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Avaliação Psicológica

Print version ISSN 1677-0471

Aval. psicol. vol.12 no.3 Itatiba Dec. 2013

 

 

Construção e validação de uma medida de papéis de gênero

 

Development and validation of a gender role measure

 

Construcción y validación de una medida de roles de género

 

 

Mônica Colognese Barros1; Jean Carlos Natividade; Cláudio Simon Hutz

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 


RESUMO

Os instrumentos utilizados para a investigação dos papéis de gênero diferem amplamente, dependendo da época e cultura em que foram criados, e do que querem medir. O presente estudo teve como objetivo construir e validar uma escala para papéis de gênero a partir de um levantamento empírico de características femininas e masculinas. Elaborou-se uma lista contendo 107 expressões caracterizadoras de mulheres e homens, que foi apresentada a 223 pessoas da região Sul do Brasil para que elas indicassem o quanto cada uma das expressões era mais masculina ou feminina. A partir disso, 20 expressões foram selecionadas e aplicadas a 510 pessoas de quatro regiões do país, sendo 53,9% do sexo feminino e idade média de 29,0 anos (DP=8,83), com escolaridade nível superior incompleto a pós-graduação completa. A versão final do instrumento, com 14 itens, mostrou-se válida e fidedigna e sustenta a postulação de independência das dimensões Masculinidade e Feminilidade.

Palavras-chave: gênero; papéis de gênero; masculinidade; feminilidade.


ABSTRACT

The instruments used for the investigation of gender roles differ widely, depending on the time and culture in which they were developed, and on what they are designed to measure. The objective of the present study was to develop and validate a gender role scale through an empirical survey about feminine and masculine characteristics. A list containing 107 expressions of feminine and masculine characteristics was prepared. This list was presented to 223 people from Southern Brazil. Participants were asked to indicate how much each one of the expressions was masculine or feminine. The results led to the selection of 20 expressions which were applied to 510 people (53.4% women) from four regions of the country. Their mean age was 29.0 years (SD=8.83) and their education level ranged from high school to postgraduate. The results indicated that the final version of the instrument (14 items) was reliable and presented evidence of construct validity indicating independent dimensions of Masculinity and Femininity.

Keywords: gender; gender roles; masculinity; femininity.


RESUMEN

Los instrumentos utilizados para la investigación de los roles de género varían ampliamente dependiendo de la época y cultura en que fueron creados, y de lo que quieren medir. El presente estudio tuvo como objetivo construir y validar una escala para los roles de género desde un estudio empírico de las características femeninas y masculinas. Se desarrolló una lista de 107 expresiones que caracterizaron las mujeres y los hombres, tras esto se presentó esta lista a 223 personas del sur de Brasil para que indicasen se cada expresión era más masculina o femenina. A partir de eso, 20 ítems fueron seleccionados y se aplicó a 510 personas de cuatro regiones del país, 53,9% fueron mujeres y el promedio de 29.0 años (DE=8,83), con educación superior completo a postgrado. El instrumento final tiene 14 ítems, e se mostró válido y preciso, y apoya la postulación de dimensiones independientes de Masculinidad y Feminidad.

Palabras-clave: género; roles de género; masculinidad; feminidad.


 

 

Papéis de gênero, de uma perspectiva isenta de concepções teóricas prévias, podem ser entendidos como características fisiológicas e psicológicas que distinguem homens e mulheres. De fato, uma ampla revisão realizada por Constantinople (1973) sugeriu que Masculinidade e Feminilidade são características relativamente duradouras, mais ou menos enraizadas na anatomia, fisiologia e experiências e que, efetivamente, servem para diferenciar homens e mulheres em sua aparência, atitudes e comportamentos. Lenney (1991) argumenta que não há consenso sobre essas definições e esses conceitos figuram entre aqueles turvos no vocabulário da Psicologia. Contudo, observam-se esforços de correntes teóricas fundamentando as diferenças observáveis entre os sexos. Entre essas perspectivas, podem-se destacar as sociais, as cognitivas e as psicobiológicas (ver mais em Maccoby, 2000).

