, numa sala adequada para atendimento e testagem psicológica, nas próprias instituições, onde regularmente as psicólogas realizavam esses tipos de atividades. No primeiro encontro, com duração de aproximadamente 1h e 30min, foi realizada a entrevista semiestruturada com cada um dos adolescentes. No segundo encontro, com duração aproximada de 1h e 30min, foi feita a aplicação do método de Rorschach. E no terceiro encontro, foi ministrada a aplicação do teste de inteligência Raven. Para confirmar algumas informações colhidas por meio dos testes e das entrevistas com os adolescentes, foram consultados os prontuários dos mesmos, cedidos pela instituição. Em seguida, foi realizada a entrevista com os responsáveis pelos adolescentes.

Após a coleta de dados, as informações adquiridas por meio das entrevistas e prontuários foram analisadas em termos de coerência e incoerência entre essas três fontes, priorizando aquelas informações que se reiteravam. Posteriormente, esses dados foram integrados com os dados apresentados pelo método de Rorschach e pelo teste Raven. Os testes de Rorschach foram codificados, lançados no software RIAP5, mediante o qual foi feito o levantamento de vários índices individuais.

 

Resultados

Entrevista

Paulo, durante as sessões, apresentou-se colaborativo, respondendo todas as perguntas que lhe foram feitas, mas parecia com um pouco de dificuldade de contato com a pesquisadora e de se concentrar na tarefa que estava realizando. Seu discurso foi totalmente incoerente com os dados que constavam em seu processo. O adolescente, que cumpria medida socioeducativa pelo roubo de uma bicicleta, relatou envolvimento com tráfico de drogas e autoria em 16 homicídios, sendo três deles de policiais. Contou que assaltou um carro forte com outros seis colegas: renderam os policiais, assassinaram todos eles, pegaram dinheiro e fugiram.

Lia também foi colaborativa. Seu estado vígil era normal, seu discurso era coerente, demonstrando um bom juízo de realidade, bem como atenção, memória, senso de percepção e psicomotricidade preservadas. O que chamou atenção em sua fala foi a forma fria e distante com que ela lidava com as pessoas, independente do grau de proximidade, e a forma como tendia a distorcer o que os outros falavam e faziam. Ao descrever o homicídio que cometeu, de uma pessoa com quem convivia diariamente, não demonstrou nenhum remorso, culpa ou angústia: "como ele não pagou sua dívida com o tráfico, tive que matá-lo".

Método de Rorschach (SC)

Os testes de Paulo e Lia continham número suficiente de respostas para fornecer um relatório confiável e interpretativamente válido (R= 26; R=17, respectivamente e sem rejeições). Não havia indícios evidentes nos dados estruturais dos testes de esforços deliberados na tentativa de dissimulação de um transtorno psicótico ou do humor. Embora a dissimulação ou exagero dos sintomas não sejam descartados com base somente nos testes, pode-se ao menos dizer que os dados dos testes não forneceram provas de que essas pessoas estavam tentando parecer mais perturbadas do que era realmente o caso. De uma forma geral, foram avaliados os aspectos cognitivos, os aspectos afetivos, a autopercepção, os relacionamentos interpessoais e a capacidade de lidar com o estresse de Paulo e Lia (Tabela 1 – Anexo A).

Em relação aos aspectos cognitivos, Paulo demonstrou um leve prejuízo na capacidade de perceber a realidade (XA%=0.73 e WDA%=0.71), contudo conhecia as regras para uma boa convivência, sendo capaz de dar respostas socialmente aceitáveis (P=4; X-%=0.23). Não apresentava distúrbio grave do pensamento, pensava de modo lógico e coerente na maior parte do tempo (WSum6=2; PTI=0), porém, revelava uma percepção muito individualista e simplificada na busca de nunca se envolver com as situações (Xu%=0.42; L=3.33; DQv=3).

