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Avaliação Psicológica

versión impresa ISSN 1677-0471versión On-line ISSN 2175-3431

Aval. psicol. vol.21 no.1 Campinas ene./mar. 2022

http://dx.doi.org/10.15689/ap.2022.2101.21880.10 

ARTIGOS

 

Desenvolvimento e Validação da Versão em Português da Friends and Family Interview

 

Developing and validation the Portuguese Version of the Friends and Family Interview

 

Desarrollo y Validación de la Versión Portuguesa de la Friends and Family Interview

 

 

Fernanda Munhoz Driemeier SchmidtI; Amanda Aquino da CostaII; Gabriela Dionisio FfnerIII; Leonardo Copello ValentiniIV; Vera Regina Rohnelt RamiresV

IUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, Porto Alegre-RS, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-3072-9671
IIUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, Porto Alegre-RS, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-5873-1469
IIIUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, Porto Alegre-RS, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-5519-8462
IVUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, Porto Alegre-RS, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-2389-6287
VUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, Porto Alegre-RS, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-1760-7154

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi a adaptação e validação da entrevista Friends and Family Interview que avalia o estilo de apego e a função reflexiva de crianças e adolescentes. Para adaptação, foram avaliadas a equivalência semântica, idiomática, experiencial e conceitual entre a versão traduzida e o instrumento original. A versão final da entrevista foi aplicada a uma amostra clínica de jovens entre 9 e 17 anos (M=13,12; DP=2,72) do sul do Brasil. Constatou-se que a versão em português apresentou uma consistência interna alta (α=0,79), assim como uma boa concordância entre avaliadores (α=0,89). A análise fatorial exploratória revelou dois componentes principais que melhor explicaram os dados, denominados Segurança nos Relacionamentos e Funcionamento Reflexivo (α=0,95) e Insegurança do Apego (α=0,72). Os resultados apoiaram a validade de construto e de critério da FFI e forneceram evidências de sua utilidade na avaliação do apego e da função reflexiva na infância e adolescência.

Palavras-chave: Friends and Family Interview; estilos de apego; crianças; adolescentes; funcionamento reflexivo.


ABSTRACT

The study aimed to adapt and validate the Friends and Family Interview that assesses the attachment style and the reflective function in children and adolescents. The semantic, idiomatic, experiential and conceptual equivalences between the original and the translated version were analyzed. Then the final version was applied in a clinic sample of young people ranging from 9 to 17 years of age (M=13.12 SD=2.72 years), of southern Brazil. The statistical tests showed a high internal consistency (α=.79), as well as a good inter-evaluators reliability (α=.89) in the Portuguese version of the FFI. Exploratory factor analysis yielded two main factors, Relationships Security and Reflective Functioning (α=.95) and Attachment Insecurity (α=.72). The data supported the construct and criterion validities of the Portuguese version of the interview protocol. The FFI is a useful tool for the evaluation of attachment and reflective function in children and adolescents.

Keywords: Friends and Family Interview; attachment dimensions; children; adolescents; reflective functioning.


RESUMEN

El objetivo de este estudio fue la adaptación y la validación de la entrevista Friends and Family Interview (FFI) que evalúa el estilo de apego y la función reflexiva de niños y adolescentes. Para la adaptación se evaluó la equivalencia semántica, idiomática, experiencial y conceptual entre la versión traducida y el instrumento original. La versión final de la entrevista se aplicó a una muestra clínica de jóvenes entre 9 y 17 años (M=13,12; DS=2,72) del sur de Brasil. Se encontró que la versión portuguesa tenía una alta consistencia interna (α=0,79), así como una buena concordancia entre evaluadores (α=0,89). El análisis factorial exploratorio reveló dos componentes principales, denominados Seguridad en las Relaciones y Funcionamiento Reflexivo (α=0,95) e Inseguridad del Apego (α=0,72). Los resultados apoyaron la validez de criterio y constructo de la FFI y proporcionaron evidencias de su utilidad para evaluar el apego y la función reflexiva en la niñez y en la adolescencia.

Palabras clave: Entrevista con Amigos y Familiares; estilos de apego; niños; adolescentes; funcionamiento reflexivo.


 

 

A teoria do apego consolidou a ideia de que o desenvolvimento na infância está ancorado na oportunidade da criança de estabelecer um relacionamento com um cuidador principal, que atenda às suas necessidades físicas e emocionais de forma sensível e satisfatória (Ainsworth et al., 1978; Bowlby, 1989) e duas proposições são consideradas centrais na teoria. A primeira é de que os padrões de apego desenvolvidos na infância são relativamente estáveis ao longo da vida e a segunda é que o estilo de apego ajuda a explicar o desenvolvimento de psicopatologias futuras (Bowlby, 1989). Ambos pressupostos vêm sendo testados empiricamente, o que requer a presença de medidas de avaliação válidas e confiáveis.

Bowlby postulou que as crianças desenvolvem modelos internos de funcionamento a partir de suas experiências com figuras de apego (Bowlby, 1989; Bretherton & Munholland, 2008). As interações precoces com esses cuidadores tornam-se integradas, formando tais modelos internos de funcionamento - representações mentais de si, de outras pessoas e das relações entre ambos - que servem para organizar e dar sentido às experiências passadas e guiar crenças sobre como se comportar quando angustiado e o que esperar dos outros, no presente e em interações futuras (Bowlby, 1989).

