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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.11 n.18 Belo Horizonte dez. 2005

 

ARTIGOS

 

A esquizofrenia na China: a experiência de Lu Lu

 

Schizophrenia in China: Lu Lu’s experience

 

 

Robert Sévigny*; Christine Loignon**

Departamento de Sociologia da Universidade de Montreal

 

 


RESUMO

A análise apresentada neste texto adota uma perspectiva da sociologia clínica para investigar uma experiência pessoal de esquizofrenia, no contexto da sociedade chinesa em plena transformação, aquela dos anos de 1990. Uma das hipóteses de base da sociologia clínica é que a experiência pessoal e a experiência da vida em sociedade são parte de um mesmo fenômeno, não podendo, pois, ser dissociadas. Esta abordagem se baseia igualmente na análise do par “experiência-representação”. Finalmente, a análise aqui apresentada propõe um olhar que deixa entrever uma prática psiquiátrica inspirada na sociologia clínica. O estudo do caso Lu Lu se inscreve no contexto de uma pesquisa realizada em Beijing, entre 1992 e 1995, junto a 20 pacientes que tinham sido anteriormente hospitalizados no Hospital X e diagnosticados, do ponto de vista médico, como esquizofrênicos.

Palavras-chave: Esquizofrenia, Sociedade chinesa, Sociologia clínica, Experiência-representação.


ABSTRACT

The present study analyses a personal experience of schizophrenia in a changing chinese society from the perspective of clinical sociology. The clinical approach is based on the working hypothesis where the personal experience and the experience of society are one and the same and are to be understood as integrated. This approach also draws from the analysis of the relationship between experience and representation. Finally, the present study suggests ways to think about treatment and social rehabilitation in the context of clinical sociology. The monography of Lu Lu’s experience is part of a study conducted in Beijing between 1992 and 1995 with twenty patients who had been hospitalized at Hospital X and who were diagnosed, from a medical point of view, with schizophrenia.

Keywords: Schizophrenia, Chinese society, Clinical sociology, Experience and representation.


RÉSUMÉ

L’analyse présentée dans ce texte adopte une perspective de la sociologie clinique pour rendre compte d’une expérience personnelle de la schizophrénie qui se situe dans le contexte d’une société chinoise en pleine transformation, celle des années 1990. Une des hypothèses de base de la sociologie clinique est que l’expérience personnelle et l’expérience de la vie en société ne font qu’une et ne peuvent être dissociées. Cette approche se fonde également sur l’analyse du couple “expérience-représentation”. Enfin, l’analyse présentée ici propose un regard qui laisse entrevoir une pratique psychiatrique inspirée de la sociologie clinique. La monographie de Lu Lu s’inscrit dans le contexte d’une enquête réalisée à Beijing entre 1992 et 1995 auprès de vingt patients ayant déjà été hospitalisés à l’Hôpital X et ayant été diagnostiqués, d’un point de vue médical, comme “schizophrènes”.

Mots-clés: Shizophrénie, Société chinoise, Sociologie clinique, Expérience- représentation.


 

 

A análise que se segue adota a perspectiva da sociologia clínica para relatar uma experiência pessoal da esquizofrenia numa China em plena transformação. A abordagem clínica1 implica uma hipótese de base psicossociológica e epistemológica: a experiência pessoal e a experiência da vida em sociedade são uma só. Tanto para as pessoas outrora ditas “alienadas” quanto para o conjunto das pessoas “normais”, não se pode dar sentido a qualquer experiência sem se fazer referência, explicitamente ou não, a seu universo social. Essa abordagem funda-se igualmente na análise do binômio “experiência-representação”: a experiência pessoal e a representação que a pessoa faz dela. Ela se baseia, enfim, no binômio “pesquisa-ação” ou “análise-intervenção”: a análise aqui apresentada trata da experiência resultante de uma intervenção psiquiátrica e propõe outras práticas de tratamento e de reabilitação social. Esse texto se dirige, em primeiro lugar, aos trabalhadores em saúde mental, que talvez nele encontrarão pistas de intervenção; depois, aos que se interessam por esse campo relativamente novo da sociologia clínica; enfim, a quem se interessa pela recente evolução da sociedade chinesa.

Como todos os setores da sociedade chinesa, a psiquiatria está passando por mudanças rápidas e consideráveis. Essas dão início a um verdadeiro movimento social, levando a uma crescente preocupação com o paciente e sua sociedade, bem como a uma melhor compreensão das dimensões subjetivas e experienciais da doença. Lembremos que na língua chinesa os termos “doente” e “paciente” são traduzidos pela mesma palavra, big ren (literalmente: pessoa doente). Tanto na linguagem médica como na linguagem comum, elas traduzam a mesma realidade.

Pouco a pouco transformada, a psiquiatria torna-se inevitavelmente tributária das transformações políticas, econômicas e culturais: assim como o resto da sociedade, o paciente não pode deixar de levar em consideração a economia de mercado e a globalização, os movimentos de migração interna, a distância entre ricos e pobres, etc. Nesse contexto é que foi iniciado, no começo dos anos de 1990, um projeto de sociologia clínica em um dos grandes hospitais psiquiátricos de Beijing.

Essa pesquisa foi realizada entre 1992 e 1995, junto a 20 pacientes que já haviam sido internados no Hospital X e diagnosticados, sob o ponto de vista médico, como esquizofrênicos. Para cada caso, foram feitas entrevistas semi-estruturadas com o próprio paciente e com aproximadamente dez pessoas de seu convívio imediato: membros da família e da vizinhança, membros do pessoal hospitalar e de sua unidade de trabalho (responsáveis e colegas). A amostra estabelecida reflete a diversidade dos pacientes relativamente ao sexo, à idade, ao tipo de emprego e à escolaridade. Vale ressaltar que o plano de amostragem nem sempre permitiu entrevistarmos algumas pessoas consideradas importantes, no momento da análise, na experiência do paciente.

