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Avaliação Psicológica

versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431

Aval. psicol. vol.11 no.2 Itatiba abr./jun. 2012

 

 

Adaptação do Eysenck Personality Questionnaire Júnior para pré-escolares – versão heterorrelato

 

Adaptation of the eysenck personality questionnaire junior for preschoolers – observer rating version

 

Adaptación del cuestionario de personalidad de eysenck para niños en edad preescolar – versión hetero reporte

 

 

Mariana Teles Santos1; Carmen Elvira Flores-Mendoza

Universidade Federal de Minas Gerais

 

 


RESUMO

O presente estudo teve como objetivo a adaptação do Eysenck Personality Questionnaire Junior (EPQ-J), instrumento baseado no modelo dos três superfatores de personalidade de Hans Eysenck, para avaliação de crianças pré-escolares. O questionário foi respondido por mães de 192 crianças de 4 a 6 anos de idade, sendo 108 (56%) do sexo feminino. Os valores de consistência interna das escalas foram de 0,80, 0,77 e 0,90 para Psicoticismo (cinco itens), Extroversão (quatro itens) e Neuroticismo (dez itens), respectivamente. Três componentes, com eigenvalue superior a um, foram extraídos mediante a análise de componentes principais, os quais explicaram 57% da variância total. Tal resultado indicou equivalência entre a estrutura fatorial teórica e a observada no presente estudo. Associações positivas foram encontradas entre a dimensão de Psicoticismo e dimensões da escala de Transtorno de Déficit Atenção e Hiperatividade, indicando a validade da medida. Os resultados sustentam boa qualidade psicométrica do instrumento.

Palavras-chave: EPQ-J; personalidade; pré-escolares.


RESUMEN

El presente estudio tuvo como objetivo adaptar el Cuestionario de Personalidad de Eysenck Junior (EPQ-J), instrumento basado en el modelo de la personalidad de los tres superfactores de Hans Eysenck, para la evaluación de los niños en edad preescolar. El cuestionario fue respondido por 192 madres de niños con edad entre 4 y 6 años, siendo 108 (56%) mujeres. Los coeficientes de consistencia interna de las escalas fueron de 0,80, 0,77 y 0,90 para Psicoticismo (cinco ítems), Extraversión (cuatro ítems) y Neuroticismo (diez ítems), respectivamente. Tres componentes con auto valores mayores a uno fueron extraídos mediante el análisis de componentes principales, los cuales explicaron el 57% de la varianza total. Tales resultados indicaron equivalencia entre la estructura factorial teórica y la observada. Correlaciones positivas entre Psicoticismo y dimensiones del Trastorno por Déficit de Atención e Hiperactividad fueron encontradas. Los resultados apuntan para buena calidad psicométrica de la adaptación del EPQ-J.

Palabras-clave: EPQ-J; personalidad; pre-escolares.


 

 

A observação de diferenças individuais relativas ao temperamento do indivíduo, desde muito cedo na vida, é possível. Essa é a conclusão do conhecido estudo realizado na cidade de Dunedin, Nova Zelândia, o chamado "The Dunedin Longitudinal Study" conduzido pelos psicólogos Terrie Moffitt e Avshalom Caspi. Esse projeto acompanhou 1000 pessoas nascidas em 1972, as quais foram entrevistadas e avaliadas a cada dois anos até a idade de 15 anos. Posteriormente, foram avaliadas aos 18, 21, 26 e 32 anos. A última avaliação realizada se refere aos anos 2010-2011, período em que os participantes estavam com 38 anos de idade. Desse estudo, desprende-se que as diferenças comportamentais parecem manter-se ao longo do ciclo vital, o que evidencia certa estabilidade e constância dos aspectos psicológicos (Caspi, 2000).

Normalmente, as diferenças individuais durante a infância são descritas com base em traços temperamentais. Alguns autores consideram o termo temperamento mais adequado para descrever as diferenças individuais de crianças, tendo em vista que o domínio do temperamento pode ser visto como um subconjunto do domínio mais geral que é a personalidade (Rothbart, 2007). O temperamento pode ser conceituado como a qualidade das respostas emocionais da criança. É mensurado na infância e tem a tendência de se manifestar em traços mais específicos, sendo influenciado pelos componentes biológicos ou genéticos mais do que pela experiência (Caspi, Roberts & Shiner, 2005). De forma geral, o temperamento é atribuído a bebês e crianças pequenas, destacando-se por sua forte influência biológica, sendo que a tendência de integração dos comportamentos interatuando com o meio social e familiar culmina na formação da personalidade adulta (Goldsmith e cols., 1987).