Assim, os modelos internos de funcionamento estão ancorados na sensação de segurança em relação aos cuidadores e na confiança de que eles lhe prestarão o suporte quando necessário. Ou seja, depende da confiança do indivíduo de que as figuras de apego, em geral, estão prontamente disponíveis, ocasionalmente ou quase nunca e de como ele enfrentará situações difíceis e desafiadoras. Consequentemente, esse modelo internalizado é considerado a base para todos os relacionamentos íntimos futuros (Bretherthon & Munholland, 2016).

O processo ligado à construção dos modelos de funcionamento interno capacita a função reflexiva (FR) e a habilidade de mentalização da criança, o que é determinante para a organização do self (Fonagy et al., 2002). Diferentemente dos modelos de funcionamento interno, a FR não se solidifica cedo, ela vai se estruturando com o tempo, de acordo com o desenvolvimento e as características particulares de cada criança (Fonagy & Target, 1996).

A capacidade de mentalização refere-se à capacidade de refletir sobre a experiência interna, conhecer, imaginar e representar os próprios comportamentos e os dos outros, com base nos estados mentais subjacentes (Fonagy et al., 2002). Em torno dos três anos de idade, a criança pode conseguir distinguir facilmente uma experiência interna do mundo externo. Aos quatro anos, uma teoria da mente torna-se mais evidente, a criança começa a perceber que seu entendimento pode ser diferente dos outros e ela começa a compreender os seus comportamentos e o dos outros, quando percebe que estes estão ligados a estados mentais. Aos cinco anos, a criança vai entender que esses estados mentais são representações e que essas podem ser falhas ou mudarem com o passar do tempo (Fonagy & Target, 1996).

A aquisição da capacidade de mentalizar, resultante desse processo, é parte de uma experiência intersubjetiva entre a criança e o cuidador, que se desenvolve no contexto de relacionamentos de apego seguro, facultando à criança a possibilidade de alcançar a regulação e o controle das próprias emoções, desenvolver a segurança interna, a autoestima e a autonomia. O estabelecimento sólido da capacidade de mentalização tem um efeito protetor, enquanto, ao contrário, seu status relativamente frágil implica numa vulnerabilidade para traumas ulteriores, pois a FR dos cuidadores permite à criança a aquisição dessas mesmas capacidades (Fonagy et al., 2002).

Considerando que a infância e a adolescência constituem fases do desenvolvimento para as quais ainda não existem medidas do apego e do funcionamento reflexivo adaptadas e validadas no Brasil, este estudo visou adaptar para o português brasileiro e identificar evidências de validade da entrevista Friends and Family Interview (FFI; Kriss et al., 2012; Steele & Steele, 2005).

Friends and Family Interview

A FFI foi desenvolvida no contexto de um estudo de follow-up de 11 anos, o London Parent-Child Project (Kriss et al., 2012; Steele & Steele, 2005). Nesse projeto, foram observados pais de primogênitos durante o período pré-natal e a infância da criança. O estudo demonstrou que as características de apego da criança aos 11 anos já podiam ser identificadas previamente no início da infância e estavam relacionadas ao estilo de apego dos pais identificado no período pré-natal (Steele & Steele, 2005).

A entrevista FFI é teoricamente baseada na Adult Attachment Interview (AAI), mas dimensionada para as habilidades desenvolvimentais da população infanto-juvenil, buscando aferir os estados mentais relativos ao apego de crianças e adolescentes de 9 a 16 anos. Assim como a AAI, a FFI, mesmo tendo sido elaborada em ambiente de pesquisa, pode ter aplicações clínicas relevantes (Kriss et al., 2012; Steele & Steele, 2005). Essas aplicações derivam do fato de que a FFI combina uma abordagem de entrevista narrativa com temas apropriados ao estágio de desenvolvimento desses jovens, abrangendo questões acerca das representações do self, dos relacionamentos com os pares, tão centrais nessa faixa etária, e com os pais e irmãos. A entrevista, semelhante a uma entrevista clínica, pode contribuir para o estabelecimento da aliança terapêutica, para a formulação de objetivos compartilhados para o trabalho terapêutico, e como medida de progresso e resultados do tratamento. Além disso, ao fornecer uma classificação do estilo de apego predominante e do nível de funcionamento reflexivo, a FFI fornece importantes informações sobre as características psicopatológicas do jovem. Nesse sentido, seus constructos já foram utilizados, por exemplo, como preditores de ansiedade em jovens de minorias étnicas (Esbjørn et al., 2016), e para avaliar representações do apego em crianças e adolescentes adotados (Escobar & Santelices, 2013; Pace, 2014).

A FFI vem acompanhada de um manual detalhado que orienta a sua classificação (Steele et al., 2015). Ela requer treinamento e certificação para sua utilização. Os avaliadores atribuem uma classificação do apego global para a entrevista, que pode ser seguro ou inseguro (com os subtipos desligado ou preocupado, além da classificação desorganizado/desorientado) (Kriss et al., 2012). O estilo de apego retratado nessa classificação resulta da qualidade do relacionamento do bebê com os cuidadores primários, e do quanto os cuidados recebidos foram sensíveis, contingentes e estáveis. Nessa hipótese, será possível o estabelecimento de um estilo de apego seguro. Do contrário, a imprevisibilidade da conduta do cuidador, sua indisponibilidade, ou, nos casos extremos, as situações de negligência e/ou maus tratos poderão gerar os diferentes subtipos de apego inseguro - preocupado, desligado ou desorganizado/desorientado, respectivamente (Main, 2000; Main et al., 1985).

