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Avaliação Psicológica

Print version ISSN 1677-0471On-line version ISSN 2175-3431

Aval. psicol. vol.15 no.2 Itatiba Aug. 2016

 

 

Estudo da aplicação coletiva de um teste de percepção emocional em surdos

 

Study of the collective administration of an emotional perception test in deaf people

 

Estudio de la aplicación colectiva de una prueba de percepción emocional en sordos

 

 

Fabiano Koich Migue1,IAna Carolina ZuanazziII; Renan de LimaIJessica Cristina EurichICarolina Araújo TavaresI

IUniversidade Estadual de Londrina
IIUniversidade de São Paulo

 

 


RESUMO

A pesquisa investigou o funcionamento de um teste de percepção de emoções em pessoas surdas, assim como sua aplicação coletiva. Participaram 13 surdos e 25 não surdos que responderam ao teste apresentado em projetor multimídia, e 65 não surdos que responderam ao teste individualmente em computador. A idade média foi 17,03 (DP=2,11). Os resultados mostraram que houve perda de desempenho nos dois grupos que usaram projetor, embora os surdos tenham demonstrado capacidade de perceber emoções levemente superior não significativa. Os surdos também apresentaram menor capacidade de identificar emoções autênticas ou falseadas. Discute-se que esses resultados parecem estar relacionados à utilização da língua de sinais. Além disso, os surdos apresentaram maiores distorções na percepção, sugerindo interesse em socialização, preocupação com autonomia e pensamentos agressivos, corroborando outros estudos. Houve funcionamento diferencial de itens, que se discute em relação às diferenças encontradas.

Palavras-chave: expressões faciais; deficiente auditivo; teoria de resposta ao item; avaliação psicológica.


ABSTRACT

The research investigated the functioning of an emotional perception test in deaf people, as well as its collective administration. Participants included 13 deaf and 25 hearing people who responded to the test shown on a multimedia projector, and 65 hearing people who responded to the test individually on a computer. The mean age was 17.03 (SD=2.11). Results showed that there was performance loss in both groups using multimedia projector, although the deaf participants demonstrated a non-significant but slightly higher ability to perceive emotions. Deaf participants also displayed lower ability to identify authentic or false emotions. We contend that these results appear to be related to the use of sign language. In addition, the deaf participants had greater perception distortions, suggesting interest in socializing, concerns for autonomy and aggressive thoughts, corroborating other studies. There was differential item functioning, discussed in relation to the differences found.

Keywords: facial expressions; hearing disorders; item response theory; psychological assessment.


RESUMEN

El estudio investigó el funcionamiento de una prueba de percepción de las emociones en las personas sordas, así como su administración colectiva. Los participantes fueran 13 personas sordas y 25 no sordos que respondieron a la prueba presentada por proyector multimedia, y 65 no sordos que respondieron a la prueba individualmente en la computadora. La edad media fue de 17,03 (DP=2,11). Los resultados mostraron pérdida de rendimiento en los dos grupos a partir de proyector, aunque los sordos han demostrado capacidad un poco más alta de percibir emociones, no significativa. Las personas sordas también tenían menor capacidad para identificar las emociones auténticas o falsas. Se argumenta que estos resultados parecen estar relacionados con el uso de la lengua de signos. Además, los sordos tuvieron mayores distorsiones en la percepción, lo que sugiere interés en la socialización, preocupación con la autonomía y pensamientos agresivos, corroborando otros estudios. Había funcionamiento diferenciales de los ítems, que se analizan en relación a las diferencias encontradas.

Palabras-clave: expresiones faciales; deficiente auricular; teoría de respuesta al ítem; evaluación psicológica.


 

 

A surdez é considerada uma perda profunda da capacidade normal de audição, podendo ser total ou parcial, e adquirida ou congênita. Embora historicamente o surdo tenha sido visto como portador de uma patologia e removido do contato social, atualmente a surdez é reconhecida como uma deficiência que pode influenciar no desenvolvimento social e psicológico (Beltrami & Moura, 2015; Santana, 2007).

