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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.11 no.18 Belo Horizonte Dec. 2005

 

ARTIGOS

 

Gênero e identificação feminina primária

 

Gender and primary female identification

 

 

Paulo de Carvalho Ribeiro*

Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMG

 

 


RESUMO

O problema da existência ou não da primariedade e/ou primazia de um dos gêneros sobre o outro tem uma relação estreita com as idéias de Freud e vem sendo objeto de intensos debates entre psicanalistas desde as primeiras décadas do século passado. Neste texto focalizaremos algumas contribuições mais recentes ao estudo psicanalítico dos gêneros e discutiremos a natureza da relação inicial mãe/criança, visando marcar nossa posição relativamente ao problema acima mencionado. Pretendemos, assim, fundamentar nosso ponto de vista sobre o caráter secundário e defensivo da masculinidade, bem como sua maior vulnerabilidade à “organização atípica da identidade de gênero”. Para tanto, levaremos em consideração o trabalho de vários autores, mas daremos especial importância às contribuições de Robert Stoller, Ethel Person , Lionel Ovesey e Jean Laplanche.

Palavras-chave: Gênero, Identificação feminina primária, Identidade de gênero.


ABSTRACT

Whether or not there is a primacy of one gender over the other is a problem closely related to Freud’s thought that has been the object of an important debate since the early 20th century. This paper focuses on some recent contributions to psychoanalytical studies on gender and discusses the nature of the early mother/ child relation with the purpose of establishing a clear position concerning the above-mentioned primacy. Some arguments regarding the secondary and defensive aspects of masculinity as well as the greater vulnerability of males to the atypical organization of gender identity are presented as a conclusion. Among the authors whose works have been taken into consideration in this paper, special attention is given to Robert Stoller, Ethel Person, Lionel Ovesey and Jean Laplanche.

Keywords: Gender, Primary female identification, Gender identity.


 

 

Em 1955, os estudos de Money e colaboradores sobre o hermafroditismo foram os primeiros a tomar a autodesignação do gênero pela criança como fator decisivo no desenvolvimento da identidade masculina ou feminina. Somente dez anos mais tarde, a vinculação da autodesignação com os processos identificatórios dos primeiros meses de vida começou a ser devidamente explorada. Em 1966, R. Greenson publicou um importante artigo no qual o estudo de um menino de cinco anos com sérios problemas de identidade de gênero levou-o a formular o conceito de “des-identificação”. De acordo com Greenson, uma identificação maciça do menino com a mãe deveria ser desfeita para que a identificação com o pai pudesse surgir juntamente com a formação de uma identidade masculina. No caso estudado, a “relação simbiótica primitiva” que, segundo esse autor, marca os primeiros meses de vida de meninos e meninas, prolonga-se por meio de uma equivalência entre o desejo de possuir a mãe e a identificação com ela. Contrariamente ao ponto de vista freudiano, que distingue investimento libidinal de objeto e identificação com o objeto, Greenson insiste sobre a coincidência desses dois fenômenos, deixando assim subentendido que o investimento da mãe como objeto de amor não requer nenhuma masculinidade inata. Ao contrário, a intensidade desse amor sustenta uma identificação simbiótica impregnada por todos os traços e formas de ser da mãe, inclusive por sua feminilidade. A masculinidade do menino passa, portanto, a ser vista como algo a ser conquistado na contra-corrente do investimento de objeto primordial.

A relação das desordens da identidade de gênero com a identificação primitiva com a mãe, inicialmente apontada por Greenson, ganha, com os estudos de R. Stoller sobre o transexualismo, o status de uma verdadeira teoria sobre a aquisição da identidade de gênero. Stoller se opõe frontalmente ao ponto de vista de Freud sobre masculinidade inata e discorda também da suposta maior complexidade da posição da menina no processo de aquisição da feminilidade. O trabalho de des-identificação necessário à construção da masculinidade é corroborado pelo estudo dos transexuais, fortalecendo, dessa forma, a idéia de uma identificação feminina primária resultante da relação inicial da criança com a mãe. A teorização sobre a natureza dessa identificação ocupa uma parte importante das publicações de Stoller e evidencia uma nítida evolução de suas idéias a esse respeito.

Alguns aspectos dessa compreensão stolleriana dos primórdios do desenvolvimento do gênero nos parecem especialmente interessantes na medida em que introduzem elementos que nos ajudarão a expor nossas próprias idéias sobre o problema dos gêneros e sobre a masculinidade em particular. Entre esses aspectos, destacamos o seguinte: o estado de fusão (oneness) com a mãe, responsável pelo surgimento de uma “protofeminilidade” nas crianças de ambos os sexos, não deve ser pensado como um processo identificatório realizado pelo eu, mas como um mecanismo de imprinting capaz de agir sobre o próprio cérebro ainda em desenvolvimento. O caráter de descentramento implicado nesse fenômeno e o espaço deixado para a dimensão de alteridade (termos que não são de Stoller) ficam evidentes na seguinte passagem:

As palavras “incorporação”, “introjeção” e “identificação” conotam uma atividade motivada, dirigida em direção a um objeto que não é reconhecido como parte de si mesmo. Isso significa que deve haver uma psique (mente) suficientemente desenvolvida para apreender o objeto (parcial) e desejar alojá-lo no interior de si [...]. Mas nossa teoria deve também reservar um lugar para outros mecanismos, não mentais (quer dizer, não motivados pelo indivíduo), graças aos quais a realidade externa possa também encontrar seu lugar no interior. (Stoller, 1978, p. 211)

Embora a noção de imprinting pertença ao campo da etologia, não esteja associada de forma preferencial à sexualidade e tenha sido utilizada em contraposição à noção de identificação, consideramos que ao falar de impressões depositadas no cérebro, antes da existência do eu e de um aparelho psíquico plenamente operante, Stoller se aproxima de algumas formulações de Laplanche (2003) sobre a “sedução originária” principalmente no que concerne a passividade radical da criança perante elementos da sexualidade inconsciente do adulto que são concretamente implantados “como em superfície, na derme psicofisiológica de um sujeito no qual uma instância inconsciente ainda não está diferenciada” (1992, p. 358) e a partir da qual uma primeira delimitação corporal do eu surgirá.

Mesmo considerando que o conceito de identificação primária pode ser pensado de forma a abarcar muito do que Stoller descreve em termos de imprinting, vemos nesse aspecto da compreensão stolleriana da formação do gênero os principais elementos teóricos que nos permitirão responder às críticas que lhe foram dirigidas recentemente por dois autores cujos trabalhos sobre identidade masculina e feminina têm ganhado destaque na literatura especializada e, conseqüentemente, em toda a comunidade de pesquisadores e estudiosos das questões de gênero. Trata-se de Ethel Person e Lionel Ovesey (1999), cujas posições teóricas passaremos agora a resumir para, em seguida, analisá-las criticamente e confrontá-las com nossas próprias posições.

 

AS TESES DE PERSON & OVESEY

Partindo da constatação de que os problemas da identidade de gênero são muito mais freqüentes, precoces e geralmente mais graves no sexo masculino do que no feminino, Person & Ovesey procuram explicar essa desproporção sem lançar mão da idéia de protofeminilidade ou de identificação feminina primária como fatores responsáveis por tornar a aquisição da identidade masculina nos meninos uma tarefa mais susceptível a desvios e percalços do que o processo equivalente nas meninas. Segundo esses autores, a des-identificação deve ser tomada como uma tarefa tanto da menina quanto do menino, visto que desidentificação não se diferencia do processo de separação-individuação. É o que a seguinte passagem deixa bastante claro:

“... nós tomamos a des-identificação como sendo o mesmo processo de separaçãoindividuação. Conseqüentemente, nosso argumento é de que ambos os sexos devem se des-identificar; do contrário, o resultado é o autismo. A tarefa subjacente para ambos os sexos é a separação-individuação e essa tarefa é igualmente difícil para ambos”. (1999, p. 137)

Sendo igualmente difícil para ambos, não teríamos como encontrar nesse processo a explicação para a maior incidência dos problemas de gênero no sexo masculino. Logo, a solução proposta pelos autores em questão apóia-se em um outro argumento, segundo o qual as rupturas ou fracassos do processo de separação- individuação, embora produzam angústia de separação e fantasias de fusão simbiótica com a mãe em ambos os sexos, podem ser complicadas, no caso do menino, pelas “marcas de gênero” que acompanham as fantasias fusionais. Ao fundir-se fantasmaticamente com a mãe, alguns meninos, cuja angústia de castração venha a ser vivenciada mais intensamente devido a uma eventual fragilidade do sexo masculino biológico, desenvolverão uma ambigüidade de gênero secundária, ou seja, decorrente de perturbações no processo de separação- individuação. Os autores ressaltam ainda que não se trata de uma identidade de gênero “ambiguamente feminina”, mas de uma identidade de gênero nuclear ambígua, dando assim a entender que os elementos femininos da identidade não são necessariamente os mais importantes.

Dando continuidade à crítica da teoria de Stoller sobre o estado protofeminino universal, Person & Ovesey argumentam que, por ter sido inferido a partir de estudos realizados apenas com transexuais, não se justificaria concluir que o estado protofeminino seja o estado originário normal. Eles concluem, então, que ao afirmar que um estado protofeminino encontra-se presente em todas as crianças em seus primeiros meses de vida, baseando-se apenas na observação de pessoas consideradas desviantes da norma, a teoria de Stoller não cumpre os requisitos de uma teoria científica e fica reduzida à mera especulação.

Person & Ovesey defendem que masculinidade e feminilidade, embora não sejam características inatas, devem ser vistas como formações independentes, de tal forma que se possa conceber uma aquisição não conflitiva da identidade de gênero nuclear tanto nas meninas quanto nos meninos. Em outras palavras, se em Freud e Stoller a aquisição, respectivamente, da feminilidade pela menina ou da masculinidade pelo menino são processos problemáticos em função de condições originárias adversas, para Person & Ovesey, crianças de ambos os sexos podem autodesignar-se e posicionar-se quanto ao gênero sem ter que enfrentar qualquer tipo de inveja, dúvida, des-identificação ou angústia.