O seguimento do temperamento de crianças pequenas até a idade da adolescência tem permitido identificar que, enquanto a maioria dos adolescentes pode apresentar um período de comportamento desordeiro, outros apresentam um ciclo longo de experiências violentas e destrutivas (Caspi, 2000). Recentemente, Moffitt e cols. (2011), publicaram os resultados sobre autocontrole dos participantes do projeto "The Dunedin Longitudinal Study", avaliados entre os 5 e os 11 anos de idade, e a sua saúde física e comportamento criminal apresentados aos 32 anos de idade. Os autores encontraram associação positiva com saúde física (quanto maior autocontrole melhor a saúde) e associação negativa com comportamento criminal (quanto maior o autocontrole menor comportamento criminal). Essas associações foram obtidas controlando-se o nível socioeconômico e QI dos participantes. Portanto, a identificação de traços temperamentais na infância pode ajudar pais e professores a delinear estratégias de prevenção.

Entretanto, a identificação de traços temperamentais na infância não é tarefa fácil de ser realizada. O estudo das diferenças individuais para dimensões do temperamento em crianças com idade pré-escolar encontra uma série de obstáculos relativos à elaboração de medidas adequadas para acessar tais dimensões. Em idades tenras, as características psicológicas apresentadas pela criança estão em processo de formação, o que confere uma menor integração e uma maior suscetibilidade a mudanças rápidas e significativas.

Um dos desafios na área da Psicologia das Diferenças Individuais consiste, justamente, no desenvolvimento de mensurações válidas, que acessem com fidedignidade os processos psicológicos infantis, isto é, medidas que permitam investigações de seguimento desde a tenra idade. Por exemplo, o estudo de Moffitt e col. (2011) utilizou uma estratégia multi-informe para mensuração do autocontrole que consistia em observação direta do comportamento, questionário a pais e professores assim como testes motores. Portanto, a mensuração das diferenças individuais no temperamento de crianças, por meio dos relatos de pais e professores, parecem ser os meios adequados quando a idade do avaliando, ou a natureza do próprio traço como, por exemplo, o comportamento antissocial, não permite uma autoavaliação.

Segundo Measelle, Ablow, Cowan e Cowan (2005), as medidas de autorrelato para crianças, apesar da vantagem de oferecerem informações muitas vezes não disponíveis nos relatos de outros informantes, apresentam algumas complicações. Dentre elas, estão a limitada capacidade cognitiva, níveis inconscientes de engajamento e vieses motivacionais. Portanto, devido a que fatores como desejabilidade social, cognição, autoestima e autoconceito ainda se encontrem em processo de formação, as descrições que as crianças fazem de si nem sempre são confiáveis (Rothbart, Ahadi & Evans, 2000).

Os pais, por sua vez, são considerados os informantes por excelência da personalidade das crianças, pois são capazes de observar uma variedade de comportamentos em diferentes situações e por longo intervalo de tempo, tendo acesso a comportamentos que, para outros, podem parecer infrequentes (Rothbart & Bates, 1998). O relato de professores é também bastante utilizado desde que interajam por um período de tempo considerável com as crianças. Assim, eles possuem um amplo referencial com base no qual respaldam suas respostas (Laidra, Allik, Harro, Merenakk & Harro, 2006).

O grau de concordância entre o relato dos diferentes informantes sobre a criança difere dependendo da relação entre os informantes e a criança. Por exemplo, observa-se uma alta correlação entre relatos de pais e mães, bem como uma alta correlação entre o relato de professores. Contudo, a correlação entre o relato de pais e professores é moderada (De Fruyt & Vollrath, 2003).

A falta de uma alta convergência no relato dos vários informantes reflete o fato de que diferentes observadores fornecem um perfil diferente da criança. Por um lado, isso se deve a que eles observam- na em diferentes contextos, por outro possuem experiências distintas com a mesma. Assim, os pesquisadores aceitam que as diferenças entre múltiplos informantes podem refletir: a) especificidade interacional; b) especificidade comportamental, e c) distorções nas percepções individuais (Grietens e cols., 2004). No caso específico dos professores, Laidra e cols. (2006) acreditam que dois fatores podem atuar na diminuição da acurácia do relato: 1) a avaliação de várias crianças ao mesmo tempo, e 2) a falta de motivação dos professores para tal tarefa.