Em 2002, a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) foi reconhecida como língua oficial no país, o que foi celebrado pela comunidade surda como uma grande conquista (Albres & Oliveira, 2013; Brasil, 2002; Capovilla, 2000). Junto ao reconhecimento da LIBRAS, o modelo educacional bilíngue passou a ser utilizado com objetivo de integração entre surdos-surdos e surdos-ouvintes, ensinando a LIBRAS como língua materna, e o português como segunda língua. A implementação do modelo bilíngue teve repercussões não apenas educacionais, mas também sociais, uma vez que a comunidade surda passou a ganhar mais espaço em lutas pela igualdade social e políticas públicas (Luz, 2013). Entre os direitos conquistados, pode-se citar a inclusão dos surdos na lei de cotas (Brasil, 1991) que visa promover a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, variando entre 2% a 5% o número de beneficiários, de acordo com o porte da empresa. Outro avanço nesse sentido foi a criação do exame de proficiência em LIBRAS pelo Ministério da Educação (MEC, 2010).

No âmbito da avaliação psicológica, alguns estudos já foram conduzidos buscando verificar em amostras surdas o funcionamento de testes psicológicos desenvolvidos originalmente para ouvintes. Frequentemente, tais pesquisas também analisam diferenças psicológicas provenientes do desenvolvimento ou do modelo educacional. Por exemplo, Angelini e Oliveira (2003) investigaram a aplicabilidade do teste das manchas de tinta de Zulliger em amostra de surdos, composta por 10 pessoas com idades entre 21 e 33 anos. A aplicação mostrou-se mais extensa do que o padrão, devido ao fato de haver tradução para LIBRAS e o aplicador precisar anotar tudo, como é a padronização do teste. Os principais resultados encontrados apontaram para uma adequada percepção do conjunto, organização e raciocínio lógico coerente e ordenado. Em relação às questões emocionais, houve indicadores de prejuízos no controle geral sobre reações afetivo-emocionais, além da menor capacidade para perceber os eventos de forma objetiva, apresentando distorção das emoções. Os indivíduos avaliados demonstraram dificuldades afetivas e necessidade de afeto e apoio. Aliado a isso, apresentaram dificuldades para estabelecer relações de empatia, tendendo a expressar reações emocionais intensas, descontroladas e antagônicas.

Um estudo realizado por Cardoso e Capitão (2007) objetivou verificar evidências de validade do Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister no contexto de surdez e possíveis influências dos modelos educacionais dessa população. Para tanto, compararam a frequência de alguns indicadores do instrumento em 37 crianças ouvintes e 81 surdas, com faixa etária entre seis e 12 anos. Os autores verificaram que o grupo de crianças surdas apresentou maior frequência de indicadores de ansiedade do que o grupo de ouvintes. Os ouvintes, por sua vez, apresentaram maior sofisticação cognitiva quando comparados aos surdos.

Outro estudo de Cardoso e Capitão (2009) utilizou o instrumento de Desenho da Figura Humana (DFH) na avaliação das 81 crianças surdas comparadas com 37 ouvintes, utilizando para tal fim os indicadores emocionais e cognitivos de Koppitz. Os resultados não demonstraram diferenças estatisticamente significativas na comparação de médias dos indicadores do DFH entre surdos e ouvintes.

A pesquisa de Meyer (2013) teve como objetivo avaliar a aprendizagem, o vocabulário e a capacidade conceitual em alunos surdos, por meio de uma adaptação do teste WISC-III para LIBRAS. Pela comparação com um grupo de alunos não surdos, notou-se que os alunos com deficiência auditiva apresentaram dificuldades de domínio de assuntos mais abstratos, menor elaboração de respostas, ausência de algumas palavras do português em LIBRAS, bem como um melhor desempenho em palavras referentes a ideias concretas, entre outros. Por meio dos estudos, pode-se concluir que o baixo desempenho no subteste Vocabulário estava atrelado a diversas variáveis, como um ambiente educativo ou familiar limitado, uma vez que muitos pais não têm o domínio de LIBRAS, pouco estimulando o desenvolvimento de seus filhos.

Considerando que o estudo de testes já existentes com amostras surdas pode verificar sua aplicabilidade para esse contexto, a presente pesquisa teve como objetivo estudar o funcionamento de um teste de percepção de emoções em rostos de pessoas, que é uma capacidade da inteligência emocional e um importante aspecto do funcionamento social (Mayer, Salovey, Caruso, & Cherkasskiy, 2011). Como os sinais em LIBRAIS que designam emoções são expressados por meio de gestos e movimentos faciais que espelham a própria emoção, elaborou-se a hipótese inicial de que os surdos apresentariam melhor desempenho em relação aos não surdos quanto à percepção emocional. Pesquisas nesse sentido já foram desenvolvidas internacionalmente, e os resultados não são consistentes. Alguns apresentam que crianças surdas não se diferem de crianças ouvintes na percepção de emoções (Most & Aviner, 2009; Ziv, Most, & Cohen, 2013), enquanto outros resultados mostram que surdos apresentam menor nível de empatia (Peterson, 2016).

