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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.11 n.17 Belo Horizonte jun. 2005

 

SEÇÃO ABERTA

 

Athos, Porthos, até logo –, Aramis, para sempre, adeus!*

 

Athos, Porthos, so long –, Aramis, goodbye, forever!

 

 

Elisabeth Roudinesco**

Universidade de Paris VII
École Pratique de Hautes Études

 

 

Quando Ginette Michaud honrou-me, ao pedir minha participação nesse Cahier de l’Herne, eu havia acabado de tomar conhecimento do suntuoso adeus de Jacques Derrida 1 a uma geração inteira de pensadores, entre os quais alguns meus amigos ou mestres. Eu decidi então redigir uma espécie de post-scriptum a esse adeus, uma homenagem ao que é imortal na amizade, em cada amizade partilhada durante a vida.

A lei que rege as relações que cada sujeito mantém com o amigo morto, e, portanto, com a morte e com a amizade, é uma lei estrutural e universal, uma “lei inflexível e fatal: de dois amigos, um verá o outro morrer” (Derrida, 2003, p. 20). Essa morte, quando acontece, não significa somente o fim de tal ou tal vida, mas o “fim de alguma coisa em sua totalidade”. Em conseqüência, nenhum luto é possível. Mas, como a ausência do luto sempre implica o risco de levar à loucura o amigo que fica, somente a melancolia possibilita a integração em si da morte do outro e a continuação da vida.

Eu já passei por essa perda, já tive de escrever palavras de adeus a pessoas próximas ou a amigos falecidos. Assim, sempre disse adeus ao morto logo após sua morte. Eu nunca pude escrever uma homenagem fúnebre antes da morte real da pessoa que morreria, ainda que ela estivesse antecipadamente condenada por alguma doença implacável.

Parece-me que a ninguém é dado dizer a morte antes da chegada da morte. E, quando isso acontece, quando uma despedida é escrita antes da hora, como um jeito de matar a morte, pode-se suspeitar aí uma impostura nas entrelinhas. O morto fica então privado da possível narrativa de sua morte e esta última identificada a um nada. Traição à cronologia, traição ao tempo necessário à chegada da morte, à sua narração, à sua celebração. Transgressão suprema, enfim, já que esse ato de matar a morte, perpetrado antes dela, torna aquele que redige seu texto o senhor – necessariamente ilusório – de uma suspensão do tempo. Com efeito, nada garante que o autor da necrologia anterior à morte já não esteja morto no momento da morte daquele cuja morte ele relatou.

Separação última, o adeus se enuncia a partir da vida, como o momento em que se misturam a morte vivida, a morte sofrida, a morte celebrada, a memória da morte. Dizer adeus, dar adeus, fazer uma visita de adeus, todas essas expressões significam mesmo que aquele que parte reenvia a Deus a alma de quem fica: para sempre. Quem diz adeus também desaparece, na medida em que se separa do mundo no qual vivia para ter acesso a outro. Mas pronunciar um adeus, dizer adeus ao amigo morto pode, por outro lado, significar, para aquele que ficou em vida, entregar a-Deus a alma do falecido, para que a memória da amizade permaneça eternamente viva, para além da morte. Isso pode também significar a transformação do a-Deus em um adeus, a passagem discreta do reino de Deus ao da morte de Deus. O a-Deus supõe a existência de Deus; e o adeus, o seu desaparecimento. E não é por acaso que a distinção entre o adeus e o até logo2 foi colocada no léxico francês no início do século XIX, logo após uma revolução que havia destruído, por um regicídio único no mundo, o laço que unia Deus à soberania real. O a-Deus desaparece em benefício do adeus, fazendo surgir o até logo. Um século antes, ainda se dizia: adeus, até mais ver.

Única no mundo, a execução de Luís XVI não foi somente a decapitação de um rei, mas a morte da monarquia. Com base na vida, e para que a Nação continuasse viva, era necessário, sem nenhuma cerimônia de adeus, sem nenhuma entrega a-Deus da alma do defunto, sem nenhum adeus até mais ver, dizer adeus à realeza, tornada reino dos mortos.

