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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.11 n.17 Belo Horizonte jun. 2005

 

ARTIGOS

 

A realidade do virtual

 

The reality of the virtual

 

 

Eduardo Simonini Lopes*

Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa/MG

 

 


RESUMO

O presente trabalho propõe discutir o conceito de virtual, tendo como apoio as obras de Pierre Lévy, Jean Baudrillard e Gilles Deleuze. Entendemos que diferentes propostas de realidade do virtual surgem baseando-se na abordagem de cada um desses autores. E cada uma dessas propostas abre novas perspectivas para o pensamento de enxergar e manipular o conceito de virtual. Partimos, então, neste trabalho, do entendimento do virtual conquanto entidade desterritorializada (Lévy, 1998), seguindo até sua compreensão enquanto espaço de potência (Deleuze, 1996). Cada uma dessas abordagens produz um modo de pensar, e, enquanto Lévy situa o virtual como o espaço de representação da consciência humana, Deleuze já o trabalha como dimensão de intensidades não representacionais, promotora de contínua diferença. Construímos, assim, uma reflexão sobre o modo como alguns pensadores têm trabalhado o conceito de virtual: utilizando-o como recognição e ignorando seu entendimento como potência.

Palavras-chave: Virtual, Invenção, Realidade.


ABSTRACT

This article aims to debate the concept of the virtual, based on Pierre Lévy’s, Jean Baudrillard’s and Gilles Deleuze’s works. We understand that different proposals for virtual reality arise from each author’s approach. Each one of those proposals opens up the thought to new ways of seeing and manipulating the concept of the virtual. We consider the virtual a de-territorialized entity (Lévy, 1998), perceiving it as a space of potency (Deleuze, 1996). Each approach brings forth a way of thinking. While Lévy conceives of the virtual as the space of representation of human conscience, Deleuze defines it as a dimension of non-representative intensities, promoting continuous difference. Thus, we reflect upon the way some thinkers are working with the concept of the virtual, using it as recognition and ignoring its understanding as potency.

Keywords: The virtual, Invention, Reality.


 

 

A REALIDADE MATRICIAL

No ano de 2003, os cinemas de todo o mundo lançaram, com alarde, as duas partes finais da trilogia cinematográfica Matrix. Tal filme se enraizou tanto nos debates dos adolescentes quanto nos gabinetes das academias, fazendo eclodir, por todos os lados, discussões filosóficas, psicológicas, cinematográficas, tecnológicas, econômicas e principalmente políticas em torno da questão: o que é a realidade?

A idéia chave de Matrix pode ser resumida da seguinte maneira: o mundo é uma ilusão, gerada com base em um poderoso programa computacional. No contexto do filme, o que a humanidade considera realidade não passa de uma ilusão, e os sentidos não conseguem desvendar a verdade por trás da realidade fantasiosa. Para além da vivência ilusória, os humanos estariam hibernando em casulos criados por máquinas, alheios à sua condição de profundo coma. E é essa hibernação que permite que as máquinas produzam “energia” para alimentar o grande programa de ilusão: a Matrix. Somos levados, então, a uma visão da humanidade como um coletivo passivo e prisioneiro de ilusões profundas que o alienam e o distanciam da verdade sobre as coisas. A raça humana nos é apresentada, portanto, como paralisada e cega por um programa gerador de um mundo-simulação.

Matrix, em português, seria traduzido como matriz. Ou seja, uma matriz é um local onde se cria e produz algo; e, por conter esse aspecto gerador e gestacional, o conceito de matriz está intimamente ligado à maternidade, assim como o conceito de filial (aquilo que é uma extensão da matriz) está relacionado a filho, a uma filiação. No filme acima apresentado, ter a possibilidade de desvendar e manipular a Matrix seria, igualmente, possuir a capacidade de conhecer o segredo do mundo, o segredo da vida. Conhecer o segredo do sentido de existir e as intenções do Criador.

Nos liames de Matrix, somos conduzidos a pensar que a liberdade é uma ilusão, pois tudo se encontra predefinido nos códigos matriciais. Nós existimos porque a matriz existe. Conhecer a matriz seria, portanto, conhecer a Verdade. Entrar na matriz corresponderia a ter acesso aos códigos do programa e, com isso, igualmente, possuir o poder de manipular a realidade do mundo.

Há, no filme, uma ânsia por predeterminações. Neo1 é predestinado. Morpheus2, líder da resistência rebelde humana contra as máquinas, espera pelo cumprimento da profecia. O Oráculo3 é uma vidente que tudo sabe, uma vez que o futuro se encontra predefinido nas malhas da Matrix. A verdade do mundo se instala, então, na dimensão de um imenso programa de computador que se repete, como um videogame sempre reiniciado, em que os cenários são os mesmos, as atitudes semelhantes, mas há diferentes variações (igualmente predeterminadas) de a partida se resolver.

 

A PROCURA PELA MATRIZ

Mas seria tolice, de nossa parte, supor que as questões levantadas pelo filme possuem caráter original e revolucionário. Os questionamentos que o filme ergue já se encontram feitos, há milênios, na própria busca humana por significado e justificativa para sua existência. Religiões de perspectivas diversas, como o Cristianismo, o Hinduísmo e o Budismo, já anunciavam que o mundo é uma ilusão. Platão, que é um personagem filosófico e histórico mais antigo que Cristo, denunciava que o mundo onde transitamos não é a Verdade, mas uma aproximação que copia a Verdade. E, por milênios, muitos sujeitos estiveram ávidos por descobrir a Verdade por trás das supostas ilusões do mundo, e essa procura pela Verdade se tornou a mola mestra de todo o projeto da Modernidade. Mas o que seria o projeto moderno, do qual falamos aqui?