Lia era inteligente e percebia a realidade convencional como a maioria das pessoas, como também conhecia os limites do comportamento adequado diante das situações, sendo capaz de antecipar as consequências dos seus atos (XA%=0.82; WDA%=0.86; Zd=+1.0; Zf=8; P=6; WSum6= 6). Ela mantinha um fluxo coerente do pensamento a maior parte do tempo (WSum6=6; PTI=0), contudo, mantinha um pensamento incompatível com a realidade quando tinha que compreender como as pessoas pensavam, falavam e agiam (M-=2).

No que tange aos aspectos afetivos, Paulo revelou-se suscetível a períodos de estresse emocional que envolve características de ansiedade e depressão (DEPI=6). Havia também a possibilidade de o adolescente estar vivenciado uma fase depressiva de um transtorno bipolar ou ciclotímico (R=27↑; Cpuro=1; Cor-sombreado C'.C). Demonstrava capacidade insuficiente de reconhecer e expressar os seus sentimentos. Eventualmente, quando ele conseguia expressar suas emoções, era por meio de violentas descargas afetivas (FC=0; CF=0; C=1). Dados do teste indicaram que, no momento, ele estava sofrendo de um considerável estresse emocional. Esse nível de estresse afetivo era desencadeado por vários fatores: em parte, constituia-se de sentimentos negativos que ele estava enfrentando em relação a si mesmo e considerados, por ele, indesejáveis ou vergonhosos (V=1); destacava-se também uma grande tristeza internalizada que provocava constrição de seus afetos (C'= 4); as situações mais angustiantes no teste estavam associadas aos cartões que evocavam vivências e traumas relacionados à sexualidade (II e VI: respostas vagas e carregadas de angústia relacionadas a "um machucado com sangue" e "um rato saindo do esgoto"). Nesse sentido havia alguns indícios de estresse pós-traumático relacionados às experiências sexuais.

Lia também demonstrava capacidade insuficiente de reconhecer e expressar os seus sentimentos, como também estava menos disposta a participar de situações que envolvessem expressões de afetos (Afr= 0,42; 1FC=1 e 1CF=1 ok) do que a maioria das pessoas de sua idade. Ela demonstrava um desconforto e mal-estar emocional situacional (FY=2; eb=3:4) e uma constrição afetiva (C'=2), mas de intensidade bem mais leve do que a sentida por Paulo.

Paulo demonstrava um reduzido interesse pelo mundo externo, seguido de um alto nível de preocupação consigo mesmo (Ego=0.46). Porém, isso não significava que ele tivesse uma boa autoestima, pelo contrário, revelava uma grande insatisfação própria, autocríticas destrutivas e sentimentos de culpa e remorso (MOR=2; V=1; SumH=2; DEPI= 6). Ele não confiava em seus próprios recursos e parecia não conseguir se identificar com as pessoas ao seu redor, prejudicando-o estabelecer um senso estável e claro da pessoa na qual ele realmente era (H puro=1).

Lia possuía uma autoimagem e percepção do outro baseada em experiências reais (H:(H)+Hd+(Hd)=4:3), entretanto, possuía baixa autoestima, tendência a se ignorar por se comparar desfavoravelmente em relação ao outro (Ego=0.35). Além do mais, ela demonstrava pouca capacidade de realizar um autoexame e autorreflexão, não questionando aspectos próprios, procurando não pensar em si mesma (FD+V=0).

Considerando a percepção interpessoal, Paulo revelava uma personalidade imatura com déficit para tudo que fosse relacional (CDI=4). Tinha dificuldade para manter relações interpessoais gratificantes com os que rodeavam, o que o fez optar por relacionamentos mais superficiais e pouco duradouros. A falta de habilidade social e os frequentes fracassos nos relacionamentos favoreceram fortes sentimentos de desvalorização, o que facilitava a presença de depressões (DEPI positivo). Paulo mostrava menos interesse nas pessoas do que a maioria dos adolescentes (Sum H= 2, WsumC= 1.5, COP=0 e AG=0). Como consequência, ele podia ser indiferente ao estar perto de pessoas e desatento ao que estavam dizendo e fazendo.