O luto do ente querido nunca acontece de verdade, e foi para dar uma significação a esse impossível que Freud, em 1915, se ocupou em atar e desatar, num mesmo movimento, os laços que unem o luto e a melancolia. Aliás, ele o fez correndo o risco de fazer da melancolia não um destino subjetivo, mas uma patologia própria às neuroses narcísicas. E foi preciso esperar a invenção da pulsão de morte e a experiência vivida da morte de determinados membros de sua família – particularmente de sua filha e de seu neto – para que o mestre de Viena levasse em conta a idéia de que alguns lutos são impossíveis de se fazer:

Sabemos que depois de tal perda, escreve a respeito da morte de Sophie, o luto agudo vai se atenuar, mas continuamos sempre inconsoláveis, sem encontrar substituto. Tudo que ocupa esse lugar, ainda que o ocupe inteiramente, continua sendo sempre outra coisa. E, no fundo, é bom que seja assim. É o único meio de perpetuar esse amor que não se quer abandonar por preço algum. (Young-Bruehl, 1991)

E ainda:

É verdade, perdi minha filha querida de vinte e sete anos, mas suportei essa perda estranhamente bem. Aconteceu em 1920, estávamos corroídos pela miséria da guerra, preparados havia anos para receber a notícia da morte de um filho. Dessa maneira, a submissão ao destino estava preparada [...]. Desde a morte de Heinerle, não amo mais meus netos e não mais me regozijo com a vida. Nisso reside também o segredo da indiferença. As pessoas chamam isso de coragem frente à ameaça que pesa sobre minha própria vida. (Freud; Binswanger, 1995)

O que esses dois testemunhos mostram, ainda que sejam contraditórios, é que a morte de uma geração futura, quando não tem por causa uma guerra, uma epidemia, uma calamidade ou um massacre, é sentida como uma patologia. Com efeito, quer a regra da evolução que a ordem genealógica nunca seja alterada.3 Pois está escrito no grande livro do tempo que um homem sempre deve morrer depois de seus ascendentes e antes de sua progenitura. Conseqüentemente, quanto mais a morte bate em sentido contrário a esse destino aparentemente imutável, maior é o sofrimento que se instala na alma do sobrevivente obrigado a aceitar o inaceitável. A partir do fim do século XVIII, e mais ainda no final do século XX, a transgressão dessa regra será vivida como uma anomalia ainda mais viva (Vovelle, 2000).

As palavras de adeus de Derrida são arrancadas do silêncio e do nada: “In memoriam, o gosto das lágrimas, de tanto luto, terei que vagar sozinho, amizade- sem-limites.” E enfim, referindo-se a Lévinas:

Mas eu disse que não queria somente lembrar o que ele nos contou sobre o a-Deus, mas antes de tudo dizer-lhe adeus, chamá-lo por seu nome, tal como se chama no momento em que, se ele não responde mais, é também porque ele responde em nós [...] ao nos lembrarmos: “a-Deus” Adeus Emmanuel (Derrida, 2003, p. 252).

Diante do túmulo do amigo, diante do morto já desprovido de palavras, o que importa é conjurar o destino do luto através de um desafio. Dizer adeus e não a-Deus. E, se “cada vez é única”, cada indivíduo é merecedor de uma homenagem singular que possa ser também a repetição de uma mesma evocação da perda:

Muito a dizer, falta-me o coração, faltam-me as forças, terei que vagar sozinho, a ausência agora permanece para mim eternamente impensável, o que está acontecendo tira-me o fôlego, como não tremer, como fazer, como ser, falar é impossível, calar-se também, o que para mim era impossível aí está, indecente, injustificável, intolerável, como uma catástrofe que já ocorreu e que deverá necessariamente se repetir. Peço-lhes que me perdoem, se hoje só tenho forças para algumas palavras bem simples. Mais adiante, tentarei falar melhor (Derrida).