Os modelos internos de funcionamento descritos acima, que envolvem as representações mentais de si, de outras pessoas e das relações entre ambos (seguras ou inseguras), pressupõem as noções de porto seguro e base segura (Kriss et al., 2012). Uma suposição central da teoria do apego é que a saúde mental na faixa etária das crianças e adolescentes abrangida pela FFI continua a depender, tal como na primeira infância, do senso de poder contar com uma base segura, oferecida pelos cuidadores primários, a partir da qual a própria autonomia pode ser explorada e exercitada. Tão importante quanto a base segura é o senso de um porto seguro, disponível a partir da mãe, do pai ou outros, para o qual retornar e buscar apoio em momentos de angústia e sofrimento.

A FFI é uma entrevista de fácil aplicação. Envolve questões que fazem parte do escopo de interesses e experiências das crianças e adolescentes para os quais se destina, diferenciando-se da formalidade que a aplicação de muitos testes psicológicos suscita. Possui uma aplicabilidade no contexto da clínica e, também, no da pesquisa, e gera uma riqueza de informações acerca das representações de apego do jovem, do seu funcionamento reflexivo, características defensivas, fatores que a tornam um instrumento útil e vantajoso.

A entrevista já foi validada na Bélgica, Romênia e Chile (Escobar & Santelices, 2013; Kriss et al., 2012; Stievenart et al., 2014). Adicionalmente, diversos estudos demonstraram sua validade e importância, tanto para pesquisas quanto para a clínica de crianças e adolescentes (Breinholst et al., 2018; Escobar & Santelices, 2013; Obeldobel & Kerns, 2019; Pace, Folco, & Guerriero, 2018; Pace, Muze, & Steele, 2019; Psouni et al., 2020; Stievenart et al., 2014).

Em síntese, pode-se afirmar que a literatura é unânime ao apontar a relevância dos estudos sobre o apego com base em instrumentos ou entrevistas reconhecidas (Kneer & Guzmán, 2019). No Brasil, especialmente no que diz respeito a instrumentos de avaliação e/ou entrevistas para uso com crianças ainda encontramos um grande déficit (Carvalho & Ramires, 2018). Nesse sentido, considera-se fundamental a disponibilização de instrumentos que contemplem esse constructo, permitindo sua utilização no âmbito da clínica e da pesquisa. A partir disso, o objetivo desse estudo foi adaptar Friends and Family Interview (FFI) para o português brasileiro e identificar evidências de validade da entrevista.

 

Método

Instrumentos

Friends and Family Interview (FFI)(Steele & Steele, 2005; Steele, et al., 2015) - trata-se de uma entrevista estruturada para avaliar o apego e a FR em crianças e adolescentes. Composta por 28 perguntas, de fácil aplicação, com duração em torno de 30 minutos e que aborda questões que fazem parte do escopo de interesses e da experiência dos jovens entre 9 e 16 anos. Após a realização da entrevista (que deve ser gravada ou filmada) e da sua transcrição, uma escala é aplicada ao material obtido. Essa escala abrange oito dimensões: coerência, teoria da mente, disponibilidade de base segura e porto seguro, autoestima, relações com os pares, relações com os irmãos, ansiedades e defesas e diferenciação das representações dos pais. Cada dimensão é avaliada de forma independente numa escala de quatro pontos, de acordo com sua presença e significância: 1 = sem evidências; 2 = pouca evidência; 3 = evidência moderada; 4 = forte evidência. A partir da pontuação da entrevista, identifica-se uma classificação de estilo de apego predominante (seguro-autônomo, inseguro-desligado, inseguro-preocupado, desorientado-desorganizado) (Steele et al., 2015).

A coerência é considerada um fator crucial para a análise da entrevista, na medida em que um pressuposto da avaliação das representações do apego é que a forma da narrativa das experiências de apego é mais importante do que o conteúdo (Kriss et al., 2012). Assim, é importante que o discurso do entrevistado seja convincente, com exemplos relevantes, que forneça a quantidade apropriada de informações e que seja mantido um nível adequado de atenção, de educação e de interesse durante a entrevista.

Os modelos funcionais internos são avaliados na FFI de acordo com a forma como a criança ou adolescente retrata seus cuidadores, como um porto seguro e uma base segura e a forma como elabora suas respostas adaptativas à angústia e estresse (Kriss et al., 2012). A FR na FFI é analisada com base em três domínios: perspectiva desenvolvimental, teoria da mente e diversidade de sentimentos. Tais domínios são pontuados para cada relacionamento investigado ao longo da entrevista (Steele et al., 2015).

O processo de codificação da FFI implica uma integração dos constructos discutidos acima. A classificação de apego seguro de uma criança está diretamente ligada à coerência de sua narrativa. A resposta adaptativa e a perspectiva de desenvolvimento também são consideradas particularmente indicativas de equilíbrio, abertura e capacidade reflexiva, o que é considerado típico de jovens com apego seguro. Já os estilos de apego inseguro geralmente apresentam coerência global baixa, a diversidade de sentimentos é restrita, há dificuldade da criança para refletir sobre si mesma, apresentando um desequilíbrio e uma grande culpabilização dos pais ou de si mesma ou ainda, uma narrativa desorganizada, com estratégias contraditórias ou incompatíveis, com lapsos no monitoramento do raciocínio ou discurso e referências a experiências traumáticas ou assustadoras não elaboradas (Steele et al., 2015). Estudos internacionais fornecem evidências de sua fidedignidade e validade de constructo (Psouni, et al., 2020; Steele & Steele, 2005, Stievenart et al., 2014).