Lia evidenciava capacidade para estabelecer relações interpessoais adaptativas e livres de confusões (GHR=5; PHR=2), conseguia perceber o outro de modo realista e coerente, o que facilitava no seu processo de adaptação e bem-estar nas relações interpessoais (4H>2(H)+1Hd+0(Hd)). Todavia, devido à aversão que apresentava em relação às situações que envolviam expressões de afetos e emoções, sua adaptação interpessoal podia ser prejudicada (Afr=0.42). Ela preferia não se envolver profundamente com os outros para evitar o envolvimento afetivo.

Em relação à capacidade de manejo e controle do estresse, os dados do teste indicaram que Paulo vinha administrando há bastante tempo um estresse leve, porém crônico (Adj D= -1; D= -1). Isso significa que ele podia funcionar muito bem em situações simples, rotineiras, familiares e previsíveis, sem demonstrar qualquer problema de adaptação. Porém, o seu estresse crônico o predispunha a sentir, a pensar e a agir de forma mais ansiosa, tensa, irritável, impulsiva e ter mais dificuldade diante de situações novas ou mais estressantes do que a maioria das pessoas de sua faixa etária. Seus momentos de equilíbrio eram mantidos devido a uma vida restrita e de esquiva. Esse tipo de estresse é comum em pessoas com organização de personalidade imatura com um déficit contínuo de desenvolvimento (CDI= 4; EA=2.5; EB evitativo-ambigual; L=3,33), ou em pessoas com algum núcleo psicopatológico.

Lia apresentava capacidade para manter o controle de suas condutas, para permanecer tranquila, estável e satisfeita a maior parte do tempo (Nota D = 0 e AdjD=0). Porém, Lia revelava poucos recursos para se envolver em contextos que exigiam expressar e compartilhar afetos, o que a tornava predisposta a perder o controle diante de situações emocionalmente mais intensas. As estratégias de manejo do estresse apresentadas por ela, advinham de suas habilidades reflexivas e contemplativas, e não de recursos emocionalmente expressivos (4M>1.5WSumC).

Teste Raven

Paulo apresentou capacidade para observar, pensar, apreender e desenvolver um método sistemático de raciocínio Inferior à Média quando comparado com pessoas de sua mesma faixa etária e nível de escolaridade (Escore Bruto=27; Percentil= 5). Lia revelou ter essas mesmas capacidades preservadas, ou seja, compatível com o nível intelectual de pessoas de sua idade e escolaridade (Escore Bruto=45; Percentil=40).

 

Discussão

O objetivo deste trabalho consistiu em apresentar configurações de personalidade de adolescentes que infringiram a lei. No que tange às entrevistas realizadas com os adolescentes sob medidas socioeducativas e seus responsáveis, as análises apontaram para uma capacidade de compreensão regular, mas com tendência a um raciocínio incomum em algumas situações. Todos relataram a prática de condutas socialmente inadequadas anteriores à infração pela qual se encontravam internados, o uso do álcool e o envolvimento com drogas (seja como usuário, no caso de Paulo, ou como traficante, no caso de Lia) e pequenos furtos (no caso de Paulo, para comprar drogas, e no caso de Lia, por diversão).

Na história de vida, os adolescentes revelaram a perda de pelo menos uma das figuras parentais de forma trágica quando ainda criança, o que pode ter colaborado no prejuízo do desenvolvimento das potencialidades afetivas e reparadoras, bem como no prejuízo de suas noções de limites. Ambos cresceram em famílias disfuncionais e em um meio social pouco generoso e nada sustentador das suas necessidades de atenção. Eram de baixo nível socioeconômico, foram expulsos de sala de aula várias vezes por motivo de indisciplina e abandonaram a escola antes de terminar o ensino fundamental.

Outro aspecto favorável ao desenvolvimento do comportamento violento ou infrator foi o encontro com outras pessoas com o mesmo perfil, o que ocasionou o abandono dos estudos para fazer parte de gangues que se envolviam com drogas, significando um primeiro passo na direção de atividades ilegais em grupo. Nesse caso, as companhias também precipitaram as atividades delinquentes, conforme foi citado na introdução (Farrington & Loeber, 2000; Krug e cols., 2002).

