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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.11 n.17 Belo Horizonte jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e universidade: mais, ainda

 

Psychoanalysis and university: still more

 

 

Jeferson Machado Pinto*

Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de Psicologia

 

 


RESUMO

O presente texto, baseado na teoria psicanalítica de Lacan, analisa a relação entre sujeito e saber, enfatizando a importância da função do escrito nessa relação. Toma-se o caráter contingencial e, portanto, particular da entrada do sujeito na linguagem, daí extraindo algumas conseqüências, na relação entre sujeito e saber. Analisa-se a inserção da Psicanálise no contexto universitário, delineando-se um litoral entre o saber universitário, de cunho universalizante, e o saber individualizado, fundado na inserção do sujeito e seu desejo, em algum campo do saber. O artigo estabelece a diferença entre o real da ciência, identificado ao que as letras permitem escrever, e o real conceituado para a Psicanálise, situado mais além da literalização. Tal diferença permite o estabelecimento de um paralelo entre a função fálica e o campo do feminino, de acordo com a teoria de Lacan, além de esclarecer o mesmo tipo de relação lógica entre Psicanálise e Ciência.

Palavras-chave: Psicanálise, Universidade, Saber, Literalização, Feminino.


ABSTRACT

The relationship between subject and knowledge is analyzed from the standpoint of Lacan’s psychoanalytical theory, stressing the importance of the function of writing to that relationship. The contingent, unique character of the subject’s approach to language is taken into account, and some consequences to the relationship between subject and knowledge are demonstrated. One such consequence is the insertion of psychoanalysis into the university context, so as to outline the border between academic knowledge, in its universal perspective, and the personal knowledge built by an individual from the truth of his desire. The difference is then established between the reality of science, equated to what letters allow us to write, and the reality of psychoanalysis, situated beyond literality. Such difference allows the establishment of a parallel between the phallic function and the field of the feminine, according to Lacan’s theory, besides clarifying the same kind of logical relationship between Psychoanalysis and Science.

Keywords: Psychoanalysis, University, Knowledge, Literality, The feminine.


 

 

SOLUÇÕES UNIVERSAIS E CONTINGENTES: A LEGITIMAÇÃO ACADÊMICA DA PSICANÁLISE

A relação do sujeito com o saber não é naturalmente confortável. É isso que, com o presente texto, tentarei esclarecer, procurando enfatizar que a constituição do sujeito, por ser da ordem da contingência, implica um modo particular de apropriação da linguagem ou entrada no simbólico. Isso obviamente questiona uma ideologia que pretende estabelecer um caráter ou uma função universalizante para o saber. Abordarei essa relação utilizando- me da inserção da Psicanálise na Universidade, porque acredito que possamos extrair daí algumas elaborações úteis para avançarmos um pouco mais na discussão das relações entre o sujeito e o saber.

A inserção da Psicanálise na Universidade mostra bem a tensão entre o imperativo da adequação a um saber ideal da pretensão científica, supostamente válido para todos, e um saber que visa à singularidade inerente ao desejo. Os impasses na relação do sujeito com o saber devem ser analisados em função do laço social ao qual o sujeito e o saber estão articulados. Os modos de apresentação do sujeito e a própria função do saber serão distintos dependendo do laço social em que esse sujeito se constitui. A Psicanálise, além de contribuir para o esclarecimento de uma estrutura do laço social, inova ainda mais essa análise, ao incluir a libido como o fator crucial para o entendimento das várias possibilidades de apresentação do sujeito.

A invenção freudiana revelou que a verdade do sujeito surge no descompasso irredutível entre a cadeia de representações, que chamamos de saber, e a satisfação pulsional. A verdade, portanto, é articulável na linguagem, mas não é enunciada em nenhum ato de fala (Miller, 2002). O próprio Freud, antes mesmo de conceber a pulsão de morte, fazia coincidir o saber inconsciente com a verdade do sujeito. Assim, o sujeito encontraria sua verdade tão logo o conteúdo recalcado fosse desvelado. A formulação teórica do conceito de pulsão de morte foi imposta pelos fenômenos de compulsão à repetição e reação terapêutica negativa, por exemplo, observados na clínica freudiana. Freud teve de fazê-lo após constatar que o domínio pulsional excede à possibilidade de articulação pela linguagem, demonstrando uma não-coincidência entre saber e verdade para cada sujeito em análise. A verdade se coloca muito mais como efeito decorrente do encontro, ou daquele descompasso, entre o sujeito que tenta se enunciar pela sucessão significante e o real de sua satisfação pulsional.

