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Avaliação Psicológica

Print version ISSN 1677-0471On-line version ISSN 2175-3431

Aval. psicol. vol.17 no.2 Itatiba Apr./June 2018

http://dx.doi.org/10.15689/ap.2018.1702.13264.01 

ARTIGO

 

Instrumentos de autorrelato para avaliar traços antissociais medem o que objetivam medir?

 

Self-report instruments to assess anti-social traits: do they measure what they seek to measure?

 

¿Instrumentos de autoinforme para evaluar rasgos antisociales, miden realmente lo que tienen por objetivo medir?

 

 

Silvio José Lemos Vasconcellos; Felipe Ayres Pozzobon; Andressa Rocha Da Cas; Otávio Ferreira Moraes; Amanda Mayer da Rocha; Raul Corrêa Ferraz

Universidade Federal de Santa Maria - RS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Apesar de muitas décadas de discussão sobre o impacto das respostas enviesadas na avaliação de traços da personalidade com base em autorrelato, um consenso ainda não surgiu. Essas controvérsias parecem ser maiores no que se refere à avaliação de tendências antissociais. A desejabilidade social explica parte das distorções nos instrumentos de autorrelato. O objetivo desta pesquisa foi valer-se de um cruzamento de informações resultantes de duas situações de avaliação com medidas de autorrelato. Em uma amostra de 156 participantes, os autores investigaram possível alterações nos escores do teste, caso os participantes necessitassem entregar os protocolos de respostas para os pesquisadores. Os resultados revelaram mudanças parciais de pontuações em aproximadamente um terço da amostra, indicando ainda a necessidade de novas pesquisas usando os mesmos métodos.

Palavras-chave: avaliação psicológica; autorrelato; comportamento antissocial.


ABSTRACT

Despite many decades of discussion about the impact of skewed responses on self-report personality trait evaluations, a consensus has not yet emerged. These controversies appear greater when evaluating antisocial tendencies. Social desirability may partly explain distortion in self-report instruments. The objective of this research was to cross-reference information resulting from two evaluation situations with self-report measures. From a sample of 156 participants, authors investigated possible changes in test scores in the case that participants needed to deliver response protocols to the researchers. The results revealed partial score changes in approximately one-third of the sample, indicating the need for further research using the same methods.

Keywords: psychological evaluation; self-report; antisocial behavior.


RESUMEN

A pesar de muchas décadas de discusión sobre el impacto de las respuestas sesgadas em la evaluación de rasgos de personalidade basados em autoinforme, todavía no se ha llegado a un consenso. Esas controvérsias parecen ser mayores conrelación a la evaluación de tendências antisociales. La deseabilidad social explica parte de las distorsiones em los instrumentos de autoinforme. El objetivo de esta investigación fuevalerse de uncruce de informaciones, resultantes de dos situaciones de evaluacióncon medidas de autoinforme. En una muestra de 156 participantes, los autores investigaron posibles câmbios em los puntajes del test, cuandolos participantes necesitaban entregar los protocolos de respuestas a los investigadores. Los resultados revelaron câmbios parciales de puntuaciones en aproximadamente un tercio de lamuestra, indicando todavia la necesidad de nuevas investigaciones utilizando los mismos métodos.

Palabrasclave: evaluación psicológica; autoinforme; comportamiento antisocial.


 

 

As preocupações sobre a efetividade dos instrumentos de autorrelato para mensurar determinados construtos datam de mais de um século, sem que um consenso quanto a essa mesma efetividade tenha surgido (McGrath, Mitchell, Kim, & Hough, 2010). Nesse tipo de avaliação, o respondente deve dimensionar o quanto determinadas características, explicitadas em diferentes itens do teste, descrevem suas próprias tendências comportamentais. Testar a efetividade dessa modalidade de avaliação para a mensuração de tendências antissociais da personalidade vai ao encontro de antigas e atuais discussões nesse campo e é, nesses termos, a proposta central deste trabalho. Para tanto, os autores procuraram dimensionar duas condições distintas de aplicação desses instrumentos e um possível efeito da desejabilidade social sobre os escores obtidos.

Em um estudo de revisão da literatura sobre as produções científicas publicadas no periódico Journal of Research in Personality no ano de 2003, 98% dos trabalhos valeram-se de medidas de autorrelato, sendo que em 70% desses estudos, foram utilizados somente instrumentos desse tipo (Vazire, 2006). No mesmo patamar, 95% dos trabalhos publicados no Journal of Peronality em 2006 valeram-se de métodos de autorrelato para avaliar os participantes (Kagan, 2007).