Poderíamos multiplicar ao infinito a lista dessas palavras de luto que pontuam o adeus de Jacques Derrida a seus amigos, adeus sem Deus.

Sem questionar as maneiras de morrer no Ocidente, sem apontar as diferenças entre as diversas maneiras de morrer – suicídio, acidente, doença, morte violenta, morte calma, morte desejada, morte súbita, passagem ao ato – e qualquer que seja a idade da pessoa a quem dirige sua saudação, Jacques Derrida constrói seu discurso como o palimpsesto do instante da morte, como o rastro instantâneo desse momento único em que se produz a passagem da vida à morte. Dessa maneira, ele pode evocar toda a memória oculta de uma existência fragmentada. A cada vez, surge da sombra um detalhe para avivar a melodia da lei “inflexível e fatal”:

Ter um amigo, olhar para ele, segui-lo com os olhos, admirá-lo na amizade significa saber de maneira um pouco mais intensa e por antecipação sofrida, sempre insistente, cada vez mais inesquecível, que um dos dois fatalmente verá o outro morrer. Um de nós – diz cada um – um de nós vai ver chegar o dia em que não vai mais ver o outro (Derrida, 2003, p. 137).

Assim sendo, as palavras de adeus de Jacques Derrida não são nem homenagens fúnebres, no sentido clássico, nem necrologias, nem narrativas de agonia. Ele não escolheu falar o momento da morte, nem da degradação das carnes, nem o horror do rosto paralisado ou do corpo enrijecido. Ele não contou os últimos dias de Emmanuel Kant, nem escreveu um Baudelaire, últimos tempos ou um Voltaire agonizante. Ele não teve de testemunhar nenhuma “cerimônia do adeus” (Beauvoir, 1981).

Ele também não escolheu as palavras da morte – perecer, desaparecer, sucumbir, morrer, falecer (o mais horrível). E ele não evocou os últimos instantes dos condenados à morte nem as últimas palavras inventadas para a morte pelos vivos à espera da morte: “Ô morte, velho capitão, é chegada a hora! Levantemos âncora!”. Ou ainda: “Essa idéia da morte instalou-se definitivamente em mim como um amor”. E também: “A morte, espectro mascarado, nada tem sob sua viseira”.4 Nem mortes infames nem mortes ilustres. Simplesmente a morte.

As palavras de adeus de Derrida a seus amigos não narram nem as máscaras mortuárias nem o grande cerimonial de preparação do morto. Entre ruptura e retorno, entre separação de Deus e reintegração do outro em si, em suma, entre o adeus e o até logo, elas levam a entender, por meias palavras, a dor e o fracasso, e sobretudo a estrutura narrativa e quase ontológica de qualquer relato de morte e de amizade: um homem deverá desaparecer antes do outro. Dessa maneira, elas só se referem ao percurso biográfico do ser amado através da escrita de um inciso comparável à técnica cinematográfica do flash back.5 Sempre sem fôlego, o verbo se quebra num eterno inacabamento:

Deleuze permanece, sem dúvida, apesar de tantas diferenças, aquele de quem eu sempre me julguei mais próximo entre todos dessa “geração” [...]. Além disso, eu me lembro dos memoráveis dez dias do [colóquio] Nietzsche, em Cerisy, em 1972, e de tantos e tantos outros momentos, sem dúvida como Jean-François Lyotard (que também estava lá) que fazem com que eu me sinta muito sozinho, sobrevivente e melancólico hoje, naquilo que designamos por essa palavra terrível e um pouco falsa de “geração” (Derrida, 2003, p. 236).

A “geração” mencionada por Derrida é apresentada entre aspas, como se a palavra trouxesse a marca de um historicismo suspeito. Essa palavra me agrada, e eu a reivindico. E eu acho que se trata realmente de uma “geração”, apesar da disparidade de seus atores, pois o que os une é mais forte daquilo que os separa. Evidentemente, existem nesse conjunto múltiplas filiações subterrâneas em que pelo menos três gerações se cruzam: uma nasceu no início do século, a segunda entre as duas guerras mundiais e a terceira, a minha, entre 1940 e 1945.