Originalmente, esta pesquisa tinha como objetivo comparar apenas o desempenho dos surdos com não surdos. Contudo, devido a restrições no calendário da instituição para surdos, a aplicação somente pode ocorrer de maneira coletiva. Como a percepção emocional depende fortemente da percepção visual, um segundo objetivo foi acrescentado, que trata de comparar as formas coletiva e individual de aplicação do teste. Esse segundo objetivo foi adicionado, pois o teste de percepção emocional utilizado foi originalmente desenvolvido para aplicação individual, e a modalidade de aplicação poderia influenciar nos resultados encontrados.

São escassas as pesquisas que comparam o desempenho em testes na sua versão individual e coletiva. No Brasil, a técnica das manchas de tinta de Zulliger está disponível na versão individual, em cartões impressos, ou coletiva de aplicação, com projetor, porém, nos manuais dos testes de ambos os sistemas, não foi possível encontrar estudos comparando as duas formas de aplicação (Vaz, 2004; Villemor-Amaral & Primi, 2012). Uma pesquisa desenvolvida na Argentina comparou as duas versões do mesmo teste e encontrou elevações e diminuições significativas na frequência de um número grande de variáveis do teste (Astori & Zdunic, 2003), sugerindo que há diferenças na percepção do estímulo visual dependendo da modalidade de aplicação.

 

Método

Participantes

Os 103 participantes desta pesquisa foram divididos em três grupos: 13 surdos com surdez total congênita que responderam ao teste coletivamente, 25 não surdos que responderam ao teste coletivamente e 65 não surdos que responderam ao teste individualmente. A média de idades dos surdos foi de 17,03 (DP=2,11), sendo 6 (46,2%) do sexo feminino, todos estudantes de uma escola pública para surdos. A média de idades dos estudantes não surdos na aplicação coletiva foi de 17,74 (DP=0,72), sendo 10 (40,0%) do sexo feminino, todos estudantes de uma escola pública. A média de idades dos não surdos na aplicação individual foi de 17,44 (DP=0,60), sendo 45 (69,2%) do sexo feminino, todos estudantes de ensino médio, tanto de escolas públicas quanto particulares.

Instrumentos

A avaliação da percepção emocional foi feita por meio do teste informatizado de Percepção de Emoções Primárias (PEP). O PEP apresenta 38 vídeos de rostos de pessoas expressando emoções, sendo que os três primeiros são utilizados como exemplos da tarefa a ser executada. Para cada vídeo, o participante deve assinalar qual ou quais emoções estão presentes, de um rol de oito: alegria, amor, medo, surpresa, tristeza, nojo, raiva e curiosidade. Além disso, deve assinalar se a emoção expressa é autêntica ou falseada. Pesquisas anteriores foram desenvolvidas com o PEP, que mostraram adequadas características psicométricas e validade com construtos relacionados e divergentes (Miguel, Finoto, & Miras, 2013; Miguel, Ogaki, Inaba, & Ribeiro, 2013; Miguel & Pessotto, 2016; Miguel & Primi, 2014).

Para a presente pesquisa, foram utilizados três escores globais do PEP. O primeiro escore, percepção geral (Percepção), é a pontuação total do teste, indicando a capacidade para identificar os diversos tipos de emoções em seus variados níveis de expressão. O segundo escore, distorção geral (Distorção), é uma pontuação que representa o nível de atribuição de emoções discrepantes (por exemplo, atribuir raiva ao vídeo de uma pessoa feliz, rindo). O terceiro escore (VF) diz respeito à identificação da expressão emocional como sendo autêntica ou falseada. Esses três escores, calculados pelo método de Rasch, foram transformados em escore z (média 0, desvio padrão 1) com base na amostra normativa do teste de 1061 pessoas.