Reflective Function Questionaire for Youths (RFQY; Sharp et al., 2009) -investiga o nível de funcionamento reflexivo do jovem. É composto por 46 itens que são respondidos numa escala Likert de seis pontos. Foi traduzido para o Português Brasileiro por Favaretto, Both e Benetti (2019) e utilizado junto a uma amostra de 214 adolescentes, tendo sido encontrado uma consistência interna de 0,60. O RFQY foi utilizado nesse estudo para análise da validade de critério da FFI.

Procedimentos

Inicialmente, uma das autoras deste estudo foi treinada pelo autor do instrumento para utilização da FFI, recebendo a certificação necessária. Foi então obtida a permissão do autor para tradução e adaptação do protocolo de entrevista para o português brasileiro. O projeto mais amplo do qual este estudo faz parte foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNISINOS e respeitou as Resoluções do Conselho Nacional de Saúde no 510. O processo de tradução e adaptação para o português brasileiro da FFI foi realizado seguindo os preceitos metodológicos sugeridos por Borsa et al. (2012). Foram percorridas quatro etapas, sintetizadas na Figura 1.

Na primeira etapa, dois tradutores fluentes no idioma de origem traduziram a entrevista, de modo independente, para o português brasileiro. Na segunda etapa, as traduções foram comparadas pelos autores do presente estudo, avaliando cada questão de acordo com os parâmetros de Borsa et al. (2012), que recomendam avaliar a equivalência semântica, idiomática, experiencial e conceitual. A versão sintetizada foi analisada e aprovada por um comitê de experts. Esse grupo foi formado por cinco psicólogos com experiência clínica que variava de dois anos a 25 anos (M=10,6), todos com especialização em psicoterapia psicanalítica de crianças e adolescentes e com mestrado e/ou doutorado na área.

Foi realizada também uma avaliação do instrumento pelo público-alvo (Borsa et al., 2012). Participaram de um grupo focal cinco crianças e adolescentes de 11 a 16 anos, de escolas particulares de Porto Alegre. As instruções e perguntas da entrevista foram lidas em voz alta e analisadas. Foi discutido se as expressões correspondiam àquelas utilizadas pelo grupo, se eles tinham alguma sugestão de melhora ou mudança e como eles achavam que seria para os pares responderem àquela entrevista.

Na terceira etapa, foi realizada a tradução reversa para o idioma de origem por dois tradutores nativos no idioma alvo (português), fluentes e proficientes no idioma de origem do instrumento. A síntese das versões retrotraduzidas foi obtida por consenso e a versão final foi submetida à avaliação do autor da FFI, tendo sido aprovada.

Na quarta etapa, a versão final da FFI foi aplicada junto a uma população clínica de 93 crianças e adolescentes de nove a 17 anos (M=13,12; DP=2,72), sendo 47 do gênero feminino e 46 do masculino. Os jovens, acompanhados por seus responsáveis, buscaram atendimento psicológico junto a uma clínica de saúde mental. Após a triagem e uma vez encaminhados para psicoterapia, foram convidados a participar do estudo. Todos os cuidados éticos foram seguidos. Os responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e os jovens o Termo de Assentimento. As entrevistas foram realizadas na própria clínica por integrantes da equipe de pesquisa (estudantes de Psicologia e psicólogos treinados para realizar a FFI) e foram gravadas em áudio bem como transcritas. Após a entrevista da FFI, os jovens foram solicitados a responder à RFQY.

Os protocolos das entrevistas realizadas nesse estudo foram classificados por um comitê de quatro juízes treinados. O treinamento foi ministrado pelo juiz com certificação de treinamento da FFI. O treinamento consistiu em 70 horas dedicadas ao estudo da entrevista e do manual, leituras e discussão de artigos que utilizaram a FFI, avaliações de entrevistas em grupo e avaliação de entrevistas individualmente, cujos escores foram comparados com a avaliação da autora com certificação.

As 93 entrevistas foram avaliadas por dois juízes independentes, sendo distribuídas aleatoriamente entre esses juízes, que estavam cegos para quaisquer informações sobre os participantes e sobre seus quadros clínicos. Um terço dessas entrevistas foi avaliado também pelo juiz com certificação da entrevista.

Para identificar evidências de validade da FFI, foram realizadas análises de fidedignidade do avaliador, calculando-se a concordância entre juízes (Zanon & Hauck Filho, 2015), validade de critério concorrente e validade de constructo, com base na análise da consistência interna, análise fatorial e análise multivariada de variância, MANOVA (Pacico & Hutz, 2015; Urbina, 2009). Essas análises foram realizadas utilizando o programa estatístico SPSS, versão 23.0.

 

Resultados

Tradução da FFI

O grupo de experts que analisou a versão em português da FFI foi unânime em avaliar a entrevista como bem estruturada, clara e contendo os principais pontos a serem explorados na avaliação do apego e da FR. Na avaliação realizada junto ao público-alvo, o grupo referiu gostar da entrevista, não apresentando sugestões de mudanças.

Houve uma boa equivalência na maioria das perguntas da FFI entre as versões dos dois tradutores na etapa de tradução do instrumento do idioma original para o idioma alvo. Em poucas questões foi realizado algum ajuste para assegurar a equivalência semântica (Borsa et al., 2012). Em duas questões foi necessário um ajuste idiomático. Na tradução reversa para o idioma original da FFI nenhuma questão indicou que a tradução reversa poderia dar margem a uma interpretação diferente da pergunta original. A análise do autor da entrevista ratificou e aprovou a versão retrotraduzida, sem solicitar nenhuma modificação.