A existência de baixo acordo encontrado em alguns estudos entre adultos pode também ser decorrente do que Watson, Hubbard e Wiese (2000) chamam de "Efeito da Visibilidade do Traço". Segundo os autores, há traços de personalidade que são facilmente observados, como aqueles com claras e frequentes manifestações comportamentais. Esses traços apresentam maior acordo entre informantes do que aqueles para os quais a informação externa disponível é pequena. Acentua-se, por fim, que a baixa concordância encontrada em alguns estudos não implica que um determinado tipo de relato seja preferível, apenas indica que as pessoas podem utilizar diferentes referenciais quando avaliam a sua personalidade e a dos outros.

Diante do panorama de avaliação do temperamento (ou personalidade) infantil descrito anteriormente, o presente estudo teve como objetivo a adaptação do Eysenck Personality Questionnaire – Junior (EPQ-J) para a faixa etária pré-escolar. O questionário baseia-se no modelo dos três superfatores do psicólogo inglês Hans Eysenck, o conhecido modelo PEN. Eysenck definiu as seguintes dimensões como fundamentais para a personalidade humana: Psicoticismo: altas pontuações indicariam pessoas agressivas, frias, egocêntricas, impessoais, impulsivas, antissociais, não-empáticas, criativas e obstinadas. Sujeitos com escores baixos nesse fator apresentam características contrárias e são definidos pelo controle de impulsos. Neuroticismo: sujeitos com altos escores neste fator são definidos como ansiosos, deprimidos, tensos, irracionais, tímidos, melancólicos, emotivos, com tendência a sentir culpa e baixa autoestima. Baixos escores nesse fator caracterizam o sujeito como emocionalmente estável. Finalmente, o fator de Extroversão, no qual altos escores descrevem o sujeito como sociável, animado, ativo, assertivo, busca sensações, despreocupado, dominante, cordial e aventureiro. Baixos escores reúnem características opostas e definem o sujeito como introvertido.

A opção por essa abordagem foi feita partindo- se de duas razões principais: 1) o modelo PEN tem fornecido os substratos biológicos sob os quais as diferenças individuais nas dimensões da personalidade estão assentadas (Eysenck, 1992; Juan-Espinosa, 2006); e 2) no Brasil, há evidências de replicabilidade do modelo para crianças acima dos cinco anos de idade (Mansur-Alves, Flores- Mendoza & Abad, 2010; Sisto, 2004a).

Inicialmente, Eysenck desenvolveu uma série de questionários de autorrelato para medir as diferenças individuais nas dimensões Neuroticismo e Extroversão. O primeiro deles foi o Maudsley Personality Inventory (MPI), desenvolvido na década de 50 e substituído primeiro pelo Eysenck Personality Inventory (EPI) e depois pelo Eysenck Personality Questionnaire (EPQ) (Mor, 2010). Esse último teve sua primeira versão na década de 70. Uma das alterações diz respeito aos itens do traço impulsividade, que carregavam na escala de Extroversão do EPI e que foram transpostos para a escala de Psicoticismo do EPQ (Francis, Brown & Philipchalk, 2002). O EPQ conta com uma versão para adultos (EPQ-Adult) e com uma versão para adolescentes (EPQ- Junior), esta última adaptada pelo Laboratório de Avaliação das Diferenças Individuais da UFMG (www.fafich.ufmg.br/~ladi). É importante destacar, também, que Eysenck considerava os termos temperamento e personalidade como sinônimos (Eysenck, 1959, 1961, 1992). A seguir, serão apresentados os procedimentos de adaptação do EPQ-J para a faixa etária pré-escolar, bem como sua qualidade técnica.

 

Método

Amostra

A presente pesquisa foi desenvolvida em quatro instituições de educação infantil da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, que autorizaram a avaliação de 192 crianças, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos pais. O contato com as mães das crianças foi realizado, em um primeiro momento, mediante correspondência e, posteriormente, duas reuniões com os pais foram feitas para esclarecimentos sobre a pesquisa e eventuais dúvidas no preenchimento do questionário de avaliação dos filhos. Ao final do estudo, realizou-se a última reunião com os pais e a equipe da direção da escola, oportunizando a transmissão dos resultados.