Em decorrência da pluralidade conceitual envolvendo os papéis de gênero, os instrumentos utilizados para investigá-los diferem consideravelmente, variando em função da época e cultura em que foram criados, das estratégias utilizadas para a seleção de itens, do tipo e de quantas dimensões ou domínios medem e de sua homogeneidade interna. Lenney (1991), em sua revisão, enumerou mais de 150 tipos de instrumentos disponíveis sobre tipificação sexual. Entre as medidas de papéis de gênero mais amplamente utilizadas pelos pesquisadores, segundo Lenney (1991), destaca-se o Bem Sex Role Inventory (BSRI, Bem, 1974, 1977). No Brasil, esse instrumento também pode ser ressaltado por sua frequente utilização (Biaggio, Vikan, & Camino, 2005; Hernandez, 2009; Hernandez & Hutz, 2008; Hutz & Koller, 1992; Koller, Hutz, Vargas, & Conti, 1990; Lobato & Koller, 2003; Oliveira, 1983).

O BSRI foi desenvolvido a partir da Teoria do Esquema de Gênero (Bem, 1981). Essa teoria postula que, ao longo do desenvolvimento, homens e mulheres adquirem uma estrutura cognitiva que consiste em uma rede de associações de significados conectadas aos conceitos de masculinidade e feminilidade. Esses conceitos são definidos de acordo com os princípios da sociedade. A partir da rede de associações, configuram-se esquemas que levam os indivíduos a processarem as informações de acordo com aquilo que é considerado como tipicamente masculino ou feminino. Além disso, os esquemas servem como um padrão de acesso para a adequação dos comportamentos, atitudes e atributos entendidos como apropriados para seu próprio gênero.

Para a construção do BSRI, Bem (1974) selecionou preliminarmente 200 características das pessoas que lhe pareciam positivas em valor, e masculinas ou femininas em qualidade. Essas características serviram como base para a formação das Escalas de Masculinidade e Feminilidade. Adicionalmente, a pesquisadora selecionou mais 200 características, sendo metade delas positivas e metade negativas, que não lhe pareciam nem masculinas e nem femininas para uma Escala Neutra. Após essa listagem, solicitou a 100 universitários americanos que indicassem o quão desejável cada uma das 400 características de personalidade seria para homens e mulheres. A partir das diferenças entre a desejabilidade para homens e para mulheres, Bem escolheu os 20 considerados mais desejáveis para as mulheres (Escala de Feminilidade) e os 20 considerados mais desejados para os homens (Escala de Masculinidade). Com relação à Escala Neutra, homens e mulheres poderiam classificar a característica como não desejável para cada um dos sexos (características negativas), ou desejável para ambos os sexos (características positivas). Assim, sobressaíram-se 10 características negativas e 10 positivas.

A partir desse instrumento (BSRI), os indivíduos poderiam ser classificados em três categorias, de acordo com a mediana dos pontos obtidos em cada escala: masculinos (acima em masculinidade e abaixo em feminilidade), femininos (acima em feminilidade e abaixo em masculinidade) e andróginos. A Escala Neutra não era utilizada para essa classificação. Os indivíduos andróginos eram conceituados ao obterem índices superiores ou inferiores à mediana em ambas as escalas de Masculinidade e Feminilidade. Spence, Helmreich e Stapp (1975) argumentaram que indivíduos andróginos deveriam ser apenas aqueles que tivessem altos índices de pontuação nas escalas de feminilidade e masculinidade. Os que obtivessem baixos índices em ambas as escalas deveriam ser classificados como indiferenciados. Bem (1977) acatou a sugestão e incluiu essa nova categoria de tipificação sexual em sua teoria.