A Modernidade – que apresenta seus primeiros lampejos com o Renascimento, mas se estabelece a partir da Revolução Francesa – pretendeu fundamentar as condições sociais e científicas que sustentassem “certezas irremovíveis” a respeito do mundo, da vida e da própria condição humana. A busca da verdadeira essência humana passou a rivalizar com tudo o que era considerado estranho a tal pretensa essência. A importância do científico (entendido aqui como a esfera da experimentação, do observável, do que pode ser quantificado e controlado) passou a ter papel preponderante dentro da perspectiva moderna, principalmente no final do século XIX.

Com Descartes, Newton e inclusive Einstein, chegar a essa Verdade seria descobrir como Deus concebe o mundo. Com isso, o ser humano se elevaria mais próximo ao Criador. Outros tantos, tirando Deus do centro da criação, já sustentaram que a Natureza é a provedora de todas as leis que regem a condição humana, e que desvendar as leis da Natureza seria como dominar os códigos da matriz. Tanto em um caso quanto no outro, o alvo das pesquisas é a Verdade, conquanto fato absoluto, conquanto unidade geradora.

Dentro do contexto da Modernidade, encontramos grande fascínio pela perspectiva de conhecer a matriz, conhecer a regra dos códigos e manipular mundos. A própria manipulação da engenharia genética não deixa de ter essa ambição de ação sobre a realidade. Coincidentemente ou não, no lidar com os genes, já se fala em programação genética; ou seja, postula-se a existência de um programa matricial que coordena a vida. Por sua vez, instituíram-se letras (AT; G-C) para identificar as bases que compõem os nucleotídeos da molécula do DNA. Criou-se, assim, uma linguagem simbólica para o código genético. A manipulação das “letras” dessa linguagem permite que se interfira no genoma, concebendo, dessa maneira, outros possíveis para a vida. O ser humano ambiciona, pouco a pouco, programar as combinações genéticas, instituindose como novo Criador.

O geneticista Lewontin (2000) afirma que há uma perspectiva central à biologia do desenvolvimento, que se refere ao estudo dos mecanismos que são comuns a todos os indivíduos, e provavelmente a todas as espécies. Estão interessados no estudo do porquê da diferenciação do ovo fertilizado, baseandose na constatação de que há elementos promotores do desenvolvimento e da diferenciação, que são comuns aos diferentes organismos. Essa essência fixa, que determina o destino das diferenciações, é vista como localizada nos genes. Tal fato faz com que muitos pesquisadores considerem que o entendimento do comportamento de uma espécie esteja relacionado ao desvendamento de seu genoma.

Seguindo tal raciocínio, temos que a realidade e, conseqüentemente, a Verdade, não seria então o organismo e suas relações, mas o gene. As maneiras de o ser humano se pensar, conceber-se e até sonhar, estariam predeterminadas por complexas combinações genéticas ainda não completamente mapeadas (apesar de toda a pressa por terminar o seqüenciamento do genoma humano). O desvendar do DNA tornou-se, portanto, a pedra filosofal da Ciência.

O que, então, consideraríamos como real, consistiria em um conjunto de genes que, ao ser manipulado, poderia vir a alterar toda a configuração de mundo estável e reconhecível. Assim como em Matrix, o que é real é o programa em si, e não a ilusão dos que nele transitam. Desse modo, como manipuladores da realidade genética, já produzimos ratos fosforescentes, ratos com uma orelha imensa nas costas, animais com genes cruzados com vegetais e vice-versa, além de clones de animais. Já escolhemos o sexo dos filhos, e logo será a cor dos olhos, o tipo de cabelo, a cor da pele, a compleição física, a qualidade da saúde orgânica, e, quem sabe, até a personalidade. Mas seria tal código tão absoluto a ponto de definir a personalidade? Certamente várias pessoas acreditam que sim.

O que pretendemos fazer na genética é, portanto, algo muito parecido com o inventar outro mundo, já que supomos que descobrimos o código, ou ao menos se acredita que a manipulação do DNA e das células tronco venha a ser a capacidade de dominar a vida, controlando, ou mesmo exterminando, três grandes fantasmas da condição humana: a velhice, a doença e a morte.

 

O MUNDO PERFEITO

Permanece, entretanto, a questão: existirá, nessa matriz genética, a semente da criação perfeita? O pensar a respeito da criação perfeita e da matriz – modelo gerador – de todas as coisas nos conduz às reflexões de um filósofo já citado neste texto: Platão. Todo um pensar sobre a perfeição, irá remeter-nos a um mundo das idéias platônicas, que consiste na existência de modelos a partir dos quais tudo o que chamamos de realidade é configurado. Temos, pois, que Platão propôs a existência de um mundo das Idéias (de essências imutáveis), funcionando como modelo para um mundo de aparências (universo de cópias que compartilham com as essências uma relação de semelhança, mas que são imperfeitas). A Idéia é a essência matricial, a matéria é a realização da Idéia. Todavia, a materialização de uma Idéia nunca se dá de maneira perfeita, mas sempre de modo aproximado; sempre simulando o modelo original.