A exposição que se segue apresenta a experiência peculiar de uma dessas 20 pessoas, Lu Lu.2 A escolha de Lu Lu foi a que me pareceu mais propícia para ilustrar o conjunto das dimensões associadas ao modelo da sociologia clínica. A entrevista com ela foi feita um ano após sua alta hospitalar. Ela vivia com sua família e, algumas semanas antes, havia encontrado um novo emprego. Tinha 24 anos e o primeiro grau completo. Após o término de seus estudos, sempre trabalhou no setor privado. No momento em que iniciou sua crise, estava vivendo há três anos com Chen Ceng, seu conhecido desde os tempos da escola.

A realização de um estudo como esse em sociologia clínica exige uma série de pressupostos. O primeiro deles é uma definição e uma teoria do que vem a ser a pessoa. Para satisfazê-lo, recorri à abordagem rogeriana da personalidade e da experiência. Para definir sociedade, usei uma grade heurística que eu mesmo criei em outra ocasião (Sévigny 1979, 1996, 2005; Rhéaume e Sévigny, 1988). Tomei de Cohen-Émérique (2000) a noção de “incidente crítico” que remete a tudo aquilo que cristaliza a representação que a pessoa faz de sua experiência.

Uma das hipóteses básicas da sociologia clínica é que qualquer experiência jamais é individual, sendo antes uma construção coletiva. Portanto, toda análise completa de sociologia clínica deve incluir os diversos pontos de vista das pessoas implicadas em determinada experiência. Na primeira parte, vou expor o ponto de vista de Lu Lu. Após um resumo da experiência de crise que desencadeou nela uma alienação súbita, com relação à sua sociedade, desenvolverei dois temas relevantes que tratam de sua relação com o mundo: em primeiro lugar, sua experiência face à reconstrução da imagem de si mesma e de sua sociedade (ou seja, seu dilema entre submissão ou resiliência) e, em seguida, o lugar dos grandes conjuntos sociais e culturais, em sua experiência. Na segunda parte, serão relatados os pontos de vista das pessoas de seu convívio imediato, mostrando de que forma a experiência e as representações desses diversos atores participam, cada qual à sua maneira, da experiência de Lu Lu.

 

O PONTO DE VISTA DE LU LU: UMA CRISE PSICÓTICA SOBREVINDA SUBITAMENTE

Sua experiência de crise tem lugar de destaque ao longo da entrevista. Sua “doença”, retomando o termo sempre empregado por ela, constituiu-se por uma série de “alucinações” sem nenhum sintoma prévio e que ainda hoje a transtornam. Por outro lado, parte significativa de sua experiência parece-lhe ser uma “história” de encontros e situações reais que ela viveu. Sua narrativa concentra- se em torno de duas experiências que ela considera centrais: seus últimos dias de trabalho e seu encontro com um chofer de táxi. Considerando unicamente a entrevista de Lu Lu, não temos como saber se ela tem recordações diretas de suas experiências alucinatórias ou se tomou conhecimento destas pelo relato das pessoas com quem convive. Observe-se que, durante a entrevista, sua narração é às vezes confusa, nem sempre tão ordenada quanto faz supor a apresentação linear que faço dela aqui. Além disso, as entrevistas com as pessoas de seu convívio, mostradas adiante, validam, de certo modo, sua narração. No entanto, sob o ponto de vista que aqui nos interessa, o da própria Lu Lu, essa questão não tem pertinência. Pertinente é o fato de que, na ocasião da entrevista, vários meses após o ocorrido, essas experiências continuam no centro de sua narrativa.

De seus últimos dias de trabalho, ela se lembra das brigas que teve com a “capitão”, sua supervisora:

Eu me sentia como se fosse a gerente geral da loja. Podia realizar qualquer coisa que imaginasse (...). Iria me tornar imperatriz. Sentia que em todos os lugares as pessoas respondiam ao meu apelo (...), todos me veneravam (...) parecia que eu era Deus (...). Eu estava com muito calor, então comecei a tirar minhas roupas (...). A gerente da minha unidade mandou que me levassem de carro para casa...

O segundo momento forte de sua experiência, e das lembranças que tem delas, é o encontro com o chofer de táxi com quem ela viveu nos dias anteriores à hospitalização. Eis que ela sai da loja: “Saí da loja, vi um carro parado ali em frente e entrei nele. Para mim, era o carro que a Sra. G. havia mandado para me levar para casa (...) ... Não era isso, na verdade era um táxi”.

Em seguida, ela recorda os poucos dias e as poucas noites passadas com o chofer. De sua narrativa, extraímos uma imagem muito complexa. Ele a teria “violentado” (“... ele me tomou à força. Ele me deixou muito confortável...”). Trata-se de um “estranho”, um chofer de táxi que ficou conhecendo por “engano”, mas ela também o vê como um “irmão aprendiz” que partilha de suas preocupações. Ele foi o primeiro a dizer-lhe que ela estava doente e a trazer-lhe remédios. Foi ele que a levou ao hospital. Por outro lado, ela não consegue deixar de repreendê-lo pelo fato de ter pego setecentos Yuans que estavam em sua bolsa, quando saiu da loja (“isso foi mesmo muito mesquinho...”).

Logo no início da entrevista, ela recorda o que leu recentemente num jornal, a respeito dos efeitos comumente produzidos pela doença que teve. “Com essa doença, as pessoas não sentem mais nada, não se interessam por grandes coisas, ficam sempre abaladas. Essas seqüelas (you zi zheng), eu as tenho todas”.

Três dessas “seqüelas” marcaram sua experiência. Cada uma delas exprime seu sentimento de alienação em relação ao mundo. Em primeiro lugar, vem a onipresença de suas idéias (ou fantasias) de suicídio: “Eu queria muito morrer (...). Não consigo achar nada interessante... Eu nada tenho a esperar do que quer que seja [mei you ben tou le]... Há uma estrada de ferro pertinho da minha casa...”.