Foram avaliadas 192 crianças frequentadoras de creches e pré-escolas, sendo 107 (56%) do sexo feminino e 85 (44%) do sexo masculino, com idades entre quatro a seis anos (M=4,58, DP= 0,69). Cerca de 40% das crianças frequentavam creches particulares e, o restante, creches públicas. A amostra apresentou relativo equilíbro em termos de sexo (56% meninas) e tipo de escola (60% públicas). Mas também, houve um reduzido número de participantes com seis anos que ainda estava frequentando a pré-escola (12%). A maioria das famílias participantes encontrava-se na classe C (24,5% na classe C1 e 17,6% na classe C2), de acordo com avaliação socioeconômica utilizando-se o Critério de Classificação Socioeconômica Brasil (2008).

O total de mães respondentes correspondeu a 154 participantes, com idade média de 22,4 anos (DP=5,23). A maior parte da amostra (31,1%) apresentava grau de escolaridade equivalente ao Ensino Médio.

Cabe ressaltar que a amostra composta para avaliação da primeira versão do instrumento foi a mesma que participou da segunda versão. Houve apenas uma pequena redução amostral entre os dois estudos, posto que o número de crianças avaliadas na primeira versão do instrumento foi de 201, com 162 mães respondentes.

Instrumentos

Eysenck Personality Questionnaire Junior (EPQ-J)- versão para pré-escolares: O EPQ-J é um instrumento de autorrelato destinado à avaliação da personalidade de criancas e adolescentes, entre os 10 e 16 anos, o qual foi adaptado para o contexto brasileiro pelo Laboratório de Avaliação das Diferenças Individuais (LADI – Universidade Federal de Minas Gerais). O trabalho de adaptação do EPQ-J foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG em 2006. A versão brasileira do EPQ-J (Mansur-Alves, Flores-Mendoza & Abad, 2010) apresenta índices de consistência interna (Cronbach Alpha) razoáveis e uma estrutura fatorial de quatro componentes: Extroversão (α = 0,64), Neuroticismo (α =0,78), Psicoticismo (α = 0,71) e Sinceridade (α = 0,79), os quais foram corroborados pela análise fatorial confirmatória (Chi-square = 3.195,49; DF = 2.012; Chi/Diff = 1.588; RMSEA = 0.038). A partir dessa versão, realizou-se a adaptação para a faixa etária pré-escolar. Para tanto, os itens foram adaptados para uso na terceira pessoa do singular, transformando o questionário de autorrelato em heterorrelato. Dessa forma, as mães responderiam questões sobre comportamentos e sentimentos dos filhos. A versão final do instrumento é composta por dezenove itens distribuídos entre as escalas de Psicoticismo (cinco itens), Extroversão (quatro itens) e Neuroticismo (dez itens). O questionário é respondido em uma escala do tipo Likert de três pontos (1 = Não, 2 = Mais ou menos e 3 = Sim).

Escala de Transtornos do Déficit de Atenção e Hiperatividade (ETDAH) – versão adaptada para pais: utilizou-se a versão adaptada para os pais da Escala de Transtorno do Déficit de Atenção/ Hiperatividade (Andrade, 2006). A inclusão desse instrumento teve como objetivo principal a validação de pelo menos uma das escalas da versão pré-escolar do EPQ-J. Duas razões motivaram a escolha da subescala de Psicoticismo: a primeira refere-se a que Psicoticismo compartilha aspectos com o ETDAH (Flores-Mendoza, Widaman, Mansur-Alves, Bacelar & Saldanha, no prelo); e a segunda razão refere-se à disponibilidade do ETDAH no mesmo formato que a versão pré-escolar do EPQ-J, isto é, trata-se de uma versão para aplicação em pais de crianças (Andrade, 2006). Entretanto, haja vista que as subescalas de Déficit de Atenção e Dificuldade de Aprendizagem do ETDAH são apropriadas para avaliação de crianças com razoável experiência escolar, utilizaram-se apenas as escalas de Hiperatividade/ Impulsividade e Comportamento Antissocial do instrumento para uso de pais. Essas duas escalas totalizam 18 itens, respondidos em escala tipo Likert de três pontos. O Comportamento Antissocial está vinculado à infração de regras sociais ou a ações contra os demais. Caracteriza a criança como agressiva, infratora e praticante de ações de vandalismo, mentira e ausência escolar. Já a Hiperatividade/ Impulsividade refere-se essencialmente à ausência de controle, por parte da criança, de sentimentos e comportamentos inadequados ou inoportunos (Marinho & Caballo, 2002). Crianças que exibem intensamente esses traços são percebidas como socialmente incompetentes e normalmente são rejeitadas pelos pares ou colegas. Esperava-se, portanto, que o traço Psicoticismo apresentasse relação positiva com aspectos do TDAH, porquanto ambos relacionam-se a problemas de sociabilidade.

