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Avaliação Psicológica

Print version ISSN 1677-0471On-line version ISSN 2175-3431

Aval. psicol. vol.15 no.2 Itatiba Aug. 2016

 

 

Estrutura fatorial do Questionário de Esquemas e Crenças da Personalidade

 

Factor structure of the Personality Schemas and Beliefs Questionnaire

 

Estructura factorial del Cuestionario de Esquemas y Creencias de Personalidad

 

 

Alexandre José de Souza Peres1,; Jacob Arie Laros

IUniversidade de Brasília

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou obter evidências de validade do Questionário de Esquemas e Crenças da Personalidade (QECP) e estimar a fidedignidade dos escores. Trata-se de um instrumento de autorrelato desenvolvido para avaliar perfis cognitivos de transtornos de personalidade de acordo com a teoria da terapia cognitiva. Participaram do estudo 437 pessoas com média de idade de 28,1 anos (DP=8,57), 75,7% do sexo feminino, e 88,3% universitários. Utilizou-se análise paralela como critério para o número de fatores a extrair-se na análise fatorial exploratória (AFE). A AFE com fatoração dos eixos principais e rotação Promax indicou uma solução com cinco fatores. Os índices de fidedignidade (Lambda 2 de Guttman) variaram entre 0,64 e 0,89. As correlações entre os fatores, corrigidas para atenuação, variaram entre 0,05 e 0,64. A AFE dos escores fatoriais apontou dois fatores de segunda ordem. Os resultados indicaram evidências satisfatórias de validade de construto e fidedignidade dos escores.

Palavras-chave: personalidade, distúrbios da personalidade, terapia cognitivo-comportamental, esquemas cognitivos, crenças.


ABSTRACT

This study aimed to obtain validity evidence of the Personality Schemas and Beliefs Questionnaire (QECP) and to estimate the reliability of its scores. The QECP is a self-reported instrument developed to assess the cognitive profiles of personality disorders according to cognitive therapy theory. The sample of respondents was composed of 437 Brazilians with a mean age of 28.1 years (SD=8.57), 75.7% female and 88.3% university students. Parallel analysis was used as a criterion for the number of factors to extract in exploratory factor analysis (EFA). EFA with Principal Axis Factoring and Promax rotation indicated a five factor solution. Reliability coefficients (Guttman’s Lambda 2) of the five factors varied between .64 and .89. The correlations between the factors, corrected for attenuation, varied from .05 to .64. EFA of the factor scores indicated two second-order factors. The results indicated satisfactory evidence of construct validity and reliability of the QECP scores.

Keywords: personality; personality disorders; cognitive behavioral therapy; schemas; beliefs.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo obtener evidencia de validez del Cuestionario de Esquemas y Creencias de Personalidad (QECP) y estimar la confiabilidad de sus puntuaciones. El QECP es un instrumento de autoinforme desarrollado para evaluar los perfiles cognitivos de trastornos de personalidad, según la teoría de terapia cognitiva. Participaron 437 personas brasileñas con edad promedio de 28,1 años (DS=8,57), 75,7% de sexo femenino y 88,3% estudiantes universitarios. Se utilizó análisis paralelo como criterio para el número de factores a extraer en análisis factorial exploratorio (AFE). La AFE de ejes principales con rotación Promax indicó una solución de cinco factores. Los índices de confiabilidad (Lambda 2 de Guttman) oscilaron entre 0,64 y 0,89. Las correlaciones entre factores, corregidas por atenuación, variaron entre 0,05 y 0,64. La AFE de las puntuaciones factoriales indicó dos factores de segundo orden. Los resultados indicaron evidencia satisfactoria de validez de constructo y confiabilidad.

Palabras-clave: personalidad, trastornos de personalidad, terapia cognitiva-conductista, esquemas, creencias.


 

 

A teoria da terapia cognitiva busca explicar o desenvolvimento da personalidade e dos transtornos da personalidade a partir do funcionamento e integração dos sistemas cognitivo, afetivo, motivacional, fisiológico e comportamental (Fournier, DeRubeis, & Beck, 2012). Segundo Beck e Haigh (2014), no cerne dessa teoria está o pressuposto de que o sistema cognitivo é crucial para a adaptação e sobrevivência e de que falhas no processamento de informações seriam a causa da transição de um funcionamento adaptativo desses sistemas para um mal-adaptativo, característico das psicopatologias.