O suicídio é uma realidade que marcou a vida de toda a sua família: seu pai, portador de doença mental, suicidou-se. A segunda “seqüela” é o fato de ficar sem emprego. Após a crise, depois de sair do hospital, ela procura a gerente da loja. Esta tenta encorajá-la, dizendo-lhe que poderá encontrar emprego em outro lugar, que sua ficha pode ser transferida. Mas o que fica para ela é “eles ficaram livres de mim, não me querem mais”.

A última seqüela central de sua experiência diz respeito à sua relação com seu amigo Chen Ceng (a palavra que ela emprega tem, em chinês, a dupla conotação de “amigo” e de “marido”), seu conhecido desde os tempos da escola, com quem mora há alguns anos. Ele ficou muito confuso depois que Lu Lu conheceu Fang. “Eu não te pertenço mais, fui possuída por outro homem... Fui a mulher de outro homem... Não sou feliz e ele também não... As outras podem casarse, mas eu não posso me casar...”.

Ela não consegue esquecer Fang, o chofer de táxi. Quando pensa nos prazeres da sexualidade, ela compara o antes e o depois de sua relação com ele. Nem mesmo um ano após o ocorrido ela consegue deixar de reviver os momentos quentes que teve com Fang, como se, com ele, ela tivesse descoberto sua sexualidade pela segunda vez. Por outro lado, a sexualidade não é o único aspecto de sua relação com Chen Ceng, atingido pelo que ela chama de “seqüelas” de sua doença. Ela passa a questionar sua vida amorosa como um todo, o que a deixa abalada. Ela ainda sente amor por ele e lhe atribui muitas qualidades (“Eu só tenho medo de perdê-lo”), ainda que, segundo ela, ele talvez fosse mais feliz com outra mulher “que lhe desse seu amor pela primeira vez”, o que ela não pode mais fazer, desde que conheceu Fang.

Nessas poucas palavras e citações encontra-se resumida a experiência da crise de Lu Lu, narrada por ela própria um ano após sua alta hospitalar. Essas três “seqüelas”, evidentemente, têm enorme influência em sua vida pessoal. Ela foi atingida em sua identidade social e cultural. Enfrentar a possibilidade de não mais poder trabalhar tem um significado bem peculiar, neste momento em que a sociedade chinesa está tomando o rumo da economia de mercado e na qual a “tigela de ferro”3 não é mais garantida a todo cidadão chinês.

As normas e os comportamentos referentes à sexualidade passaram também, no início dos anos de 1990, por uma evolução: antes da Reforma, ela jamais poderia abordar tão francamente sua sexualidade, e sua relação amorosa com Chen Ceng teria sofrido severa censura social e política. Quanto ao suicídio, ela talvez o ignore, quando da entrevista, mas trata-se de um fenômeno cada vez mais pregnante na sociedade chinesa pós-Reforma (1978). Até certo ponto, a narrativa de sua experiência é semelhante a várias outras, chinesas ou de outros lugares. Mas o contexto social e cultural chinês está sempre por perto. Nas páginas seguintes, vamos relatar dois outros aspectos centrais de sua experiência e de suas representações: em primeiro lugar, seus esforços em vista da reconstrução de si e de sua relação com o mundo, e em seguida, o lugar dos grandes conjuntos sociais em sua experiência.

 

SUBMISSÃO OU RESILIÊNCIA: A RECONSTRUÇÃO DO SENTIDO

Em psicossociologia e até mesmo em psiquiatria (Elziur, 2004; Richardson G. E. & Waite P. J., 2002), o termo “resiliência” remete mais a uma imagem do que a um conceito. Seu primeiro significado foi “resistência dos metais aos choques”. Passou a ser aplicado ao homem (e ao animal, por analogia), para significar “a capacidade de resistir a condições difíceis ou de superá-las”. O que isso tem a ver com a experiência de Lu Lu? As alucinações, a perda do emprego, a experiência ambígua com um chofer de táxi, a reavaliação de sua relação amorosa e de sua sexualidade, o suicídio como via de escape, a onipresença de seu sentimento de culpa, em síntese, é isso que faz com que ela se pergunte “que diabos está acontecendo comigo?”, e diga “eu perdi tudo?”. Confrontada a essa situação, de que maneira ela enxerga o futuro? Para onde ela sente estar rumando? Será que acredita estar irremediavelmente “submetida” à nova realidade de sua “doença” ou ainda se sente capaz de, pelo menos, entrever uma certa resiliência? Na experiência de Lu Lu, a resiliência não é necessariamente a etapa que segue o momento da crise. Durante a entrevista, doze meses após sua alta hospitalar, ela continua, ao mesmo tempo, a reviver a experiência de crise e a entrever uma maneira de superar suas “seqüelas”. Sua atitude de resiliência funda-se tanto nas dimensões pessoais, interpessoais e societais de sua vida, tais como:

Um reenquadramento desse “tipo de doença”: Ela sabe muito bem que a doença mental é freqüentemente objeto de discriminação. Muitas vezes, ela mesma vê sua doença como resultado de um fracasso, uma forma de fraqueza. Mas diante dessa representação que remete à vergonha, ela de repente reage e faz para ela mesma uma outra definição desse “tipo de doença”: “Ter essa doença não é como roubar galinhas ou cachorros. Não é como se você tivesse feito algo imoral...”. E continua: “Você não pode fazer nada... Quando a doença chega, ninguém pode evitá-la...”
Além dessa última alusão a fatores externos à sua própria pessoa (será que ela está pensando nos fatores genéticos?), parece evidente que Lu Lu está tentando encontrar uma resposta para seu sentimento de responsabilidade e de culpabilidade. Ela não sente culpada. Seu sentimento de culpabilidade com relação a sua mãe até se torna motivo de sobrevida: “Se não fosse por minha mãe, eu já estaria morta há muito tempo...”;
Sua orientação para o futuro: A respeito da doença, ela diz: “Eu quero ficar completamente curada”. Ela também pensa no futuro de sua relação com Chen Ceng: “Não quero perdê-lo...”. E, ainda que eles tivessem que se separar, acrescenta que “todo mundo deseja a felicidade do outro”. Ela também não quer abandonar a possibilidade de procurar um emprego. Para tanto, foi atrás de seu antigo empregador. A resposta deste, que pretendia ser encorajadora (“enquanto houver montanhas verdes...”), não a satisfez de maneira alguma (“Eles não me querem mais...”). Mas nem por isso ela desistiu. Está, há algumas semanas, tentando se adaptar a um novo emprego. Em relação a este, seus sentimentos são muito ambivalentes: quando volta do trabalho, está enfastiada, mas diz que gosta muito dele. Quanto às suas próprias decisões e suas escolhas, ela pensa mais no futuro do que no passado;
A vida externa ou interna: Na medida em que o hospital psiquiátrico simboliza, a seu ver, uma vida “interna”, ela acaba optando pela vida “externa”. Ela recebe um telefonema de uma paciente que conheceu no hospital e que, durante a conversa, lhe pergunta: “Ainda existe vida para as pessoas que foram hospitalizadas? Será que elas ainda podem obter algum sucesso ou estão fadadas à derrota?”. Ela responde: “É uma boa pergunta. Eu acho que é melhor estar aqui fora do que permanecer no hospital...”. Logo após ter dado essa resposta, ela observa que nem tudo é fácil para ela, do lado de fora: “No hospital, pelo menos há pessoas cuidando de você... há regras a serem seguidas...”. Mas, no final das contas, superar suas dificuldades, encarar a vida, não se submeter às “seqüelas” de sua “doença” parecem-lhe o melhor caminho a ser seguido;
Sua comparação com outras pessoas: Em determinado momento da entrevista, ela se compara a outras pessoas que vivem em condições ainda mais precárias do que a sua: “Eu estou bem, ainda posso trabalhar. Ainda posso ganhar a vida...”. Tal comparação incita-a mais à ação do que à retração, mais à resiliência do que à submissão a forças que lhe são exteriores. Anteriormente, como vimos, Lu Lu rejeitou a definição pessimista e vergonhosa da doença mental, modificando a definição que ela mesma havia dado de si própria, na condição de “pessoa doente”.
Sua comparação com outras pessoas: leva-a também a modificar essa imagem e a entrever a possibilidade de retomar seu lugar na sociedade.

 

OS GRANDES CONJUNTOS SOCIAIS E O SENTIDO DE SUA EXPERIÊNCIA

Observe-se que o método de análise de caso dá prioridade à análise interna de cada caso e não a uma análise comparativa. No entanto, o analista não deixa de considerar o contexto mais geral do meio que estuda. Nesse sentido, a comparação com outros casos e experiências torna-se uma ferramenta de interpretação ou de compreensão do caso particular, aqui o de Lu Lu.

A seguir mostraremos, sem ordem pré-estabelecida, as principais referências aos grandes conjuntos sociais presentes no campo de representações de Lu Lu:

A unidade de trabalho (dan wei): Grande parte de suas angústias e de sua raiva está associada a seu trabalho e ao papel atribuído à sua “unidade de trabalho”, na perda de seu emprego (“Ficaram livres de mim...”). Mas nem por isso ela sente falta desse passado ainda recente, anterior ao movimento de Reforma, no qual sua “unidade de trabalho” continuaria a considerála como um de seus membros e se responsabilizaria por sua hospitalização e sua reabilitação. Naquela época, a “unidade de trabalho” em ambiente urbano não se limitava unicamente ao empregador, no sentido ocidental do termo, era também a instância local do poder político. A “unidade de trabalho” permanece sendo uma instituição central na China, mas encontra- se em plena transformação. Uma de suas conseqüências é a maior autonomia dos trabalhadores, acompanhada de maior responsabilidade individual, face aos diversos aspectos de sua vida, particularmente o trabalho e a saúde. Ela jamais questiona o fato de que a unidade de trabalho não controla mais sua vida privada, a relação que mantém com sua família ou com seu amigo Chen Ceng. Sua atitude com relação à “unidade de trabalho” está ligada à sua percepção do conjunto do sistema político e econômico;
A economia de mercado e a globalização: Ela aceita a posição de sua “unidade de trabalho” porque sabe muito bem que ela agora pertence ao setor da “economia de mercado” e que as regras referentes aos cuidados de saúde passaram a ser as mesmas aplicadas na “indústria privada”. Lu Lu já havia, aliás, se aproveitado da mesma política para recusar a “unidade de trabalho” para a qual havia sido designada, quando terminou seus estudos. Nesse sentido, ela se integrou relativamente bem às mudanças globais marcantes da sociedade chinesa de sua época. Isso não quer dizer que tal contexto evitará um impacto negativo para sua situação, dado o aumento, por exemplo, do desemprego e a competição feroz entre os empregados em potencial. No novo contexto, ela não tem direito a qualquer ajuda financeira, uma vez que sua licença médica deu-se antes que ela completasse três meses de estágio probatório: ela não pertence mais a essa “unidade de trabalho”. É a esse fato que Lu Lu faz referência, quando sua supervisora lhe comunica que “sua ficha pode ser transferida”: era o anúncio de que ela não voltaria mais àquela “unidade de trabalho”. Daí sua raiva. Ao mesmo tempo, ela entende muito bem que as regras do jogo foram modificadas pelo movimento de Reforma. Está ciente de que dez ou quinze anos antes ela teria sido integrada numa “unidade de trabalho” de maneira quase definitiva e que sua ficha ali ficaria.4 Hoje, ela considera “normal” o fato de ter que procurar emprego por seus próprios meios. Ela começou trabalhando numa usina que “faliu” (a noção de falência não existia nas empresas do Estado). Em seguida, abriu uma loja com seu amigo Chen Ceng. A respeito de outro projeto recente dele, ela explica que ele precisa de “investimentos” (outra nova realidade). Ao falar da forma de remuneração de seu novo emprego, ela mesma observa, novamente, que se trata de uma empresa “privada”. Portanto, toma por adquiridas as principais mudanças ligadas à economia de mercado e conseqüentemente ligadas ao funcionamento das “unidades de trabalho” e, no fim das contas, à sua própria experiência.
Quando exclama “Perdi tudo... não tenho mais emprego”, ela exprime seu desespero e sua raiva, ao mesmo tempo em que leva em conta o contexto sócio-político e econômico que entende e aceita. A esse respeito, é significativo o fato que ela atribua aos dirigentes da Loja Central a responsabilidade por tudo o que está lhe acontecendo, apesar de em momento algum questionar o sistema. Ela integra à imagem que faz de si mesma essa imagem que tem de sua sociedade em transformação;
A “sociedade” como responsável pelo bem-estar das “pessoas sem sorte”: Ao conversar com a paciente que conheceu no hospital e que lhe pergunta se ainda havia esperança para os pacientes que recebem alta, Lu Lu responde sem pensar somente em si mesma: “Muitos deles não podem trabalhar, não podem ganhar a vida. A sociedade deveria ajudá-los”. Ainda que não elabore melhor seu pensamento a respeito desse assunto, ela tem o sentimento de pertencer a um vasto conjunto que denomina “sociedade”, conjunto esse que inclui, ao mesmo tempo, indivíduos e organizações sociais. Isso não a faz participar do debate político sobre o tema, mas ela pensa numa “sociedade” cujo papel se estende além dos limites da responsabilidade individual;
O conteúdo político de suas alucinações: Vários dos momentos fortes que ela relata implicam “alucinações de conteúdo político”. Essas alucinações se situam bem no centro de um dos sentimentos mais pregnantes de suas lembranças, que é o sentimento de culpa: “Não é justo para você...”, diz ela um dia a Fang. Agora ela sabe perfeitamente que se tratava de “alucinações”, mas mesmo doze meses depois, sua lembrança ainda faz parte daquilo que ela chama de “seqüelas” de sua “doença”. Seriam essas alucinações de conteúdo político o reflexo da experiência do clima de autoritarismo político pelo qual ela teria passado anteriormente? Não se sabe quais eram suas percepções e atitudes a respeito do contexto político de sua vida antes da crise. Essa pergunta continua sendo pertinente;
O saber e as instituições ligadas à medicina: Lu Lu parece não hesitar em identificar-se com a instituição psiquiátrica. O hospital, sua equipe, o sistema de diagnóstico, o tratamento e a medicação fazem intimamente parte de sua vida, desde que ocorreu sua crise. Ainda que, como vimos, ela não faça muitas referências aos problemas de sua irmã Lu Yin e de seu pai, é muito plausível que ela esteja bastante consciente do lugar que o hospital psiquiátrico ocupa na história de sua família. Sua reticência em falar diretamente da equipe hospitalar pode também ter origem nessa história familiar. Ela não desenvolve seu pensamento a esse respeito, mas fica claro que reconhece o lugar da medicina “moderna” na sociedade chinesa. Sem querer rejeitar o saber da medicina tradicional em sua vida cotidiana, a seu ver, seu “tipo de doença” demanda os recursos da medicina moderna;
O lugar da criança na sociedade chinesa: Enfim, um dos momentos fortes de experiência de Lu Lu – aliás muito curto – que a levou a expressar uma grande carga emotiva foi a lembrança de seu aborto. Ela desejava aquela criança, mas Chen Ceng não a queria. Portanto, por causa do pedido de Chen Ceng ela não só sacrificou um profundo desejo, o de ter um filho com ele, mas “ainda por cima era um menino”, diz ela: trata-se aqui de uma dupla alusão à tradição chinesa que valoriza o nascimento de um menino e à política mais recente de se ter um só filho por família. Ela descreve espontaneamente suas reações referentes à direção da Loja Central, ao chofer de táxi, a sua mãe, a Chen Ceng etc. Ela não menciona diretamente os grandes conjuntos sociais, culturais ou políticos. Isso se deve, sem dúvida, ao fato de que esse é um contexto que ela conhece bem e não sente necessidade de analisá-los mais longamente. No entanto, esses grandes conjuntos sociais e culturais estão muito presentes no segundo plano.

 

O PONTO DE VISTA DAS PESSOAS DE SEU CONVÍVIO IMEDIATO

Na hora da crise, todo um grupo foi mobilizado, por vários motivos e em graus diversos. Isso também aconteceu antes e depois da crise. Muitas dessas pessoas estiveram em contato umas com as outras. Para compreendermos a situação de Lu Lu, é importante sabermos quem falou com quem e sobre qual assunto. Direta ou indiretamente, cada ator ali presente intervém com seu próprio passado, sua própria sensibilidade, seu próprio ponto de vista. Por sua vez, Lu Lu também refere-se freqüentemente a essas pessoas. A doença mental é, ao mesmo tempo, uma experiência pessoal e uma experiência coletiva.

Aqui, é necessário fazer algumas observações a respeito do tratamento dado às pessoas do convívio imediato de Lu Lu. O protocolo da pesquisa incluía entrevistas com os membros de sua família, da unidade de trabalho, da equipe hospitalar e da vizinhança. Quando foi feita a análise, não tivemos a oportunidade de entrevistar determinadas pessoas que posteriormente mostraram ser centrais na experiência de Lu Lu. É o caso, particularmente, de Chen Ceng e de Fang: é evidente que ambos deveriam ter sido entrevistados, se o contexto fosse o de uma intervenção e não somente de uma pesquisa. Quanto às entrevistas efetivamente feitas, todas elas teriam merecido uma análise tão detalhada quanto a de Lu Lu. Nesse artigo, vou me limitar a resumir alguns de seus trechos, sem transcrevê-los. Ressaltamos que o conteúdo e o processo de uma entrevista é o resultado da dinâmica da relação entrevistador-entrevistado, não se trata do simples reflexo do universo simbólico do entrevistado.

