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Psicologia em Revista

versión impresa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.11 n.17 Belo Horizonte jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Figuras da barbárie

 

Figures of barbarism

 

 

Gérard Rabinovitch*

Centre National de la Recherche Scientifique
Centre de Recherche Sens, Éthique et Société

 

 


RESUMO

Numa acepção comum, a evocação da Barbárie moderna é sempre ligada a uma semântica da “regressão”. Isso remete à sua manifestação emblemática: o nazismo. A clínica freudiana opera um rearranjo dessa montagem. Com sua teoria das pulsões, Freud constrói uma representação descentrada do psiquismo. Esse descentramento recoloca a relação entre Barbárie e Civilização, mas não na lógica da mútua exclusão, da qual as duas noções foram construídas. As conseqüências epistemológicas da clínica freudiana descartam a idéia de uma involução bárbara. A Barbárie não seria pensada como um acidente “regressivo”, descolado do vetor linear temporal de uma maturação cultural. Desse modo, pode-se deslocar uma parte do enigma do nazismo para outro: o processo de facilitação, através do qual a hybris de paixões mortíferas de destrutibilidade invade a ordem societal ordinária, “civilizada” e moderna. O autor interroga alguns signos contemporâneos de um possível e vindouro evento “bárbaro”.

Palavras-chave: Barbárie, Civilização, Nazismo, Contemporaneidade.


ABSTRACT

Modern barbarism is commonly associated to a semantics of ‘regression’, which refers back to its emblematic manifestation: Nazism. Freudian clinic operates a different configuration of that picture: with his theory of drives, Freud builds a decentralized representation of the psyche. That decentralization replaces the relation between Barbarism and Civilization, but not in the logic of mutual exclusion, from which the two notions sprang up. The epistemological consequences of Freudian clinic reject the idea of a barbarian involution. Barbarism is not considered a ‘regressive’ accident, disconnected from the temporal linear vector of cultural maturation. Thus, part of the Nazi enigma can be displaced to another one: the process of facilitating, through which the hybris of deadly destructibility passions invades the ordinary societal order, ‘civilized’ and modern. The author investigates some contemporary signs of a possible ‘barbarism’ to-be.

Keywords: Barbarism, Civilisation, Nazism, Contemporaneity.


 

 

Sentinela, em que pé está a noite?
Isaías, XXI, 11-12

 

Tudo começa com Homero. Barbárie é uma palavra oriunda de uma onomatopéia usada, em sua origem, para descrever a linguagem incompreensível dos carianos do Sudeste da Ásia Menor. Isso apesar de Homero não falar, em momento algum, de “bárbaros”. Mais tarde, a palavra foi aplicada a todos os povos que não falavam grego, estendendo-se aos persas. No início do século V antes da Era Comum, a palavra acabou ganhando também significado cultural mais do que simplesmente lingüístico. Ela passou a ser aplicada a todos os povos que viviam fora das esferas de dominação das Cidades-Estado gregas, falassem eles grego ou não (Hartog, 1980). Foi nessa época que começaram a ser estabelecidas as noções de Barbárie e de Civilização, que só se definiam por sua relação, numa lógica de oposição e de exclusão (Starobinski, 1989). Foi essa lógica que as articulou duravelmente no curso da História, como uma dessas regularidades discursivas, observadas por Jean- Pierre Faye (Faye, 1974) e exploradas por Michel Foucault (Foucault, 1969). Os bárbaros, portanto, eram os não-civilizados. Seus traços eram a “covardia”, a “crueldade”, a “traição” e a “incapacidade de se controlar”. O mundo passou então a ser dividido entre os gregos e suas virtudes e os bárbaros e seus vícios. Essa distinção permaneceu &– apesar das observações de Erastótenes (livro II Geographia), que havia proposto que não se fizesse oposição entre gregos e bárbaros, mas entre bons e maus: “Há Gregos maus e Bárbaros bons”. Por sua vez, os romanos adotaram a palavra bárbaro, entendendo por ela tudo o que não era grego. Nem romano, evidentemente! Em seguida, vieram as invasões “bárbaras”. Ou seja, estrangeiras, fora do limes, as que atravessaram as fronteiras romanas nos séculos IV e V da era comum, para acabar abatendo o Império Romano do Ocidente: Visigodos, ostrogodos, vândalos, hunos. Invasões não somente estrangeiras, mas terrivelmente devastadoras. E, para os cristãos, barbarus passou a significar gentilis e paganus (gentio e pagão). O “civilizado” tornou-se, a partir de então, durante vários séculos, o “cristão”.

Com o período das “Grandes Descobertas”, a oposição entre Civilização e Barbárie torna-se elemento constitutivo da modernidade do Ocidente, sendo a “modernidade” identificada com a promoção do processo civilizador, e a “barbárie”, o seu contrário. Por volta do século XVI, fora da Europa, as incursões européias pretendem-se civilizadoras dos povos do Novo Mundo, da Ásia ou da África, enquanto na Europa a Barbárie é concebida como tudo o que poderia destruir a recente tradição civilizadora da época (Élias, 1973). “Barbárie” adquire então valores figurados e afetivos. Aplica-se ao que é “inculto” ou a uma pessoa “rude” e “cruel”. No século XIX, quando a oposição entre Civilização e Barbárie já havia sido inscrita no imaginário teórico, a partir do século XVII, a Barbárie foi reconfigurada em torno da figura do Primitivo, articulando uma leitura doravante hierárquica da Civilização: fora dessa, as outras tradições culturais foram subsumidas ao registro da Barbárie. O homem branco ocidental se autodecretava superior. Mas, ao mesmo tempo, a figura do “primitivo” foi reintroduzida no campo da civilização: o excesso afetivo, a impulsividade desmesurada tornaram-se sua marca fenomenológica. Assim, a mulher, a criança e o louco juntaram-se ao “primitivo” (Birman, 2002).Segundo o novo paradigma evolucionista darwiniano, a Barbárie &– como primitivismo &– foi formulada por retóricas da Razão e classificada como pertencente à Natureza, sendo considerada como oposta ao registro cultural. Esse deslocamento deu-se ao mesmo tempo que a construção da teoria psiquiátrica da degenerescência de Morel (Zaloszyc, 1994), definida como involução da espécie. A noção de Civilização fica circunscrita à construção de um meio especificamente humano, como obra imemorável do processo evolutivo. A Barbárie perde, então, seu lugar. Transposto às sociedades humanas, esse esquema as polarizou entre sociedades inferiores e sociedades superiores (Strauss, 2001). Essas últimas eram as que haviam sido capazes de desenvolver seu potencial civilizador, ou seja, o da Razão e o da Proeza técnica.