A proposta de realidade – que as concepções platônicas colocam em movimento – é a de que os seres humanos viveriam presos a ilusões do mundo, desconhecendo o esplendor da Verdade, uma Verdade que se sustenta independentemente dos seres que a desconhecem. E, nesses últimos séculos, os homens, principalmente os ocidentais, abrigando construções de mundo de referência platônica, viram-se envolvidos no projeto de fugir das ilusões, na expectativa de encontrar o viver verdadeiro, a perfeição da Idéia, o saber Absoluto: fosse através da Filosofia, da Religião ou da Ciência.

Seriam a manipulação do código genético e a reprogramação desse “caldo matricial” o caminho para se alcançar a Idéia de perfeição da condição humana? Estaríamos agora, mais de 2500 anos após a morte de Platão, em condições de produzir, em termos de materialidade, a perfeição Ideal em meio a este mundo de cópias (que adoecem, que sofrem, que morrem)?

É uma ambição científica montar um ser humano perfeito, que utilize o máximo de sua capacidade intelectual, habite um corpo não perecível e que seja imune a doenças. O partido nazista alemão, na década de 1940, desenvolveu um amplo projeto de pesquisa genética nesse sentido, na intenção de descobrir como aperfeiçoar a raça ariana. Apesar de os nazistas terem sido derrotados belicamente, as ambições totalizadoras por perfeição e pureza continuam vivas das mais diferentes maneiras. Muitos geneticistas acreditam estar aprendendo a manipular o “alfabeto da vida”, e nada impede de eles pensarem que a Idéia e a Pureza possam vir a se fazer carne, e, assim, possibilitar que a perfeição caminhe em meio aos simulacros. Estaria, então, o ser humano em condições de, no futuro, produzir um mundo perfeito, ou seja, de plena felicidade, sem dores e sem morte?

 

“A PERFEIÇÃO NÃO É DESTE MUNDO”

Tal frase nos conduz a uma aproximação com as teorizações platônicas da realidade, que sustentam a existência de um plano perfeito diferenciado do mundo material (considerado imperfeito). O próprio Platão considerava que o plano das Idéias não se poderia realizar na materialidade, e a única maneira de alcançá- lo era pelo pensar, pela reflexão, sendo a Filosofia um veículo imprescindível para esse fim.

E, se os geneticistas ainda se apresentam distantes de construir um ser humano perfeito (distantes tanto técnica quanto eticamente falando, visto que toda busca por pureza nos reconduz a perigosos fundamentalismos), tornouse necessário o desenvolvimento de outros artifícios para que a Idéia possa se substanciar em algo vivido.

É, então, que o desenvolvimento de tecnologias referentes a uma “realidade virtual” pode vir a se tornar uma nova proposta de construção de um mundo perfeito, sem refutar nem Cristo, nem Platão. A perfeição não seria, pois, deste mundo, mas poderia ser vivida de forma mais aproximada, valendo-se de um universo paralelo, construído para oferecer uma vivência de realidade potencialmente mais plena. Se antes falávamos do papel do gene como matriz geradora de mundos, agora entramos dentro da esfera do “virtual” conquanto matriz de novos mundos de expressão.

Mas o que é o virtual? Essa foi a pergunta que Lévy (1998) se fez em um livro em que buscou redimensionar a importância de tal conceito. Em seu trabalho, Lévy nos remonta à etimologia de “virtual”, palavra essa que, derivada do latim virtus, vem a significar força, potência. Lévy insiste – baseando-se no filósofo francês Gilles Deleuze – que o virtual não se opõe ao real, mas, sim, a outro processo denominado atualização. Nas palavras do próprio Deleuze (1988):

Em tudo isto, o único perigo é confundir o virtual com o possível. Com efeito, o possível opõe-se ao real; o processo do possível é pois uma realização. O virtual, ao contrário, não se opõe ao real; ele possui uma plena realidade por si mesmo. Seu processo é a atualização. (p. 339)

Lévy, seguindo as argumentações de Deleuze,4 irá afirmar que o virtual se apresenta como uma problematização, um nó de tensões que solicita uma solução; tal solução seria a própria atualização do virtual. Todavia, o que se atualiza não é o virtual, nem se assemelha a ele. O atual, como resolução de uma potência, faz surgir o criativo, a diferença, o novo, a ponto de Lévy argumentar que, nesse processo de atualização, ocorre “uma produção de qualidades novas, uma transformação de idéias, um verdadeiro devir que alimenta de volta o virtual” (Lévy, 1998, p. 17).

E aqui talvez termine o ponto de encontro das concepções de virtual entre Deleuze e Lévy (apesar de várias vezes em seus textos, Lévy chamar as argumentações de Deleuze para ser suas aliadas). Na obra deleuziana, o virtual não se refere a uma recognição, e não fundaria, em si mesmo, uma realidade a ser (re)conhecida. O virtual existiria conquanto potência, nuvem de intensidades que rodeariam o atual (Deleuze, 1996). Já quando Lévy, no decorrer de suas obras, propõe-se ao estudo do virtual e dos processos de virtualização, ele praticamente passa a se referir ao virtual como algo que existe como realidade “reconhecível” e “re-apresentável”, mas que, em um movimento de desterritorialização, passa a existir como dimensão que não ocupa um local definido dentro de um espaço.

Onde se daria, por exemplo, uma conversa telefônica? Em que local as vozes se encontrariam? Assim, teríamos que a conversa dar-se-ia em um “não-lugar” (mas não em “lugar nenhum”), apesar de a temporalidade ser mantida. O telefone possibilitaria, portanto, um encontro considerado por Lévy como virtual.