Um dos principais problemas relativos ao processo de avaliação destacado concerne à denominada desejabilidade social. De um modo geral, a desejabilidade social pode ser definida pela tendência do participante apresentar uma imagem mais favorável sobre si mesmo a partir das suas respostas (Tracey, 2016). Essa mesma tendência pode revelar-se a partir do falseamento das respostas ou de um possível abrandamento quanto à descrição de suas tendências comportamentais, sendo mais frequente diante de posicionamentos que implicam em aprovação ou rejeição social (Mortel, 2008; Roulin, Bangerter, & Levaschina, 2014). Pessoas com níveis altos de desejabilidade social tendem a ser mais afetadas pelas opiniões alheias, buscando constantemente a aprovação dos seus pares, estando essa característica relacionada a fatores da personalidade como conscienciosidade e estabilidade emocional (Heggestad, 2012).Conforme trabalhos recentes, estima-se que a influência de algum nível de desejabilidade social pode apresentar-se em aproximadamente 30% dos indivíduos avaliados por intermédio de instrumentos de autorrelato (Griffith & Converse, 2012; Holden & Book, 2012). Destaca-se, no entanto, que, em termos empíricos, diferentes estudos, valendo-se da análise de regressão múltipla, não produziram achados consistentes indicando o real efeito da desejabilidade social no processo de autorrelato para a avaliação de aspectos da personalidade (Holden, Wheeler, & Marjanovic, 2012). Morgeson et al. (2007) recomendam, por exemplo, a não utilização de instrumentos de autorrelato voltados para a avaliação da personalidade com um dos recursos para conhecer os candidatos em contextos de seleção. Donaldson e Grant-Vallone (2002) elucidam que novos trabalhos ainda precisam ser feitos sobre o efeito da desejabilidade social em avaliações no contexto organizacional, considerando que alguns achados são inconclusivos nesse campo.

Em um estudo com 300 indivíduos adultos, objetivando medir a correlação de instrumentos de autorrelato com medidas de personalidade respondida por pares, Borkenau e Ostendorf (1989) haviam sugerido, no entanto, que o efeito da desejabilidade social atrela-se aos níveis de neuroticismo dos avaliados. Depende, nesse sentido, diretamente da personalidade dos avaliados. Na esteira dessa mesma controvérsia, discute-se o quanto instrumentos de autorrelato podem contribuir para um diagnóstico preciso no que se refere a determinados transtornos da personalidade. A avaliação do Transtorno de Personalidade Antissocial (TPA), por exemplo, costuma demandar entrevistas longas e um treinamento bastante específico para que o diagnóstico possa ser realizado de forma satisfatória tanto para fins clínicos como forenses (Guy et al., 2008). Em contrapartida, instrumentos de autorrelato para esses fins podem ser administrados em grandes grupos e de forma relativamente rápida.. O processo de autorrelato pode, no entanto, mascarar determinadas idiossincrasias no que se refere à interpretação dos itens, à dificuldade em diferenciar a caracterização de traços versus estado nesses mesmos itens, bem como à tendência em distorcer respostas socialmente reprováveis (Guy et al., 2008).

No que se refere à psicopatia que pode ser entendida, na atualidade, como um transtorno com características bastante sobrepostas ao TPA, porém não descritas nas recentes versões do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, tendências interpessoais similares podem, igualmente, enviesar repostas em instrumentos de autorrelato. No entanto, é discutível se esse mesmo viés ocorreria ou não em todos os contextos de avaliação. Em um estudo de metanálise que revisou 45 trabalhos Ray et al. (2013) identificaram uma correlação negativa e baixa entre traços de psicopatia mensurados a partir de autorrelato e tendência a respostas desejáveis, bem como uma correlação positiva e igualmente baixa com tendência a intensificar o relato de sintomas psicopatológicos.