Procedimentos

A construção do EPQ-J – versão para pré-escolares - envolveu duas etapas. Inicialmente, as mães responderam a uma primeira versão do questionário e, em seguida, após a análise dos itens, houve um aperfeiçoamento do instrumento que resultou na construção de uma segunda e última versão. Cabe enfatizar que a primeira versão do questionário funcionou, também, como um estudo piloto para fins de verificação da adequação da linguagem e da adequação das escalas aos comportamentos a serem observados.

A primeira versão foi enviada para a residência das mães, após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Cerca de dez meses depois se procedeu à aplicação de uma segunda versão do EPQ-J, que foi elaborada a partir da análise dos itens da primeira versão, o que permitiu um aperfeiçoamento do instrumento. Concomitante à aplicação da segunda versão, as mães participantes do estudo também responderam ao ETDAH – versão para pais.

O processo de construção do EPQ-J – versão para pré-escolares iniciou-se com uma reunião com as direções das escolas que permitiram o estudo e depois com os pais para explicação dos objetivos do projeto. Informou-se a eles que os mesmos receberiam, em sua residência, os instrumentos a serem respondidos para posterior entrega à direção da escola. Informações detalhadas sobre a pesquisa também foram registradas em correspondência enviada para a residência das famílias. A equipe do projeto esteve disponível durante o estudo para um maior contato com os pais e esclarecimento de dúvidas. Ao término do projeto, foi realizada uma reunião com a direção, equipe pedagógica e professores da escola para fins de devolução dos dados da pesquisa. Posteriormente, conduziu-se uma reunião geral com os pais com a mesma finalidade.

 

Resultados

Construção da primeira versão do EPQ-J para pré- -escolares

Durante a transformação da escala de autorrelato do EPQ-J para uma escala de heterorrelato para avaliação de pré-escolares, alguns itens foram excluídos por apresentarem um conteúdo que não se aplicava ao cotidiano de crianças em idade préescolar. Outros itens passaram por transformações profundas em seu conteúdo, considerando-se as peculiaridades das manifestações comportamentais da faixa etária pretendida (quatro a seis anos de idade). Outra exclusão foi a escala de Sinceridade, presente na versão autorrelato e que tem por objetivo averiguar se o respondente está se avaliando de forma tendenciosa para passar uma boa imagem de si, o qual não era o caso do heterorrelato.

A primeira versão do EPQ-J – adaptado para pré-escolares - contou com 28 itens, respondidos em uma escala dicotômica Sim/Não. Seus dados foram coletados no primeiro semestre de 2008 e foi respondido pelas mães das crianças (N = 192).

Inicialmente, efetuaram-se análises estatísticas que avaliam a extensão da consistência interna de cada uma das escalas do questionário: Psicoticismo, Extroversão e Neuroticismo. Os valores alfa de Cronbach encontrados para cada escala na primeira versão foram baixos, a saber: 0,62 para Psicoticismo (sete itens); 0,52 para Neuroticismo (12 itens) e 0,47 para Extroversão (9 itens).

A fim de obter informações sobre as relações existentes entre os itens do questionário e, consequentemente, explorar a estrutura subjacente ao mesmo, realizou-se uma análise fatorial exploratória, por meio da análise de componentes principais. Os resultados da primeira versão do instrumento não foram satisfatórios (matriz para fatorização Keiser-Meyser-Olkin ou KMO = 0,56). Obteve-se a extração de onze componentes com eigenvalue superior a um que explicaram 64% da variância total. Tais resultados (estrutura fatorial observada diferente da teórica e baixos índices de consistência interna) motivaram a construção da segunda versão do questionário.

Construção da segunda versão do EPQ-J para pré- -escolares

Para a construção da segunda versão do questionário, foram selecionados os itens com melhores índices psicométricos da primeira versão, totalizando dezenove itens. Adicionaram-se a eles outros quatro itens de conteúdo similar, mas com reformulações textuais para fins de comparação e verificação de seu funcionamento. Após análise quantitativa, se definiria a eliminação do item adicional – caso o item original apresentasse melhor funcionamento - ou manutenção, substituindo o item original, caso aquele (item substituto) apresentasse melhor funcionamento.