Por que levar em conta o ponto de vista das pessoas que convivem com Lu Lu? Através dessa análise, não chegamos à verdade, mas a uma multiplicidade de pontos de vista. Um dos objetivos da sociologia clínica é justamente compreender o lugar desses pontos de vista na experiência de Lu Lu. Os parágrafos seguintes relatam a maneira pela qual as pessoas que convivem com ela dão sentido, seja a partir de seu próprio experiencing ou ainda de suas observações e interpretações do que lhe aconteceu. Nessa busca de sentido, essas pessoas referem- se tanto a seu próprio experiencing quanto à “realidade” ou aos “fatos” relativos à “situação” de Lu Lu. Nosso objetivo é captar a complexidade dessa dinâmica para melhor compreendermos, a partir daí, qual é o lugar de Lu Lu entre todas essas pessoas:

A “ressonância” emotiva das pessoas: A experiência da doença mental, particularmente em momentos de crise, gera uma “ressonância” muito íntima e emotiva nas pessoas que a testemunham. Todos são diretamente tocados, seja por empatia, simpatia, ou até mesmo por associação, a experiências pessoais passadas. O gerente não consegue esquecer sua própria experiência, de quando um membro de sua família sofreu um problema idêntico: uma reação de empatia, provavelmente não verbalizada diante de Lu Lu. A paciente que Lu Lu conheceu durante sua hospitalização telefonalhe e partilha com ela suas próprias preocupações face à “sociedade”. Ela o faz porque sentiu que tinha certa afinidade com Lu Lu. Já sua mãe mantém uma lembrança onipresente do marido e recorda as inúmeras conversas que teve com Lu Lu a respeito das possibilidades de suicídio. Face a Lu Lu, todo o sentimento de culpabilidade de sua irmã mais velha, Lu Wei, com relação a seu pai reaparece: “Ele suicidou-se por mim”, diz ela. Ela ficou tão marcada por esse suicídio que só teve coragem de dar a notícia ao marido muitos anos depois do ocorrido. A mãe e a irmã de Lu Lu são pessoas muito próximas que continuarão convivendo com ela em seu dia-adia. As outras pessoas, como os funcionários da Loja Central ou da paciente que lhe telefonou, ela provavelmente não voltará a ver, mas nem por isso deixaram de marcar sua experiência. O interesse em explorar a “ressonância afetiva” das pessoas que convivem com Lu Lu é que, a partir daí, pode-se entrever que tipo de apoio ela recebeu ou poderia receber delas. Ela pode perceber essas “ressonâncias afetivas” como um apoio afetivo, como indiferença ou como uma oposição a ela própria. De que maneira poderíamos ajudar Lu Lu a aproveitar essas “ressonâncias afetivas”, para que ela consiga tomar consciência, da melhor maneira possível, do que lhe aconteceu ou está acontecendo? Ou para ajudá-la a orientar sua própria reinserção social? E principalmente, qual das pessoas de seu convívio está apta a ajudá-la a iniciar essa inserção?
O jogo dos papéis sociais: Ainda que sintam pessoalmente “ressonâncias afetivas”, as pessoas que convivem com Lu Lu também têm papéis sociais a cumprir. O fato de que a situação em questão lhe recorde um evento semelhante, acontecido em sua família, não impede o gerente da Loja Central de tomar as decisões que se impõem a ele na condição de gestor. Quando os membros gestores da Loja Central decidiram demiti-la, tentaram em vão comunicar-se com sua família, por telefone. Por esse motivo, anunciaram sua demissão à pessoa que se identificou como “uma amiga”. Mesmo sentindo-se “infeliz” com essa situação (pois o procedimento correto prevê que se comunique o fato somente à família), isso fazia parte de suas atribuições e ele assim fez. Lu Wei, por sua vez, independentemente de todas as reações muito pessoais a ela impostas pela doença de Lu Lu, tem um papel a cumprir, o de irmã mais velha, papel que ela cumpre de várias maneiras. O papel de gestor do gerente e o de Lu Wei são somente dois casos entre tantos outros. A relação amorosa entre Lu Lu e Chen Ceng ultrapassa os limites de uma relação interpessoal e seria interessante conhecer, por exemplo, a concepção que ele tem do papel de “amigo-marido”, no contexto da evolução atual da sociedade chinesa. O mesmo tipo de questão é aplicável a todas as outras pessoas que convivem com Lu Lu; Outra fala
Uma validação da narrativa de Lu Lu: ainda que o objetivo primeiro não seja distinguir o “verdadeiro” e o “falso”, em determinados momentos é importante validar as percepções ou as lembranças de Lu Lu. Retomando o termo usado por ela, é necessário saber se se trata ou não de uma “alucinação”. Para questionar sua sexualidade e sua relação amorosa com Chen Ceng, por exemplo, Lu Lu baseia-se em sua percepção dos dias passados com o chofer de táxi. Até certo ponto, seus sentimentos são mesmo “reais”, não importando se essa narrativa é “verdadeira” ou não. Mas se o chofer de táxi nunca tivesse existido, o questionamento de sua sexualidade teria outro sentido para as pessoas de sua convivência, e ela reagiria de outra forma. Ao mesmo tempo, se Fang nunca tivesse existido, o processo de “cura” vislumbrado por Lu Lu implicaria um encaminhamento diferente, conforme ela decidisse manter a ilusão de que ele é “real” ou um dia reconhecesse, ao contrário, que ele só existiu em sua mente. Portanto, para os que convivem com ela (inclusive os membros do corpo médico) bem como para ela própria, é preferível que o episódio do chofer de táxi faça parte de suas lembranças de “realidade” do que de “alucinações”. Nesse caso preciso, a validação foi muito simples, porque todos os que convivem com Lu Lu conheceram Fang ou ouviram falar dele. Vários trechos das entrevistas confirmam a narrativa de Lu Lu, outros a colocam em dúvida. O gerente da Loja Central, por exemplo, afirma que a decisão de demitila havia sido tomada antes de sua hospitalização. A seqüência de eventos descrita pela supervisora Mei também não corresponde em nada às lembranças de Lu Lu (ou à reconstrução que faz delas quando da entrevista). Ela foi demitida após um período de ausência não justificada, e foi durante esse período que se tomou a decisão de demiti-la. Sabemos por Lu Wei (e pelo médico que provavelmente também soube através ela) que essa ausência coincide com o período em que estava vivendo com o chofer de táxi. Já segundo a narrativa de Lu Lu, ela só entrou em seu carro, por engano, logo após ter sido demitida da Loja Central. Além disso, a direção da Loja Central recorda ter encontrado, em momentos diferentes, sua irmã Lu Wei, seu amigo-marido Chen Ceng e o chofer Fang. Em cada uma dessas ocasiões, podemos presumir que houve troca de outras informações. Por sua vez, Lu Wei acrescenta inúmeras informações que nem sempre acompanham o sentido da narrativa de Lu Lu: foi ela e não o chofer de táxi que levou a irmã ao hospital, que a tinha ajudado a encontrar um emprego na Loja Central e que a ajudou, em seguida, a encontrar seu atual emprego;