Uma correlação moderada e positiva (r = 0,64) foi obtida entre a avaliação de traços de psicopatia a partir do autorrelato com a descrição de características psicopáticas feitas por avaliadores independentes no estudo conduzido por Miler, Jones, e Lynam (2011), embora, nesse caso, o estudo tenha sido composto por uma única amostra, não se configurando como uma metanálise. No que se refere às características mais típicas do Transtorno de Personalidade Antissocial, cujo diagnóstico privilegia aspectos comportamentais, um nível de correspondência limitado foi verificado entre o instrumento de autorrelato denominado Personality Diagnostic Questionaire 4 (PDQ-4) e a entrevista baseada no DSM-IV denominada Structured Clinical Interview Axis II (SCID-II) (Guy et al., 2008). Destaca-se o fato de que esse cruzamento de dois instrumentos distintos foi feito com uma amostra de 1345 indivíduos em situação de conflito com a lei, incluindo indivíduos privados de liberdade. Kagan (2007) salienta a importância que um maior exame da convergência desses métodos possa nortear a pesquisa nesse campo.Em que medida pode ocorrer uma distorção deliberada nessas situações de aplicação é ainda um ponto controverso na literatura sobre o tema (Ray et al., 2013).

Deve-se considerar, no entanto, que transtornos de personalidade como a psicopatia podem ser, na atualidade, mais bem explicados a partir de um entendimento dimensional (Patrick, 2010). Isso significa dizer que se, por um lado, indivíduos com alguns traços de psicopatia tendem a apresentar menor ansiedade social, revelando-se mais propensos a mentir e enganar, por outro, também apresentam componentes narcisistas em sua personalidade. Nesses termos, podem valer-se do autorrelato para tentar ampliar seus feitos e realizações, mesmo em se tratando de atitudes antissociais. A conjunção dessas características sugere que se faz importante examinar a capacidade discriminativa dos instrumentos de autorrelato para características antissociais na sua totalidade, bem como a capacidade de cada item que compõem tais instrumentos, conforme sugerem estudos nesse campo (Hauck Filho, Salvador-Silva, & Teixeira, 2014).

Com base nas considerações anteriores, pode-se afirmar, desse modo, que o preenchimento de um instrumento de autorrelato e a sua respectiva disponibilização para os pesquisadores envolvidos, pode abarcar situações reforçadoras ou punitivas no que se refere à imagem do próprio participante perante as pessoas que irão ter contato com os protocolos gerados. Mesmo em situações de pesquisa, na qual o participante assina o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a partir do qual é assegurado o total sigilo dos dados, considera-se que a ocorrência desse viés é um fato plausível e irá, por sua vez, relacionar-se a características da personalidade do próprio respondente. Em outras palavras, alguns indivíduos, mais do que outros, tenderão a ocultar a forma como dimensionam suas próprias tendências antissociais, ainda que esse mesmo dimensionamento não se torne acessível às diferentes pessoas com as quais convive ou com as quais poderá estabelecer relação.

Para investigar, de forma exploratória, em que medida essa tendência se faz presente em pesquisas com amostras universitárias, os autores do presente trabalho elaboraram um instrumento que sintetiza os principais itens constantes em inventários que avaliam, isoladamente ou juntamente com outros construtos, tendências antissociais da personalidade. Buscou-se, por intermédio deste estudo, analisar se os respondentes alterariam os escores assinalados, caso esses mesmos escores acabassem sendo visualizados pelos pesquisadores responsáveis por estudos dessa natureza. O presente trabalho não teve por objetivo quantificar as respostas relativas à avaliação que os participantes fizeram a respeito de aspectos específicos da própria personalidade, mas sim verificar possíveis diferenças decorrentes do ato de explicitar as próprias respostas para outros indivíduos. O estudo proposto foi aprovado por um comitê de ética vinculado ao Conselho Nacional de Saúde, sendo que os materiais e métodos empregados são descritos na sequência deste artigo.

 

Método

Participantes

O presente estudo contou com 156 participantes com idades variando entre 18 e 59 anos (M = 22,8; DP= 6,2), sendo 86 mulheres e 70 homens, estudantes de graduação de diferentes cursos das áreas humanas e de saúde em uma universidade federal da região Sul do país. O critério de exclusão utilizado foi a presença de deficiência visual, considerando que os protocolos de pesquisa não estavam adaptados para participantes com essas características e a leitura deles em voz alta poderia gerar um viés nas respostas, comprometendo os propósitos da pesquisa.