Com relação à equivalência conceitual, não foi identificada nenhuma questão cujo significado tivesse sido comprometido, tanto pelo comitê de experts quanto pelos participantes do público-alvo ou mesmo na análise final do autor da FFI. Quanto à equivalência experiencial (Borsa et al., 2012), constatou-se a aplicabilidade das questões da FFI no contexto brasileiro.

Fidedignidade do avaliador - concordância entre juízes

O grau de concordância entre os juízes que avaliaram as entrevistas foi altamente satisfatório. O teste de correlações intraclasse indicou uma média na concordância interavaliadores de 0,89 (alpha de Cronbach) com DP=0,07, variando de 0,72 a 0,99.

Validade de constructo

A entrevista apresentou uma alta consistência interna (a = 0,79). Para avaliar a adequação da matriz de correlações para realização da análise fatorial exploratória, foram realizados os testes Kaiser-Meyer-Olkin de adequação de amostragem (KMO) e o teste de esfericidade de Bartlett. O teste de Bartlett confirmou a adequação da base de dados para redução, indicando o resultado de p < 0,0001. O KMO foi 0,79, confirmando a fatoriabilidade da matriz de correlações. Uma vez que não havia base teórica para o pressuposto de ortogonalidade (independência entre os fatores; Psouni et al., 2020), a análise fatorial exploratória adotou o método de rotações oblíquas (Oblimin direto).

Dos 44 itens da escala da FFI, seis foram retirados da análise, aqueles relativos aos irmãos e ao professor(a), devido à sua baixa fatoriabilidade. A análise inicial resultou em nove componentes, que em conjunto explicavam 69,77% da variância nos dados. Com base no Gráfico de Escarpa e no autovalor superior a 2,5, uma solução de dois componentes foi calculada, resultando em 40,73% de variância explicada. O fator 1, denominado Segurança nos Relacionamentos e Funcionamento Reflexivo, capturou 32,99% da variância dos dados, e apresentou uma consistência interna excelente (α =0,95). O fator 2, denominado Insegurança do Apego, capturou 7,74% da variância dos dados e apresentou uma consistência interna bastante satisfatória (α =0,72). Não foi identificada correlação entre os dois fatores (r = 0,04, ns) e a Rotação Varimax resultou na mesma estrutura fatorial, indicando uma independência dos fatores. Os dois fatores e suas cargas fatoriais são apresentados na Tabela 1.

Para avaliar a relação entre as dimensões latentes da FFI, derivadas da análise fatorial exploratória e as classificações do apego resultantes da análise das entrevistas da FFI, foi realizada uma análise de variância multivariada (MANOVA), com a classificação do apego da FFI como variáveis de agrupamento e os dois fatores derivados da análise fatorial como variáveis dependentes. O efeito multivariado da classificação de apego nos dois fatores foi significativo (Rastreio de Pillai= 18,211, gl=2, p=0,00). Os principais efeitos univariados da classificação de apego foram significativos para todos os fatores. Diferenças significativas em cada escore fatorial também foram identificadas, ao comparar em pares os grupos de crianças classificadas como seguras, desligadas, preocupadas e desorganizadas (Bonferroni). Esses resultados estão apresentados na Tabela 2. Como pode ser observado, a pontuação média no fator 1 foi maior para o grupo de crianças classificadas como seguras em comparação com todas as outras classificações. Enquanto a pontuação média para o fator 2 foi maior para as crianças classificadas como desorganizadas em comparação com todas as outras classificações.

Validade de critério - convergente

A validade de critério do tipo convergente foi analisada correlacionando os resultados obtidos na FFI e na RFQY. Foram considerados todos os itens da escala aplicada à FFI, menos aqueles relativos aos irmãos (nem todos os participantes tinham irmãos e, alguns, mesmo tendo irmãos, não conviviam com eles), os itens relativos ao professor e às ansiedades e defesas, mantendo-se os itens que avaliam a coerência, o funcionamento reflexivo, as evidências de porto seguro e base segura, evidências de autoestima, relações com pares, resposta adaptativa e diferenciação das representações parentais.

Os pressupostos de normalidade foram testados para os escores totais obtidos com a FFI e com a RFQY, com base no teste de Kolmogorov-Smirnov; O teste indicou uma distribuição normal em relação à RFQY (KS = 0,069, gl = 92, p = 0,200) e à FFI (KS = 0,163, gl = 92, p = 0,000). A distribuição dos escores foi positivamente assimétrica (1,33) e leptocúrtica (curtose=2,78). Consequentemente, foi utilizado um teste não paramétrico. A correlação de Spearman resultou em r = 0,29, p < 0,01.

A correlação dos fatores resultantes da análise fatorial exploratória com os resultados da RFQY também foi testada, e evidenciou resultados idênticos para o fator 1. O rô de Spearman relativo ao fator 1 (Segurança nos Relacionamentos e Funcionamento Reflexivo) foi r = 0,29, p < 0,01. Quanto ao fator 2 (Insegurança do Apego), como esperado, a correlação não foi significativa (r = 0,15, ns).

 

Discussão

O objetivo desse estudo foi adaptar a FFI para o português brasileiro e identificar evidências de validade do instrumento. A entrevista se mostrou de fácil aplicação, permitindo a apreensão de informações importantes sobre a experiência dos jovens entrevistados nos seus relacionamentos significativos, bem como acerca dos modelos representacionais desses relacionamentos, do seu funcionamento reflexivo e das estratégias utilizadas para regulação do afeto (Bretherthon, & Munholland, 2016; Fonagy et al, 2002).