De acordo com Beck e Haigh (2014), o processamento de informações dependeria de um sistema dual, composto pelos subsistemas automático (primário) e reflexivo (secundário). Esse sistema é guiado por esquemas, “estruturas cognitivas complexas que processam estímulos, proveem significados e ativam sistemas psicobiológicos relacionados” (Beck & Haigh, 2014, p. 2). Teoriza-se que esquemas possuam um papel causal no desenvolvimento e manutenção dos transtornos mentais ao se tornarem negativamente enviesados, mal-adaptativos, rígidos e se autoperpetuarem (Beck & Dozois, 2011). Esses esquemas seriam desenvolvidos cedo na vida dos indivíduos por meio de um processo complexo envolvendo eventos ambientais, influências genéticas e o desenvolvimento de vieses na atenção, na memória e na interpretação de estímulos.

De acordo com Beck e Dozois (2011), há no sistema cognitivo diferentes níveis de conteúdos, desde esquemas, em um nível mais profundo, até crenças e pensamentos. Os esquemas contêm as percepções dos indivíduos sobre o self, as outras pessoas, memórias, objetivos e expectativas. As crenças são “representações de abstrações de conteúdo de esquemas (e.g., suposições, expectâncias, medos, regras e avaliações)” (Beck & Haigh, 2014, p. 2) e os pensamentos automáticos são “o fluxo de cognições (consideradas os subprodutos de esquemas ativados) que emergem no cotidiano e não são acompanhadas por deliberação direta ou volição” (Beck & Dozois, 2011, p. 3)2.

Conjectura-se que cada transtorno seja caracterizado, entre outros aspectos, por conteúdos cognitivos (e.g., esquemas, crenças e pensamentos automáticos) idiossincráticos a ele e influenciados por variações estabelecidas pela história de vida e características individuais (Beck, Davis, & Freeman, 2015). Chama-se de especificidade de conteúdo a essa hipótese que sustenta a ideia de que cada transtorno mental apresenta um perfil cognitivo singular, composto por conteúdos cognitivos com temáticas específicas (Beck & Dozois, 2011; Peres, 2008). Consequentemente, de acordo com essa hipótese, seria possível identificar para cada transtorno da personalidade perfis cognitivos específicos que distinguiriam os transtornos entre si (Beck et al., 2015).

Beck et al. (2015), no livro Terapia Cognitiva dos Transtornos da Personalidade (primeira edição em 1990), propuseram uma caracterização de 11 transtornos da personalidade a partir dos pressupostos teóricos da terapia cognitiva, quanto a esquemas e crenças relacionados à visão do self, do mundo, do futuro e das outras pessoas, além de estratégias comportamentais. Excetuando-se o transtorno da personalidade passivo-agressiva, 10 desses transtornos estão atualmente presentes na Seção II do DSM-5 (APA, 2013): paranoide, esquizoide, esquizotípica, antissocial, borderline, histriônica, narcisista, dependente, esquiva e obsessivo-compulsiva.

A partir desse trabalho, alguns grupos de pesquisadores começaram a desenvolver instrumentos psicométricos como meio de investigar as evidências de validade desse modelo teórico. Entre os aspectos investigados está a hipótese da especificidade de conteúdo cognitivo. Essa linha de pesquisa também objetiva que esses instrumentos integrem os procedimentos de avaliação na clínica psicológica de abordagem cognitiva ou cognitivo-comportamental, permitindo delinear o perfil cognitivo não apenas de pacientes com o diagnóstico de transtorno da personalidade, mas de pacientes com problemas considerados difíceis ou crônicos (Peres, 2008).

Foram identificados seis instrumentos relacionados aos perfis cognitivos dos transtornos da personalidade com algum estudo psicométrico publicado: Thoughts Questionnaire (Nelson-Gray, Huprich, Kissling, & Ketchum, 2004), Personality Belief Questionnaire – PBQ (Beck & Beck, 1995), Cuestionario Exploratorio de la Personalidad (Caballo, 2008), Questionário de Esquemas de Young (Young, 2003) e Personality Disorder Belief Questionnaire – PDBQ (Dressen, Arntz, & Weertman, 2004). No Brasil, os instrumentos de Beck e Beck (1995), Young (2003) e Caballo (2008) foram traduzidos e publicados anexados a edições de livros sem referenciarem quaisquer estudos brasileiros de adaptação ou validação. Além disso, nenhum teste nessa abordagem estava presente no Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos do Conselho Federal de Psicologia até o período de outubro de 2015.