De uma forma geral, todos os dados levantados por meio das entrevistas semiestruturadas são congruentes com as informações fornecidas pelos estudos citados na introdução deste artigo. e sociais se sobrepõem na história de cada um dos jovens participantes e favorecem os comportamentos violentos, conforme foi observado por Bailey & Whittle (2004), Bartol (2008), Cartagena e cols. (2010), Craidy (1998), Farrington (2003), Farrington & Loeber (2000), Heide (1997), Pacheco & Hutz (2009), Krug e cols. (2002), Mclaughlin e cols. (2000). Logo a seguir, vamos nos ater aos dados referentes aos fatores de personalidade.

As características de personalidade de Paulo indicam a presença de um transtorno mental grave, um Transtorno de Humor que se manifesta com eventuais explosões de irritabilidade, como foi citado por Adams (2008). Além do mais, observam- -se em Paulo mecanismos de defesas maníacos para não entrar em contato com os seus profundos sentimentos de tristeza, de autoinsatisfação e sentimentos contraditórios em relação às suas experiências de vida. O que se pode concluir desse caso é que suas defesas maníacas (pensamentos megalomaníacos, discursos extravagantes, irritabilidade, comportamentos bizarros e conflituosos), para não cair em uma depressão profunda, estão sendo confundidas com eventos de surtos psicóticos ou com tentativas de dissimulação de um Transtorno Psicótico. Não é incomum em adolescentes que apresentam esse tipo de Transtorno do Humor manifestar sintomas semelhantes ao de uma psicose, como também revelar sintomas de abuso de substância e comportamentos antissociais, aspectos que confirmam a citação de Adams (2008), na qual os Transtornos de Humor, incluindo as doenças depressivas, se manifestam das mais variadas formas.

As características apresentadas por Paulo se encontram em concordância com outros estudos citados na revisão bibliográfica. Nos estudos de Durat (2006) e Gonçalves (2004), os adolescentes que cometeram furto revelaram ansiedade e nervosismo, indicando estado psicológico indesejável e desagradável. Esses dados confirmaram também os dados da literatura estrangeira como: falta de habilidade de lidar com os afetos com tendência a violentas descargas emocionais; distanciamento das relações interpessoais; baixa autoestima; relacionamentos interpessoais problemáticos e conflituosos; aspectos depressivos e pouca capacidade de lidar com situações emocionalmente complexas; percepção simplificada e individualista das situações, o que o leva a tomar decisões precipitadas (Corredor, 2000; Fernández & Méndez, 1999; Gacono e cols., 2008; Gacono & Meloy, 1994; Loving & Russell, 2000; Olin & Keatinge, 1998).

No caso desse adolescente, o mais indicado seria uma requisição de tratamento psiquiátrico e psicológico, em regime hospitalar ou ambulatorial em algum instituto psiquiátrico forense que receba adolescentes. Como já foi explicitado, na introdução desse artigo, essa é uma situação complicada, pois em casos de transtornos mentais não se tem uma definição de onde essa medida poderia ser cumprida, uma vez que não há notícias de institutos psiquiátricos forenses que recebam adolescentes em nosso estado.