Além disso, para se compreender eventuais distorções na percepção, a pontuação total de cada uma das oito emoções também foi analisada. As emoções foram pontuadas de acordo com a frequência em que aparecem no teste. Dessa maneira, uma pontuação de 0 para alegria indica que o participante percebeu o número exato de emoções alegria presente no teste; uma pontuação +5 indica que o participante percebeu cinco emoções alegria a mais do que verdadeiramente existem no teste; e uma pontuação -3 indica que o participante percebeu três emoções alegria a menos do que realmente existem no teste.

Procedimentos

A pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE 20786713.8.0000.5231) e foi concedida autorização da diretoria das escolas para aplicação da pesquisa. Para as aplicações coletivas, foi utilizado projetor multimídia para projetar em uma superfície lisa e branca. A tela projetada ficou com largura aproximada de 2 metros e usou-se a maior intensidade possível de brilho e contraste para que o máximo de detalhes pudesse ser percebido. Os participantes estavam sentados em carteiras e receberam folhas de resposta com opções para assinalar verdadeiro ou falso e as oito emoções. As instruções foram dadas coletivamente e, no caso da amostra de surdos, uma professora ouvinte bilíngue fazia a tradução.

A amostra de aplicação individual foi extraída do banco de dados de pesquisas de normatização do PEP, buscando refletir a distribuição de faixa etária e escolaridade das amostras coletivas. Originalmente, as aplicações individuais haviam sido feitas no sistema on-line de pesquisas com o teste.

Para se comparar os níveis de desempenho dos três grupos no teste, foi utilizada análise de variância one- -way com teste post hoc de Bonferroni. Além disso, a fim de verificar possíveis alterações no funcionamento do PEP dependendo do contexto em que foi utilizado, foi realizada análise de funcionamento diferencial do item (DIF), comparando-se surdos com não surdos em aplicação coletiva, e também comparando-se aplicação coletiva com individual em sujeitos não surdos. Foram 35 itens relacionados à percepção de emoções verdadeiras ou falsas (VF). Como em cada vídeo pode haver mais de uma expressão emocional e mais de uma distorção, o total de itens nesses casos foi de 45 itens para Percepção e 94 itens para Distorção.

 

Resultados

Inicialmente foram calculadas as estatísticas descritivas para as três pontuações gerais do PEP e para a frequência de cada uma das emoções. Os resultados estão apresentados na Tabela 1.

 

 

Considerando que as pontuações globais do PEP estão em escore z, é possível perceber que houve variabilidade nos resultados, com todos os grupos contendo participantes ao longo de diversos níveis do construto. Duas exceções puderam ser encontradas, que foram os casos do escore de distorção, em que a média dos surdos foi acima de 1 desvio padrão, e do escore de percepção de emoções autênticas e falseadas, em que a média dos surdos foi abaixo de 1 desvio padrão. Portanto, embora haja variabilidade nesses escores, a distribuição mostrou-se acima da média para o primeiro escore, e abaixo da média para o segundo. A Figura 1 ilustra a distribuição das médias nos três escores.

 

 

A análise ANOVA one-way acusou resultados significativos para todas as pontuações estudadas, com exceção da frequência da emoção Amor, indicando que os grupos não são diferentes entre si. A análise post hoc de Bonferroni facilita identificar a diferenciação, e os resultados são apresentados na Tabela 2.

 

 

Em relação à capacidade de perceber emoções, pode-se perceber que os 13 surdos não se diferenciaram significativamente dos não surdos, seja na aplicação coletiva (n=25; p=1,000), seja na aplicação individual (n=65; p=0,446). Porém, houve diferenciação (p=0,047) entre os 25 ouvintes de aplicação coletiva e os 65 de aplicação individual, sendo que os últimos mostraram melhor desempenho.

No que diz respeito às distorções e à capacidade de reconhecer emoções autênticas e falseadas, os surdos se diferenciaram dos ouvintes, tanto na aplicação coletiva (p=0,002 para Distorção; p=0,003 para VF) quanto na individual (p=0,004 para Distorção; p=0,000 para VF). Os surdos mostraram um nível maior de distorções e um nível menor de percepção de emoções verdadeiras ou falsas. Em relação aos ouvintes, não houve diferenciação significativa entre as aplicações coletiva e individual nesses dois escores (p=1,000 para Distorção; p=1,000 para VF).

Examinando as frequências individuais das emoções, pode-se perceber que os surdos tenderam a atribuir mais alegria, mais medo, mais tristeza e menos surpresa do que os ouvintes (tanto de aplicação coletiva quanto individual). Os 13 surdos também atribuíram mais raiva do que os 65 ouvintes na aplicação individual (p=0,013) e atribuíram mais curiosidade dos que os 25 ouvintes na aplicação coletiva (p=0,002).