Correndo o risco de certa aproximação, gostaria de definir alguns traços comuns a essa “geração” que, na verdade, engloba três. Que ela tenha sua origem na fenomenologia ou que a chamem de estruturalista, pós-estruturalista, antiestruturalista, ela reúne autores caracterizados por ter questionado a natureza do sujeito e ter desmascarado o que se esconde atrás do uso desse pronome. Em vez de se contentarem com a idéia de que o sujeito ora seria radicalmente livre, ora inteiramente determinado por estruturas sociais ou linguageiras, os pensadores dessa geração preferiram duvidar do próprio princípio dessa alternância. E é por isso que eles fizeram questão de criticar, às vezes muito violentamente, as ilusões da Aufklärung e do logos, ainda que para isso tivessem que tirar a Filosofia do discurso filosófico para estudar suas margens e contornos à luz de Marx, de Freud, de Nietzsche ou de Heidegger; ou tirar a literatura de uma concepção romântica ou realista da escrita romanesca, para pesquisarem o estudo de sua literalidade ou das próprias condições de seu surgimento. Os poetas, os escritores ou os filósofos reunidos nessa geração – marcada pelo “novo romance” – não escreveram romances nem “novos romances” – o que ainda seria romance –, mas textos literários questionando a própria noção de universo romanesco.

Todos os amigos aos quais são dirigidas as palavras de adeus de Derrida – quinze homens e uma mulher – foram testemunhas ou herdeiros das duas grandes catástrofes do século XX: a Shoah e o gulag. Eles foram igualmente atores ou espectadores do fim dos impérios coloniais, da revolta da juventude estudantil e do desmoronamento do comunismo.

E, se cada um deles foi confrontado, em algum momento da vida, com a questão do genocídio dos judeus, ainda que somente através da interpelação radical das posições tomadas por Heidegger na obra Discours du Rectorat (1982), nenhum esteve realmente engajado na luta antinazista – militar ou politicamente, até a morte –, como Marc Bloch, Roger Cavaillès, Boris Vildé, Georges Politzer, Yvonne Picard.6 Alguns eram jovens demais, outros estavam longe.

De 1940 a 1941, Barthes leciona literatura em dois colégios parisienses. Um ano depois, atingido por uma recaída de tuberculose, vê-se obrigado a permanecer, durante cinco anos, em diversos sanatórios. Após ter colaborado na redação de pelo menos dois textos de caráter anti-semita em jornais belgas, Paul de Man protesta contra o controle, pelos alemães, do jornal Le Soir, para em seguida trabalhar numa editora.7 Mobilizados no exército francês, Althusser e Lévinas passam a guerra em cativeiro, enquanto Edmond Jabès combate o fascismo, fundando no Cairo a Liga contra o anti-semitismo e o Agrupamento das amizades francesas. Jovem demais para alistar-se, Gilles Deleuze presencia a prisão de seu irmão, que será exterminado em Auschwitz, acusado de resistência, como aliás o pai de Sarah Kofman, deportado em 1942 por ser judeu, depois de ter sido preso pela polícia de Vichy.

Quanto a Blanchot, depois de uma juventude a serviço da Jovem direita, durante a Ocupação, redige duas de suas principais narrativas: “Thomas l’Obscur” e “Aminadab”. Este segundo texto deve seu título ao personagem bíblico, mas também ao irmão mais novo de Emmanuel Lévinas, assassinado pelos nazistas na Lituânia, e que assim se chamava. Em seguida, Blanchot mantém laços discretos com a Resistência, ao proteger militantes clandestinos e amigos, particularmente os membros da família Lévinas. Em julho de 1944, ele escapa por pouco a um pelotão de execução nazista, episódio que será relatado por ele, cinqüenta anos mais tarde, em L’instant de ma mort (Blanchot, 1941; 1942; 2002).