Nesse estágio, a metáfora “barbárie” empilha as camadas de seus significados em suas diversas épocas. Ela é estrangeira, cruel, inculta, mal educada, primitiva, involutiva, e, acima de tudo, não é moderna. São os significados de nosso uso comum, muitas vezes com um conteúdo moral. E certamente eram de todos aqueles que não perceberam a chegada do nazismo e de suas conseqüências medonhas. Ou daqueles que, tomados pelo medo e pelo estupor, deviam constatar que era possível ler Goethe, escutar Bach, e ir todas as manhãs cumprir a tarefa assassina em Auschwitz. Ou ainda: daqueles que não queriam saber ou haviam se esquecido que “o mais infeliz efeito da educação comum é o de se ensinar a arte de dispensar as virtudes que ela imita” (Duclos, 1820). Segundo Georges Steiner (1971), “os fundamentos da Cultura humanista ficaram abalados, pois foi no coração da Europa que se revelou o grau último de barbárie jamais atingido pelo homem”. Em 1938, à maneira de indicação testamentária, como uma missiva lançada para o futuro, Sigmund Freud (1986) já nos apontava, em O Homem Moisés e a religião monoteísta, a seguinte desilusão: “Estamos vivendo tempos particularmente curiosos. Descobrimos, surpresos, que o progresso selou um pacto com a Barbárie”. Levar em conta o incontornável acontecimento do nazismo não deixa alternativas além do dilema: fazer ou não fazer o luto das canduras etiológicas, ossaturas de vento, sobre as quais foi construída a modernidade ocidental. Dessa vez, a Barbárie tem de ser construída como conceito autônomo.

 

SIGNOS CONTEMPORÂNEOS E SINAIS ATUAIS

Será que a volatilização da ideologia nazista, após a derrota do regime hitleriano, garante que as sociedades contemporâneas se encontram protegidas de riscos semelhantes? A assertiva de Hannah Arendt, em O sistema totalitário (1972), segundo a qual “o nazismo, como ideologia, havia sido realizado de maneira tão completa que seu conteúdo havia deixado de existir como um conjunto de doutrinas autônomas” poderia pecar pelo otimismo. Até porque ela não exclui a possível remanescência, de forma fragmentada, de algumas de suas figuras de linguagem “coisificantes”. Na verdade, é o caso de partilhar com o sociólogo Zigmunt Bauman, sua ansiedade diagnóstica diante do fato de que

nenhuma das condições sociais &– e acrescentemos: culturais &– que tornaram Auschwitz possível desapareceu verdadeiramente e que nenhuma medida eficaz foi tomada para impedir que essas possibilidades e esses princípios produzam outras catástrofes de mesma natureza (Bauman, 2002)

E também é o caso de dar ouvidos à advertência de Primo Levi e de explorar sua intuição: “Diversos sinais remetem a uma genealogia da violência atual, herdeira daquela que reinou na Alemanha hitleriana” (Levi, 1989). Assim, a questão genérica das linguagens mortíferas e das “imaginarizações” sociais destrutivas deve permanecer, após o advento do nazismo, uma questão de vigilância permanente, até pela observação das sociedades democráticas pósperíodo totalitário. Basta para isso escutar os murmúrios do mundo, conforme o ensinamento de Klemperer (1996), ou consultar as páginas consagradas, desde 1930, à questão da linguagem e da cultura, bem como à desvalorização das palavras, na obra A Situação espiritual de nosso tempo, de Jaspers (1952). Escutaremos nelas a proliferação errática, em mil sinais esparsos que se cruzam, confortam-se, contaminam-se e epidemizam-se na cultura de massa, por induções mortíferas, por léxicos e sintaxes de destrutividades tanatófilas. Induções mortíferas tão antigas quanto reatualizadas. Elas se propagam e se duplicam conforme uma lógica dinâmica reticular. E se declinam, segundo o que Jankélévitch (1998) chamou de “Lei de avalanche”, em esquemas funcionais, efeitos semânticos, implantes lexicais, até ao ponto de construir padrões, livremente, e colocar à disposição pensamentos prontos. A mídia assume aí, a um só tempo, o lugar de informador, vetor e ator. Depende da conveniência. Mas, acima de tudo, fora sua função estabelecida nos habitus do homem contemporâneo &– Hegel já dizia que a leitura do jornal fazia as vezes da oração matinal &–, a mídia é menos o quarto poder e mais o ofício ordenador de sentidos, diretor do ballet dos deslocamentos acéfalos das massas.