As primeiras versões brasileiras do BSRI datam da década de 1980 (Oliveira, 1983), e desde lá constantes atualizações têm sido realizadas sobre esse instrumento (Hernandez, 2009; Hutz & Koller, 1992; Koller e cols., 1990). Oliveira (1983) seguiu os mesmos procedimentos de Bem (1974) ao construir o instrumento para o Brasil. Esse autor selecionou 507 características e testou sua desejabilidade para homens e mulheres em 180 universitários. Assim como no BSRI original, Oliveira (1983) destacou 20 características para cada uma das escalas de Feminilidade e de Masculinidade, e 20 características de personalidade, 10 negativas e 10 positivas, para a Escala Neutra.

Em 1990, Koller e cols. (1990) constataram que o instrumento, na versão em que vinha sendo utilizado, apresentava diversas limitações, e apontaram para a necessidade de uma nova adaptação. Uma adaptação do instrumento foi realizada por Hutz e Koller (1992). Esses autores, primeiramente, elaboraram uma nova lista contendo 150 adjetivos para a composição das três escalas. Esses adjetivos foram testados quanto à desejabilidade para homens e mulheres por 87 universitários. A partir dessas avaliações, foram selecionados 20 itens em cada escala, e a Escala Neutra permaneceu com 10 características indesejáveis e 10, desejáveis para ambos os sexos. Hutz e Koller (1992) ainda salientaram que instrumentos como o BSRI necessitam de revisão sistemática, principalmente pelas mudanças culturais e paradigmáticas aceleradas que afetam homens e mulheres de maneiras diferentes.

Hernandez (2009), mais recentemente, testou as propriedades psicométricas do BSRI, a partir versão de Hutz e Koller (1992). Participaram do estudo 922 pessoas de Porto Alegre e região metropolitana. Os resultados encontrados pelo pesquisador demonstraram algumas fragilidades do instrumento, tais como: possibilidade de extração de 13 fatores com eigenvalue maior que 1; inspeção visual do scree plot sugerindo uma solução de cinco fatores; variância explicada para uma solução forçada de três fatores (masculinidade, feminilidade e neutra) de 31,7%; cerca de 20% dos itens não carregaram no fator previsto. Apesar das considerações sobre os problemas apresentados pelo instrumento, até o momento, ele tem sido utilizado no Brasil para caracterizar grupos de indivíduos tipificados sexualmente.

A fragilidade do BSRI não é exclusividade brasileira e críticas sobre este instrumento têm sido salientadas também em âmbito internacional. As críticas vão desde os procedimentos para seleção dos itens que compõem o instrumento; a homogeneidade da sua estrutura fatorial; até às definições operacionais dos construtos avaliados (Blanchard-Fields, Suhrer-Roussel, & Hertzog, 1994; Choi & Fungha, 2003; Heerboth & Ramanaiah, 1985; Konrad & Harris, 2002; Maznah & Choo, 1986; Pedhazur & Tetenbaum, 1979; Peng, 2006; Spence & Helmreich, 1981; Whetton & Swindells, 1977). Diante desse cenário, este estudo teve o objetivo de elaborar um instrumento válido e fidedigno para aferir papéis de gênero a partir de um levantamento empírico sobre papéis típicos de homens e mulheres no Brasil. Além do levantamento empírico frente à população alvo, utilizaram-se como fontes de inspiração de itens a versão original do BSRI (Bem, 1974) e a versão brasileira mais atual (Hutz & Koller, 1992).