Assim, as histórias de uns vão se encadeando às dos outros, uma história de vida e de morte em que são tecidos os laços do até logo e do adeus, da morte sofrida, da morte vivida, do adeus que se faz àquele que fica, do adeus que se dá àquele que parte.

Jacques Lacan não faz parte das pessoas a quem Derrida dirige suas palavras de adeus em Chaque fois unique, la fin du monde. Em primeiro lugar, porque ele nunca foi seu amigo e depois porque nenhum herdeiro o havia convidado ao cemitério diante do túmulo do mestre, que foi enterrado em 1981, às escondidas e na mais estrita intimidade, conforme a fórmula consagrada: sem honra, nem flores, nem palavras, nem cortejo.

E, no entanto, em outra ocasião, Derrida (1996) havia incluído Lacan na lista de seus mortos, na lista daqueles cuja morte ele queria celebrar:

A morte estava entre nós, tratava-se principalmente da morte, escreveu ele em 1990, eu diria mesmo: somente da morte de um de nós, como se fosse com ou entre todos os que se amam. Ou melhor, ele falava disso sozinho, porque eu mesmo nunca disse uma só palavra. Ele falava, sozinho, de nossa morte, da sua, que não deixaria de acontecer, e da morte, ou melhor, do morto, com o qual, segundo ele, eu fingia ser.8

Pelo amor de Lacan, Derrida narra aqui uma cena – uma cena do pai e da morte, poderíamos dizer – uma cena que ele me havia contado cinco anos antes, eque eu tinha relatado em minha Histoire de la psychanalyse (Roudinesco, 1994). Lacan tinha acusado Derrida de “não reconhecer o impasse em que ele mesmo está com o Outro, fazendo-se passar por morto”. Cena famosa e já arquivada e superarquivada. Pelo amor de Lacan, pela morte de Lacan, pela morte que Lacan dirige a seu destinatário, pela carta sofrida que este lhe restitui, Derrida desenterra nessa cena toda uma parte secreta da história de suas relações com Lacan. Promessa de vida e luta até de morte. Aquele que permanece vivo envia sua saudação ao morto, embora tenha desejado que ele não continuasse vivo. A cena acontece numa margem mortuária na qual vêm a encalhar quatro personagens: o rei, a rainha, o ministro e o cavaleiro – pegos de surpresa, como numa tragédia de Shakespeare, em quatro momentos de sua história, durante os quais cada um tenta exercer sobre o outro uma soberania sem partilha.

Aqui, as palavras não faltam, o fôlego não se acaba. Trata-se, sem dúvida, de uma verdadeira oração fúnebre, clássica, construída, ordenada. E, por isso mesmo, não deveria constar do adeus dirigido aos amigos. Pois, nesse jogo de vida e de morte, que anteriormente havia colocado os dois homens em campos opostos, o amigo não era um amigo, mas um adversário ao qual, a essa altura, se deve prestar homenagem a título póstumo.

A morte mencionada por Derrida, ao dedicar a seus amigos o adeus de quem deve viver para testemunhar que a amizade realmente existiu, não tem, portanto, a mesma natureza que a morte do adversário honrado mais tarde. Mas ela também não se assemelha à morte heróica dos “mortos em campo de honra”.

Diferentemente dos soldados mortos nas batalhas, os engajados ou resistentes escolhem um jeito de morrer. Eles decidem morrer ao dizer adeus ao mun-do no qual viveram, para que surja outro mundo. Dessa forma, eles dão sua vida sem nunca ter a certeza de que sua morte foi o coroamento de uma existência realizada. A aceitação da morte junta-se então ao dom da vida, porque a morte torna-se mais desejável do que a servidão, e a liberdade mais desejável do que a vida. A esses mortos, os assassinados, os torturados, os executados, os esquartejados, os reduzidos a cinzas, os jogados nas fossas, os destruídos e os desaparecidos, nunca se diz adeus no instante de sua morte. Eles não têm cemitério militar. Como também é o caso dos mortos da “solução final”. A morte desses é um crime contra a morte.