Começaremos pelo Discurso sustentado pela Ciência desde que assumiu sua função moderna, em substituição à religião, e liquidou seus recursos de reflexões normativas (Strauss, 2001). Constatamos sua reforma geral em “tecno-ciências” e o aumento do poder das ciências ditas &– por antífrase &– “da vida”. Assim, por exemplo, está se configurando em torno da propaganda “biotech”, sob o véu da benignidade eufemizante imposta pelo laço democrático, algo como uma língua de soberania e de onipotência que se agarra à Biologia, incrustações de imagens coisificantes, projeções de despedaçamentos de corpos. Temos, por exemplo, nas expressões de criadores de gado: “material vivo”, “qualidade do embrião”, “triagem embrionária”. Trata-se de elementos de um vocabulário introduzido na língua nazista e que encontramos enquistado no jargão biológico. Isso ocorre também em situações de manipulações industriais de depósitos: transportes e “traçabilidade” de gametas e óvulos, estocagem de embriões, congelamento de palhetas. São como fantasmas dos médicos S.S. Assim, a propaganda “biotech” propõe o mais benigno dos horizontes de suas pesquisas, entre outras coisas, o desaparecimento do nanismo, da obesidade, da miopia, da dislexia, da predominância canhota (Rifkin, 1998; Nelkin et Lindee, 1998), tudo isso tratado como anomalia incômoda, a ser erradicada da paisagem da interface humana. Após a industrialização da morte, passamos à industrialização mercantil do vivo. Antigamente, dizia-se: esterilizar, afastar, eliminar. É verdade que hoje se diz: corrigir, antecipar, evitar, mas a onipotência sempre detesta o fatum (destino), bem como os deficientes. Assim, essa “selektion medizin” se promete, e promete uma nova Gnadentod, uma “morte misericordiosa” para os potenciais deficientes. Dessa vez ela é tão misericordiosa que chega ao ponto de prometer que lhes evitará até mesmo o trabalho de nascer... E ainda que não seja certo que a Biologia, posta à prova pelos fatos, consiga realizar o que a fúria da propaganda “biotech” se esforça em anunciar, seus discursos implícitos, agravados pelas solicitações particulares do tratamento midiático, apresentam um mundo em que o “factível” leva necessariamente a melhor sobre o “desejável”, como enfatizou Castoriadis (1999). E isso corroborado pelos cientistas do “vivo” que não hesitam em alterá-lo (bioengineering), em manipular as filiações (procriação medicamente assistida), ou em fazer coisas piores (fabricação de quimeras). Dessa maneira, os implícitos da Ciência, que o século XIX havia estabelecido como vetor do progresso social e aliado da emancipação cidadã e democrática &– implícitos tanto reais quanto fantasmáticos &– constituem um agente coisificador do humano, vetor cultural de anomia e, nesse caso, potencial organizador de violência. Dia após dia, a imprensa nos relata, com títulos apologéticos, as novas audácias tão incríveis quanto preocupantes que ocorrem nos laboratórios. Mas também nos transmitem curiosas afirmações a respeito da inutilidade próxima do homem, ultrapassado por “robôs providos de afeto”, como nos informou o jornaI Le Monde. Enquanto isso, às vezes já se fala, nos hospitais, em “tecnicar” um paciente.

Se nos voltarmos agora para as racionalidades da ciência e da prática econômica &– sem falar, por falta de espaço, do management social, do marketing, ou mesmo das pesquisas que lançam, com mais ou menos brutalidade, lógicas instrumentais e dominam um campo cada vez maior de atividades sociais (no audiovisual, o “índice de escuta” substituiu o ouvinte) &–, constatamos não somente que, ao transformar a vida humana em valor econômico, ao substituir cada dia mais a função teológico-política do poder pela racionalidade coisificante da gestão, realiza-se e torna-se um pesadelo a fórmula de Saint- Simon: “Substituir o governo dos homens pela administração das coisas”. Mas com isso, pela lógica, elas levam à gangsterização as práticas empresariais. Dessa maneira, os conselhos de administração das grandes empresas defendem alegremente o share older value ou traficam na desmesura dos balanços contábeis (tais como as Companhias Eron, Vivendi, etc.). Dos patrões exigese que sejam winners, o que realmente faz parte de suas atribuições, mas, por causa disso, eles levam os louros por serem killers. E seus empregados encontram sua promoção na própria disposição em seguir esse caminho. Chega-se até a lançar mão de empresas de “limpeza” (apreciaremos seu apelido...), encarregadas de assediar moralmente, pela pressão e pela chantagem (o que dá resultados é o rumor de pedofilia, diz um desses “faxineiros”),1 os empregados que se quer demitir, mas cujas indenizações a direção da empresa não quer pagar. É muito mais negócio para a empresa que esses empregados abandonem seus empregos. Nesse mesmo sentido, temos ainda o relatório que o fabricante de cigarros Philippe Morris teve o desplante de entregar ao governo tcheco, que diz muito sobre o grau de indiferença criminosa em voga, uma vez que essa mesma empresa é suspeita de organizar contrabando de cigarros com grupos mafiosos dos Balkans. Não falaremos do caso do “sangue contaminado”, nem da “vaca louca”, além do massacre do rebanho atingido pela febre aftosa, com suas imagens complacentes de carnicerias e fogueiras nas manchetes dos jornais televisivos.