No entanto, foi possível identificar pelo menos quatro estudos brasileiros dedicados ao desenvolvimento de instrumentais nessa área. Savoia et al. (2006) realizaram um estudo com o objetivo de adaptar o PBQ para o português brasileiro, no qual traduziram o instrumento e submeteram as versões em inglês e em português a um grupo de 21 pessoas bilíngues. Os índices de concordância entre as subescalas das duas versões variaram entre 0,75 e 0,89. Utilizando os itens adaptados por Savoia et al. (2006), Leite, Lopes, e Lopes (2012), conduziram uma análise fatorial exploratória a partir das respostas de 700 universitários a uma versão reduzida do PBQ, o Personality Belief Questionnaire Short Form – PBQ-SF (Butler, Brow, Beck, & Grishman, 2002). Os resultados indicaram nove fatores com índices de fidedignidade (alfa de Cronbach) entre 0,55 e 0,86. Posteriormente, a partir de uma amostra de 86 universitários, Leite, Lopes, Gonçalves, e Lopes (2014) encontraram correlações significativas (variando de 0,40 a 0,70) entre as subescalas do PBQ-SF e do Teste Pictórico de Perfis Cognitivos.

Em 2008, Peres conduziu um estudo psicométrico de desenvolvimento de um instrumento em português brasileiro com a finalidade de identificar perfis cognitivos dos transtornos da personalidade, o Questionário de Esquemas e Crenças da Personalidade (QECP). O instrumento foi elaborado a partir das versões originais cedidas pelos autores do PBQ (Beck & Beck, 1995) e do PDBQ (Dressen et al., 2004), dois questionários desenvolvidos independentemente, além da literatura específica da área. Peres analisou as propriedades psicométricas de três escalas para a avaliação de crenças e esquemas das personalidades dependente, histriônica e obsessivo- -compulsiva. As variáveis compuseram uma estrutura de três componentes semelhante ao modelo teórico com coeficientes de precisão superiores a 0,80. Uma análise de validade convergente apontou correlações entre os componentes do QECP (Peres, 2008) e fatores medidos pelo Inventário Fatorial da Personalidade – IFP (Pasquali, Azevedo, & Ghesti, 1999): Personalidade Dependente (QECP) e Denegação (0,37) e Afago (0,30) do IFP; Personalidade Obsessivo-Compulsiva (QECP) e Desempenho (0,32), Ordem (0,29) e Persistência (0,27) do IFP; e Personalidade Histriônica (QECP) e Exibição (0,65), Dominação (0,45), Desempenho (0,35) e Agressão (0,30) do IFP.

Dando continuidade ao trabalho iniciado por Peres (2008), o estudo aqui relatado teve como objetivo geral investigar a hipótese da especificidade de conteúdo do modelo teórico da terapia cognitiva para os transtornos da personalidade. Especificamente, objetivou-se analisar a estrutura fatorial de uma nova versão do QECP, ampliado para avaliar os esquemas cognitivos relacionados a nove transtornos da personalidade presentes na Seção II do DSM-5 (APA, 2013): antissocial, limítrofe, dependente, esquiva, esquizoide, histriônica, narcisista, obsessivo- compulsiva e paranoide.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo 437 indivíduos, com média de idade de 28,1 anos (DP=8,6), sendo a maioria do sexo feminino (75,7%) e estudantes de ensino superior (88,3%) dos cursos de administração (17,1%), direito (8,3%), pedagogia (40,3%), serviço social (22,1%), análise de sistemas (5,5%), gestão de recursos humanos (6,8%) e de cursos profissionalizantes e técnicos (8,9%) de instituições privadas e públicas do Distrito Federal – os 2,8% restantes eram docentes desses cursos.

Instrumentos

O QECP foi elaborado por Peres (2008) a partir do Personality Belief Questionnaire (Beck & Beck, 1995) e do Personality Disorder Belief Questionnaire (Dreessen et al., 2004), cedidos pelos autores para essa finalidade. Os itens desses instrumentos foram traduzidos para o português brasileiro, e outros itens foram criados para compor a versão com 138 itens do QECP administrada aos participantes do estudo. Pretendeu-se avaliar nove fatores teóricos, correspondentes às personalidades antissocial (16 itens), borderline (sete itens), dependente (22 itens), esquiva (20 itens), esquizoide (14 itens), histriônica (14 itens), narcisista (14 itens), obsessivo-compulsiva (11 itens) e paranoide (20 itens).