Mas o adeus a esses mortos, a esses mortos da liberdade, a esses mortos sem garantia nem certeza, sempre acaba aparecendo posteriormente. E eu não conheço nada mais emocionante nesse campo do que as últimas linhas da oração fúnebre dedicada a Jean Moulin por André Malraux, aos pés do Panthéon, no dia 19 de dezembro de 1964:

[...] entra aqui, Jean Moulin, com teu terrível cortejo. Com aqueles que morreram nos porões sem ter falado, como você; e talvez até, atrocidade ainda maior, tendo falado; com todos os listrados e todos os tosados dos campos de concentração; com o último corpo cambaleante das horríveis filas de Nuit et brouillard, tombado sob as armas; com as oito mil Francesas que não retornaram dos trabalhos forçados; com a última mulher morta em Ravensbrück, por ter dado asilo a um dos nossos. Entra, com o povo que nasceu da sombra e com ela desapareceu – nossos irmãos na ordem da noite.

Da mesma forma, não conheço nada mais rigoroso que o adeus de Georges Canguilhem a seu amigo Roger Cavaillès. O heroísmo, diz ele substancialmente, é uma maneira de conceber a ação sob a categoria de um universal, de onde seria excluída qualquer forma de sujeito psicológico. Uma vez tomada a decisão, uma vez realizado o encontro entre a história de um homem e a história do mundo, tudo acontece como se cada passo adiante, cada gesto, fosse imposto de fora, sem domínio nem premeditação: “A ação é sempre filha do rigor, antes de ser irmã do sonho” (Canguilhem, 1976, p. 34). A força dessa definição reside no fato de que ela remete todo ato heróico ao rigor quase inconsciente, mas deliberadamente escolhido do próprio ato, e portanto da morte e do adeus ao mundo.

Enfim, da mesma maneira ainda, para esse século XX, não conheço nada mais comovente que o adeus aos mortos recolhido por Claude Lanzmann junto aos Sonderkommandos. Palavras tiradas, roubadas, extirpadas do mais profundo do ser da morte, conjuração do nada para se ter acesso a uma memória da morte (Lanzmann, 1985).

No momento em que tive conhecimento do adeus de Derrida a seus amigos, estava terminando a leitura da grande trilogia dos Mosqueteiros de Alexandre Dumas (1991).9 Tocada pelas analogias existentes nesses dois textos, entre duas maneiras de celebrar a morte e de dizer adeus, e que, naquele momento, Ginette Michaud, a amiga fiel, já tinha pedido que eu participasse desse Cahier de l’Herne, resolvi dar a Jacques Derrida, o amigo de trinta e cinco anos, a história dos trinta e cinco anos de amizade dos mais famosos heróis da literatura francesa: Athos, Portos, Aramis, d’Artagnan.

Na França anterior a Colbert, que Dumas resolveu ressuscitar, em plena ascensão de um cinismo burguês desdenhado por ele, os quatro amigos encarnam um ideal cavalheiresco que foi se tornando cada vez mais decadente, ao longo da vida deles. Eles escolheram o heroísmo em seu estado puro, verdadeiro desafio lançado à nova ordem estatal instaurada primeiro por Richelieu, em seguida por Mazarin e, finalmente, por Luís XIV, que imporá o absolutismo. A cada dia, eles lutam em duelos; a cada dia, eles matam, correndo o risco de serem mortos. Com a espada e frente a frente, fora da guerra, eles jamais combatem o inimigo, desprezível, odioso, mas o adversário, o semelhante, o alter ego. Pois somente aquele que sabe colocar sua vida em risco pelo prazer da glória, pelo esplendor do uniforme ou pelo amor de um príncipe, concebido como o ideal de uma imaginária senhoria real, somente a ele é dado o direito de morrer transpassado: brilho último de uma vida de herói.