Notemos ainda que o próprio movimento operário, que antigamente associava suas lutas reivindicativas à construção, em seu entorno, de elos de solidariedade identificatória (pensemos nas greves dos mineiros de 1963, ou na luta dos empregados das relojoarias Lipp, após 1968), hoje facilmente “toma como reféns” os usuários, em seus movimentos categoriais, tornando-os objeto de chantagem contra a classe política. É preciso ainda considerar como sintoma delituoso o fato de que, na mesma semana em que, em Londres, foram detidos terroristas que aparentemente preparavam um atentado visando um assassinato em massa, na região dos Vosges, os empregados da Dawoo Orion, por motivos provavelmente justificados, ameaçavam jogar produtos químicos muito tóxicos num rio que abastece várias aglomerações em seu curso. Certamente os sociólogos do trabalho encontrarão nesse episódio um efeito da “amplidão do descrédito da condição operária”, uma “desqualificação da condição operária”, uma “perda de visibilidade coletiva e do poder coletivo do mundo operário”, e, conseqüentemente, “uma degradação das solidariedades operárias”2 É preciso notar que a retirada do retrato do proletário da galeria dos príncipes do social &– esse proletário que foi, durante quase um século, a insígnia social do heroísmo, o emblema da virilidade construtora, o “servo sofrido” da exploração, o mítico portador das promessas da reconciliação humana &– essa retirada acontece no mesmo momento em que o traficante da esquina torna-se visível no meio da multidão dos anônimos intercambiáveis das democracias de massa (Rabinovitch, 2001).

Esse traficante perfila suas posturas cada vez mais claramente, fortalecido pela incrível enormidade dos fluxos de capitais oriundos da “economia clandestina” dos tráficos internacionais (segundo avaliações do FMI: entre 800 e 2 bilhões de dólares lavados por ano, reciclados nos cicuitos econômicos e financeiros ordinários). Ele é ainda reforçado pelas imitações identificatórias da “psicologia coletiva”, ao prolongar o fascínio que, na infância, as valentias da hora do recreio escolar exerciam sobre as outras crianças. Ou é içado pela publicidade ao posto de especialista da qualidade dos produtos, medida pelo grau de suas proezas. Bem quisto pelos jovens moradores das periferias das grandes cidades ou das ruelas das favelas, encontrado nas esquinas das ruas, nas festas da alta sociedade, nos cocktails do show-biz ou nas ante-salas de decisão dos Senhores, imaginarizado pelas produções cinematográficas de massa (ver O Poderoso Chefão, Aniki mon frère) e séries televisivas, o traficante &– pequeno dealer delinqüente, médio chefe de gangue ou grande boss narco-capitalista &– portando um carisma de violência, tende hoje a encarnar esse criminoso que sabe “manter afastado tudo aquilo que diminui o eu”, como disse Freud (1969), em seu ensaio sobre o narcisismo. Emergindo da neblina infantil da Cultura do narcisismo (Lasch, 1981), substitui-se o herói messiânico da revolução social por um criminoso bastante visível e suficientemente clandestino para poder ser exaltado. No México, por exemplo, os hinos populares que cantavam a glória de Pancho Villa e de Emilio Zapata readaptaram suas letras para substituir os nomes dos heróis da revolução mexicana pelos dos mais famosos traficantes do país. E, enquanto, nos colégios franceses, são distribuídos panfletos de prevenção ao uso de drogas, a difusão lexical do vocabulário ligado ao tráfico exibe seus novos referenciais. Entre os cartazes publicitários do metrô parisiense, por exemplo, a promoção de uma universidade de verão anunciava: “Nesse verão, continue a dopar-se de saber, passe às ciências pesadas;.

Em outro campo, mencionamos ainda a campanha de lançamento de uma revista parisiense da moda “trash libertária”: Technikart. Sua publicidade &– presente até mesmo em revistas que levantam a bandeira do “politicamente correto” &– grafitou um “Vez aos Jovens” sobre uma imagem de tesouras cortando o tubo de uma perfusão. Evocamos também o princípio do jogo televisivo “Maillon Faible”,3 com sua apresentadora vestida de amante sadomasoquista e seu “korrekt”, personagem de conotação sem equívocos que aparece para homologar a resposta certa de algum candidato. Ou então do escritor francês Guillaume Dustan, portador do vírus da Aids, reivindicando, através do jornal Libération, em sua seção de tribuna livre, o direito inalienável do sexo sem proteção (“barback”) e sabendo do risco, para ele sem importância, de contaminar seus parceiros. Ou ainda de Renaud Camus, grande crítico da presença de judeus na programação da Rádio France-Culture, que é uma rádio nacional e, simultaneamente, segundo seus últimos escritos, muito indulgentemente liberal em relação ao incesto. Há também aquela jurista, Marcella Iacub, promovida a “Diva” repetidas vezes pelos jornais Libération e Le Monde, ao batalhar, num formalismo ultralibertário, pelo direito inalienável à prostituição livre, sem querer conhecer a realidade mafiosa da existência do tráfico de seres humanos, por trás dela; reivindicando para as mulheres a liberdade de consumir os homens &– a palavra é clara e esclarecedora &–, da mesma maneira que os homens consumiriam as mulheres, ou até mesmo de multiplicar de uma vez por todas o número de parceiros sexuais, como uma conquista vindoura da mulher. Enquanto isso, o rumor das periferias nos traz o eco da prática de estupros coletivos, que sustentam as virtualidades da “exogênese” nos movimentos homossexuais radicais. Do mesmo modo, num seminário no CNRS4 em que se discutia a questão do PACS,5 ao perguntarmos de que maneira os homossexuais que reivindicam o direito de ter filhos designariam os pais genitores das crianças que nos dias de hoje ainda são concebidas por um homem e uma mulher, alguém propôs instantânea e muito logicamente o termo “fabricantes”.