Instrumentos

Para a realização do estudo, foi elaborado um instrumento composto de 10 itens com afirmações similares àquelas que costumam constar em testes que avaliam tendências antissociais em inventários usados para mensurar características da personalidade. Após a elaboração preliminar de 12 itens por um dos pesquisadores responsáveis, três avaliadores independentes com experiência em avaliação da personalidade por intermédio de instrumentos de autorrelato e check lists e com publicações científicas na esfera da Psicometria, bem como titulação mínima de mestre em Psicologia, julgaram o instrumento elaborado para esses fins. A partir desse mesmo julgamento, dois itens foram excluídos, considerando que não houve consenso por parte dos avaliadores quanto à pertinência deles, e três itens foram minimamente alterados no que diz respeito às suas estruturas sintáticas, tornando mais claras as afirmações que acabaram por perfazer esses mesmos itens.

Uma vez que esse instrumento foi elaborado tão somente para servir de parâmetro para o preenchimento do segundo protocolo de avaliação, sem que os escores assinalados pudessem ser usados para qualquer outro fim, os três avaliadores consideraram satisfatória a versão final de dez itens. Tal versão empregou uma escala tipo Likert de sete pontos, a partir da qual cada afirmação era classificada em uma variação contínua de "nada característico" para "totalmente característico". A partir disso, o instrumento foi aplicado em uma amostra de 35 indivíduos com o objetivo de mensurar a consistência interna dele, sendo que, com base nesse procedimento, obteve-se um alfa de Cronbach de 0,76. Alguns exemplos de itens constantes na versão final são: "Eu me julgo superior às pessoas com as quais convivo, "Não costumo perder meu tempo ajudando outras pessoas" e "Não tenho nenhuma dificuldade em constranger alguém com os meus comentários".

Procedimentos

O estudo foi realizado em salas de aulas, aproximadamente, com 30 alunos. Após uma breve descrição dos objetivos da pesquisa, os participantes voluntários entregavam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado. Na sequência, os pesquisadores envolvidos ratificavam as informações constantes nas folhas de aplicação, enfatizando o fato de que a primeira grade de respostas, na qual cada avaliado deveria quantificar suas próprias tendências comportamentais não deveria ser identificada e nem entregue para os pesquisadores em nenhuma etapa do estudo. Essa informação era complementada pela fala dos pesquisadores quanto ao fato de que os participantes deveriam entregar somente a segunda folha, dimensionando apenas as possíveis alterações na grade para uma situação hipotética na qual teriam que entregar a primeira folha.

Na primeira folha, constava a seguinte informação: "Prezado participante: Você irá assinalar uma série de questões com base em uma escala Likert de 7 pontos. Essas afirmações estão relacionadas ao seu modo de agir e relacionar-se com as outras pessoas. Caso você entenda que a afirmação descreve muito bem uma característica sua, atribua escores mais altos nessa escala. Caso entenda que não descreve ou pouco descreve uma característica sua, atribua escores mais baixos conforme o grau em que cada uma delas mostra-se descritiva das suas próprias tendências. Importante: Para que esse estudo possa alcançar os objetivos visados, você deve apenas assinalar a resposta na folha de forma totalmente sincera, porém, você não irá entregar esta folha. Ela servirá apenas como parâmetro para você responder a segunda folha que será entregue na sequência. Ou seja, esta primeira folha ficará com você no final. Não coloque nome na 1ª folha (1ª parte) e lembre-se que a mesma não deverá ser entregue para ninguém".

Já, na segunda etapa do estudo, os pesquisadores elaboraram um protocolo de respostas complementar ao primeiro instrumento no qual constou apenas o número das questões sem a repetição textual delas. Além disso, para cada uma das questões enumeradas, uma situação hipotética era descrita, induzindo o participante a pensar em como seria a sua resposta, caso ele precisasse entregar a grade anterior na qual quantificou suas próprias tendências. Nessa segunda etapa, buscou-se apenas identificar em que medida o participante tenderia a modificar a resposta na folha que foi anteriormente preenchida, sem que tenha sido entregue para os pesquisadores. Para cada uma das dez questões, constou o seguinte enunciado: "Se você estivesse respondendo um teste no qual constasse essa mesma questão e os pesquisadores solicitassem que você entregasse a grade de respostas no final, mesmo sendo assegurado o sigilo dos dados, o escore atribuído seria:

( ) Igual ( ) Diferente

Caso você tenha respondido diferente, qual seria a magnitude da diferença (quantos pontos a mais ou a menos)? ".