A segunda versão do EPQ-J – adaptado para pré-escolares – foi respondida em uma escala tipo Likert de três pontos (Não / Mais ou Menos / Sim).

Os dados foram coletados no primeiro semestre de 2009 (N = 192). A fatorização dos dados, dessa vez, foi possível (KMO = 0,94). Na análise fatorial por componentes principais foram extraídos três componentes com eigenvalue superior a um. Os três componentes explicaram juntos 57% da variância dos dados.

Observou-se que a maioria dos itens apresentou carga no fator esperado ou em seu domínio teórico. Contudo, alguns itens apresentaram carga fatorial em mais de um fator (como o caso do item "Ele(a) gosta de debochar ou pregar peças nos colegas?" que carregou em Psicoticismo e Extroversão). Tal comportamento é esperado, tendo em vista a complexidade do construto investigado em idade tenra (Caspi, 2000).

Procedeu-se à mesma técnica para cada subescala. Dessa forma, para a matriz de Neuroticismo (KMO = 0,92), extraiu-se um único componente apresentando eigenvalue equivalente a 5,14 que explicava 51,4 % da variância total. A Tabela 1 apresenta as cargas fatoriais de cada item desse fator.

 

 

Para o fator Psicoticismo, a análise de componentes principais de seus itens (KMO = 0,80) apresentou um único componente com eigenvalue equivalente a 2,71 que explicava 54% da variância total dos itens. A Tabela 2 apresenta as cargas fatoriais de cada item nesse componente.

 

 

Por fim, para o fator Extroversão, o mesmo padrão de resultados foi encontrado. A análise de componentes principais (KMO = 0,76) apresentou apenas um componente com eigenvalue equivalente a 2,37 que explicava 59% da variância total. A Tabela 3 apresenta as cargas fatoriais dos itens no fator Extroversão.

Com o intuito de verificar a validade de construto do fator Psicoticismo do EPQ-J – versão pré-escolar, seus itens foram correlacionados, por meio da análise de correlação de Pearson, com as escalas de Hiperatividade/Impulsividade e Comportamento Antissocial do ETDAH, considerando- se que o fator Psicoticismo está relacionado a comportamentos disruptivos e antissociais. A correlação entre o Psicoticismo e o Comportamento Antissocial foi positiva e significativa (r = 0,521; p < 0,001), o mesmo ocorrendo para a correlação entre Psicoticismo e Hiperatividade/ Impulsividade (r = 0,412; p < 0,001). Tais resultados indicavam que crianças com altos escores em Psicoticismo tendiam a apresentar comportamentos de antissociabilidade, bem como de hiperatividade e impulsividade. Portanto, evidenciava-se dessa forma a validade do traço Psicoticismo avaliado pelo EPQ-J – versão pré-escolar.

 

Discussão

O estudo das diferenças individuais das características temperamentais para crianças em idade pré-escolar encontra uma série de obstáculos relativos à elaboração de medidas adequadas para acessar tais comportamentos. Nessa idade, as características psicológicas apresentadas pela criança estão em processo de formação, o que confere uma menor integração e uma maior suscetibilidade a mudanças rápidas e significativas (Caspi, 2000). Um dos desafios na área da Psicologia das Diferenças Individuais para essa população consiste no desenvolvimento de medidas válidas para identificação dos processos psicológicos infantis.

Partindo-se das evidências de continuidade e estabilidade do temperamento infantil com a personalidade na vida adulta (Caspi e cols., 2005), a presente pesquisa propôs a investigação da replicabilidade do modelo de personalidade PEN de Hans Eysenck para avaliação de crianças pequenas, por meio de um questionário de heterorrelato. No Brasil, os instrumentos de avaliação da personalidade infantil, baseados no modelo de Eysenck (Mansur- Alves e cols., 2010; Sisto, 2004a), apresentam índices psicométricos adequados para avaliação de crianças acima de cinco anos de idade. Portanto, a presente pesquisa almejava atingir a faixa etária dos quatro aos seis anos de idade por meio do heterorrelato, considerando-se as evidências que o apoiam ao invés do autorrelato para crianças em idade préescolar (Measelle e cols., 2005).