Poderíamos preencher várias páginas com outros inúmeros exemplos. Para concluir essa parte, vamos acrescentar a esse inventário não exaustivo, longe disso, a declaração do compositor Karlheing Stockhausen, em Hamburgo, no dia 16 de setembro de 2001, sobre os acontecimentos do 11 de setembro de 2001. Tratava-se, para ele, “da maior obra de arte jamais realizada” (Dast ist das grübte Kunstwerk über haupt). Alguns dias depois, Marc-Edouard Nabe, candidato à vaga deixada pelo bufão Jean-Edern Hallier, também se manifestou no mesmo sentido, declarando, por sua vez, com ares solenes: “Estou do lado dos oprimidos, dos fracos, dos humilhados”, e dizendo que o 11 de setembro de 2001 “foi uma obra de arte”. Esse mesmo Marc-Edouard Nabe, cujo site na internet propõe a seus visitantes a descoberta do sintagma antisemita “Busherie6 Kasher”... Mas o que poderia sustar tais obscenidades, quem poderia impedir a invocação de arte, no assassinato em massa de 3.500 pessoas, uma vez que hoje podemos igualmente fazer exposições itinerantes de tremendo sucesso, exibindo autênticos cadáveres, cuja água de suas células foi substituída por resinas de epóxi. Graças aos bons cuidados do Dr. Ghunter Van Hagen, uma nova perversão pode ter nascido, devendo ser acrescentada ao Pathologia sexualis de Kraff-Ebing: a necroscopia. Essa perversão tem certamente belo futuro pela frente, através dos snuff-movies cada vez mais difundidos, “sob o manto” do fanatismo político-religioso, de fitas de vídeo mostrando decapitações.

 

DA AFETAÇÃO REBELDE

Já evocamos a figura emergente do Traficante como novo ator social e novo personagem mitológico em vias de substituir o do proletário. Existe outro personagem em curso de constituição mítica. Não se trata do Terrorista, que seria um terceiro personagem, sobre o qual muita coisa está começando a ser dita, apesar de carecer de análises mais aprofundadas. Vamos nos contentar aqui em notar as conexões operacionais, miméticas, descobertas entre o terrorista e o traficante. E observaremos as indulgências muitas vezes secretamente fascinadas, nesse caso negadas sob o véu de uma hipocrisia de circunstância, concedidas ao terrorista, ao Rebelde, em suas afetações.

A afetação rebelde é, em primeiro lugar, um conjunto de manifestações apontadas por Christopher Lasch sob o nome de “cultura do narcisismo”. Elas mostram uma cultura imatura da adolescência infinita, cujo “senhor-criança” e velho ao mesmo tempo parece incarnar a referência real. Adolescência infinita transformada por suas capacidades epidêmicas nos comportamentos sociais em “adolescentismo generalizado”. Daí a “anti-idade” das mulheres que “injetam” botox em suas rugas, as meninas prepúberes que tomam ares de “moças” exibindo posturas de Lolita de segunda categoria, passando pelos homens em cuja pasta de couro encontramos patins e outros brinquedos que se tornam seu complemento denegador. Essa afetação rebelde é sustentada pela permanente lisonja feita à juventude pela televisão, dia após dia, nos chamados “reality shows” e nos videoclipes veiculados pela MTV. Ela vive também da desqualificação, na era pós-nazismo, do Princípio do Interdito, na confusão político-histórica entre a figura do Leviatã e a do Beemoth. Entre a figura do Estado total coercitivo e a do caos integral da desordem mortal da ausência de Lei. Uma distinção herdada de Hobbes. Essa confusão conduz, na análise do fenômeno nazista, à freqüente evocação de Eichmann como figura emblemática, esquecendo o fato de que o nazismo é uma constelação criminosa, que teria sido igualmente bem representada, se encarnada por Goebbels, Himmler, Goering, Borman ou Menghele. O pensamento contemporâneo do político ainda deve muitos tributos a essa confusão. Concepção inibidora, por repulsão reativa, de qualquer concepção positiva da Sanção. Ela se esconde, enfim, sob a ideologia dos “direitos humanos” que parece apagar qualquer concepção referente aos “deveres”.

O resultado disso é que ela se abandona às agruras do insuportável da frustração, caracterizado pelo gozar sem entraves de Maio de 1968, e ao insuportável da coerção, o que pode levar a matar, quando algo denote autoridade, ou mesmo por um simples olhar: “ele me ofendeu”, “ele me olhou”, “ele não me respeitou”. Crimes de leso-narcisismo, pois a onipotência, regalista por excelência, não suporta a mínima ofensa, fazendo com que, nas periferias, por exemplo, qualquer uniforme, até de bombeiros ou motoristas de ônibus, seja considerado um sinal vergonhoso da opressão.

É essa “afetação rebelde” que estimula a publicação de artigos, a criação de campanhas peticionárias contra quaisquer formas de encarceramento, que faz com que escritores, cineastas e universitários assinem essas petições contra a “reclusão criminal”. Sempre que uma questão política tem em seu bojo um interdito implícito que eventualmente poderá vir à tona, ou simplesmente “algo a que se deve renunciar”, também ela leva jornalistas ou comentaristas a utilizar o termo “tabu”. Essa é uma via de intimidar e desqualificar antecipadamente aquele que compartilharia daquela idéia, reduzido pela magia da palavra ao posto de “primitivo”. Assim, pudemos ler no jornal Le Monde: “o tabu do embrião humano”, uma espécie de ironia que fecha, antes de seu início, o debate sobre a pertinência, a oportunidade e os valores normativos e morais, ao se fazer dele um “material vivo” como se diz hoje na linguagem da Biologia. Nesse mesmo sentido, notamos igualmente o desvio de palavras referenciadas a um saber antropológico ou psicanalítico, com o objetivo de intimidar o público. Assim, o emprego do termo “psicose” tornou-se comum: “psicose dos atentados”, “psicose alimentar” (doença da vaca louca), “psicose do Antraz”, “psicose da gripe asiática”, “psicose comunitária”... Como se, em cada um desses casos, não houvesse motivos legítimos de preocupação. Notemos igualmente a “Parada do Orgulho Gay”, esse novo encontro festivo e gregário cortejado por políticos bem no lugar do 1º de Maio, outrora dos trabalhadores. É igualmente essa afetação que levou o candidato a guru da Política do Rebelde de 1968 ter escrito, em sua Teoria do Corpo amoroso:

Em matéria de prazer, o grande anátema histórico e inaugural do Ocidente encontra- se, sem dúvida, no pensamento judeu e mais particularmente veterotestamentário. Sabe-se que o Antigo Testamento está cheio de imprecações contra a carne, os desejos e os prazeres, ele fustiga o corpo, as sensações, as emoções e as paixões, seu ódio pela vida só é igualado por seu desprezo pelas mulheres [...]. O projeto mosaico visa o fim da inocência do prazer pela promoção exacerbada da Lei, do interdito formulado por um Deus violento [...]. A resposta religiosa monoteísta à questão do prazer abole rendas e enfeites: “Que se organize o holocausto do vivo e que triunfe o reino da morte...” (Onfray, 2000) (sic!).

Essa “afetação rebelde” também é responsável, numa total confusão política e ética, por tornar indistintos: perseguidos e malandros, pessoas hábeis e crápulas, reivindicadores sociais e delinqüentes. Uma indistinção, diga-se de passagem, comum à postura “rebelde” e à ruminação “reacionária” para as quais só se inverte o pólo de referência. Verdadeira anomia lexical que, por epidemização acéfala, faz com que a imprensa, em sua expansão imitativa, designe, sob esse mesmo lexema, tanto os autênticos oponentes políticos quanto os narcotraficantes ou narcoguerrilheiros patenteados, os grupos terroristas variados, as gangues de predadores. Isso vale também tanto para a cobertura jornalística de combates nobres quanto de crueldades e atrocidades sem nome. Isso elimina qualquer possibilidade de avaliação moral, de referências éticas sobre os motivos que animam esses atores e suas ações, gerando confusão entre os limites do admissível e do condenável, do proscrito e do aceitável.

E, quando o jornal Libération entroniza a Conferência de Porto Alegre, em janeiro de 2003, como a “Internacional Rebelde”, todo um vocabulário com ricas nuanças de combates de oposição ou de abertura para outro futuro desaparece nessa anomia lexical: insurgentes, resistentes, guerrilheiros, revolucionários, opositores, revoltados, contestadores, desobedientes, oponentes, dissidentes, sediciosos, etc.

Mas o “rebelde” não se opõe à sociedade mercantil, somente à autoridade imposta ou designada. O “rebelde” ama de um gozo sem fim a sociedade de consumo. Ele pode até boicotar o Mc Donald’s, a pedido do José Bové, mas não vai renunciar aos “Nike” nem aos “Reebok” fabricados em abomináveis condições de trabalho, na China Continental. O “rebelde”, assim como as grandes multinacionais, como os traficantes, querem bem “matar o Mandarim”. O Rebelde é um “falso reativo”. Não digamos a ele que ele é o último desbravador do Killer Kapitalismus, uma vez que ele acredita ser um revolucionário antifascista.

Em conformidade com a postura narcisista essencial, a “afetação rebelde” cria, com suas próprias auto-sugestões frívolas, e autopromove seu sinal, por meio da trivialização publicitária. Revistas do estilo “people”, carros e outros produtos de consumo são cultuados: “Diva rebelde”, “Mulher rebelde”, revista “Rebel”. Personalidades dotadas de perfis absolutamente diversos, desde insignificantes atores do entertainment até autênticos criadores, são coroados. Esse conjunto é acompanhado, ou melhor, iniciado no “brilho da superioridade” (Tarde, 1993) por célebres espaços do jornalismo e da filosofia midiática. Assim, durante os últimos anos, talvez até nos últimos meses, assistimos à publicação de enciclopédias das lutas no mundo, sob o título “Mundo Rebelde”, “Mundo Rebelde Júnior”, ou para dar de presente no Natal às crianças menores, um “Dicionário do Pequeno Rebelde”.

Mas, desde o estudo de Kracauer (1973) De Calligari a Hitler, sobre o cinema alemão, podemos observar o quanto o tema da “rebeldia” e a figura do “rebelde” no cinema pré-hitleriano, com tudo o que veiculava no sentido de anular o desejo de amadurecer, predispuseram às seduções hitlerianas. Esse estudo nos indica o destino último do rebelde: o ardor rebelde é a busca de um Senhor arrogante. Belos dias aguardam aqueles que abusam do poder que têm.

 

A BARBÁRIE HOJE

Para o sociólogo ou o filósofo político, todos os escritos socioantropológicos de Sigmund Freud podem servir de indicadores de rota para construir um pensamento clínico da Kultur e do Político, sem que isso signifique levar a interpretação freudiana para fora do campo da cura. Tal perspectiva está colocada desde a Psicologia coletiva e análise do ego até O Homem Moisés e a religião monoteísta, de Totem e tabu a Mal-estar na civilização, do Futuro de uma ilusão às Considerações atuais sobre a guerra e a morte, sem excluir o retrato psicológico do Presidente T. W. Wilson, às vezes desacreditado. E todos esses escritos, segundo um detalhe, um viés ou um ângulo específico, podem ser lidos como as páginas que consignam sua concepção sobre a Civilização e a Barbárie.