A FFI engloba questões importantes acerca do universo dos jovens entre nove e 17 anos. Borsa et al. (2012) destacaram que um dos cuidados fundamentais na adaptação de entrevistas e instrumentos é que os principais conceitos e assuntos abordados sejam adequados à cultura da população alvo e, nesse sentido, a entrevista mostrou-se bastante atual e pertinente, tanto sob a ótica dos experts como dos adolescentes consultados.

A entrevista apresentou alta consistência interna (a= 0,79) e o índice de concordância entre os avaliadores, de 0,89, corroborou sua fidedignidade, ainda mais considerando que os 93 protocolos foram submetidos à análise de dois juízes. Ademais, os resultados da FFI foram comparados com os resultados obtidos pela mesma amostra na RFQY, visando verificar a validade de critério concorrente. Tanto considerando a média final dos itens da FFI como os escores dos itens componentes do fator 1, resultante da análise fatorial exploratória, obteve-se a correlação de Spearman de r = 0,29, p < 0,01.

Segundo Achenbach et al. (1987), avaliações de métodos cruzados que utilizam questionário e uma medida baseada em entrevista, como neste caso, costumam reportar correlações em torno de 0,30. De maneira semelhante, Ha et al. (2013) examinaram a validade de critério da RFQY, comparando-a com a Child Reflective Function Scale (CRFS) desenvolvida por Target et al. (2001), aplicada à Child Attachment Interview (CAI), uma entrevista semiestruturada, junto a uma amostra clínica de 146 adolescentes de 12 a 17 anos. Ha et al. (2013) encontraram uma correlação de Spearman de r = 0,24, p = 0,04.

Assim, embora a correlação entre a FFI e a RFQY tenha sido moderada, ela foi significativa, fornecendo evidência preliminar de validade de critério da entrevista. Possíveis hipóteses para não ter sido identificada uma correlação mais forte dizem respeito à natureza das duas medidas mencionadas acima (uma entrevista e um questionário de auto relato), o que pode refletir, de um lado, algum efeito decorrente de uma possível ansiedade frente à situação de entrevista com um profissional da Psicologia, e de outro lado, dependendo das características do jovem, uma tendência à superestimação ou subestimação das respostas no questionário de auto relato. Outras hipóteses podem estar relacionadas ao número da amostra participante deste estudo ou a possíveis limitações da FFI e/ou da RFQY, salientando-se que a RFQY também se encontra em processo de validação tanto no Brasil (Favaretto et al., 2019) como em outros países (Ha et al., 2013).

A análise fatorial exploratória da estrutura latente do sistema de codificação da FFI apontou para dois fatores com alta consistência interna e capazes de explicar aproximadamente 41% da variância dos itens da escala. Esses dois fatores foram bastante semelhantes a dois dos três fatores identificados por Psouni et al. (2020). Psouni et al. (2020) desenvolveram um estudo com o objetivo de especificar a estrutura latente da FFI, junto a 341 crianças com idades de oito a 12 anos de uma região da Escandinávia que abrange o sul da Suécia e o leste da Dinamarca. As crianças dessa amostra não apresentavam diagnósticos psiquiátricos nem mantinham contato com serviços de saúde mental. As entrevistas foram realizadas nas escolas das crianças, e os autores identificaram três fatores, que foram denominados como "Segurança", "Preocupação" e "Idealização". No presente estudo, o fator 1 foi composto por 26 itens da FFI, sendo 22 itens idênticos aos fatores que compõem o fator 1 do estudo de Psouni et al. (2020), composto por 23 itens. Quatro dos cinco itens que compõem o fator 2 do presente estudo também compõem o fator 2 do estudo feito com as crianças escandinavas, que incluiu sete itens no total (porém, o estudo de Psouni et al. incluiu um item com carga fatorial inferior a 0,40). A conceitualização desses fatores mostrou-se bastante semelhante nos dois estudos, como se verá a seguir.

O fator 1 abrange dimensões avaliadas pela entrevista que apontam para um estilo de apego seguro-autônomo e para um funcionamento reflexivo. Itens relacionados à coerência do discurso, considerada um fator crucial para análise das representações do apego e da capacidade reflexiva do jovem (Kriss et al., 2012), evidenciaram altas cargas fatoriais. Da mesma forma, os itens da escala que avaliam evidências de base segura e de porto seguro, tanto em relação à mãe como ao pai, bem como resposta adaptativa, também integram esse fator e constituem aspectos cruciais para o desenvolvimento de um estilo de apego seguro (Bolwlby, 1989; Bretherton & Munholland, 2008). Além disso, variáveis como autoestima, competência social e escolar, qualidade da relação com os pares, que integram este fator, já foram vinculadas à segurança do apego nessas etapas do desenvolvimento, em estudos anteriores (Psouni et al., 2015; Stievenart et al., 2014), corroborando os achados deste estudo.