A verdade, portanto, é lida nas entrelinhas, mas não é apreensível por nenhum saber. Por isso mesmo, a Psicanálise, ao enfatizar a singularidade do sujeito, daquele que emerge de seu desejo, enfatiza o saber que ocupa uma posição de verdade. O que queremos enfatizar com tal afirmação é que a Psicanálise visa conduzir o sujeito a uma busca de uma forma de dizer que leve em conta sua divisão, e não a busca de saber legitimado por um acordo entre sujeitos. Somente o sujeito particular é capaz de decidir, na mais pura contingência, o que seria o modo de se posicionar diante do Outro de modo coerente com a verdade que sustenta seu desejo.

O saber que ocupa o lugar de verdade para aquele sujeito particular é, então, uma forma de narrativa não-totalizante, diríamos feminina, precária, exatamente por sustentar o movimento do desejo. O particular, o caso a caso, o que é de cada um, não interessa à Universidade, mas a formalização dessa práxis não pode ser recusada pelas instituições universitárias. Como recusar a legitimação de tal saber, o que ainda é freqüente no meio universitário, se se trata de um saber mais que legítimo, que conseguiu instaurar uma nova forma de laço social, ao criar uma discursividade que inclui elementos radicalmente novos em sua consideração?

Principalmente, como já afirmamos acima, interessa ao psicanalista explicitar a satisfação pulsional como um dos elementos-chave na relação do sujeito com o saber. A Psicanálise introduziu, então, o gozo na consideração científica, como uma função que permite particularizar o modo como cada sujeito se vê à volta com a impossibilidade do saber de recobrir o real. Conseqüentemente, se há a impossibilidade estrutural de o saber absorver o enigma pulsional, as inibições, a angústia e os sintomas surgem como tentativas de solução pelo sujeito. Portanto, é quase certo que todos acabem tendo seus percalços e embaraços em relação ao saber.

Paradoxalmente, o sujeito recusa outra relação com o saber, uma vez que essa implica a assunção da impossibilidade estrutural ou da castração, se adotarmos a terminologia freudiana. Parece mais fácil se apegar mais ainda ao saber, para tentar solucionar sua precariedade, do que alterar a forma de relação que o sujeito mantém com o real de gozo. O problema, então, é que o saber exerce um fascínio e pode, perversamente, prometer enganosa identidade que teria a função de eliminar a castração ao fazer coincidir saber e verdade.

Nesse caso, o saber é um meio de gozo, o que pode produzir a demanda de uma operação discursiva que situe o sujeito de forma diferente em relação ao real. A questão é, assim, ética: que lugar o laço social destina para o sujeito?

A partir do lugar destinado ao saber no laço do sujeito com o Outro, podemos afirmar que Psicanálise e Universidade mantêm uma relação impossível. É uma relação, porém, que não cessa de não se escrever, como demonstra este escrito. Ou seja, se o pulsional permanece, no limite, como um enigma, a categoria lógica do impossível está introduzida, de modo irredutível, nos laços sociais. Produzimos constantemente movidos pela impossibilidade de acesso ao Outro que nos faria completos, coincidentes com nós mesmos. Estamos em constante movimento de não conseguir cessar o que não é possível colocar em saber, em forma de literalizacão. Assim, a Psicanálise nos ensina, em termos epistemológicos, que aquilo que se torna escrito demonstra mais um passo na conquista sobre o real. Em termos clínicos, podemos dizer que o que foi possível literalizar foi transformado em pulsão sexual, em saber compartilhável. Contudo, isso não pode nos fazer esquecer de que há excedente de satisfação pulsional impossível de ser escrito e que, por isso mesmo, estamos impedidos de ter uma relação inteira com o outro. Não há a relação sexual, diria Lacan, no sentido de que não há a justa proporção ou a complementaridade em qualquer laço social. Por outro lado, é exatamente isso que constitui a causa do desejo humano.