O Inconsciente, herança de Shopenhauer, Carus, Von Hartmann, constituiu o nome atribuído por Freud a uma lacuna do Conhecimento, ao mesmo tempo aberta pelo Racionalismo e recoberta pelo Positivismo. Disciplina paradoxal, segundo Legendre (2001), “a psicanálise é construída em torno de um objeto de status negativo. Ou seja, ele só pode ser delineado por seus efeitos”. Dessa maneira, a invenção da psicanálise não se limita a reintroduzir a dinâmica do Sujeito na ciência, contra o reducionismo positivista, mas aproveita para acrescentar ao saber, via teoria do Inconsciente, a referência a um Sujeito estruturalmente dividido, cindido em seu ser psíquico, entre o sabido e o não sabido de si.

A descoberta freudiana foi um descentramento da percepção do psiquismo, ela rompeu com sua leitura consciencialista que via suas disfunções apenas como disfunções neurofuncionais. O descentramento freudiano, no que diz respeito ao registro do eu e da consciência, pressupõe um psiquismo sempre oscilante entre o pólo do inconsciente e o da consciência. A subjetividade mantém a possibilidade de um movimento progressivo em direção à consciência e ao eu, ou regressivo, em direção ao Inconsciente.

A descentramento freudiano do psiquismo, sua teoria das pulsões, seus remanejamentos tópicos, sua exploração da Kultur como psique coletiva, têm por conseqüência, segundo André (1995), a realocação da Barbárie com a Civilização, recusando a lógica de exclusão, com base na qual as duas expressões tinham sido relacionalmente construídas. A Barbárie e a Civilização estão dentro de um mesmo processo que se encontra em conflito. A Barbárie é uma civilização oculta na Civilização (Moscovici, 1986). Veblen (1970) tinha tido essa extrema intuição em sua Teoria da classe Ociosa, enquanto escarafunchava e desvendava os vestígios da “proeza bárbara”, cujo eco ele escutava até mesmo na ostentação das atividades lúdicas e nos modos de consumo dessa “classe ociosa”. Enquanto isso, a Civilização se estabelece profundamente num terreno embebido de Barbárie (Birman, 2002). Os ensaístas moralistas franceses do século XVIII (La Rochefoucault, Saint Evremont, Mirabeau, por exemplo) já tinham tido essa intuição. A Barbárie, como bem resumiu Birman, é o território das pulsões regulado pela fantasma; o mundo da civilização é regulado pelo princípio da realidade. A ordem humana, a humanidade no homem é fundada num limite imposto ao gozo absoluto. E o que separa, o que faz a divisão entre a Barbárie e a Civilização é a consistência de um princípio de interdição, de limitação. Interdições em excesso sufocam, mas sua ausência destrói.

Quando Freud consignou sua surpresa diante do “pacto concluído pelo progresso com a Barbárie”, num recanto de sua última obra, ele buscava o que havia constituído a base política do conjunto de suas incursões “sócio-antropológicas”. E manteve a barra sobre a qual havia construído sua trama ética, muito bem resumida por Paul-Laurent Assoun (1984): “O pessimismo é o destino ético da teoria das pulsões”. O que a “surpresa freudiana” sugeria era a inexistência da involução da Barbárie. Nesse caso, a Barbárie não poderia ser pensada como um acidente regressivo, tomado num vetor linear temporal de uma maturação cultural à moda de Mannheim (1940); do mesmo modo, Barbárie também não é sinônimo de “primitivo”. As sociedades ditas “primitivas”, observadas pelos antropólogos, não são “bárbaras”. Freud observa, em suas Considerações atuais sobre a guerra e a morte, que os “primitivos” têm uma espécie de respeito em relação à vida e à morte, coisa que os “civilizados” não têm ou que perderam. Os “primitivos” têm regras de civilidade.

Já a Barbárie se inscreve no coração mesmo da Civilização, da qual ela é uma parte orgânica. A Barbárie jaz eternamente escondida, de modo mais ou menos ameaçador, nas profundezas da psique humana. Ela é co-presente ou até mesmo co-extensiva ao progresso, no qual ela força suas brechas. A afirmação parcialmente consoladora de Hölderlin, “onde cresce o mal, cresce também o remédio”, permanece igualmente válida se invertermos o raciocínio: onde cresce o progresso, crescem também as possibilidades destruidoras do Mal.

Resta uma “lição” que poderia ser assim escrita: toda autêntica ciência política nova &– como aquela outrora invocada por Tocqueville, como uma necessidade alarmante &– só se construirá através de uma ética da Desilusão, que é o portal das obras de lucidez. Provavelmente, não haverá hoje outra ética pertinente, além da que está configurada nesse “eixo”, nele assentando suas bases. Um ética que não diz o que é o Bem, mas antes de tudo se indaga minuciosamente sobre o Mal. Só a partir daí, incitados a construir um entendimento de vigilância sobre os poderes mortíferos que nos rondam, é possível o distanciamento das exultações de “onipotência”; é possível nos aproximar do outro, considerando-o um próximo, embarcados na mesma galera.

A essa altura, devemos formular uma hipótese: as Figuras da Barbárie sempre serão Quimeras. Porque a Barbárie é, ela própria, uma marca. A quimera nazista era muito provavelmente feita de gangsterismo da ação, de teatralização da conduta camponesa, de biologismo médico e de racionalidade instrumental. Foi essa quimera que teceu a tela do extermínio. E ela não adquire sua consistência pela racionalidade, ela é sustentada em seus traços congruentes com os gozos mortíferos. Suas colisões não passam de colusões. A Barbárie é uma Civilização de morte, um precipitado de destrutividades tanatófilas, ela chega a seu termo através da hybris, ela realiza sua obra em cadeias mortíferas.