Como vimos antes, o funcionamento reflexivo do indivíduo se desenvolve no contexto de relacionamentos de apego seguro (Fonagy & Target, 1996; Fonagy, et al., 2002). O funcionamento reflexivo envolve uma compreensão dos pensamentos e sentimentos próprios e os dos outros, uma noção de que tais sentimentos podem ser contraditórios e também de que nossa visão sobre nós mesmos e sobre os outros muda ao longo da nossa vida e do nosso desenvolvimento. Alinhado a essas concepções teóricas, foi possível constatar que as dimensões que avaliam esse constructo na FFI também integraram esse primeiro fator identificado: a teoria da mente em relação à figura da mãe, do pai e do melhor amigo, a diversidade de sentimentos em relação a essas figuras e ao próprio self e a perspectiva desenvolvimental, investigada na entrevista através das questões sobre a visão do jovem acerca do quanto seu relacionamento com os pais mudou desde que era pequeno e irá mudar quando crescer mais. Esses resultados são similares aos encontrados no estudo de Psouni et al. (2020), em que foi identificado um fator que reuniu ambos os constructos - a segurança do apego e o funcionamento reflexivo. Como foi discutido por esses pesquisadores, se na vida adulta esses constructos podem ser considerados como dois constructos distintos, na infância parece que eles não podem ser separados.

Finalmente, é interessante notar que o item relativo à classificação do apego seguro-autônomo apresentou uma das mais altas cargas nesse primeiro fator, assim como no estudo de Psouni et al. (2020). De maneira coerente, os itens correspondentes às classificações inseguro-desligado e inseguro-preocupado tiveram cargas negativas nesse fator, confirmando a conceitualização formulada para o mesmo.

O fator 2 incluiu alguns dos itens relativos às ansiedades e defesas, uma das dimensões que integram o sistema de codificação da FFI. Os itens que integraram este fator foram raiva da mãe e do pai e desvalorização do pai, da mãe e do self. A raiva é um item da escala da FFI tipicamente associada à classificação do apego inseguro-preocupado, enquanto a desvalorização é associada à classificação inseguro-desligado (Steele, et al., 2015).

Curiosamente, no estudo de Psouni et al. (2020), o fator 2, denominado Preocupado, incluiu os itens da raiva da mãe e do pai, da desvalorização da mãe e do pai, da reversão de papéis em relação à mãe e ao pai e o item relativo à classificação inseguro-preocupado. Já o fator 3, denominado pelos autores como Idealização, incluiu os itens idealização da mãe, do pai e do self. Steele et al., (2015) descreveram que a idealização, alternativamente à desvalorização, também é uma escala tipicamente associada à classificação inseguro-desligado, embora no estudo de Psouni et al., (2020) a desvalorização tenha se associado ao estilo inseguro-preocupado. Para explicar tais achados, os autores consideraram que talvez, nessas etapas do desenvolvimento da infância e da adolescência, a desvalorização dos pais constitua uma estratégia particularmente complicada e atrapalhada para regulação do afeto, dada a grande dependência dos pais que esses jovens ainda apresentam.

No presente estudo, ficou evidente que o fator 2 apontou para uma classificação de apego inseguro. Porém, não foi possível especificar a direção dessa classificação, se preocupado ou desligado, uma vez que parte dos itens que carregaram significativamente no fator já foram associados pela literatura ao estilo preocupado e parte deles ao estilo desligado (Steele et al., 2015).

A análise da relação entre as dimensões latentes da FFI indicou que as maiores médias encontradas no fator 1 foram as do grupo de crianças com apego seguro, o que corroborou a validade de constructo da entrevista. Resultado semelhante também foi encontrado no estudo de Psouni et al., (2020). Já com relação ao fator 2 a maior média foi do grupo com estilo desorganizado desorientado. Na medida em que não se identificou neste fator um estilo de apego específico, preocupado ou desligado, mas sim elementos correspondentes a ambos, como discutido acima, esse resultado faz sentido. O apego desorganizado desorientado caracteriza-se pela apresentação de estratégias contraditórias ou incompatíveis, lapsos no monitoramento do raciocínio ou do discurso, referências de experiências traumáticas ou assustadoras que parecem não estar resolvidas, podendo apresentar um pouco de cada um dos estilos de apego organizados, porém sem um estilo mais persistente de relacionamento (Steele et al., 2015).

A FFI se mostrou como um instrumento bastante promissor para utilização no contexto brasileiro. Várias evidências da sua validade foram identificadas, tais como uma boa consistência interna, fidedignidade interavaliadores, validade de constructo e de critério.

Embora requeira um sistema de codificação relativamente complexo, que demanda treinamento, a entrevista é de fácil e rápida aplicação e fornece uma quantidade de informações extremamente rica, tanto para uso no âmbito da clínica psicológica como no da pesquisa. Ao explorar interesses do jovem, seus relacionamentos com pessoas significativas da sua vida, como pais, melhores amigos, irmãos e professores, bem como a visão acerca de si mesmo, aborda temas relevantes do seu universo, conferindo um sentido para a conversação que se estabelece que pode não ser tão evidente quando se usa outro tipo de instrumento.

Algumas limitações desse estudo precisam ser assinaladas. Em primeiro lugar, o número de participantes poderia ser questionado, havendo recomendações acerca da relação entre número de participantes e variáveis a serem analisadas para realização de análise fatorial exploratória. Contudo, há controvérsias na literatura quanto a essas recomendações e no intuito de compensar essa limitação foi realizado o teste de KMO para verificar a adequação da amostra. Adicionalmente, é importante destacar que os resultados aqui descritos são preliminares e estudos que possam empreender análises fatoriais confirmatórias deverão agregar informações importantes.

Em segundo lugar, o estudo focalizou uma amostra clínica, de crianças e adolescentes que buscaram ou foram encaminhados para atendimento em uma clínica comunitária. É importante que a FFI seja testada com grupos não clínicos também, verificando-se desta forma se as evidências de validade se mantem.

