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Avaliação Psicológica

versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431

Aval. psicol. vol.17 no.2 Itatiba abr./jun.. 2018

http://dx.doi.org/10.15689/ap.2018.1702.ed 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Nelson Hauck Filho

Editor-chefe. hauck.nf@gmail.com

 

 

A Psicometria é a área do conhecimento que fornece métodos e diretrizes para a construção e a análise da validade e da fidedignidade de instrumentos de avaliação psicológica, dentre outros aspectos. Construir uma escala ou um inventário não é uma tarefa fácil, pois demanda uma série de etapas e procedimentos de natureza técnica. O presente editorial endereça uma questão específica desse processo, que é o uso de sentenças negativas em itens de autorrelato.

Na literatura psicométrica, uma recomendação clássica é que um instrumento contenha um conjunto "balanceado" de itens (Cloud & Vaughan, 1970; Likert, 1932). Atender a esse requisito significa que deve haver um equilíbrio entre a quantidade de itens escritos na direção do traço (true-keyed ou positively-keyed) e itens redigidos na direção inversa (false-keyed ou negatively-keyed). Por exemplo, um instrumento avaliativo do fator extroversão deve conter tanto itens sobre características como "assertivo", "empolgado" e "carismático" (itens positivos), quanto sobre descritores como "quieto", "introspectivo" e "solitário" (itens reversos).

Além de proporcionar maior cobertura da variável latente, a inclusão de itens inversos pode ajudar a minimizar a influência do viés da aquiescência (Cloud & Vaughan, 1970). Esse viés consiste na tendência a concordar com mais do que discordar de proposições em geral (Jackson & Messick, 1958), exemplificado pelo endosso de itens sobre os mais diversos tipos de atitudes ou traços (Couch & Keniston, 1960). Argumenta-se que a presença de itens positivos e reversos em uma escala ajuda a prevenir que os respondentes designem níveis similares de concordância a todos os itens (Cloud & Vaughan, 1970), comportamento que pode inflacionar os escores das pessoas no instrumento (Ray, 1979).

Não obstante, incluir itens reversos ou com semântica negativa em relação ao traço não é o mesmo que elaborar itens com negações. A recomendação é que todos os itens sejam afirmações, mesmo aqueles com direção inversa ao traço (Barnette, 2000; Hofstee, Berge, & Hendriks, 1998). Negações-o uso da palavra "não" em frente a um verbo, por exemplo-devem ser evitadas. Um dos motivos para tanto é que negações produzem elevada carga cognitiva, uma vez que requerem maior nível de habilidades verbais (Marsh, 1996). Esses itens são mais difíceis de responder e acabam sendo menos discriminativos para o traço avaliado.

A Tabela 1 apresenta exemplos de construções de itens para o fator extroversão, ilustrando a construção de proposições afirmativas e negativas. Os casos a serem evitados são aqueles da segunda coluna, os itens 3 e 4. Além de serem mais difíceis de entender, sentenças dessa natureza podem criar uma complexidade adicional quando combinadas a uma escala de resposta que também contenha negação. Por exemplo, se a escala de resposta for "sim" ou "não", como entender uma resposta negativa ao item 4? Enquanto alguns respondentes poderiam responder "não" para expressar que "não, eu gosto de ficar sem falar o que penso", outros poderiam indicar a mesma resposta, mas com a intenção de dizer que "não, não gosto de ficar sem falar o que penso". Disso, resultaria um padrão inconsistente de correlação entre esse item e os demais, o que tenderia a se manifestar como uma carga próxima a zero em uma análise fatorial.

O exemplo a seguir ilustra o problema de itens contendo negações. Recentemente, Zuchetto e Hauck (submetido para publicação) conduziram uma análise fatorial exploratória de um instrumento sobre estilos de amor, a Escala de Atitudes do Amor reduzida. O instrumento contém 24 itens respondidos em uma escala Likert de cinco pontos, sendo 1 = discordo totalmente e 5 = concordo totalmente (Hendrick, Hendrick, & Dicke, 1998). São seis os estilos de amor avaliados, dentre os quais Ludus, ou seja, a tendência a encarar o amor como um jogo de sedução. Um excerto dos resultados de uma análise fatorial exploratória do instrumento (n = 308 universitários) é apresentado na Tabela 2.

Os achados revelam um problema em um dos itens da escala Ludus. É fácil observar que, conforme esperado, três dos quatro itens (itens 6, 7 e 8) apresentaram carga fatorial de magnitude moderada a alta em um mesmo fator (F3), e cargas muito baixas nos fatores restantes. Contudo, isso não ocorreu para um dos itens. O item 5 apresentou uma carga muito baixa no fator F3 (e em todos os demais). Ao avaliar mais detidamente esse item, verifica-se que seu enunciado é o seguinte: "Eu acredito que aquilo que o meu(minha) parceiro(a) não sabe sobre mim não vai machucá-lo(a)" [grifo meu]. A hipótese levantada por Zuchetto e Hauck (manuscrito submetido para publicação) para esse achado, portanto, é de que a dupla negação pode ter causado dificuldades de entendimento do item pelos participantes, do que resultou uma carga próxima a zero no fator correspondente a Ludus. Trata-se de um item com semântica positiva (avalia o polo superior da dimensão Ludus), mas com sentença negativa, contendo ainda o problema adicional de uma dupla negação.

A recomendação aqui oferecida é pouco original, mas pode ajudar muitos pesquisadores: devem-se incluir itens com semântica negativa, mas não itens com sentenças negativas. Embora alguns estudos sugiram que itens reversos são psicometricamente inferiores (Ray, Frick, Thornton, Steinberg, & Cauffman, 2015; Sliter & Zickar, 2014), eles podem ser tão bons quanto itens com semântica positiva quando são controladas os vieses da aquiescência (Primi, De Fruyt, Santos, & John, 2018) e de respostas descuidadas (Schmitt & Stults, 1985).

Contudo, muita calma nessa hora: apenas incluir um número equilibrado de itens com semântica positiva e negativa não irá, magicamente, controlar o viés da aquiescência. Por diversas razões, alguns respondentes sempre estarão propensos a endossar itens com significado contrário (Danner & Rammstedt, 2016). Mesmo assim, a presença de itens semanticamente opostos proporciona a informação necessária para a aplicação subsequente de técnicas de controle de vieses (Hofstee et al., 1998; Kam & Meyer, 2015; Ten Berge, 1999). Essas técnicas, vale observar, não são o objeto do presente editorial, já tendo sido discutidas pelo Editor Associado Felipe Valentini (http://pepsic.bvsalud.org/pdf/avp/v16n2/v16n2a01.pdf). Em suma, permanece válida a recomendação de que escalas sejam compostas por um número balanceado de itens positivos e negativos (Primi, Valentini, Hauck, Santos, & Falk, manuscrito submetido para publicação).

O presente editorial é pouco pretensioso, na medida em que apenas repete aqui o já dito alhures. Não obstante, muito conhecimento produzido na área de construção de escalas e controle de vieses permanece aguardando o seu devido impacto na pesquisa na área. A mensagem final é: ao redigir itens, não diga "não"; ou melhor, evite dizer "não".

 

Referencias

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