No cabeçalho da folha, foram colocadas as seguintes instruções, visando o preenchimento adequado do segundo instrumento de pesquisa: "Na segunda parte do estudo, você deverá responder as questões relacionadas a cada um dos itens assinalados na primeira folha. Diferente da situação anterior, você deverá entregar para os pesquisadores esta segunda folha, usando a primeira apenas para fins de comparação. Para tanto, não será necessário informar os escores da primeira parte, mas apenas considerar as possíveis mudanças".

Nesse mesmo cabeçalho, a afirmação de que não haveria necessidade do participante informar os escores da primeira etapa foi sublinhada. Na sequência, foi colocada a numeração de cada item com as perguntas assinaladas, objetivando identificar possíveis mudanças relacionadas às condições de aplicação do instrumento de autorrelato elaborado especificamente para o estudo proposto.

 

Resultados

A Tabela 1 explicita os itens, a frequência relacionada às respostas que envolvem alteração de escore caso o participante tivesse que entregar a primeira folha, o percentual correspondente, bem como a média e desvio padrão relativos à magnitude das diferenças assinaladas para cada um dos itens que compuseram o instrumento.

Para os dez itens da escala examinados conjuntamente, a média de variação dos escores para a totalidade de indivíduos que afirmou que alteraria um ou mais itens (N = 56) foide 5,01 (M = 5,01; DP = 3,51).Com base no teste t de Student para amostras independentes, não houve diferença estatisticamente significativa quando comparados homens e mulheres no escore total do instrumento nessa mesma subamostra (t = - 0,18; gl = 54; p> 0,05).

 

Discussão

O estudo proposto caracteriza-se como uma pesquisa exploratória no Brasil, considerando o ineditismo do método empregado. Não objetivou testar a validade de construto do instrumento elaborado, considerando que um dos pressupostos que norteou a própria pesquisa foi o fato de não demandar nenhum tipo de exposição por parte do avaliado quanto às respostas geradas para a escala utilizada. Dessa forma, buscou-se, também, na etapa subsequente de aplicação, que os avaliados tão somente dimensionassem possíveis diferenças sem informar seus verdadeiros escores na etapa anterior.

A hipótese principal do trabalho relacionou-se ao fato de que a ocultação desses mesmos escores permitiria que o avaliado se expusesse de forma mais fidedigna na segunda etapa da pesquisa, revelando se alteraria ou não suas respostas anteriores. Tais alterações consideraram a possibilidade de as respostas serem visualizadas pelos pesquisadores, ainda que fosse assegurado o total sigilo na divulgação dos resultados. De um modo geral, pode-se dizer que essa hipótese foi confirmada considerando que houve percentuais consideráveis, para efeito deste estudo, de participantes que afirmaram que alterariam suas respostas em todos os itens do instrumento. Tais percentuais variaram de 7,05 até 19,2, dependendo do item. O item que obteve menor variação no que se refere ao número de participantes que endossaram que alterariam sua resposta foi: "Não me sinto perturbado diante do sofrimento alheio", sendo o item "Eu me julgo superior às pessoas com as quais convivo", aquele que mobilizou um maior número de participantes a afirmar que alterariam seu escore, caso a grade de respostas precisasse ser entregue para os pesquisadores.

Embora o presente estudo não tenha objetivado dimensionar a desejabilidade social propriamente dita, tais resultados demonstram ser um pouco mais brandos do que aqueles já sugeridos em trabalhos anteriores, indicando que, em algum grau, 30% dos avaliados apresentam influência da desejabilidade social em suas respostas (Griffith & Converse, 2012; Holden& Book, 2012). Ressalta-se, porém, que essas estimativas incluem situações nas quais os avaliados poderiam também obter ou perder algum tipo de benefício em função dos resultados dessas mesmas avaliações.