Procedimentos

O QECP foi administrado por um dos pesquisadores em salas de aula de duas faculdades e de um instituto tecnológico localizados no Distrito Federal no Brasil. Antes de iniciar a aplicação do instrumento, os participantes foram orientados quanto aos objetivos da pesquisa e ao sigilo dos dados e de sua identidade e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Análise de Dados

Inicialmente, realizou-se uma análise exploratória sobre a frequência de dados ausentes, a amplitude entre as categorias de resposta, a normalidade da distribuição por meio do teste Shapiro-Wilk, a assimetria e a curtose. Para aproximar a distribuição dos dados à normalidade, aplicou-se a transformação que se mostrou mais eficiente para cada variável: raiz quadrada, logaritmo de base 10 ou inversa (Osborne, 2013).

Para investigar a estrutura fatorial do QECP, inicialmente, foi realizada uma análise paralela (AP) por meio do programa Rawpar (O'Connor, 2000). Fundamentando-se em informações obtidas na AP, realizou-se uma análise fatorial exploratória (AFE) utilizando o software SPSS 21 e adotando o método de fatoração dos eixos principais com rotação oblíqua Promax. Foram retidos itens cuja carga no fator principal tivesse valor absoluto superior a 0,32 e que não apresentassem carga fatorial complexa (considerando uma diferença de 0,10 entre os valores absolutos das cargas) (Laros, 2012).

Depois da rotação, foi avaliada a consistência interna dos fatores por meio do índice de fidedignidade Lambda 2 de Guttman (?2). Também foi calculado, por meio da Equação 1, o valor-p ajustado para itens politômicos dos itens de todos os fatores. Os valores para o valor-p ajustado variam entre 0 (zero) e 1 (um), sendo que itens com valores mais próximos de 1 são de mais fácil endosso.

 

 

Em sequência, foram estimadas as correlações corrigidas para atenuação (Osborne, 2013) entre os fatores. Considerando as correlações entre os fatores, explorou- se uma solução com fatores de segunda ordem. Adotando-se o método dos eixos principais com rotação oblíqua Promax, foi realizada uma análise com os escores fatoriais dos fatores de primeira ordem correlacionados.

 

Resultados

Os dados ausentes de cada variável (M=0,62%; DP=0,44%) foram substituídos utilizando-se o método tendência linear no ponto (linear trend at a point) do SPSS 21. O valor médio de assimetria dos itens era de 0,98 (maior=3,53; menor=-1,56; DP=0,96) e o de curtose, 1,08 (maior=14,02; menor=-1,30; DP=2,91). Os testes de normalidade indicaram que os itens não apresentavam uma distribuição normal. Depois das transformações para a aproximação dos dados à normalidade, o novo valor médio de assimetria dos itens encontrado foi de 0,40 (maior=2,23; menor=-0,84; DP=0,60) e o de curtose foi de -1,01 (maior=3,31; menor=-1,79; DP=0,95).

A AP indicou sete fatores na matriz de dados empírica com autovalores superiores aos autovalores no percentil 95 das matrizes com dados aleatórios simulados. Considerando esses resultados, a matriz de correlações foi fatorada para uma solução com sete fatores. No entanto, essa solução não se revelou consistente do ponto de vista estatístico, devido à presença de fatores sem um número representativo de itens (pelo menos três com cargas fatoriais superiores a 0,32) ou do ponto de vista teórico, pois os fatores não possibilitavam uma interpretação condizente com os pressupostos teóricos que subsidiaram a elaboração do instrumento. Por isso, de maneira iterativa, exploraram-se soluções com menor quantidade de fatores. A estrutura fatorial mais consistente do ponto de vista teórico e estatístico foi a de cinco fatores.

As Tabelas 1 a 5 apresentam os cinco fatores obtidos a partir da AFE, com seus respectivos índices de fidedignidade (λ2). Para cada fator também são apresentadas as seguintes informações dos itens: resumo do texto dos itens; fator teórico (i.e., o fator que se pretendia medir quando da elaboração do item); carga fatorial; comunalidade; correlação item-resto; e valor-p ajustado para itens politômicos. Os índices de fidedignidade obtidos mostraram- se adequados, com exceção do índice do Fator 5, considerado baixo (Urbina, 2014): 0,89 (Fator 1); 0,89 (Fator 2); 0,86 (Fator 3); 0,78 (Fator 4) e 0,64 (Fator 5). Os valores médios das cargas dos itens nos fatores variaram entre 0,42 (Fator 5) e 0,54 (Fator 2). O Fator 2 apresentou o valor médio mais alto de correlação item-resto (0,53) e o Fator 5 apresentou o menor valor (0,37). O Fator 4 apresentou maior valor médio de comunalidade (0,39) e o Fator 5, o menor (0,26).