Ora, se a impossibilidade é inerente, podemos dizer com Lacan, que não há mesmo relação sexual entre Psicanálise e Universidade, embora se mantenham inevitavelmente ligadas pelo tipo de estruturação interna que a Psicanálise herdou da ciência moderna. A Psicanálise foi possível ser construída apenas quando se tornou evidente que o discurso da ciência implica uma eliminação do sujeito. As letras das fórmulas científicas são esvaziadas do desejo, não significam nada em termos de um sujeito particular, embora saibamos que ela só existe em razão da ação de um ou mais pesquisadores. Freud tentou construir uma ciência do sujeito, mas logo verificou o paradoxo de sua tentativa. Na clínica, diferentemente da Ciência, o que importa é o modo particular de uso dos significantes. Mais especialmente, importa como o sujeito lidará com a impossibilidade de transformar o regime pulsional em um saber totalizante sobre si mesmo.

É importante enfatizar o que é impossível de se escrever porque esse pode ser um ponto privilegiado para o exame das relações entre Psicanálise e Universidade. Se por um lado a Psicanálise se posiciona como disciplina do campo científico, ela se vê submetida aos critérios de rigor acadêmico no que se refere à sua escritura. Ela estabelece, então, um laço social como as demais disciplinas. Nesse caso, ela se vê pressionada a explicitar seu método e deixar claro para a cultura o que faz um analista. Mas, por outro lado, ela revela um real para além do que pode ser literalizado e, por isso mesmo, suportado pelo sujeito como trauma. Nesse ponto, a Psicanálise mostra a inexistência da “relação sexual” com as demais disciplinas, e se afasta do discurso da ciência ao exigir um tratamento singular para o problema.

A Psicanálise trabalha, então, no campo da contingência que parasita a função universal do saber, isto é, aquela função que estabelece que os eventos descritos devem ocorrer necessariamente do modo previsto pela literalizacão.

 

O PROBLEMA DO SINGULAR NO DOMÍNIO DO UNIVERSAL

A Universidade reúne o conjunto dos saberes de campos particulares. Cada um deles, com sua escrita própria, contribui para uma crescente totalização, a fim de alcançar o UM, que sustentaria o saber universal. A Psicanálise, é claro, também se organiza como campo particular de saber e questiona, na relação com seu objeto, seu método, sua teoria, e até mesmo a produção de saberes que não lhe são conexos.

A disjunção entre Psicanálise e Universidade, porém, está presente desde a explicitação de seus objetivos: o fim ético de interrogar um sujeito, implicando- o de modo singular à causa de seu desejo, em contraposição à simples produção de sujeitos competentes em cada domínio científico.

Ao mencionarmos a singularidade do sujeito, queremos enfatizar não apenas um resultado clínico, mas a própria implicação filosófica dessa ambição para a idéia de Universal. Inspirando-nos em Milner (1983), por exemplo, podemos dizer que o conjunto dos enunciados disponíveis em um campo de saber se revela inconsistente no momento mesmo em que a singularidade (do sujeito, no caso aqui em exame) se revela. Se há singularidade é porque os predicados daquela classe de saber se mostraram impotentes para prevê-la (a singularidade). Caso contrário, isto é, se fosse possível a previsibilidade, a manifestação seria considerada apenas um caso particular de uma classe. Neste caso, a escrita dos predicados estaria apta a enquadrar o sujeito como um exemplo da classe.

A singularidade se mostra, então, como exceção à totalização do saber disponível e, nesse instante, isto é, no instante em que se revela, torna paradoxal a classe a que deveria pertencer como caso particular. Por exemplo, quando um analista atribui um diagnóstico de histeria a determinado sujeito, ele aponta menos para os indicadores que o saber referencial construiu para definir a histeria, e mais para a maneira particular como aquele paciente se distingue dos demais. Ele se torna histérico ao “recusar como necessárias as contingências que o singularizam exatamente porque elas, na sua singularidade, situam-no no máximo de pontualidade, de evanescência” (Fernandes, 2000, p. 33). Assim, o que o sujeito recusa na histeria é, exatamente, a parcialidade implicada nessa contingência. Como nos esclarece Fernandes (2000), “se sou isso, não sou aquilo e poderia ser qualquer outra coisa”. Os predicados não têm, na contingência, uma medida certa como o têm na ordem do necessário. Desse modo, o que vai definir a direção do tratamento é mais o modo particular como o significante e o gozo põem em cena aquele sujeito, e menos o saber teórico instituído que abrange todos os histéricos. Por isso, a afirmação lacaniana de que o sujeito “escapa ao saber”, ou que se manifesta como “furo no real”.