 

Método

Construção dos itens

Elaborou-se uma lista contendo 107 expressões que poderiam caracterizar homens e mulheres (por exemplo: amável, forte, sensível às necessidades dos outros). As expressões que compuseram a lista eram provenientes de três fontes de dados: (a) 43 adjetivos selecionados de um levantamento prévio com 202 pessoas (56% mulheres) em que foi solicitado aos participantes que descrevessem o que consideravam serem papéis típicos masculinos e papéis típicos femininos (Barros, Natividade, & Hutz, 2010); (b) 54 expressões tipificadoras de papéis de gênero do Bem Sex Role Inventory (BSRI; Bem, 1974), a partir de uma tradução para o português; (c) 10 adjetivos das versões brasileiras revisadas do BSRI (Hernandez, 2009; Hutz & Koller, 1992). Para a formação da lista, as expressões foram adicionadas sequencialmente a partir das fontes (a, b, c), assim os termos que já haviam sido contemplados em uma das fontes de dados não foram incluídos novamente. Além disso, foram deixadas fora da lista algumas expressões consideradas obsoletas para a realidade atual (por exemplo: arrojada, namoradora, galanteadora, leviana). Ao lado dos adjetivos, havia uma escala de cinco pontos em que no extremo esquerdo, no ponto 1, havia o rótulo ‘masculino’ e no extremo direito, ponto 5, o rótulo ‘feminino’.

Aplicou-se um questionário contendo essa lista de expressões em 223 pessoas da região Sul do Brasil, média de idade de 30,4 anos (DP=7,43), sendo 57,8% do sexo feminino, com escolaridade de nível superior incompleto a pós-graduação completa. Solicitou-se que os participantes julgassem o quanto cada uma das expressões da lista melhor descrevia um homem ou uma mulher comum. Quanto mais os participantes julgassem que o adjetivo caracterizava um homem, mais para esquerda deveriam assinalar; quanto mais achassem que ele caracterizava uma mulher, mais para a direita deveriam marcar. Então, calculou-se a média de feminilidade/masculinidade atribuída às expressões e selecionou-se para compor o instrumento da etapa seguinte as 10 expressões avaliadas como mais femininas (médias mais próximas do cinco) e as 10 expressões consideradas mais masculinas. Nessa seleção de expressões, foram desconsideradas aquelas que pudessem denotar características pejorativas (por exemplo, machista, agressiva, grosseira, vulgar). As 20 expressões selecionadas para a etapa seguinte foram: Femininas: sensível, afetuosa(o), acolhedor(a), compreensiva(o), delicada(o), emotiva(o), amável, intuitiva(o), detalhista, vaidosa(o); e Masculinas: líder, com poder, séria(o), administrador(a), prática(o), atlética(o), autoconfiante, reservada(o), que gosta de correr riscos, livre.

Teste Empírico do Instrumento de Papéis de Gênero

Participantes

Participaram do estudo 510 pessoas, com média de idade de 29,0 anos (DP=8,83), sendo 53,9% mulheres. Elas eram provenientes de quatro regiões do Brasil, sendo a região Sul a mais representativa com 88,2% dos participantes, como pode ser visto na Tabela 1. Dentre os que estavam no Brasil, 49,4% declararam ter como naturalidade uma cidade capital de Estado, e os demais afirmaram ser naturais de alguma outra cidade não-capital de Estado. Com relação à cidade brasileira em que moravam atualmente, 63,2% dos participantes afirmaram residir em uma capital de Estado, enquanto as demais estavam em uma cidade não-capital. A maioria dos participantes, 55,9%, havia concluído o Ensino Superior, dentre eles, 46,0% também tinham concluído uma Pós-Graduação. Com relação ao estado civil, 33,9% dos participantes estavam casados ou em união estável. No que diz respeito à orientação sexual, declararam-se heterossexuais 91,4% dos participantes, identificaram-se como homossexuais 5,3% dos participantes e 3,3% classificaram-se como bissexuais.