 

 

 

 

 

 

A matriz das correlações entre os cinco fatores de primeira ordem é apresentada na Tabela 6. Verifica-se que os fatores são correlacionados entre si, com exceção do Fator 5. Esses resultados suscitaram que fosse realizada uma análise fatorial para explorar um modelo de segunda ordem. Para tanto, utilizaram-se os escores fatoriais dos Fatores 1, 2, 3 e 4. Os resultados apontaram dois fatores de segunda ordem (Fator I e Fator II) e são apresentados na Tabela 6: o Fator I, agrupando os Fatores 2 e 3, e o Fator II, agrupando os Fatores 1 e 4.

 

 

 

Discussão

De maneira geral, os resultados demonstraram haver evidências de fidedignidade e de validade de construto dos escores do QECP, permitindo discutir empiricamente a hipótese da especificidade de conteúdo (Beck & Dozois, 2011), objetivo de investigação deste estudo. A seguir, são apresentadas definições teóricas para cada fator encontrado e é feita uma discussão dos resultados à luz da teoria e dos achados empíricos de outros estudos.

O Fator 1 (Tabela 1) é composto por 28 itens teoricamente correspondentes aos perfis cognitivos das personalidades histriônica (11 itens), narcisista (sete itens) e antissocial (10 itens), e apresenta adequado índice de fidedignidade (λ2=0,89). Embora não se esperasse que esses três fatores teóricos pudessem se agrupar em somente um fator de primeira ordem, o resultado encontra corroboração na literatura. Trull, Goodwin, Schopp, Hillenbrand, e Schuster (1993) mencionam que é algo comum os escores de escalas relacionadas aos transtornos da personalidade resultarem em uma estrutura fatorial geralmente correspondente aos clusters do DSM (APA, 2013). O Fator 1 é semelhante ao proposto pelo DSM-5, denominado de Cluster B. Tal agrupamento caracteriza indivíduos cujos comportamentos são “dramáticos, emotivos ou imprevisíveis” (APA, 2013, p. 646). A média para o valor-p ajustado dos itens é de 0,35 (DP=0,09), indicando que, em geral, foram de difícil endosso pelos participantes.

O Fator 2 (Tabela 2) apresenta adequado índice de fidedignidade (λ2=0,89) e agrupa 18 itens teoricamente correspondentes à personalidade dependente. O conteúdo dos itens é caracterizado por temas, como subvalorização, incompetência, medo do abandono e da solidão, instabilidade e dependência dos demais. Os itens desse fator têm uma média para o valor-p equivalente a 0,39 (DP=0,06), demonstrando, em geral, terem sido de difícil endosso para os participantes, em nível semelhante aos itens do Fator 1.

O Fator 3 (Tabela 3) tem adequado índice de fidedignidade (λ2=0,86) e é composto por 15 itens teoricamente relacionados aos perfis cognitivos da personalidade esquiva (sete itens), borderline (três itens), paranoide (três itens) e esquizoide (dois itens). O conteúdo do conjunto de itens aponta para temas relacionados a uma visão do self como indivíduos solitários, inadequados socialmente, desinteressantes, inferiores e indignos de serem amados. Os itens também revelam estratégias comportamentais de evitação e esquiva. Consequentemente, pode-se dizer que esse fator está predominantemente relacionado à personalidade esquiva, cujas características são as mais bem captadas por ele. A média do valor-p dos itens é de 0,35 (DP=0,06), demonstrando que, em geral, seu endosso tem dificuldade semelhante ao dos itens dos Fatores 1 e 2.

O Fator 4 (Tabela 4) possui um adequado índice de fidedignidade (λ2=0,78) e é composto por 12 itens com fator teórico correspondente ao perfil cognitivo da personalidade paranoide. O conteúdo dos itens apresenta temas relacionados à hipervigilância e a uma desconfiança essencial, no sentido em que as outras pessoas são vistas como desonestas, enganadoras, discriminatórias e veladamente manipuladoras. O mundo é percebido como injusto, imprevisível, exigente e hostil. A média para o valor-p ajustado dos itens é de 0,53 (DP=0,11), indicando que, em geral, foram de mais fácil endosso pelos participantes que os itens dos Fatores 1, 2 e 3.