A Psicanálise mostra, assim, que a verdade se sustenta no singular. O singular revela, ao mesmo tempo, o universal da verdade e a incompletude do saber. O saber se mostra antinômico em relação à verdade, por mais que alcancemos sua universalização. Ele é sempre incompleto, seja para se justapor à verdade do desejo, seja para tentar dizê-la integralmente.

Dito isso, podemos investigar um pouco mais a impossibilidade de relação (sexual) entre Psicanálise e Universidade.

 

UMA RELAÇÃO FEMININA COM O SABER

À Psicanálise interessa, então, um saber colocado em posição de verdade, articulado à economia pulsional, à própria enunciação. Isso tem várias implicações, mas interessa-nos enfatizar que o saber assim colocado se realiza como invenção, e não apenas como dedução. Não é possível uma demonstração que se desdobre em passos intermediários até que se atinja o enigma pulsional, que funciona como causa. A causa de desejo está fora da cadeia de razões que pode ser construída por ser-lhe heterogênea e, por isso, não é dedutível baseandose na seqüência de mediações do saber. O que significa que não é possível uma hermenêutica tampouco uma forma de revelação que indique um “como fazer”. Há que se inventar a saída, porque a singularidade se mostra na própria saída criativa diante do impasse provocado pelo encontro com o que se apresenta como não dialetizável. É o ato do sujeito que trará a resposta, e não apenas as deduções e/ou a compreensão das conseqüências das marcas constitutivas do aparelho psíquico. A saída, então, extrapola os domínios do campo científico e envolve a ficção como forma de a verdade se presenciar.

Assim, a Psicanálise não aceita passivamente o regime do que não cessa de se escrever, daquilo que necessariamente ocorre conforme a escritura previu. A técnica da associação livre se caracteriza exatamente pelo esforço em não acatar nenhum significado ou saber como prévio. Ela insiste na de-suposição de todo saber colocado a priori em relação à enunciação, de modo a produzir deslocamentos no registro do necessário e abrir espaço para a contingência. Como não é possível a nenhuma forma de saber a apreensão da contingência, a Psicanálise torna-se uma prática que se justifica na própria impossibilidade de antecipar o efeito de seu ato.

Enquanto a Universidade se preocupa com a demonstração – sem nenhuma cautela, podemos dizer – ou com a possibilidade de que a verdade possa ser dita de maneira clara, a Psicanálise pretende que o sujeito faça bom uso dos significantes, que ele diga sem má-fé, com boa vontade. Trata-se de um passo além da técnica do dizer bem as deduções consentidas pelo simbólico, o que significa, ainda, acatar a ignorância como paixão ativa na determinação do sintoma que sustenta o sujeito. Não interessa a ela, portanto, um enunciado claro, se for ancorado em um procedimento de eliminação do sujeito. Os saberes constituídos, diferentemente, pretendem exercer um domínio técnico com base no que pode ser exposto. A Universidade forma peritos aptos a resolver impasses por meio do saber que os define profissionalmente. Os sujeitos identificados pelo saber utilizam técnicas, emitem laudos, controlam fenômenos baseados na teoria aprendida com a mesma precisão com que calam o objeto do estudo, seja ele um planeta, seja ele um rato, seja ele, ainda, um sujeito. O saber, colocado nessa perspectiva de eliminar o sujeito, sustenta um semblant imaginariamente consistente para se impor na coletividade como científico, como possuidor de maior credibilidade. É uma postura que faz com que os experts ajam, ideologicamente, como se fosse possível o controle da verdade valendo-se do saber.

Por outro lado, se enfatizamos o regime da contingência, estabelecemos um campo onde podemos, no máximo, fazer suposições. Esse é o modo de operação de uma psicanálise. A suposição de saber que caracteriza o amor de transferência é o motor de uma análise sem nenhuma necessidade de exposição de saber. O amor, se não reduzido ao regime do necessário, fora do regime “Freud explica”, implica algo suposto, não explicável. Não é possível, por exemplo, explicitar os passos a ser seguidos por um analista para que determinado paciente se abra para a transferência. É um encontro contingente, pode ocorrer ou não e, por isso mesmo, pode terminar.