Instrumentos

Foi utilizado um questionário on-line de respostas fechadas, hospedado em um endereço na internet, contendo perguntas sociodemográficas como: sexo, idade, escolaridade, cidade de nascimento, cidade de residência, estado civil e orientação sexual. Além das perguntas sociodemográficas havia uma lista de 20 expressões características de papéis de gênero, desenvolvida especificamente para este estudo, conforme descrição anterior. Essa lista apresentava em ordem aleatória 10 expressões características de mulheres e 10 características de homens seguidas de uma escala de sete pontos para que os participantes julgassem o quanto concordavam que a expressão os descrevia adequadamente; sendo que o ponto 1 correspondia a discordo totalmente e o ponto 7 significava concordo totalmente.

Procedimentos

Após a aprovação para a realização da pesquisa pelo Comitê de Ética em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, sob protocolo número 2011007, os participantes foram recrutados por meio de e-mails com convites contendo informações sobre o estudo e o endereço na internet do questionário. Os convites foram divulgados em listas de e-mails e em sites de redes sociais. Nos convites, além da participação na pesquisa solicitava-se a divulgação entre outros possíveis participantes. Ao aceitarem o convite e acessarem o link para o questionário, os participantes, primeiramente, concordaram com as informações contidas no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para terem acesso às questões e respondê-las.

Para a análise dos dados, inicialmente, realizaram- -se as exclusões dos casos com mais de 5% de respostas omissas. Retiraram-se das análises também os casos em que ocorreu exatamente a mesma resposta para todas as questões, denotando respostas duvidosas ou falseadas.

 

 

 

Resultados

Na busca por evidências de validade do instrumento, realizou-se uma Análise de Componentes Principais com rotação varimax com os itens da escala, tal como foi feito nos estudos anteriores de validação do BSRI para o Brasil (Hernandez, 2009; Hutz & Koller, 1992). Observou-se que os dados estavam adequados à análise, KMO=0,78; e também se constatou que a matriz de correlação dos itens estava adequada, teste de esfericidade de Bartlett, p<0,001. A partir da inspeção visual do scree plot (Figura 1) e considerando-se os autovalores maiores que 1, verificou-se ser adequado extrair duas dimensões, que explicaram 41,1% da variância dos dados. Essa análise foi realizada após a retirada de três itens representativos, inicialmente, de Feminilidade e três de Masculinidade, pois esses itens apresentavam cargas componenciais muito baixas nas dimensões e sem esses itens o valor da variância explicada passou de 30,7% para 41,1%.

Como pode ser visto na Tabela 2, os itens agrupados na primeira dimensão foram aqueles previamente classificados como representativos de características femininas, portanto, esta dimensão foi denominada Feminilidade. De modo semelhante, os itens inicialmente considerados representativos de características masculinas se agruparam na dimensão dois, que foi denominada Masculinidade. A média na dimensão Feminilidade foi de 5,06 (DP=0,90) e na dimensão Masculinidade foi de 4,62 (DP=0,84). O índice de precisão do instrumento foi verificado por meio do Coeficiente Alfa de Cronbach, sendo que para Feminilidade o valor foi de 0,76 e para Masculinidade foi de 0,70. Esses valores evidenciam que o instrumento possui consistência interna adequada (Nunnally, 1978).

 

 

 

Realizaram-se testes de correlações entre as duas dimensões da escala e entre as dimensões e a idade dos participantes. Observou-se um valor baixo de correlação entre Feminilidade e Masculinidade, r(510)=0,13, o que sugere ortogonalidade dos fatores. Com a idade dos participantes, verificou-se correlação positiva com Feminilidade, sendo que para os homens o valor da correlação foi de r(235)=0,24; p<0,001, e para as mulheres foi de r(275)=0,16; p=0,008. Entre Masculinidade e a idade as correlações não foram significativas.

Testou-se a possibilidade de o instrumento discriminar homens e mulheres em cada uma das duas dimensões. Na dimensão Feminilidade, as mulheres (M=5,39; DP=0,76) pontuaram mais que os homens (M=4,69; DP=0,90), t(459,1)=-9,36; p<0,001; d=0,84. Já na dimensão Masculinidade, os homens (M=4,70; DP=0,82) tiveram média maior do que as mulheres (M=4,55; DP=0,85), t(508)=2,03; p=0,043; d=0,18. Observase pelos valores de d que a diferença para a dimensão Feminilidade se mostrou mais ampla do que a diferença para a dimensão Masculinidade.