Torna-se importante, porém, para nossa argumentação, deixarmos claro que Lévy defende que o virtual é um “lugar”, ainda que o considere como lugar nunca totalizável. O virtual seria, para ele, aquilo que possui existência definida sem estar materialmente presente. Uma página de internet, por exemplo, possui existência e pode ser acessada em qualquer lugar do mundo, mas não está presente em um local específico, a não ser dentro da própria dinâmica desterritorializada da Rede.

Muitos jogos eletrônicos estão se especializando no projeto de criação dessa realidade virtual. Inserem-se progressivamente no mercado prometendo um nível de interatividade cada vez mais visceral entre o jogador e a outra realidade ali presente. Fones, óculos e luvas especiais, proporcionam maior interatividade, havendo até casos em que são oferecidas estimulações musculares como potencializadoras dessa interação “virtual”.

Por enquanto, os simuladores de realidade virtual estão tecnologicamente embrionários, se pensarmos o que ainda pode ser feito nos tempos futuros. É nesse ponto que a utilização que se faz do cinema, neste texto, vem a se justificar. Quando assistimos a tramas como Matrix, ou Vanilla sky, podemos dimensionar que os futuros programas de realidade virtual poderão realizar tamanha desterritorialização do espaço e do tempo, que inserirão o usuário desses recursos em um universo que simulará a plenitude aos sentidos.

Essa é, por exemplo, a idéia chave do filme Vanilla sky. Um homem bonito e rico (marcado por um estilo de vida voltado para o prazer) tem seu rosto desfigurado em um acidente, sendo, em seguida, abandonado pela mulher que amava. Perante seu infortúnio, ele resolve fugir de sua vida cotidiana (agora imperfeita por conta da deficiência física e da solidão afetiva), a fim de viver numa realidade virtual de satisfação plena. Como? Uma empresa oferecia a seus clientes programas que funcionavam como implantes cerebrais, e tais programas permitiam ao indivíduo habitar um mundo perfeito (singularizado para cada cliente), possibilitando a ele ficar completamente alheio ao fato do vivido não passar de uma artificialidade. Enquanto isso, seu corpo físico passava por um processo de congelamento.

Em Vanilla sky, a imersão no mundo virtual como promessa de universo perfeito, sem sofrimentos, sem doenças e, principalmente eterno, toma concretude. E somos levados de tal maneira pelo filme, que não mais sabemos diferenciar o que é “real” do que é “fantasia”. Ficamos confusos, perdidos, querendo discernir o que é vivência “verdadeira” do que é produto do programa matricial. Em Vanilla sky, a realidade virtual surgiria, pois, com a promessa de criar mundos Ideais.

 

A HIPER-REALIDADE DO VIRTUAL

A matéria, o mundo sensível, é imperfeito, mas a retomada da “virtualização” desse mundo, via realidade virtual, tem a intenção de redimi-lo de sua imperfeição e de lançá-lo nas esferas de plenitude. Temos, portanto, que o conceito de virtual, concebido como idéia matriz de um novo mundo, toma força por todos os lados. Assim sendo, a realidade virtual tenderia a ambicionar àquela esculpida como perfeição, na qual a pessoa realizar-se-ia por completo, em total imersão em “outro” mundo, que é re-apresentado como uma realidade, ou seja, uma representação (aperfeiçoada) do mundo que consideramos como real. A grande ambição dos arquitetos das ditas realidades virtuais talvez seja construir uma realidade perfeita, que supere o “mundo imperfeito” no qual transitamos. Nesse sentido, Matrix e Vanilla sky anunciam essa retomada platônica no coração da chamada pós-modernidade.

Desenhos animados hiper-realistas, como Final fantasy ou O vôo final do Osiris, são exemplos claros de como personagens artificiais (concebidos por uma linguagem digital) tomam cada vez mais consistência humana, podendo até vir a substituir atores nos filmes. O contrário também não é impensável: a digitalização do humano para dentro de mundos artificiais, como ilustrado em produções cinematográficas – Tron, Existenz e Décimo Terceiro Andar. Através de luvas, visores e roupas especiais que possibilitassem o viver e o sentir dentro desse universo digital, teríamos o corpo e a personalidade de um sujeito transportados para um mundo virtual. Encontrar-nos-íamos, assim, com a produção de uma cópia virtualizada do organismo humano, mas uma cópia que poderia vir a superar as limitações do corpo orgânico com base no qual foi modelada. Um corpo virtual seria uma cópia com condições de vivenciar experiências para além do espaço-tempo e dos limites sociais e históricos que condicionam o sujeito.

Há pensadores que, mais cautelosos com os avanços de tais dimensões de expressão, acreditam que o estabelecimento da perfeição do corpo e do sujeito em uma suposta realidade virtual dar-se-ia à custa de uma possível alienação do indivíduo de si mesmo e do mundo que antes habitava. E é nesse ponto que consideramos necessário fazer uma breve interrupção, a fim de nos encontrarmos com as reflexões do pensador francês Jean Baudrillard a respeito das dimensões que o virtual tem tomado, e que pode vir a tomar, no viver da humanidade.