De um modo geral, observou-se que itens diretamente ligados a situações de interação social e convivência obtiveram percentuais um pouco mais altos no que se refere ao número de participantes que assinalaram que alterariam suas respostas. Destaca-se, nesse caso, itens como: "Sinto prazer quando consigo enganar alguém" e "Não tenho dificuldade em constranger alguém com os meus comentários". Embora essa diferença tenha sido pequena em relação aos demais itens, os dados podem sugerir que itens desse tipo poderiam acionar os mecanismos ligados à desejabilidade social de forma um pouco mais acentuada. Embora, tal como salientam Holden et al. (2012), as pesquisas envolvendo instrumentos de autorrelato e o efeito da desejabilidade social não tenham produzidos dados totalmente conclusivos até o momento, infere-se que essa tendência possa revelar-se mais ativa em situações na qual a imagem do indivíduo mostrar-se-á passível de ser avaliada pelas pessoas com as quais convive. Em contrapartida, itens como: "Não me sinto perturbado diante do sofrimento alheio", ao contrário da afirmação que envolve o ato de enganar outra pessoa, podem ser relativizados diante do fato de que a sociedade como um todo e a violência exposta na mídia é capaz de tornar o indivíduo menos sensíveis, independentemente dessa condição ser temporária ou permanente.

No que se refere aos parâmetros obtidos a partir da estatística descritiva para a variação destacada em cada um dos itens, não houve grandes discrepâncias na amostra investigada. As médias obtidas variaram de 1,67 até 2,25, sugerindo uma relativa proximidade quanto às magnitudes assinaladas pelos participantes que indicaram que alterariam suas respostas na situação hipotética. De um modo geral, destaca-se o fato de que tais alterações poderiam não contribuir significativamente para uma distorção quanto aos escores obtidos no instrumento, exceto em alguns poucos casos nos quais os mesmos participantes indicaram que alterariam 4, 5 ou 6 pontos em vários itens. O percentual de participantes que indicou que as alterações ocorreriam a partir de uma diferença de 4, 5 ou 6 pontos nas escalas Likert não ultrapassou 3% do total da amostra em nenhum dos itens investigados.

Não é possível concluir que esse percentual corresponde à ocorrência de psicopatia ou outro transtorno de personalidade na amostra avaliada, embora tais taxas expressem similaridade com a prevalência presumida de psicopatia na população em geral (Patrick, 2010). Além disso, uma compreensão dimensional da psicopatia ou outros transtornos caracterizados pela presença de sintomas atrelados à prática da enganação e à mentira patológica sugerem que não seria possível compreender como essas variáveis poderiam apresentar-se em casos fronteiriços que perfazem o espectro. Nesse sentido, o objetivo do presente trabalho não foi obter índices indicativos para averiguar a ocorrência de transtornos de personalidade dessa natureza na amostra investigada. Por outro lado, uma vez que as distorções que se verificam em estudos envolvendo o construto psicopatia e instrumentos de autorrelato podem também sinalizar distorções a partir das quais o indivíduo tende a querer chamar a atenção para as suas próprias tendências antissociais, esta pesquisa sugere que tais distorções mais significativas podem, de fato, ocorrer em um percentual pequeno da população.

Em diferentes aspectos, o estudo desenvolvido não foi suficiente para responder de forma conclusiva a pergunta que intitula este artigo. Se por um lado, o número de pessoas que indicaram que alterariam suas respostas diante da situação hipotética descrita revelou-se alto, ultrapassando 10% do total da amostra na maioria dos itens, por outro, a magnitude dessas diferenças foi pequena, principalmente em se tratando da escala como um todo. Esses achados convergem com trabalhos anteriores que sinalizam que, principalmente para amostras maiores, o efeito dessas distorções não tende a comprometer a validade de critério desses instrumentos (Tracey, 2016). Os dados, entretanto, indicam que instrumentos de autorrelato para avaliar tendências antissociais da personalidade devem ser utilizados com cautela em determinadas situações de avaliação. Umaressalva que vai ao encontro das observações já feitas por Kagan (2007), bem como outras decorrentes do trabalho de Guy et al. (2008).