As interpretações e avaliações das pessoas de sua convivência: Elas não confiam somente em suas relações pessoais ou em simples informações. Seu médico, por exemplo, recorda suas conversas com ela, a respeito do chofer de táxi e de sua relação com seu amigo-marido. Mas o testemunho desse médico é mais do que uma simples confirmação do sentimento de Lu Lu. Ele nos diz que considera normal que uma mulher jovem hesite entre um homem que significa “segurança” para ela e um outro por quem ela sinta “paixão”. Contrariamente às interpretações das pessoas do convívio de Lu Lu, ele não vê nisso uma experiência marginal, relativamente às normas sociais, nem acredita que haja aí alguma ligação com seus problemas psiquiátricos. Observe-se aqui: não se sabe se ele comunicou ou não explicitamente seu ponto de vista sobre esse assunto a Lu Lu. Ao que parece, esta não teve nenhum contato com a equipe hospitalar, depois que saiu do hospital. Este não é o momento certo para essa discussão, mas os modelos explicativos da doença (MED), aos quais o médico e a enfermeira se referem, incluem tanto perspectivas biomédicas quanto perspectivas psicossociais. Quer se trate de diferentes informações a respeito da realidade recordada por Lu Lu, quer se trate de interpretações, que também são divergentes, o objetivo desse estudo não é, repetimos, determinar a “verdade” ou ter um conhecimento “objetivo” da situação de Lu Lu. O interesse maior é chegar a uma melhor percepção de todos os pontos de vista que se superpõem aos seus: isso tudo faz parte da complexidade à qual ela está confrontada, direta ou indiretamente;
A comunicação entre Lu Lu e as pessoas de seu convívio – o dito e o não dito: Essas pessoas não reagem somente por “ressonância” às informações objetivas, interpretações ou avaliações: tudo isso implica determinada comunicação entre elas e Lu Lu ou, em última análise, uma falta de comunicação. Todos tentam compreender a situação de Lu Lu ou prever no que vai dar. Cada um, a sua maneira, diretamente ou não, remete-lhe (ou remeteu-lhe, no passado) imagens sobre ela própria. Exemplos: sua irmã mais velha explica os problemas de Lu Lu pelos traços de personalidade manifestados desde sua tenra infância, e repreende-lhe o fato de não “obedecer” a ela, de sempre querer “demais”; a responsável pela Loja Central recorda-lhe, ao dizer que ela não preenche mais os requisitos para trabalhar ali, que ela certamente possui as competências necessárias para encontrar outros empregos. Mas também há os “não ditos”, aquilo que não se comunica – pelo menos não diretamente: Lu Wei, por exemplo, não comunica a Lu Lu sua crença de que ela jamais poderá reabilitar-se, ela também provavelmente (ou talvez) jamais expressou diante de Lu Lu toda a amplidão de sua própria ansiedade decorrente do suicídio de seu pai. Ela jamais lhe contou o quanto teme ser um dia atingida pela mesma doença. Da mesma forma, também não lhe disse que havia consultado um monge budista para ajudála a compreender as sucessivas infelicidades de sua família. Há ainda uma outra forma de “não dito”: a dos membros da equipe hospitalar que parecem ter-lhe falado muitas coisas sobre ela própria, mas já não se interessam em repeti-las, pelo fato de não manterem praticamente nenhum contato com os pacientes que obtiveram alta. A esses “não-ditos” das pessoas, sobrepõem-se os da própria Lu Lu. Seu significado pesa tanto quanto os dos outros. Ela não fala de sua irmã Lu Yin, que também sofre graves problemas de saúde mental e que foi hospitalizada (em outro estabelecimento) durante o mesmo período que ela. Em sua narrativa, ela também não faz referência aos membros da equipe hospitalar. O que revelam esses silêncios? O que eles nos dizem a respeito de Lu Lu e de sua maneira de se representar sua experiência?5 Para Lu Lu, boa parte de seus silêncios- bem como os dos outros – tomam sentido pelo fato de seu isolamento. No contexto de sua vida cotidiana, com quem ela teria, agora, condições de explorar o que sente a respeito de sua sexualidade? Ou seu sentimento de culpa, relativo a Chen Ceng, bem como sua obsessão pelo suicídio, o medo que tem de ficar desempregada, da “sociedade” que nem sempre ajuda as pessoas em caso de necessidade? Esses são somente alguns exemplos;
Uma experiência complexa – o lugar de Fang: Tudo o que foi dito anteriormente dá uma boa idéia da complexidade da experiência de Lu Lu e o lugar de Fang ilustra particularmente essa complexidade. Todas as pessoas que convivem com Lu Lu têm, de um jeito ou de outro, sua interpretação a respeito do papel desse chofer de táxi em sua experiência. Como vimos, para ela, esse chofer é, ao mesmo tempo ou em momentos separados, um ladrão, um estuprador, alguém que a ajudou e cuidou dela, que despertou nela uma sexualidade que ela desconhecia e que, além de tudo, balançou sua relação amorosa com Chen Ceng. Ainda hoje, ela é a única a chamá-lo por seu nome. Para os outros, ele segue sendo “o chofer de táxi”. As pessoas com quem ela convive, sobretudo sua mãe e sua irmã, têm dele uma imagem muito mais simples, unívoca e negativa: o chofer de táxi é uma pessoa má que abusou de Lu Lu pelo fato de ela estar doente. Durante a entrevista, Lu Lu recorda a maneira como sua família se opunha às visitas do chofer de táxi, enquanto estava no hospital, e como ainda se opõe, evidentemente, a qualquer retomada de contato entre os dois. A enfermeira e o médico confirmam que o hospital respeitou esse pedido da família. Quanto à atitude de Chen Ceng, com relação ao chofer, Lu Lu percebe nele um desejo de deixá-la livre para escolher seu caminho. Face a esses múltiplos pontos de vista, como dar sentido a seu encontro com Fang? Evidentemente não há, entre as pessoas de seu convívio, ninguém a quem ela possa confiar sua “perplexidade”, retomando um de seus termos. Além disso, pensar em Fang também significa reviver sua relação com Chen Ceng (“Eu não quero perdê-lo (...) eu pertenço a outro homem”). Ela diz que deseja “ficar completamente curada”, e o caminho para a cura implica dar um sentido, por um lado, à tensão entre seu passado, seu presente e seu futuro e, por outro lado, dar uma certa coerência às múltiplas imagens que as pessoas lhe dão sobre Fang e Chen Ceng.