Para ele, não existe uma realidade como entidade absoluta e totalizadora. Qualquer tentativa de fundar tal realidade institui uma ilusão. Nesse sentido, ele argumenta que o mundo em que vivemos é uma ilusão, uma vez que tendemos a acreditar que esse mundo seja, em si mesmo, uma realidade final. Nas palavras de Baudrillard (2001):

Do meu ponto de vista, como já disse, fazer acontecer um mundo real é já produzilo, e o real jamais foi outra coisa senão uma forma de simulação. Podemos, certamente, pretender que exista um efeito de real, um efeito de verdade, um efeito de objetividade, mas o real, em si, não existe (p. 41).

Baudrillard contesta, portanto, a existência de uma realidade como absoluta. Qualquer proposta de real seria uma simulação possível, com vias de criar uma ilusão mais ou menos totalizadora. Quando Baudrillard (1997) declarou que a Guerra do Golfo nunca existiu, poucos entenderam a extensão de seus argumentos. Para ele, teríamos vivenciado tal guerra como uma realidade produzida via mídia, a qual predeterminou as normas da veracidade do conflito. Nesse sentido, a Guerra do Golfo não se instituiu como real absoluto, mas, sim, como uma simulação, uma ilusão, que os sistemas midiáticos definiram como a realidade dos fatos. Se aceitamos ou não as definições de tal “realidade”, dependerá apenas do quanto estamos aptos a imergir dentro da simulação. Assim, Baudrillard fala de um mundo como construção não totalizável, produtora de contínuas simulações de realidade.

Seguindo essas argumentações, temos que a procura por se estabelecer uma realidade virtual envolve a busca por se construir a ilusão da ilusão, e, assim,produzir, nos termos de Baudrillard (2001), uma hiper-realidade que seria homogênea, perfeita, controlável e não contraditória. Por conseguinte,

[..] como ela é mais ‘acabada’, ela é mais real do que o que construímos como simulacro. [...] Agora o virtual é o que está no lugar do real, é mesmo sua solução final na medida em que efetiva o mundo em sua realidade definitiva e, ao mesmo tempo, assinala sua dissolução (p. 42).

A instauração de uma realidade virtual como verdade última, que aniquilaria os erros, as incertezas, as linhas de fuga, é, para Baudrillard, o extermínio das ilusões. Mas acabar com as ilusões para implantar um universo homogeneizado significaria igualmente matar a vida conquanto pluralidade e multiplicação de mundos. Considera ele que

A virtualidade aproxima-se da felicidade somente por eliminar sub-repticiamente a referência às coisas. Dá tudo, mas sutilmente. Ao mesmo tempo, tudo esconde. O sujeito realiza-se perfeitamente aí, mas quando está perfeitamente realizado, torna-se, de modo automático, objeto; instala-se o pânico (p. 133).

Subjugados a uma tal realidade virtual, encontraríamos, portanto, seres humanos encapsulados dentro de formas de pensar e sentir já pré-configuradas nas malhas de um programa matriz, de uma linguagem matemática, de uma plataforma Windows, de uma programação genética “ideal”, das configurações do World Wide Web, da linguagem Java, HTML, de uma telenovela global.

 

O VIRTUAL COMO POTÊNCIA

Na crítica profética e apocalíptica de Baudrillard, estamos nos reportando a um virtual que, não ocupando uma dimensão espaço-temporal específica, seria em si mesmo uma realidade que aniquilaria todo pensar inventivo humano – pensar esse que é produtor das mais diversas ilusões sobre o mundo. Instaurando a mais perigosa das ilusões, a ilusão da Verdade, o virtual teria o poder de aniquilação de qualquer liberdade.

Todavia, torna-se importante, no presente momento de nossa reflexão, não confundirmos o conceito do virtual, em Lévy e Baudrillard, e as considerações sobre esse mesmo conceito, em Deleuze. Como anteriormente assinalado, Lévy conclama a realidade do virtual para justificá-la como unidade que pode ser reconhecida, mesmo que não presente de maneira física (a exemplo de uma comunidade virtual como o Orkut).5 Já Deleuze considera que a realidade do virtual só se justifica como potência, e não pode, por isso mesmo, ser reconhecida. Tal diferença de perspectiva se encontra bem marcada na seguinte argumentação de Lévy quando ele apresenta que “é virtual toda entidade ‘desterritorializada’, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular” (Lévy, 2003, p. 47; grifo nosso).

É nesse sentido (do virtual como “entidade” desterritorializada) que se tem trabalhado de maneira ampla com o virtual na nossa contemporaneidade; seja por um viés “otimista” (Lévy), seja por um viés mais “pessimista” (Baudrillard). O ponto de desencontro de Lévy e Baudrillad com o conceito filosófico de virtual proposto em Deleuze consiste no fato de que, no fim das contas (e mesmo afirmando textualmente o contrário – principalmente no caso de Lévy), ambos contrapõem o virtual ao possível e, conseqüentemente, ao real.

No momento em que temos o virtual definido como entidade não presentificável, mas ainda assim entidade, temos igualmente sua correspondência dentro do real. A página virtual não é senão outra (ainda que potencializada em recursos) da página de papel. Ou seja, a página de internet, a voz ao telefone, os movimentos dos personagens na novela, a Guerra do Golfo virtualizada pela mídia, a comunidade virtual, têm todos seus duplos e correlações no universo do real.