No caso de Lia, o que chama a atenção é a frieza afetiva que ela demonstra. Ela também está menos disposta do que a maioria dos adolescentes de sua idade para se envolver em situações que envolvam expressões de sentimentos. Apesar do seu interesse pelas pessoas, no que elas falam e fazem, observa-se em Lia pouca empatia e pouca necessidade de vínculos mais próximos e íntimos. Ela não revela qualquer indício de perturbações internas – tais como disforias, ansiedades afetivas, estresse, baixo nível de tolerância às frustrações, sentimento de culpa ou remorso, pensamento desordenado ou teste de realidade prejudicado – que poderiam levá-la a conduzir os seus comportamentos desviantes sem qualquer resistência interna, como acontece com Paulo. Ao contrário disso, Lia tende a tomar suas decisões mediante ações racionalmente planejadas, agindo de forma consciente e desconsiderando os seus afetos e emoções. Essas características de Lia estão em consonância com os dados apresentados por adolescentes que cometeram homicídios no estudo de Durat (2006), bem como com os resultados dos estudos de Fernández & Méndez (1999), Gacono e cols. (2008), Gacono & Meloy (1994), Loving & Russell (2000) que também observaram esse afastamento das relações interpessoais com pouca disponibilidade para a cooperação interpessoal, poucas demandas afetivas estressantes, tais como remorso, culpa, ansiedades e angústias e distanciamento de situações emocionalmente carregadas.

O estudo das características da personalidade de Lia aponta para um Transtorno de Conduta. Provavelmente, essas características também aparecem nos seus irmãos, que também se envolveram em crimes. Ao que tudo indica, há um ciclo vicioso entre gerações, o que é observado no ambiente antissoc de pessoas com Transtorno de Conduta. Filhos de pais antissociais tendem a ser antissociais e por sua vez tendem a educar seus filhos antissociais, perpetuando o ciclo.

Para o caso desta adolescente, qualquer tipo de tratamento psicológico não apresenta respostas muito satisfatórias, mas alguma melhora do comportamento é possível ser obtida com uma intervenção em diferentes áreas. Psicoterapia de grupo, com pessoas que apresentam o mesmo tipo de transtorno pode ser bastante desafiador para essas pessoas, psicoterapia familiar, orientação de seus responsáveis e treinamento dos envolvidos no trato direto, como técnicos da instituição e os professores. Abordagens isoladas, como psicoterapia individual, dificilmente surtirão algum benefício.

Tendo em vista os aspectos alcançados, pode-se concluir que a grande finalidade da avaliação psicológica em estudos como este é a contribuição com os trabalhos de intervenção e encaminhamentos mais pertinentes às necessidades psicológicas desses adolescentes, bem como o auxílio na prevenção de comportamentos infracionais, no que diz respeito às singularidades de cada um dos participantes. Por se tratar de estudos de caso, não foi objetivo do estudo apresentar generalizações a respeito de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, neste sentido, este estudo pode contribuir muito pouco.

É importante ressaltar, no entanto, que apesar dos dados obtidos por esses dois estudos de caso sustentarem estudos anteriores que descrevem a personalidade de jovens em conflito com a lei, nos quais os adolescentes que cometeram furto apresentaram características diferenciadas daqueles que praticaram homicídio, os aspectos da personalidade independem do ato infracional cometido. São os dinamismos próprios de cada um, juntamente com os fatores sociais, familiares, situacionais, biológicos que levaram cada um deles a desenvolver suas maneiras particulares de pensar, sentir e agir. Os elementos peculiares a cada um dos participantes impossibilitam enquadrá-los em perfis de adolescentes que cometem atos infracionais por meio dos indicadores encontrados no Rorschach. O valor do Método de Rorschach como instrumento de avaliação psicológica foi o de gerar dados da personalidade implícitos nos diferentes processos de adaptação à realidade social dessas pessoas, evidenciando as fragilidades das suas organizações psicológicas.

 

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Recebido em junho de 2011
Reformulado em dezembro de 2011
Aceito em fevereiro de 2012

 

 

Sobre os autores:

Carolina Cardoso de Souza: Psicóloga. Mestranda em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás..
Ana Cristina Resende: Psicóloga. Professora do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.


1Endereço para correspondência:
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E-mail: ccardosodesouza@gmail.com

2Neste estudo, entendem-se os transtornos mentais como síndromes, ou padrões comportamentais ou psicológicos, clinicamente importantes, que ocorrem numa pessoa e estão associados com sofrimento, ou incapacitação, ou com um risco significativamente aumentado de morte, dor, deficiência ou perda importante da liberdade (APA, 2002).

 

ANEXO A