Já o Fator 5 (Tabela 5) tem um baixo índice de fidedignidade (λ2=0,64) e é composto por seis itens relacionados ao fator teórico da personalidade obsessivo-compulsiva. O conteúdo dos itens revela uma consciência perfeccionista e detalhista, necessidade de controle, organização e sistematização. O valor-p dos itens, média de 0,65 (DP=0,08), revela que esse é o fator de mais fácil endosso, com dois itens cujos valores estavam acima de 0,70.

Por sua vez, os resultados da AFE de segunda ordem apontaram dois fatores. O Fator I agrega os esquemas e as crenças relacionados às personalidades dependente (Fator 2) e esquiva (Fator 3). No modelo do DSM, esses transtornos formam o Cluster C, juntamente com a personalidade obsessivo-compulsiva. São protótipos da personalidade que caracterizam indivíduos medrosos ou ansiosos. Já o Fator II de segunda ordem agrega os Fatores 1 e 4 de primeira ordem, ou seja, as personalidades antissocial, narcisista, histriônica e paranoide. Esses resultados são semelhantes aos achados em outros estudos.

Embora não se tenha identificado na literatura uma estrutura fatorial exatamente semelhante à descrita aqui, pode-se dizer que esses resultados encontram ressonância em outros estudos. Arntz, Dressen, Schouten, e Weertman (2004) chegaram a seis componentes com altos índices de fidedignidade: esquiva, dependente, obsessivo-compulsiva, paranoide, histriônica e borderline. Fournier et al (2012) chegaram a uma estrutura com sete fatores: dependente e esquiva, obsessivo-compulsiva, narcisista (que incluiu itens da personalidade antissocial), passivo-agressiva, paranoide, histriônica e esquizoide. No Brasil, Leite et al. (2012) chegaram a nove fatores, dois deles com coeficientes de fidedignidade abaixo de 0,7: paranoide, dependente, narcisista, obsessivo-compulsiva, esquiva, histriônica, passivo-agressiva, antissocial e equizoide/esquizotípica.

Trull et al. (1993) e Turkcapar et al. (2007) realizaram estudos com amostras majoritariamente compostas por estudantes, situação semelhante à descrita aqui. Nos dois estudos, foi realizada uma AFE a partir dos escores totais em nove subescalas do PBQ (Beck & Beck, 1995), que apontou uma solução com dois fatores. O primeiro reuniu as subescalas esquiva e dependente, de maneira similar ao nosso Fator I, e foi intitulado de “apego ansioso” por Trull et al. (1993). O segundo, que agrupou as subescalas passivo-agressiva, obsessivo-compulsiva, antissocial, narcisista, esquizoide e paranoide, é semelhante ao nosso Fator II (com exceção da presença das subescalas obsessivo-compulsiva, esquizoide e passivo-agressiva, esta última não avaliada pelo QECP) e foi denominado de “dominância interpessoal” por Trull et al. (1993). No estudo de Fournier et al. (2012), os itens das personalidade esquiva e dependente também se reuniram em um fator, da mesma forma que os itens das personalidades narcisista e antissocial.

Aponta-se aqui quatro questões que devem ser exploradas futuramente, para se compreender melhor os resultados relatados e aprimorar o desenvolvimento da medida. A primeira diz respeito à desejabilidade social, o que poderia explicar, em parte, os resultados do Fator 5, por exemplo. Segundo a literatura, os traços que caracterizam a personalidade obsessivo-compulsiva são amplamente reforçados pela sociedade, como dedicação ao trabalho, produtividade, eficiência, perfeccionismo, detalhismo, organização e competência (Caballo, 2008). É razoável supor que, em um ambiente acadêmico, a valorização desses traços possa ser ainda mais socialmente valorizada. Isso poderia explicar por que os itens desse fator foram mais facilmente corroborados pelos participantes do que os de outros fatores.