Não nos podemos, portanto, furtar ao aviso de Deleuze, já indicado anteriormente, de que o perigoso é confundir o virtual com o possível. O virtual, tanto em Lévy quanto em Baudrillard, é um possível em processo de realização em outro lugar: o lugar das linguagens digitais, do ciberespaço, da realidade virtual. Mas aqui o virtual já está muito distante da potência a qual a perspectiva deleuziana alude, perspectiva essa na qual Lévy (1998) abertamente declara ter se inspirado. A fim de resgatarmos, então, o conceito de virtual no que concerne à potência de produção de realidade, congratulamo-nos com Dentin (1999) quando ele argumenta que

Ao invés de falar de realidade virtual, não se deveria empregar o termo representação artificial? [...] O termo virtual torna-se palavra de ordem de uma nova estética, acompanhada de uma certa ideologia da comunicação (através das belas imagens tanto da ciência como da arte). Visto desse ângulo, o uso do termo virtual é particularmente empobrecedor, correndo o risco de ocultar a riqueza do conceito. Pois é na contracorrente da imagem, evacuando tudo o que é da ordem da reprodução, do simulacro e da cópia, que podemos realmente encontrar um ‘lugar do virtual’. (p. 133)

Baudrillard, aqui, talvez contra-argumentasse dizendo que toda realidade é, em si mesma, artificial, uma vez que não existe um real como instância natural. Concordaríamos plenamente com ele, porém, a argumentação de Dentin liberta o virtual da trama do real, para reconduzi-lo a um espaço de existir como potência, e não como representação. As abordagens que têm se organizado em torno do virtual, configuram-no na qualidade de ou na condição de recognição de um mundo, e não como potência de criação, como propõe Deleuze. Na perspectiva desse pensador, inserir o virtual na realidade seria introduzir na trama da vida a invenção, o acontecimento, e não a repetição do igual, ou seja, a recognição e a representação. Insistir em se trabalhar o virtual pela ótica da recognição consistiria em concebê-lo como repetição de um objeto ausente e, para Deleuze (1988), “a forma da recognição nunca santificou outra coisa que não o reconhecível e o reconhecido, a forma nunca inspirou outra coisa que não fosse conformidade” (p. 223).

Na perspectiva deleuziana, a recognição limita o pensamento, evitando que ele procure seus modelos em aventuras mais estranhas e/ou comprometedoras. E é com base no entendimento do virtual como recognição que entendemos melhor a crítica de Baudrillard, uma vez que, para ele, a instauração de uma realidade artificial pretenderia repetir o mundo no âmbito do ideal. O que Baudrillard denuncia não é propriamente o virtual (como pensado por Deleuze e inicialmente apropriado por Lévy), mas, sim, o poder da recognição dentro da realidade artificial.

E, apesar de, no início de suas teorizações sobre o virtual, Lévy se propor a uma aproximação com Deleuze – a fim de conceber o virtual como uma problematização –, no transcorrer de sua obra, Lévy se distanciou dessa perspectiva. Ele não se deu conta da força da recognição que suas reflexões imprimiram ao virtual. Lévy reterritorializou o conceito de virtual em nome da re-apresentação; ainda que insista em falar sobre um ciberespaço como um universal não totalizável. Mas mesmo nesse espaço não totalizável de Lévy, ronda sempre o fantasma da recognição, como ilustra a argumentação abaixo:

Nessa proposição, o ‘universal’ significa a presença virtual da humanidade para si mesma. O universal abriga o aqui e o agora da espécie, seu ponto de encontro, um aqui e agora paradoxal, sem lugar nem tempo claramente definíveis. [...] o horizonte de um ciberespaço que temos como universalista é o de interconectar todos os bípedes falantes e fazê-los participar da inteligência coletiva da espécie no seio de um meio ubiqüitário. (Lévy, 2003, p. 247; grifo nosso)

Valendo-nos do texto acima, nada impede que pensemos aqui o virtual e o ciberespaço como grandes máquinas de recognição. Um mundo configurado em uma “inteligência coletiva” da espécie, “inteligência” essa que re-insere o humano dentro de uma identidade, dos domínios de uma linguagem comum, dentro de padrões de pensar (mesmo que sejam padrões conflitantes), de modos de se reconhecer como humano.

Todavia, é necessário ter a consciência de que o ato do reconhecimento é uma prática que difere da dinâmica do inventar. No ato de re-conhecer, temos revelado o que era existente, mas ainda não plenamente identificado. Já no ato de inventar, temos a problematização instaurada para além do estável e do representado. Inventar é fazer surgir o que não existia. E é nessa instância que Deleuze se propôs a trabalhar o conceito de virtual. Não como representante de uma ausência ou realização de um ausente, mas como nuvem de intensidades que não é apreendida pelo conhecido e, por isso mesmo, problematiza, inquieta, tensiona o estabelecido, forçando partos inusitados de novas figuras. O escritor D. H. Lawrence ilustra tal dinâmica de forma poética, quando relata que

Mesmo um artista sabe que seu trabalho nunca esteve na sua mente; ele nunca poderia tê-lo pensado antes dele ter acontecido. Uma estranha dor o possui e ele começou a luta, e a partir da luta com seu material, no encanto do impulso seu trabalho tomou forma, aconteceu, levantou-se e saudou sua mente. (Blake; Lawrence, 2001, p. 227)

Assim, o virtual não é apreendido por nenhuma relação de especificidade porque não é uma potência específica, mas, sim, potência plural, instauradora da vertigem da diferença. É por isso que o virtual nada tem a ver com o possível e com a realização desse possível. O que chamamos realização é um estado configurável dentro de regras estáveis. A dimensão do virtual não conhece regra a qual se submeter, já que só existe em si mesmo como potência no seio do movimento de multiplicidade.