Também foi realizada análise de funcionamento diferencial do item (DIF) para os três escores gerais do PEP. Dos 45 itens de percepção emocional, 14 (31,1%) apresentaram diferença significativa na dificuldade ao se comparar os 13 surdos com 25 não surdos (ambos em aplicação coletiva), sendo que sete itens apresentaram dificuldades menores para os surdos e os outros sete apresentaram dificuldades maiores para os surdos. Comparando os 25 ouvintes de aplicação coletiva com 65 ouvintes de aplicação individual, sete itens (15,6%) apresentaram diferença significativa na dificuldade, sendo que três foram mais fáceis para a aplicação coletiva e quatro foram mais fáceis para a aplicação individual.

No que diz respeito às distorções, do total de 94 itens, 10 (10,6%) apresentaram funcionamento diferencial ao se comparar os 13 surdos com 25 não surdos na aplicação coletiva, sendo que três itens foram mais fáceis para os surdos, indicando maior probabilidade de cometerem uma distorção, e os outros sete foram mais fáceis para os não surdos. Já ao se comparar aplicação coletiva com individual, oito (8,5%) apresentaram DIF, sendo que seis itens tiveram menor dificuldade na aplicação coletiva, indicando maior facilidade de distorção.

Finalmente, para os 35 itens de identificação de expressão emocional autêntica ou falseada, dois itens (5,7%) apresentaram DIF ao se comparar os 13 surdos com 25 não surdos na aplicação coletiva, sendo que um beneficiava os surdos, enquanto o outro beneficiava os não surdos. Na análise de aplicação coletiva (n=25) comparada com individual de não surdos (n=65), apenas um item (2,9%) apresentou DIF, com menor dificuldade para a aplicação coletiva.

 

Discussão

Na capacidade geral de perceber emoções, as médias das três amostras foram inferiores a zero (em escala z). Contudo, tal resultado não parece sugerir dificuldades na identificação das emoções, uma vez que as médias ainda estavam acima de -1 desvio padrão. De fato, esses escores refletem um desempenho típico da faixa etária estudada. Estudos preliminares com o PEP mostraram que o ápice do desenvolvimento da percepção emocional se encontra ao redor dos 20 anos de idade (Oliveira, Huss, Zuanazzi, & Miguel, 2015). Ademais, todas as amostras tiveram ampla variabilidade na capacidade. Foi possível perceber que os surdos apresentaram uma média ligeiramente maior que os não surdos quando expostos a situação semelhante de avaliação, isto é, coletivamente por meio de projetor multimídia. Tal diferença, porém, não se mostrou estatisticamente significativa, o que é consistente com os resultados encontrados por Most e Avner (2009). Contudo, talvez reflita uma tendência a melhor percepção emocional por parte dos surdos. A hipótese aventada foi que a LIBRAS utiliza uma sinalização semelhante à própria expressão emocional para comunicar emoções, facilitando o reconhecimento da expressão típica.

O desempenho dos surdos na percepção emocional também não se mostrou estatisticamente diferente dos não surdos em aplicação individual, porém estes últimos se diferenciaram significativamente dos não surdos em aplicação coletiva. Esses resultados não apenas reforçam a ideia de uma facilidade (ainda que leve e no nível qualitativo) dos surdos em reconhecer expressões emocionais, mas também que existe perda no desempenho ao se aplicar o PEP por meio de projetor multimídia. A capacidade de identificar emoções em rostos depende fortemente da percepção visual, particularmente para a detecção de microexpressões, que são movimentos musculares rápidos que informam detalhes do estado emocional (Edelstein, Luten, Ekman, & Goodman, 2006). Por melhor que as configurações do projetor tenham sido estabelecidas, ainda assim esses detalhes importantes para a percepção emocional podem se perder ao se projetar os vídeos em um anteparo. Esses resultados corroboram a pesquisa de Astori e Zdunic (2003), que comparam aplicação individual com coletiva por projetor e encontraram diferenças significativas na frequência de muitas variáveis do teste das manchas de tinta de Zulliger, outro instrumento que depende fortemente da percepção visual.