Qual dos quatro amigos será o primeiro a partir? Qual dos quatro dirá adeus ao outro? Essa é a grande questão colocada nesse romance, além de ser também a pergunta que atormenta, durante trinta e cinco anos, cada um deles: Porthos, o gigante, o ingênuo, o barroco, o mais bravo de todos; Athos, o nobre melancólico e puritano, ligado a um sonho cavalheiresco de outra época; Aramis, o libertino, o inconstante e feminino, o futuro general dos jesuítas, o secreto e sagaz, mas fiel entre os fiéis ao único príncipe que considerou ser seu mestre (Fouquet); d’Artagnan, enfim, o mais inteligente, o mais moderno, o mais complexo na sua busca de um princípio de soberania que lhe escapa permanentemente. A amizade que une esses quatro homens, na vida e na morte, e muitas vezes dois a dois, exclui o amor e a diferença sexual. Nenhuma mulher poderia partilhar a vida de um deles, sem colocar em perigo o pacto que comanda a própria existência da amizade.

É por esse motivo que as figuras femininas mostradas por Dumas são demoníacas (Milady de Winter, a duquesa de Chevreuse), angélicas (Constance Bonacieux) ou decepcionantes (Louise de La Vallière, Ana da Áustria). Não importa o que façam, todas as mulheres que cruzam a vida dos quatro amigos estão destinadas a destruí-los. Isso porque os Mosqueteiros estão unidos pelos laços exclusivos de uma amizade que impede que cada um deles seja um esposo, um amante, um pai. E quando Athos herda um filho (Bragelone), concebido fora do casamento com a amante de Aramis, essa criança, destinada à morte, não terá nem um pai, nem uma mãe, mas quatro pais, a ponto de só vir a existir depois de ter incorporado o essencial de cada um deles: a bravura do primeiro, a melancolia do segundo, a feminilidade do terceiro e o desejo de glória do quarto.

Era, pois, preciso que eles morressem, caso contrário, Dumas estaria condenado a jamais terminar seu romance e a acrescentar, ano após ano, uma continuação à continuação. Ligado à terra por sua simplicidade de espírito, Porthos é o primeiro a morrer, esmagado por pedras no centro de uma gruta, depois de um combate hercúleo contra uma tropa de adversários. Aéreo e em luto pela morte de seu filho, Athos é o segundo a partir, aspirado por um anjo que o leva à pátria celeste do luto interminável. D’Artagnan, enfim, o senhor do fogo e da guerra, perece em terceiro lugar, atravessado por uma bola de canhão. E, no último trecho, que marca o fim da trilogia, ele pronuncia algumas palavras, palavras “cabalísticas que outrora haviam representado tantas coisas sobre a terra e que ninguém entendia mais, a não ser esse homem agonizante: — Athos, Porthos, até logo –, Aramis, para sempre, adeus!” (1991, v. II, p. 850).

É impressionante a inversão da lógica do adeus. D’Artagnan, a partir de sua morte e de um outrora desconhecido pelos vivos, a partir de um tempo imemorável antes de sua morte, diz até logo aos amigos mortos e adeus para sempre ao amigo que não morre, ao amigo cuja alma já foi retomada por Deus, ao amigo condenado a viver eternamente, sabendo que nenhum amigo jamais lhe dirá adeus.

 

Referências

Beauvoir, S. (1981). La Cérémonie des adieux. Paris: Gallimard.

Blanchot, M. (1941). Thomas l’Obscure. Paris, Gallimard.

Blanchot, M. (1942). Aminadab. Paris, Gallimard.

Blanchot, M. (1994/2002). L’Instant de ma mort. Paris, Gallimard.

Canguilhem, G. (1976). Vie et mort de Jean Cavaillès: les carnets de Baudasser. Villefranche: Pierre Laleur Éditeur.

Derrida, J. (2003). Chaque fois unique, la fin du monde. (La philosophie en effet). Paris: Galilée.