Com relação à orientação sexual dos participantes, examinou-se diferença de médias entre os homens heterossexuais e não-heterossexuais (homossexuais e bissexuais) e o mesmo foi feito para mulheres destes dois grupos. Para os homens, tanto na dimensão Feminilidade, t(233)=0,64; p=0,52; d=0,13, quanto na Masculinidade, t(50,0)=-0,90; p=0,37; d=0,15, não foram verificadas diferenças significativas. Entre as mulheres heterossexuais e não-heterossexuais, a dimensão Feminilidade também não se mostrou diferente, t(273)=-1,80; p=0,073; d=0,49. Em contrapartida, na dimensão Masculinidade, as mulheres não-heterossexuais (M=5,07; DP=0,76) pontuaram mais do que as heterossexuais (M=4,52; DP=0,84), t(273)=2,36; p=0,019; d=0,62. Observandose os valores de d em ambas as dimensões, percebe-se que entre as mulheres heterossexuais e não-heterossexuais as diferenças são mais acentuadas do que as diferenças entre os homens destes dois grupos.

Comparando-se os grupos de participantes de acordo com o estado civil, verificou-se que entre os homens, os casados (casados e união estável) pontuaram mais, tanto em Feminilidade (M=4,87; DP=0,79), quanto em Masculinidade (M=4,62; DP=0,87), do que os não-casados (Feminilidade: M=4,87; DP=0,79; t(233)=-2,11; p=0,036; d=0,31; Masculinidade: M=4,89; DP=0,68; t(233)=-2,30; p=0,022; d=0,34). Já entre as mulheres casadas e não-casadas, não foram observadas diferenças significativas para as dimensões Feminilidade, t(273)=-0,60; p=0,55, d=0,12 e Masculinidade, t(273)=-0,74; p=0,46, d=0,09.

Ao se compararem os homens naturais das capitais de Estado e os naturais de cidades não-capitais, não se encontrou diferença na dimensão Feminilidade, t(233)=1,02; p=0,31; d=0,13. Mas na dimensão Masculinidade, os homens de não-capitais (M=4,87; DP=0,74) pontuaram mais do que os homens das capitais (M=4,58; DP=0,86), t(233)=2,69; p=0,008; d=0,36. Entre as mulheres de capitais e não-capitais, não houve diferença na dimensão Feminilidade, t(273)=-0,02; p=0,98, d=0,003; e nem na dimensão Masculinidade, t(273)=1,15; p=0,25; d=0,14.

Com relação à residência atual, na dimensão Feminilidade, os homens de não-capitais (M=4,88; DP=0,88) pontuaram mais do que os das capitais (M=4,61; DP=0,91), t(229)=1,99; p=0,047; d=0,30. Ainda entre os homens, na dimensão Masculinidade não houve diferenças significativas, t(229)=-0,09; p=0,92; d=0,01. Para as mulheres, a dimensão Feminilidade não apresentou diferença entre as residentes nas capitais e não-capitais, t(270)=-1,10; p=0,27; d=0,13. Tampouco, entre elas, houve diferença na dimensão Masculinidade, t(270)=0,50; p=0,61; d=0,06.