A primeira versão do instrumento mostrou índices psicométricos pouco aceitáveis, o que motivou a construção de uma segunda versão, a qual apresentou valores psicométricos bastante favoráveis, permitindo, portanto, uma equivalência entre a estrutura fatorial teórica e a observada no presente estudo. A moderada associação positiva entre a escala de Psicoticismo e o Comportamento Antissocial, o mesmo ocorrendo com Hiperatividade/ Impulsividade, encontra suporte na literatura especializada. Por exemplo, no contexto brasileiro, Sisto (2004b) encontrou uma correlação entre o Psicoticismo e a Sociabilidade de -0,23. Também, Flores-Mendoza, Widaman, Mansur-Alves, Bacelar e Saldanha (no prelo) mostraram a associação entre o comportamento antissocial e Psicoticismo (especialmente para os meninos) assim como o poder preditivo de ambos (-0,28 e -0,14, respectivamente) no desempenho escolar de adolescentes.

Além de constatar a adequação psicométrica do questionário, tambem foi possível evidenciar a replicabilidade do modelo de personalidade PEN em amostra de pré-escolares. Eysenck e Eysenck (1985) enfatizava a importância dos fatores biológicos na determinação das diferenças individuais na personalidade e, pelos resultados do presente estudo, seu modelo parece apresentar validade na medida em que traços de personalidade podem ser rastreados já desde a infância.

Sabe-se que, inicialmente, Eysenck se interessou pelas dimensões de personalidade presentes na tenra idade (Jang, 1998), mas seus primeiros resultados foram provenientes de estudos com pacientes psiquiátricos adultos. É assim que os questionários desenvolvidos para mensurar as três superdimensões se aplicaram, a princípio, a essa faixa etária. No estudo presente, a hipótese de replicabilidade do modelo PEN para crianças préescolares teve como base a plausibilidade biológica desse modelo e a expectativa de que as dimensões básicas da personalidade poderiam ser observadas desde os primeiros anos de vida. Essas primeiras manifestações dividiriam espaço entre mecanismos biológicos e ambientais que resultariam na formação da personalidade adulta (Rothbart & Bates, 1998, Shiner & Caspi, 2003).

Entretanto, destacam-se algumas limitações do presente estudo, especialmente referentes à amostra, a qual foi composta em sua maioria por alunos da rede pública de ensino e com uma leve predominância do sexo feminino. Outra limitação se refere ao estudo de validade convergente apenas para o fator Psicoticismo. Recomenda-se, portanto, o uso de uma avaliação multi-informe do temperamento infantil (ou características básicas da personalidade), incorporando-se o relato dos professores, assim como a inclusão de técnicas de observação naturalística. Tal medida permitirá não apenas verificar o grau de concordância entre os diferentes informantes (Mansur-Alves e cols., 2010), mas também verificar a consistência do modelo PEN em crianças pequenas.

É do parecer dos autores que a presente pesquisa fornece uma importante contribuição para área da avaliação psicológica, relativa à adaptação de um questionário para avaliação da personalidade (ou temperamento) de crianças pré-escolares, especialmente por se tratar de uma faixa etária ainda carente de instrumentos de medida no contexto brasileiro.

Considerando o valor preditivo do temperamento/ personalidade e, consequentemente, o interesse de diversos profissionais sobre as possibilidades de intervenção clínica e pedagógica nas características temperamentais das crianças, tornase fundamental o aperfeiçoamento de instrumentos de avaliação como o descrito no presente artigo. Mais ainda, a presente medida abre a oportunidade aos pesquisadores, no Brasil, de realizarem estudos de seguimento da personalidade desde a tenra idade. Espera-se que seu uso, portanto, forneça valiosas informações sobre as variações comportamentais no transcorrer do ciclo de vida.

 

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Recebido em junho de 2011
Reformulado em maio de 2012
Aceito em junho de 2012

 

 

Sobre as autoras:

Mariana Teles Santos: Psicóloga, Mestre em Psicologia do Desenvolvimento Humano pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Carmen Elvira Flores-Mendoza: Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo e Professora Associada da Universidade Federal de Minas Gerais.


1Endereço para correspondência:
Rua Manoel Januário de Andrade, n° 414, Bairro Exposição, Vitória da Conquista, Bahia. CEP 45020540. E-mail: mariana_teles@yahoo.com.br

Agradecimento a todas as escolas participantes desta pesquisa, aos pais das crianças avaliadas e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, pelo apoio financeiro.