Derrida, J. (2003). Béliers: Le dialogue ininterrompu: entre deux infinis, le poème. (La philosophie en effet). Paris: Galilée.

Derrida, J. (1988). Mémoires: pour Paul de Man. (La philosophie en effet). Paris: Galilée.

Derrida, J. (1996). Résistances: de la psychanalyse. (La philosophie en effet). Paris: Galilée.

Dumas, A. (1844-1850/1991). Les Trois Mousquetaires, Vingt ans après, Le Vicomte de Bragelone. (Vols. 1-3). Paris: Laffont, “Bouquins”.

Freud, S.; Binswanger, L. (1995). Correspondance 1908-1938. Paris: Calmann-Lévy.

Heidegger, M. (1982). Auto-affirmation de l’université allemande. (Tradução Gérard Granel). Toulouse: TER.

Lanzmann, C. (1985). Shoah. Paris: Fayard.

Roudinesco, É. (1994). Histoire de la psychanalyse en France. v. II. Paris: Fayard.

Vovelle, M. (2000). La Mort et l’Occident. Paris: Gallimard.

Young-Bruehl, E. (1991). Anna Freud. Paris: Payot.

 

 

* Este texto nos foi gentilmente enviado pela autora, após contato que mantivemos, por ocasião de sua visita ao Brasil, em 2004. Publicado originalmente no Cahier de l’Herne, ele aparece também, em versão modificada, no recente livro da autora, Philosophes dans la tourmente (Fayard, 2005). Traduzido por Nina de Melo Franco.
** Historiadora, diretora de pesquisas na Universidade de Paris VII, professora na École Pratique de Hautes Études (EPHE). Entre outras obras, ela tem traduzidas em português: A família em desordem (Zahar, 2003); Dicionário de psicanálise (Zahar, 1998); Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento (Companhia das Letras, 1994); Foucault: leituras da história da loucura (Relume-Dumará, 1994).
1 Jacques Derrida, Chaque fois unique, la fin du monde, apresentado por Pascale-Anne Brault e Michel Naas, Paris, Galilée, “La philosophie en effet”, 2003. Nesse livro estão reunidas as palavras de adeus de Jacques Derrida a Roland Barthes, Paul de Man, Michel Foucault, Max Loreau, Jean-Marie Benoist, Louis Althusser, Edmond Jabès, Joseph N. Riddel, Michel Servière, Louis Marin, Sarah Kofman, Gilles Deleuze, Emmanuel Lévinas, Jean-François Lyotard, Gérard Granel, Maurice Blanchot. Ver também, a respeito da morte de Hans-Georg Gadamer: Béliers. Le dialogue ininterrompu: entre deux infinis, le poème, Paris, Galilée, “La philosophie en effet”, 2003.
2 Do texto original: “... entre l’adieu et l’au revoir...”. Em português, au revoir pode ser traduzido por até logo, até mais, até mais ver, além das expressões estrangeiras já assimiladas, como ciao, bye, bye, etc. Optamos por até logo. (N. T.)
3 É o motivo pelo qual, na peça de Sófocles, Jocasta se mata antes que Édipo se imponha o castigo.
4 Charles Baudelaire, Marcel Proust, Victor Hugo.
5 É a razão pela qual foram acrescentadas a essa obra excelentes notas biográficas e bibliográficas redigidas por Kas Saghafi. Elas trazem uma luz histórica ao adeus.
6 Cf. La liberté de l’esprit. Visages de la Résistance, n. 16, outono de 1987, La Manufacture.
7 A respeito dessa questão, cf. Derrida, 1988.
8 A conferência “Pour l’amour de Lacan” foi pronunciada em maio de 1990, no colóquio “Lacan avec les philosophes”, organizado por René Major, Philippe Lacoue-Labarthe e Patrick Guyomard, no Collège International de Philosophie.
9 O segundo volume é precedido de um excelente prefácio de Dominique Fernandez, “Dumas baroque”.

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