Embora os dados sugiram que a aplicação por projetor multimídia dificulte a percepção emocional, não parece ser o caso que o projetor facilite a distorção das emoções, isto é, a atribuição de uma emoção que não está presente na expressão. Apesar da presença de alguns itens com DIF, os não surdos apresentaram desempenho estatisticamente semelhante ao se comparar aplicação coletiva com individual. Porém, os surdos apresentaram um escore maior em distorções, o que leva à hipótese de que as distorções se deveram não à modalidade de aplicação, mas a características deste grupo.

A análise da frequência das emoções permitiu uma melhor compreensão sobre esse resultado. Houve cinco (de um total de oito) emoções que os surdos atribuíram em frequência maior que os ouvintes. Em um primeiro momento, esse dado poderia sugerir que os participantes surdos assinalaram várias emoções em cada item, respondendo aleatoriamente. Porém, existiram duas emoções em que não houve diferenciação com ouvintes, e uma emoção que os surdos assinalaram em menor frequência do que os não surdos. Portanto, não parece ser o caso de os surdos terem assinalado aleatoriamente as alternativas, mas de autenticamente terem atribuído as emoções a mais. As emoções vistas com maior frequência foram alegria, medo, tristeza, raiva e curiosidade.

Em uma pesquisa feita com não surdos em aplicação individual (Miguel & Pessotto, 2016), os resultados sugeriram que perceber mais alegria estaria relacionado a maior interesse no contato social, mais medo estaria relacionado à necessidade de autonomia, mais tristeza estaria relacionado a menos problemas de autoestima, e mais raiva estaria relacionado à desconfiança, sentimentos de solidão e pensamentos agressivos. Surpresa e curiosidade não foram investigados naquela pesquisa, e os surdos da presente pesquisa não perceberam amor e nojo em níveis significativamente distintos. Se os resultados daquela pesquisa puderem ser generalizados para esta, as distorções produzidas pelos surdos indicariam níveis maiores de socialização, autoconfiança e autonomia, porém com desconfiança em relação aos outros. Informações cedidas pelos professores da escola de surdos parecem corroborar esses dados. De acordo com os docentes, os surdos mostravam-se companheiros, gostavam de ajudar uns aos outros e também cultivavam a própria independência. Isso foi percebido pelos pesquisadores em algumas situações da aplicação. Por exemplo, quando um estudante não compreendia as instruções, os colegas espontaneamente começavam a explicar.

Já em relação a maior atribuição de raiva, relacionada a pensamentos agressivos e desconfiança, não houve informação suficiente para verificar esse resultado. Porém, outras pesquisas também encontraram em amostras surdas distorções emocionais e maior vivência de sentimentos negativos (Angelini & Oliveira, 2003; Cardoso & Capitão, 2007). Como enfatizado pelos autores daquelas pesquisas, não há indicadores suficientes para afirmar que tais sentimentos negativos se devam a fatores intrínsecos à surdez, mas ao contexto social. Atualmente já se sabe que não há déficits intelectuais quando surdos são comparados a pessoas normais, como se pensava antigamente, mas sim que a privação ao acesso à linguagem pode trazer problemas para o desenvolvimento social, emocional e intelectual da criança surda. Nesse sentido, diversos autores enfatizam a necessidade de uma educação que permita a comunicação com outras pessoas, removendo o estigma de patologia associada à surdez, possibilitando melhores condições sociais e desenvolvimento (Capovilla, 2000; Luz, 2013; Ströbel, 2007).

Ainda no que diz respeito aos escores gerais do PEP, os surdos mostraram uma capacidade inferior de percepção de emoções autênticas ou falseadas quando comparados com não surdos, tanto na aplicação coletiva quanto individual. Levanta-se a hipótese de que esse resultado esteja relacionado à própria LIBRAS que utiliza sinalização semelhante à expressão emocional. Na população geral, mesmo os ouvintes, a capacidade de identificar emoções reais ou falsas não é naturalmente desenvolvida, e Ekman (1997) considera que o motivo para isso é que o valor está na comunicação do estado emocional, e não em sua autenticidade. Por exemplo, os pais de uma criança podem fingir que estão bravos para transmitir uma bronca merecida; comunicar o desapontamento teria mais valor do que comunicar se os pais estão autenticamente bravos ou não. No caso dos surdos, essa situação poderia estar potencializada, pois a comunicação de emoções se dá pela imitação desses estados. Por exemplo, ao se comunicar que alguma pessoa estava com raiva, o sinal em LIBRAS implica franzir as sobrancelhas e os lábios, mesmo que o próprio comunicador não esteja sentindo raiva no momento. Por outro lado, no diálogo entre ouvintes, é possível comunicar a mesma ideia apenas por palavras, sem alterar a expressão facial. Por isso se levanta a hipótese de que a comunicação por meio de expressões corporais e faciais, embora possa atribuir uma leve vantagem ao surdo na percepção de emoções, também dificulta a identificação de expressões autênticas ou falseadas.