A segunda questão diz respeito à validade de conteúdo do instrumento, ou seja, ao sucesso na elaboração dos itens, de forma que a operacionalização dos construtos seja capaz de captar todas as nuances dos fatores teóricos destacadas na literatura. Esse problema pode ter um efeito sobre os resultados dos itens elaborados para mensurar os esquemas dos fatores teóricos esquizoide e borderline. A maioria dos itens desses fatores não permaneceu na estrutura fatorial depois da AFE, aparecendo apenas marginalmente no Fator 3. O Fator 5 também pode ter sido impactado por esse problema. A quantidade reduzida de itens e, possivelmente, o baixo índice de fidedignidade do Fator 5, podem estar relacionados ao fato de não terem sido elaborados itens que explorassem o fator teórico com temáticas para além da consciência perfeccionista (e.g., devoção a princípios morais, éticos ou religiosos e hierarquia). Arntz et al. (2004) também levantam essa questão como um problema potencial.

A terceira questão está ligada à hipótese de que as respostas, por serem provenientes de uma amostra não clínica, podem não ter oferecido variabilidade suficiente para distinguir os fatores teóricos. Por um lado, essa hipótese poderia ajudar a explicar a não formação de fatores para as personalidades histriônica e esquizoide e por que os fatores teóricos antissocial, histriônica e narcisista se agruparam em um mesmo fator. Os valores-p dos itens também podem estar relacionados a essa questão. É razoável supor que, como os itens representam conteúdos mal-adaptativos (i.e., mais para o extremo patológico dos traços latentes), eles deveriam ser de difícil endosso pelos participantes – a não ser nas situações em que a desejabilidade social estivesse exercendo influência maior.

Por outro lado, o uso de amostras não clínicas tem a vantagem potencial de permitir uma visão dimensional da personalidade. Considera-se que os traços característicos dos transtornos da personalidade se manifestam em um contínuo, sendo o extremo mais saudável o estilo de personalidade, e o extremo mais patológico o protótipo de determinado transtorno (Bhar, Beck, & Butler, 2012). Nessa linha, Beck e Dozois (2011) defendem um modelo de diátese-estresse para as psicopatologias, que considera que os esquemas mal-adaptativos da personalidade se encontram latentes mesmo em indivíduos sem problemas clínicos ou diagnóstico de alguma psicopatologia.

A quarta questão relaciona-se à necessidade de se investigar a associação entre os construtos da teoria cognitiva dos transtornos da personalidade e os construtos do modelo dimensional baseado em traços da personalidade mal-adaptativos proposto na Seção III do DSM-5 (APA, 2013; Krueger & Markon, 2014). Bhar et al. (2012) defendem que instrumentos desenvolvidos a partir da teoria cognitiva mantêm-se relevantes ante essa mudança. Furnham, Milner, Akhta, e Fruyt (2014) identificaram o PBQ (Beck & Beck, 1995) como um dos instrumentos desenvolvidos para avaliar os transtornos da personalidade no novo modelo do DSM-5.

Conclui-se que os resultados apontam para a possibilidade de se avaliar conjuntos de esquemas e crenças mal-adaptativos da personalidade proeminentes em cada indivíduo e, assim, traçar perfis cognitivos, mesmo sem um diagnóstico de transtorno da personalidade. Quanto à hipótese da especificidade cognitiva dos transtornos da personalidade, a estrutura fatorial encontra respaldo nas formulações teóricas existentes na literatura. No entanto, a composição da amostra pode ter sido uma importante limitação deste estudo, uma vez que é não clínica, majoritariamente do sexo feminino e integralmente proveniente do Distrito Federal.

A agenda de pesquisa inclui estudos de validade convergente com outras medidas e modelos teóricos acerca da personalidade e dos transtornos da personalidade, como o modelo dos cinco fatores da personalidade e o modelo alternativo do DSM-5 para os transtornos da personalidade (Furnham et al., 2014; Gore & Wildiger, 2013). Análises psicométricas complementares, como a análise fatorial confirmatória e o uso de modelos da teoria de resposta ao item, também integram essa agenda.

 

Referências

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recebido em julho de 2015
reformulado em novembro de 2015
aprovado em dezembro de 2015

 

 

Sobre os autores

Alexandre José de Souza Peres: é psicólogo, graduado pela Universidade Federal de Uberlândia, mestre e doutorando em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília. Desde 2009, é pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Jacob Arie Laros: é professor associado IV do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília e coordenador do laboratório Métodos e Técnicas de Avaliação.


1Endereço para correspondência: Diretoria de Estudos Educacionais, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Texeira (INEP), SIG Quadra 04, Lote 327, Zona Industrial, 70610-908, Brasília-DF. E-mail: alexandre.peres@gmail.com


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