 

Discussão

O objetivo deste estudo foi construir e buscar evidências de validade e precisão de um instrumento para aferir papéis de gênero. Partiu-se de um levantamento empírico sobre características de homens e mulheres para a construção dos itens, conforme sugere Pasquali (1998), além da utilização de itens de instrumentos validados para aferir estes papéis (Bem, 1974; Hernandez, 2009; Hutz & Koller, 1992). Os resultados encontrados sustentam a validade e corroboram emergência de duas dimensões ortogonais para o construto. Esses resultados vão ao encontro da Teoria de Esquemas de Gênero (Bem, 1981) e apontam para um instrumento tão (ou mais) adequado quanto os já existentes no Brasil (Hernandez, 2009; Hutz & Koller, 1992; Koller e cols., 1990; Oliveira, 1983). Além de válido, o instrumento apresentou consistência interna satisfatória (Nunnally, 1978), revelando índices de precisão satisfatórios para as duas dimensões.

O levantamento de dados junto à amostra, sobre características típicas de homens e mulheres, permitiu a elaboração desse instrumento com cinco itens inéditos no Brasil (comparado a Hernandez, 2009; Hutz & Koller, 1992) e também não existentes na versão original do BSRI (Bem, 1974). São eles: acolhedor(a), intuitivo(a), com poder, administrador(a) e prático(a). O conjunto final de itens se agrupou em duas dimensões com uma pequena correlação entre si (r=0,13) e, diferentemente das versões brasileiras do BSRI, os itens considerados previamente representativos das mulheres se agruparam em um único fator e o mesmo aconteceu com os itens representativos dos homens.

Uma das dimensões do instrumento, contendo itens inicialmente apontados como mais representativos das mulheres, tais como afetuosidade, sensibilidade, intuição, compreensão, ao cuidado e relacionamento com os outros foi denominada Feminilidade. Essa dimensão apresentou conteúdo semelhante ao conceito de comunalidade (Abele, 2003; Bakan, 1966; Helgeson, 1994), que ressalta uma preocupação acentuada com as outras pessoas e com relacionamentos interpessoais. A outra dimensão, com itens como objetividade, força, liderança, autoconfiança, poder e liberdade, considerados previamente como mais representativos dos homens, foi chamada de Masculinidade. O conteúdo dessa dimensão mostrou-se similar ao conceito de agenciamento (Abele, 2003; Bakan, 1966; Helgeson, 1994), que destaca uma tendência à autonomia e foco em si mesmo. Outros termos usados para expressar os comportamentos ligados ao agenciamento e comunalidade são a instrumentalidade e a expressividade, respectivamente (Spence & Helmreich, 1981; Wrightsman, 1994).

Outro critério avaliado para evidenciar a validade do instrumento foi a capacidade de ele discriminar homens e mulheres. Verificou-se que para ambas as dimensões as médias de homens e mulheres foram diferentes e corresponderam ao esperado para a realidade brasileira (Biaggio e cols., 2005; Hernandez, 2009), tal que os homens pontuaram mais em Masculinidade e mulheres mais em Feminilidade. Adicionalmente, observaram-se correlações com a idade e a dimensão Feminilidade. Para os homens, o aumento da idade, mais do que para as mulheres, relaciona-se à propensão à execução de papéis femininos. Acredita-se que esse fenômeno tenha ocorrido em função do aumento da necessidade de cuidados conforme o passar dos anos e, consequentemente, pode ser esperada uma maior valorização de papéis que fortaleçam as redes sociais.

Observa-se que, para os homens e mulheres, independente da orientação sexual, a Feminilidade mostrou- -se uma dimensão mais estável dentre os grupos, pois não houve diferenças significativas nos grupos tanto de homens quanto de mulheres heterossexuais e não-heterossexuais. Esse dado pode representar o rompimento do tabu em que os homens não-heterossexuais são mais afeminados ou que desempenham mais papéis femininos do que os heterossexuais. Em contrapartida, a dimensão Masculinidade evidenciou-se mais elevada nas mulheres não-heterossexuais. Acredita-se que como essas mulheres tendem a diminuir a participação masculina de suas vidas, assumir papéis de Masculinidade, que as levam a uma independência e autonomia maiores, pode se tornar uma necessidade. E isso não significa dizer, bem como para os homens não-heterossexuais, que elas se tornem mais masculinizadas no sentido comum do termo.