Uma vez que a coerência da narrativa constitui um constructo central para a análise das representações do apego e do funcionamento reflexivo, uma terceira limitação do estudo é que não foi aferida a inteligência verbal dos jovens participantes. Desta forma, eventuais limitações nesse aspecto podem comprometer as narrativas produzidas nas entrevistas, em função de uma maior ou menor capacidade de expressão. Futuros estudos utilizando a FFI poderão lançar mão de algum instrumento capaz de aferir a fluência verbal dos participantes, controlando dessa forma essa variável que pode, eventualmente, impactar a dimensão da coerência, central para análise da entrevista.

Sugere-se, para estudos futuros, que a FFI seja testada em uma população não clínica e que assim as evidências de validade possam ser ampliadas. Estudos que investiguem a influência do apego e da FR de jovens no desempenho social e escolar podem ser relevantes, bem como a relação entre esses constructos com os sintomas psiquiátricos e as influências que o apego e a FR podem ter em tratamentos psicoterápicos, tanto na formação da aliança terapêutica como na manutenção das psicoterapias. Além disso, podem estudos que contemplem esses constructos em amostras vulneráveis e expostas a traumas e violência.

Finalmente, cumpre assinalar que este estudo deixou claro o potencial da FFI para avaliação do estilo de apego e do funcionamento reflexivo na faixa etária compreendida pela entrevista. Também se considera pontos fortes da entrevista o fato dela permitir uma aferição a respeito da autoestima do jovem, da sua competência social e escolar e ainda das ansiedades e defesas que possam estar presentes. Análises de dimensões específicas fornecidas pela entrevista podem ser úteis para clínicos e pesquisadores, dependendo dos seus objetivos, além do conhecimento que pode ser obtido da análise da entrevista como um todo. No âmbito da clínica, a FFI pode ser utilizada para avaliação clínica do paciente, globalmente e/ou com base em alguma das suas dimensões, fornecendo indicadores sobre o estilo de apego do jovem, sua capacidade reflexiva, seu estilo defensivo, relacionamentos familiares e com os pares, bem como sua competência social e escolar. Tais aspectos podem contribuir para fundamentar uma indicação e um plano terapêutico, assim como a entrevista pode constituir uma medida do progresso e da efetividade da psicoterapia. No âmbito da pesquisa, a FFI pode ser utilizada em estudos voltados à compreensão, por exemplo, de possíveis associações entre o estilo de apego e o funcionamento reflexivo com os sintomas e quadros psicopatológicos das crianças e adolescentes correspondentes à sua faixa etária. Pode também ser utilizada em investigações com foco no desfecho da psicoterapia, em termos de alta, abandono ou não adesão, identificando os estilos de apego e de funcionamento reflexivo mais propensos a tais resultados.

 

Agradecimentos

Não há menções

Financiamento

O estudo teve apoio financeiro de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - código do financiamento 001. Apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq, por meio de Bolsa de Produtividade em Pesquisa, Processo 309544/2017-3.

Contribuição dos autores

Declaramos que todos os autores participaram da elaboração do manuscrito. Especificamente, os autores Fernanda Driemeier Schmidt, Amanda Aquino da Costa, Gabriela Ffner, Leonardo Valentini e Vera Ramires participaram da redação inicial do estudo - conceitualização, investigação, visualização, os autores Fernanda Driemeier Schmidt, Amanda Aquino da Costa e Vera Ramires participaram da análise dos dados, e os autores Fernanda Driemeier Schmidt e Vera Ramires participaram da redação final do trabalho - revisão e edição. Todos os autores declaram que estão de acordo com o conteúdo do manuscrito submetido à revista Avaliação Psicológica.

Disponibilidade dos dados e materiais

Todos os dados e sintaxes gerados e analisados durante esta pesquisa serão tratados com total sigilo devido às exigências do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos. Porém, o conjunto de dados e sintaxes que apoiam as conclusões deste artigo estão disponíveis mediante razoável solicitação ao autor principal do estudo.

Conflito de interesses

Os autores declaram que não há conflitos de interesses.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Fernanda Munhoz Driemeier Schmidt
Rua Mostardeiro, 5, 512, Bairro Moinhos de Vento
Porto Alegre/ RS E-mail: fernandamdriemeier@gmail.com

Recebido em novembro de 2020
Aprovado em maio de 2021

 

 

 Nota sobre os autores
 Fernanda Munhoz Driemeier Schmidt, psicóloga, especialista em psicoterapia psicanalítica de crianças, adolescentes e adultos e doutora em psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e atualmente, diretora do departamento de pesquisa do Contemporâneo: Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade.
 Amanda Aquino da Costa, graduanda em psicologia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), bolsista PIBIC CNPq no Núcleo de Pesquisa em psicopatologia e Psicoterapia Psicanalítica.
 Gabriela Dionisio Ffner, graduanda em psicologia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e bolsista PROBIC - FAPERGS no Núcleo de Pesquisa em psicopatologia e Psicoterapia Psicanalítica.
 Leonardo Copello Valentini, graduando em psicologia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e auxiliar de pesquisa no Núcleo de Pesquisa em psicopatologia e Psicoterapia Psicanalítica.
 Vera Regina Rohnelt Ramires, psicóloga, doutora em Psicologia Clínica, professora titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
 Artigo derivado da tese de Doutorado de Fernanda Munhoz Driemeier Schmidt, orientado pela professora Dra. Vera Regina Röhnelt Ramires, defendida em 2020, no Programa de Pós-graduação em Psicologia clínica da UNISINOS.

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