E o virtual, como multiplicidade, não tem forma sensível nem função assinalável; não tem existência atual e é inseparável de uma potência. Assim sendo, não se pode dizer que o virtual implique qualquer identidade prévia ou alguma unidade. Por isso mesmo o virtual possibilita a liberação da diferença de toda e qualquer subordinação (Deleuze, 1988).

Tudo isso nos lembra as palavras de Spinoza em seu questionamento sobre “o que pode um corpo?”. Está presente aí toda a dimensão de uma potência, não de uma representação. Qual a potência de um corpo? Qual a potência dos encontros que esse corpo pode engendrar? Nos tempos atuais, esse corpo pode ser algo muito além do orgânico, constituindo-se também como o corpo do ciberespaço, da mídia, da política, da realidade artificial, das produções de subjetividade. Se o corpo e a realidade são impregnados por virtuais, é no sentido de estar sempre tensionados a sair da recognição, a produzir o estranho, o fora de esquadro, a desterritorialização do estabelecido. Ou seja, o virtual é a tensão que anuncia a potência da diferença.

O virtual existiria, portanto, na força e na tensão dos encontros, e sua atua lização indicaria soluções possíveis, outras formas de existir. O virtual residiria na potência do encontro, mas não em um tipo específico de encontro. Residiria na potência do viver, mas não em um tipo específico e delimitado de vida. Residiria na potência de produção de realidades e mundos, mas não em um tipo especial de realidade. Todas as realidades que construímos nos nossos encontros (sejam eles bons, sejam eles maus encontros) emergem, portanto, na potência do virtual.

 

A REALIDADE DO VIRTUAL

O virtual conquanto potência tem, portanto, uma realidade, mas não é necessariamente uma realidade representável. Rajchman (2000), com base na obra de Deleuze, irá dizer que

O virtual conquanto potência tem, portanto, uma realidade, mas não é necessariamente uma realidade representável. Rajchman (2000), com base na obra de Deleuze, irá dizer que

E complementa sua reflexão com um questionamento:

Pensar, tentar, “experimentar” o virtual, é portanto sempre “pensar de outro modo” [...] Mas somos ainda capazes desse tipo de inteligência, dessa experiência do virtual? [...] Em outras palavras: podemos virtualizar esse mundo no mesmo momento em que ele se dá como necessidade, ou até como condicionamento futurista ou desrealização generalizada? (p. 399)

A questão acima faz ressonância com a levantada por Kastrup (1999), que argumenta que, quando falamos sobre as vias informacionais e das realidades artificiais que delas derivam, o importante consiste em saber não se as máquinas de informação poderão se constituir em sistemas inventivos, mas, sim, se elas são capazes de provocar, na interface com o usuário, outras formas de conhecer e pensar. Que tipos de fluxo poderão ser agenciados entre o usuário e a máquina, e que novas produções subjetivas poderão derivar desses encontros? Esse é o ponto chave de questionamento, pois é no movimento desses fluxos, intensidades e agenciamentos que se estabelece a realidade do virtual como potência e invenção.

O momento da invenção só pode ser captado no rastro dessas intensidades que produzem rompimentos, crises, inquietações e problematizações na ordem estabelecida. E toda invenção é inquietante; todo novo produz abalos, sendo movimentos de criação que, como dizia Nietzsche, estão além do bem e do mal. O virtual se instala, portanto, nesse momento do inusitado, do problema que força um pensar diferenciado e novo. Por isso mesmo o virtual não traria uma tranqüilidade nirvânica, ou um mundo ideal (ambições de muitos daqueles que anseiam construir realidades artificiais), mas, sim, o movimento da inquietação, do “fora de lugar”, do sentido e da direção ainda não esquadrinhados pelo pensamento. O virtual, como potência, lança-nos no mundo e na vida como acontecimento, como criação inventiva, nunca na vida como Fato, Idéia ou Absoluto.

Em Vanilla sky, o personagem, vivendo o universo idílico de seu mundo artificial perfeito, de repente se encontra vítima de um conflito no programa, o qual faz vir à tona – em seu mundo idealizado e prazeroso – pessoas e circunstâncias indesejadas que reatualizam as culpas das quais ele pretendia fugir. É seguindo, porém, as pistas deixadas pelos lapsos e pelas crises na programação que ele se dá conta de algo novo, de uma revelação: que tudo aquilo que está vivendo consiste em uma jaula de recognições, uma repetição ad infinitum de memórias programadas. Apenas assim tem ele condições de gritar por se libertar de sua prisão; encarar seus medos; sair de seu sono congelado; abrir de novo os olhos6 e optar pelo imprevisível do viver.

É necessário, então, que nos arrisquemos, assim como o personagem de Vanilla Sky, a margear potências virtuais que abram nossos olhos a intensidades que nos desafiem a novas aventuras de ver, sentir e pensar. É importante que ousemos, ainda que por linhas de fuga tênues, escapar do circuito tranqüilizador das recognições, que muitas vezes nos mantém atados às amarras de conceber a existência como emergente de uma suposta realidade matriz que conteria todas as respostas. É necessário fugir da tirania de pensar a vida como reflexo de qualquer programa matricial: seja ele a Cultura, a Matemática, o Inconsciente, o Social, o Édipo, a Bíblia, o Alcorão, Deus, o Gene.