O que importa para a Universidade, no entanto, é que a práxis psicanalítica ensina que a forclusão do sujeito é o limite da Ciência. O real da Ciência é aquele dado pelas letras de uma fórmula, é o que é soletrado por um campo de saber. A literalização ou a escritura matemática é uma “cicatriz do contingente” e impõe, daí em diante, o regime do necessário. Passamos a ver o fenômeno como tendo necessidade de se comportar daquela maneira como a escritura prevê. Assim, a partir do momento em que o contingente é expresso em letras, não nos interessamos mais pela possibilidade de que o fenômeno possa se manifestar de modos infinitamente diversos. Podemos, é claro, arranjar outro modo mais adequado de escrevê-lo, conforme queria Popper. Mas, daí em diante, esquecemos sua origem contingente e passamos a lidar com o necessário, com o que pode ser descrito como caso particular da fórmula. Faz parte do cotidiano de qualquer pesquisador que tenha certa maturidade de julgamento a eliminação de dados que revelem a presença do acaso.

Já o real da Psicanálise é revelado por um sujeito que sofre, pelo trauma, ou seja, pelo que não se escreve, mas que insiste em retornar em torno das marcas inscritas que constituíram o sujeito. Ela pretende alcançar o que a Ciência tem de eliminar para progredir apenas mediante a literalização. E o que é impossível de se escrever para o sujeito é o enigma da relação sexual. Assim, o real da Psicanálise se mostra como encontro traumático, já que escapa ao falo, instrumento que possibilita a escrita da constituição subjetiva. Se há, portanto, alguma coisa do gozo que escapa à escritura, mas que continua a parasitar infinitamente o aparelho psíquico, só resta inventar um modo de lidar com os restos incuráveis pela elaboração.

O não-todo da função fálica, assim chamado exatamente por ser impossível para a linguagem se apropriar de modo totalizante do regime pulsional, caracteriza o feminino na teoria psicanalítica. É uma forma encontrada por Lacan para mostrar que o feminino não é dado de maneira universal como o masculino. Trata-se do campo situado para além da função fálica, mas não circunscrito por ela. Por isso, seu aparecimento não é passível de ser escrito a priori, ficando sujeito ao acaso, evidenciando um modo original de formalizar a contingência. Essa, também, é outra maneira de dizer sobre a inexistência da relação sexual, já que a existência d’A Mulher pode ocorrer ou não. Não há escrito que garanta seu aparecimento, mostrando o aspecto essencialmente contingente do saber sobre a feminilidade.

A inexistência da possibilidade de enunciar uma lei que indique a mulher que recobrirá o espaço do gozo sexual se torna, então, o indicador de que a Psicanálise deve manter uma relação feminina com o saber. Essa impossibilidade, ou castração, é o que permite ao sujeito se verificar diante de algo não previsto pela escritura. Castello Branco (2003) criou um belo neologismo para caracterizar o real em jogo na experiência analítica: “desaparecência”, “desapareciência”. Ou seja, exatamente naquele ponto onde o saber se revela em fracasso, emerge a verdade de um sujeito singular. Tal neologismo esclarece, também, com grande elegância poética, que a relação lógica que a Psicanálise mantém com a Ciência é a mesma relação que A Mulher mantém com a função fálica.

O que a Psicanálise traz de novo para a Universidade é essa subversão, explicitada por Lacan para caracterizar o ponto de real de onde pode ou não surgir um saber marcado pelo desconhecido imposto pelo inconsciente. Essa é a novidade da Psicanálise no campo das últimas “verdades científicas”. Por isso afirmamos, ainda, que a Psicanálise se afasta radicalmente das pretensões universitárias – tanto no sentido da universalização quanto no sentido da instituição – especialmente a de impor um modo de enunciar a gramática do real. Ao contrário, cabe a cada um inventar um escrito valendo-se do incurável de seu sintoma.

 

Referências

Castelo Branco, L. (2003). Como nada mais passa na vida, exceto ela. In: T. Gontijo; G. V. Rodrigues; A. A. P. Furtado & A. M. P. Saliba. (Org.). A escrita do analista. (p. 223-232) Belo Horizonte: Autêntica.        [ Links ]

Fernandes, F. L. (2000). Psicanálise e formalismo. Tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.        [ Links ]

Miller, J. A. (2002). La naturaleza del semblante. Buenos Aires: Paidós.        [ Links ]

Milner, J. C. (1983). Noms indistincts. Paris: Seuil.        [ Links ]

 

 

Texto original recebido em janeiro/2005 e aprovado para publicação em março/2005.
* Psicanalista, doutor em Psicologia pela USP, professor adjunto do Departamento de Psicologia da UFMG; e-mail:jefpinto@uai.com.br

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