Nada está resolvido. Segundo Rubinstein (1978), “A civilização inclui agora campos da morte e alguns ‘muselmänner’7 entre seus produtos materiais e espirituais”. Mas, além disso, a racionalidade instrumental estendeu consideravelmente o campo de suas manufaturas coisificantes após o período nazista. Contaminando os diversos setores de atividade da cultura contemporânea, ela aí continua afirmando seu domínio. Enquanto isso, a “heroização da violência” dos “criminosos do Eu” (Lacan, 2001), coloca em destaque novas silhuetas nas multidões intercambiáveis das democracias de massa. Enquanto isso, o comprometimento lento, a servidão voluntária, a apatia gregária e o gozo por procuração das violências delegadas continuarão guardando seu território na espécie humana, como eternos fornecedores de agentes de serviço para as operadoras de máquinas assassinas (Adorno, 1984).

O Holocausto “testemunha o progresso na Civilização”, dizia ainda Rubinstein. É bom temermos salubremente o que nos diz esse aforismo, amargo oxímoro. Seria possível pensar que a marcha da humanidade moderna não passe de um périplo caótico voltado para a realização de seu próprio desejo de morte, dificilmente contida pelas roupas de baixo por um Eros claudicante? A construção de outro cenário nos moldes da quimera nazista não está descartada. Suas possibilidades permanecem, talvez estejam sendo reforçadas, seja qual for a vestimenta semântica e postural sob a qual ela poderia se realizar.

Em 1936, por ocasião do qüinquagésimo aniversário do escritor Hermann Broch, Elias Canetti (citado por Semprun, 1995), na homenagem que lhe fez, declarou:

Não há nada a que o ser humano seja tão aberto quanto ao ar. Nele, o homem ainda se move como Adão no paraíso... O ar é a última esmola... E se uma pessoas morresse de fome, ela teria pelo menos, o que certamente é pouco, respirado até o fim. E essa última coisa que era comum a todos, vai nos aprisionar conjuntamente. Nós o sabemos, mas ainda não o sentimos; pois nossa arte não é de respirar. A obra de Hermann Broch situa-se entre uma guerra e uma outra guerra: guerra dos gazes e guerra dos gazes. É possível que ele esteja sentindo o cheiro, ainda agora, em algum lugar, da partícula tóxica da última guerra. O que é certo, todavia, é que ele, que ouve melhor que nós sua própria respiração, já se sente sufocado pelo gás que, num dia ainda indeterminado, nos cortará o fôlego.

Pinatel (1991) destacou quatro traços da personalidade criminosa para explicar o aparecimento da passagem ao ato: o egocentrismo, a labilidade afetiva, a indiferença, e a agressividade. Se transpusermos esses elementos ao que está sendo tecido na cultura contemporânea, poderíamos dizer que todos eles já estão preposicionados. De um lado, pela propagação, pela extensão e pela refração de léxicos embebidos de gozos agressivos ou mortíferos. De outro lado, pela colocação, na cultura de massa, substituindo os aprendizados pedagógicos, das “clericaturas” midiáticas, como a nova residência da Força formadora de hábito (Panofsky, 1967). Poderá isso dizer que já estamos respirando um ar rarefeito de vida e carregado de toxinas de um assassinato infiltrado? De qualquer modo, a Barbárie é comunicativa e gravemente contagiosa. As análises de Girard (1972) sobre a colusão entre “desejo mimético” e violência estão aí para nos mostrar o caminho, bem como a decodificação dos mecanismos de adesão das massas, descrito por Freud (1991), com a localização do carisma hipnótico e do ódio a determinado objeto como unificador da Massa.

Diríamos, então, que nem o “progresso na vida do Espírito”, cuja condição, segundo Freud, estava na renúncia ao gozo absoluto e aos instintos, ou no luto das excessivas satisfações narcísicas; e que nem a erotização amante e respeitosa, intimista e brilhante, fazem parte da Kultur de hoje. Em seu lugar, encontramos: a crueldade, a perversão, o incentivo ao gozo sem limites.

E eu ainda posso ver coisa pior.
O pior nunca é tão grave, a
ponto de podermos dizer: “Eis o pior!”
(Shakespeare, O Rei Lear).

 

Referências

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Texto original recebido em março/2005 e aprovado para publicação em abril/2005. Traduzido do original por Nina de Melo Franco.
* Sociólogo e filósofo, pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e do Centre de Recherche Sens, Éthique et Société (Cerses), França. E-mail: ghrabi@club-internet.fr.
1 Cf. Programa de TV “Ça peut arriver!”, do dia 2 de outubro de 2001. Canal de TV francês TF1.
2 Cf. Le Monde, 6 de março de 2001, entrevistas com os sociólogos do trabalho Olivier Schwartz, Stéphane Beaud, Michel Pialoux.
3 N. T.: “Elo fraco”, nome do jogo televisivo em questão.
4 N. T.: Centre National de la Recherche Scientifique.
5 N. T.: Pacte Civil de Solidarité: pacto que pode ser celebrado entre duas pessoas maiores de idade, sejam elas do mesmo sexo ou não, visando regulamentar sua vida em comum. Cria direitos e obrigações recíprocas.
6 N. T.: Alusão à palavra homógrafa boucherie, que significa açougue.
7 N. T.: “Muçulmanos”. Termo utilizado para os deportados, a fim de designar aqueles que se encontravam em estado de catatonia, de desmoronamento psíquico, às portas da morte por extremo desgaste.

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