O estudo realizado não sinalizou, no entanto, a inadequação de instrumentos de autorrelato que avaliam tendências antissociais para fins de pesquisa. Os resultados indicam que existem alguns problemas que podem decorrer das condições de aplicação, mas que estes podem ser contornados. Cita-se, como exemplo, a possibilidade de aplicar tais testes em situações nas quais o avaliado depare-se com evidências de que seu próprio protocolo de respostas não será manuseado pelos pesquisadores de forma que esses mesmos pesquisadores possam identificar o respondente. A utilização de números específicos para cada participante substituindo o nome na folha de respostas quando o objetivo for correlacionar dois ou mais instrumentos de avaliação psicológica pode, nesse sentido, revelar-se uma alternativa cabível. As condições de recolhimento da folha de respostas também podem representar procedimentos apropriados para minimizar o problema da desejabilidade social perante os avaliadores. Infere-se que enfatizar o fato de que as folhas de respostas serão entregues com a face virada para baixo, sendo colocadas sobre outras folhas correspondentes pode ser uma medida auxiliar para esses fins. Torna-se importante ressaltar, nesses termos, que, neste estudo, aventou-se que, na situação hipotética descrita, somente os pesquisadores teriam contato com os protocolos de resposta e o sigilo seria totalmente assegurado na divulgação final dos resultados. Uma consideração que, por si só, foi suficiente para que uma parte dos avaliados cogitasse mudanças quanto à quantificação já realizada. Em outras palavras, tais mudanças seriam decorrentes tão somente do fato do avaliado considerar que as suas repostas poderiam ser visualizadas pelos pesquisadores responsáveis. Esse achado coaduna-se com o trabalho desenvolvido por Heggestad (2012), destacando o fato de que a desejabilidade social atrela-se tanto a aspectos da personalidade como também às condições de aplicação desse tipo de instrumento. Portanto, em situações de pesquisa, parece plausível considerar que esse viés pode e deve ser minimizado.

Como limitação do presente estudo, destaca-se o fato de que, a partir dos métodos empregados, não foi possível discutir outros aspectos que podem afetar a avaliação realizada por intermédio de instrumentos de autorrelato. A real compreensão de cada item por parte dos avaliados, bem como a capacidade de perscrutar suas próprias tendências comportamentais não foram problematizadas nesta pesquisa. Objetivou-se apenas dimensionar possíveis distorções decorrentes de atitudes deliberadas por parte dos avaliados. Além disso, ressalta-se outra limitação relativa ao fato de que os escores reais não foram explicitados nas duas condições de aplicação. Esse aspecto, por si só, limita as análises complementares, inviabilizando, por exemplo, uma análise fatorial do próprio instrumento elaborado para esses fins. Entende-se que o método empregado privilegiou o sigilo das informações como condição necessária para que as diferenças pudessem ser dimensionadas no que se refere ao participante entregar ou não entregar a folha de respostas. No entanto, tal fato só permite inferir o quão distante uma alteração explicitada estaria da resposta real não explicitada para os pesquisadores, sem que se possa obter outras análises mais específicas.

Deve-se ressaltar ainda o tamanho da amostra que pode ser ampliado em estudos posteriores, seguindo os mesmos direcionamentos metodológicos. A relação da magnitude dessas distorções com fatores da personalidade, bem como com a desejabilidade social medida por outros instrumentos específicos também pode gerar aperfeiçoamentos nesse campo.

Ainda que o presente trabalho não tenha esgotado uma discussão que, conforme McGrath et al. (2010) revela-se bastante antiga na esfera da Psicometria, novos dados foram agregados a essa mesma discussão na pesquisa nacional. Dados que, por sua vez, mostram-se sugestivos, ainda que não conclusivos, quanto ao fato de que a questão sobre os instrumentos de autorrelato medirem aquilo que objetivam medir é uma pergunta cuja resposta parece depender tanto do contexto de avaliação, bem como das condições de aplicação desses mesmos instrumentos.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Avenida Roraima, 1000, Cidade Universitária, Camobi, 97105-900
Santa Maria, RS. Centro de Ciências Sociais e Humanas, prédio 74B
sala 3204. Tel.: (55) 3220-8000
E-mail: silviojlvasconcellos@hotmail.com

Recebido em dezembro de 2017
Aceito em maio de 2018

 

 

Notas sobre os Autores
Silvio José Lemos Vasconcellos é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria e coordenador do grupo Pesquisa e Avaliação de Alterações da Cognição Social - PAACS.
Felipe Ayres Pozzoboné graduando (2014-2018) em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria e integrante do Grupo PAACS.
Andressa Rocha Da Cas é graduanda (2014-2018) em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria e integrante do Grupo PAACS.
Otávio Ferreira Moraes é graduando (2014-2018) em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria e integrante do Grupo PAACS.
Amanda Mayer da Rocha é graduanda (2014-2018) em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria e integrante do Grupo PAACS.
Raul Corrêa Ferraz é graduado em Psicologia (2013-2017) pela Universidade Federal de Santa Maria e integrante do grupo PAACS.

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