O resultado de homens casados e em união estável pontuarem mais em Feminilidade e Masculinidade sugere que eles necessitam acessar mais ambos os papéis no cotidiano do que os não-casados. O compartilhamento de tarefas domésticas, tal como sugerem Perrone, Wright e Jackson (2009), o cuidado com os filhos, além de exigência de provimento financeiro, do bem-estar e proteção da família podem intensificar o exercício das dimensões Masculinidade e Feminilidade nesses homens. Em um estudo brasileiro, de Wagner, Predebon, Mossmann e Verza (2005), também ficam evidentes a cumplicidade e concordância entre homens e mulheres sobre a responsabilidade das tarefas que dizem respeito à criação e educação dos filhos e sustento econômico da família. Ainda que sejam evidentes as mudanças e evolução das famílias quanto à divisão das tarefas, há também a coexistência de padrões clássicos e contemporâneos em nossa sociedade.

Entre as mulheres, o estado civil não se mostrou diferenciador no exercício dos papéis de gênero. É provável que, desde cedo, elas aprendam que precisam exercer os papéis entendidos como femininos e os masculinos também, independentemente de estarem ou não com um parceiro romântico. Rocha-Coutinho (2004) entrevistou 25 mulheres universitárias para investigar as novas possibilidades e antigos dilemas sobre os papéis desempenhados pelas mulheres e os resultados mostraram que, para as entrevistadas, a mulher de hoje deve ser múltipla: profissional, competente, culta, inteligente, boa dona de casa, mãe zelosa, sem deixar de cuidar da aparência e investir na saúde. Assim, a autora observou que, na verdade, a identidade feminina não foi substancialmente alterada, mas sim ampliada para incluir novos papéis.

 

Considerações finais

A Feminilidade e Masculinidade demonstraram ser aspectos estáveis dentre os que residem em uma capital e fora de uma capital de Estado. Contudo, para o local de origem, os homens naturais de não-capitais evidenciaram maiores pontuações em Masculinidade que os das capitais. É provável que isso ocorra devido a uma valorização da Masculinidade em detrimento da Feminilidade em cidades interioranas, tal como a noção de o homem ainda ser visto como o principal provedor da família (Sigal & Nally, 2004; Wrightsman, 1994). Destaca-se sobre esse ponto a importância que o ambiente de socialização primária pode exercer sobre a esquematização de gênero.

Por fim, os resultados apontam para um instrumento com evidências de validade e precisão adequadas. Ressalta-se a diminuição do número de itens sobre papéis de gênero comparativamente às versões anteriores de testes para esses fins. Sugerem-se investigações especificamente delineadas para aprofundar o conhecimento sobre esse fenômeno e suas possíveis implicações para as diferenças individuais e nos relacionamentos sociais.

 

Referências

Abele, A. E. (2003). The dynamics of masculine-agented and feminine-communal traits: Findings from a prospective study. Journal of Personality and Social Psychology, 85(4), 768-776.         [ Links ]

Bakan, D. (1966). The duality ofhuman existence. Chicago: Rand McNally.         [ Links ]

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Recebido em novembro de 2012
Reformulado em abril de 2013
Aprovado em julho de 2013

 

 

Sobre os autores

Mônica Colognese Barros: possui graduação em Psicologia e formação em Psicoterapia de Técnicas Integradas. Atualmente é psicóloga, mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, faz parte do Laboratório de Mensuração desta mesma instituição.
Jean Carlos Natividade: é doutorando do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Claudio Simon Hutz: é Psicólogo, mestre e Ph.D. pela University of Iowa (USA) e Professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de Produtividade I-A do CNPq.


1Endereço para correspondência: R. Ramiro Barcellos, 2600/101, Santa Cecília, 90035-003, Porto Alegre-RS. Tel.: (51) 3308-5066. E-mail: monica.cbarros@terra.com.br