A respeito, aliás, de toda a questão que envolve o gene, Lewontin (2000) argumenta que muito da incerteza da evolução genética surge da existência de múltiplas possibilidades e caminhos, mesmo quando as condições externas (ambientais) já estão fixadas. Para ele, o organismo não é determinado nem pelos seus genes, nem pelo ambiente, nem pela interação entre eles, mas, sim, pelos processos randômicos inusitados que se estabelecem entre todos esses elementos. Aí se localiza o instante inventivo do virtual: no imprevisível das intensidades dos encontros.

E é somente ousando sustentar a vida como invenção que podemos escapar à recognição de qualquer programa matriz, de qualquer redução do mundo a uma repetição sem fim desse programa. Assim, quando nos debruçamos a pensar sobre a realidade artificial, a internet, as mídias interativas, o trabalho que realizamos, as teorias nas quais militamos, os ideais que sonhamos, o mais importante é construirmos problematizações, a fim de não nos mantermos de maneira recorrente dentro de um movimento inerte. Podemos, porém, cair em universos totalizadores (sejam eles teóricos, sejam eles digitais, sejam eles artificiais)? Sim, a todo momento há esse risco. Podemos ser seduzidos por programas de Verdade que nos absorvam tal qual um drogado é consumido pela dependência química. Mas virtualizar a vida e nossas produções é permitir que o ar entre por frestas insuspeitas e produza um abalo, uma inquietação, um estranhamento em nossos mundos-verdade, a fim de que igualmente seja criada a oportunidade para o surgimento de novas maneiras de sentir.

Feliz ou infelizmente, não existe mundo pronto, não existe universo acabado. Vivemos em um mundo que nos é re-conhecido, e necessitamos desse reconhecimento para construir uma unidade espaço-temporal chamada “eu”. Igualmente podemos construir realidades artificiais, ou ilusões (na concepção de Baudrillard), nas quais possamos nos reconhecer e sustentar a estabilidade desse “eu”. Mas a vida fica empobrecida quando fechada apenas ao circuito das recognições. A vida, assim como o mundo que concebemos, deve ser também inventada, e reinventada, chamando a diferença para dentro dessa dança. Esse é nosso desafio, quando nos propomos a lidar com a potência do novo, da invenção, do virtual.

 

Referências

Baudrillard, J. (1997). Entrevista com Jean Baudrillard. Disponível em: http://pro. wanadoo.fr/sheila.leirner/Site%20Entrevistas/Jean%20Baudrillard%201997.htm. Acesso em: 5/6/2003.        [ Links ]

Baudrillard, J. (2001). Senhas. Rio de Janeiro: DIFEL.        [ Links ]

Baudrillard, J. (2002). Tela total. Porto Alegre: Sulina.        [ Links ]

Blake W. & Lawrence, D. H. (2001). Tudo que vive é sagrado. Belo Horizonte: Crisálida.        [ Links ]

Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição. (3rd. ed.) Rio de Janeiro: Graal.        [ Links ]

Deleuze, G. (1996). O atual e o virtual. In: E. Alliez. Deleuze filosofia virtual. (p. 47- 56). Rio de Janeiro: Ed. 34.        [ Links ]

Dentin, S. (1999). O virtual nas ciências. In: A. Parente. (Org.). Imagem máquina. (3rd.ed.) (p. 133-143). Rio de Janeiro: Ed. 34.        [ Links ]

Kastrup, V. (1999). A invenção de si e do mundo. Campinas: Papirus.        [ Links ]

Lévy, P. (1998). O que é o virtual? (2rd. ed.) Rio de Janeiro: Ed. 34.        [ Links ]

Lévy, P. (2003). Cibercultura. (3rd. ed.) Rio de Janeiro: Ed. 34.        [ Links ]

Lewontin, R. (2000). The triple helix. Cambridge: Harvard University Press.        [ Links ]

Rajchman, J. (2000). Existe uma inteligência do virtual? In: E. Alliez. (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. (p. 397-413). Rio de Janeiro: Ed. 34.        [ Links ]

 

 

• Texto original recebido em dezembro/2004 e aprovado para publicação em março/2005.
* Psicólogo, mestre em Psicologia Social (Uerj), professor pelo Depto. de Educação da Universidade Federal de Viçosa/MG; simonini1@yahoo.com.br.
1 Neo (alusivo ao novo). É o personagem principal da trama, considerado como o Messias de um novo mundo, livre do domínio das máquinas que aprisionam os seres humanos no sonho do mundo-ilusão. Outro personagem, chamado Oráculo, havia previsto o aparecimento desse Messias.
2 Morpheus (alusivo à forma, sonho) é um dos líderes do movimento humano contra as máquinas e um dos poucos que acreditam na profecia do Oráculo. Foi o responsável pelo “despertar” de Neo para a realidade
3 Personagem enigmático, que conhece o destino de todas as coisas.
4 “O virtual tem a realidade de uma tarefa a ser cumprida, assim como a realidade de um problema a ser resolvido; é o problema que orienta, condiciona, engendra as soluções, mas estas não se assemelham às condições do problema” (Deleuze, 1988, p. 341).
5 O “www.orkut.com” é um site na internet no qual as pessoas se organizam em grupos de amigos e em comunidades temáticas as mais diversas.
6 Vanilla sky é uma adaptação de um filme do diretor espanhol Alejandro Amenábar, intitulado Abre los ojos, cuja tradução literal em português seria “Abra os olhos”.

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