 

CONCLUSÃO

A experiência pessoal da doença mental está intimamente associada à experiência da própria sociedade. Esta é a hipótese de trabalho básica da sociologia clínica, formulada inicialmente, e nossa análise a confirma. Na experiência pessoal de Lu Lu, esses dois componentes estão em constante interação. É isso que explica que possamos entender a experiência da doença mental de alguém, do ponto de vista de sua história de vida e da dinâmica da sociedade. Claro está que cada caso é peculiar: as circunstâncias, a história pessoal e o contexto social variam de pessoa para pessoa, mas o processo geral permanece o mesmo: é o da relação “pessoa-sociedade”.

Uma decorrência direta dessa afirmação é qua a doença mental jamais atinge só a pessoa identificada como “doente”, ela atinge as pessoas de seu convívio imediato e, de maneira indireta, os grandes conjuntos sociais. A dinâmica da experiência dessas pessoas que convivem com o “doente” é a mesma. Torna-se evidente que, para compreender o ponto de vista de Lu Lu, por exemplo, também é necessário compreender os pontos de vista de todas as pessoas com quem ela convive. Essa observação parece ser ainda mais válida quando não nos limitamos a compreender apenas os momentos de crise, mas também os problemas de reabilitação que deles decorrem. Aqui, a noção de “totalidade” é incontornável.

Enfim, uma outra hipótese de trabalho, inerente à sociologia clínica, é a de que a experiência da doença mental não passa de um caso, entre tantos outros, de experiências humanas: pode-se aplicar a uma pessoa que sofre de uma doença mental grave a mesma grade de análise que se aplicaria a qualquer outra pessoa. A distinção entre “doença mental” e “saúde mental” baseia-se fundamentalmente nessa mesma postura conceitual e epistemológica: qualquer que seja a posição de uma pessoa, na ótica da “doença mental”, essa mesma pessoa, em outra ótica como a da “saúde mental”, guarda a mesma relação com a sociedade, como qualquer outra pessoa dita “normal”. Numa linguagem diferente (e às vezes difícil de se interpretar), ela é levada a responder ou a reagir às mesmas questões existenciais relativas à sua maneira de ser, em sociedade. A experiência de Lu Lu confirma essa hipótese de trabalho.

 

Références

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Texto recebido em julho/2005 e aprovado para publicação em outubro/2005. Traduzido do original por Nina de Melo Franco.
* Sociólogo clínico, Professor Emérito do Departamento de Sociologia da Universidade de Montreal; e-mail: sevignyr@MAGELLAN.UMontreal.CA.
** Ph.D. em Saúde Pública pela Univesidade de Montréal. Atualmente realiza programa de pósdoutorado na McGill University; e-mail: evignyr@MAGELLAN.UMontreal.CA.
1 Esta não se confunde com uma abordagem psiquiátrica ou de psicologia clínica. É verdade que a abordagem clínica, em seus primórdios, usou muito a imagem do médico clínico, que vai ao encontro do paciente em seu leito (daí o sentido original da palavra “clínica”). Mas o interesse pelo campo da saúde mental não é baseado numa definição “médica” da sociologia clínica.
2 Uma vez que para a análise clínica o lugar dos grandes conjuntos sociais, na experiência pessoal, é de considerável importância, tomei o cuidado de evitar os vários outros casos em que as referências às instituições socioculturais, políticas e econômicas mostraram-se explicitamente centrais (em vários casos, as instâncias políticas são consideradas como um fator determinante da doença mental). As representações da experiência de Lu Lu também contam com esse tipo de referência, mas de maneira muito mais implícita e mitigada.
3 (N.T.) Esta expressão se refere à antiga garantia do Partido Comunista ao povo, nos tempos de Mao Tse-Tung: habitação, saúde, educação e aposentadoria para todos. Tal garantia foi tirada, depois de Deng Xiaoping.
4 No período em que se situa a experiência de Lu Lu, o dossiê de quem perdia o emprego (ou de quem não tinha emprego) iam para o Comitê de Rua. Posteriormente, o Estado montou um escritório central para onde são enviados os dossiês como o dela.
5 Os limites de uma só entrevista não permitem que uma pessoa exprima tudo aquilo que lhe parece ser importante ou significativo em determinada experiência. Portanto, não se deve interpretar todos esses silêncios e esses não-ditos como sendo o reflexo exclusivo do ponto de vista de Lu Lu. Além disso, esses silêncios não acontecem por acaso e nos remetem à própria experiência de Lu Lu.

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