Em relação ao funcionamento diferencial dos itens, nota-se que a maioria dos DIF tendeu a se dar em pares, ou seja, com quantidade semelhante de itens mais difíceis e mais fáceis para um grupo. Embora a quantidade de itens com DIF seja relativamente baixa para os escores Distorção e VF, é digna de nota a quantidade elevada para Percepção, especialmente na aplicação coletiva comparando surdos com não surdos, com 31,1% de itens com DIF. Não existe na literatura um consenso quanto à proporção adequada, embora a presença de DIF sempre indique que os itens estão avaliando o construto de maneira diferenciada para os grupos comparados (Andriola, 2005; Boone, Staver, & Yale, 2014). Esse resultado indica que, caso o PEP venha a ser utilizado futuramente para avaliação da percepção emocional de pessoas surdas, essa informação deve ser levada em conta e, então, normas específicas para o grupo devem ser desenvolvidas. Com base nos resultados encontrados nesta pesquisa, recomenda-se que outros testes psicológicos tenham seu funcionamento estudado em relação a DIF antes de utilização com pessoas surdas.

De maneira geral, portanto, o estudo indicou uma capacidade levemente superior, no nível qualitativo, dos surdos em perceber emoções, porém rebaixamento na capacidade de identificar emoções autênticas e falseadas, além da presença de distorções. Assim como sugerido em outras pesquisas (Cardoso & Capitão, 2007; Meyer, 2013), tais diferenças demonstraram ser decorrentes do processo educacional e do contexto social.

Deve-se levar em conta que a amostra de surdos para esta pesquisa foi baixa, de apenas 13. O número reduzido de participantes mostrou-se comum nas pesquisas levantadas na revisão da literatura, algumas inclusive com 10 participantes (Most & Aviner, 2009; Ziv et al., 2013). Não obstante, trata-se de um primeiro estudo abordando um aspecto de inteligência emocional em surdos, porém futuras pesquisas precisam ampliar essa amostragem, com o objetivo de aprofundar a compreensão desse importante componente de interação social em pessoas surdas. Nesse mesmo sentido, não seria possível considerar esta pesquisa como apresentando evidências de validade para uso do teste em pessoas surdas, pois o número reduzido de participantes não permite inferências mais generalizadas. Assim, não se sugere a utilização do PEP para avaliação de surdos até que maiores estudos sejam feitos.

Além disso, outras propostas de pesquisas futuras podem ser feitas. Por exemplo, sugere-se a comparação de surdos com ouvintes por meio de aplicação individual de um teste de percepção emocional em ambas as amostras, o que não foi possível na presente pesquisa devido a limitações da instituição de coleta. Outra possibilidade seria a comparação com níveis de surdez. Nesta pesquisa, todos os surdos possuíam surdez total congênita, mas levanta-se a hipótese de haver diferenças no desempenho em percepção de emoções dependendo do nível de deficiência auditiva.

 

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recebido em outubro de 2015
reformulado em janeiro de 2016
aprovado em fevereiro de 2016

 

 

Sobre os autores

Fabiano Koich Miguel: é psicólogo, especialista em Psicologia do Trânsito, mestre e doutor com ênfase em Avaliação Psicológica pela Universidade São Francisco. Atualmente é professor adjunto da Universidade Estadual de Londrina.
Ana Carolina Zuanazzi: é psicóloga, especialista em Neuropsicologia e mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo e doutoranda na Universidade São Francisco.
Renan de Lima: é estudante de graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina.
Jessica Cristina Eurich: é estudante de graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina.
Carolina Araújo Tavares: é estudante de graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina.


1Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia e Psicanálise – CCB, Universidade Estadual de Londrina. Caixa Postal 10011, 86057-970, Londrina-PR. Tel: (43) 3371-4397. E-mail: fabiano@avalpsi.com.br


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