Finalmente, tendo feito a distinção entre, de um lado, “uma identidade de gênero nuclear”, adquirida de forma não conflitiva e descrita como “senso de pertencer biologicamente a um ou outro sexo”; e, de outro lado, uma “identidade da função de gênero”, descrita como “auto-avaliação do indivíduo da masculinidade ou feminilidade psicológicas”, Person & Ovesey concluem o seguinte a respeito do alcance da psicanálise na elucidação dos problemas colocados pelo gênero.

Pode a psicanálise, a ciência do conflito, fornecer uma teoria global da identidade de gênero? Não, não pode, já que ela não tem condições de explicar a origem da identidade de gênero nuclear normal livre de conflitos. A teoria psicanalítica pode, entretanto, como demonstramos neste trabalho, iluminar de maneira aguçada aquelas aberrações da identidade de gênero nuclear que se originam, de maneira desenvolvida, dos conflitos que ocorrem durante a fase de separação-individuação e produzem a ambigüidade de gênero. De maneira similar, a teoria psicanalítica é essencial para o entendimento tanto da identidade da função de gênero normal quanto da aberrante. (1999, p. 146)

 

CRÍTICA DAS TESES DE PERSON & OVESEY

Para introduzir nosso ponto de vista crítico a respeito dessas idéias que acabamos de resumir, consideramos fundamental esclarecer que a concepção do estado simbiótico originário da criança, presente nos trabalhos de M. Malher sobre simbiose e individuação, embora empregue noções como “matriz indiferenciada originária”, “fusão com a mãe” e “indiferenciação eu não-eu”, preserva nitidamente uma certa autonomia do bebê, ao falar, por exemplo, da “faculdade perceptiva autônoma inata do ego primitivo” (Mehler & Dupoux, 1997) e pressupor, assim, a efetividade de um “eu psicofisiológico original” concomitantemente ao estado simbiótico. Tendo em vista essa concepção de simbiose, somos levados a suspeitar que ela não se distancia muito das descrições mais recentes que a neurociência e os neocognitivistas têm divulgado sobre a competência inata do bebê humano e um certo grau de “iniciativas” que lhe são atribuídas durante a relação primitiva com seus objetos primordiais. Mesmo que, do nosso ponto de vista, exista um exagero na avaliação das competências inatas do bebê por parte dessas correntes de pensamento, é preciso reconhecer que a concepção de simbiose proposta por Malher e colaboradores, mesmo se abstendo desses exageros, dá margem a muitos equívocos na medida em que pressupõe um estado de indiferenciação que não exclui a capacidade de representação e de autorepresentação por parte do bebê. Na fase de simbiose ele viveria uma espécie de estado psicótico dominado pela “fusão somatopsíquica onipotente e alucinatória com a representação da mãe” (Malher et al., 1977, p. 63) deixando, assim, subentendida sua capacidade em “buscar” e “manter” um estado de indiferenciação que, supostamente, deveria impossibilitá-lo de buscar ou manter ativamente o que quer que seja.

Este breve comentário sobre a concepção de simbiose, que influenciou decisivamente o pensamento de Person & Ovesey, tem por finalidade principal marcar nosso primeiro ponto de desacordo com a teoria desses autores. Se, de fato, alguma forma de estado fusional com a mãe participa da criação de distúrbios da identidade de gênero, esse estado não comporta nenhuma atividade que se possa atribuir a uma instância egóica inata, mesmo que ela seja pensada em termos de “eu psicofisiológico original”. É, portanto, fundamental assinalar que por mais problemática que seja a utilização do conceito de imprinting por Stoller, devemos reconhecer que ele tem o mérito de ser compatível com a posição de radical passividade da criança perante elementos da sexualidade do adulto que lhe são implantados e cujos efeitos tornar-se-ão, a posteriori, o motor da pulsão.

Ao criticar o recurso ao conceito de imprinting por Stoller, Person & Ovesey levantam três objeções principais: primeiramente eles afirmam que não há evidências de imprinting em humanos; em segundo lugar, os filhotes de ganso que seguiram Lorenz em seu famoso experimento teriam feito, segundo os autores em questão, uma escolha objetal que nada nos informa sobre como eles se “auto-identificam”; finalmente, argumentam que ao indicar que a feminilidade da mãe é transferida para o inconsciente da criança, Stoller parece esquecer- se da diferença entre sexo e gênero, na medida em que pressupõe que a criança, por estar em seus primeiros meses de vida sob os cuidados de uma pessoa do sexo feminino, seria necessariamente impregnada de feminilidade, confundindo assim o que ele mesmo contribuiu decisivamente para distinguir. Em outras palavras, Person & Ovesey apontam para o fato de que uma mãe não é necessariamente do gênero feminino.

Quanto à primeira objeção, poderíamos responder, de forma irônica, lembrando que os bebês humanos, por nascerem impossibilitados de se locomover, não podem seguir a mãe desde o primeiro dia de nascidos, o que não significa, necessariamente, que não tenham sido “impressionados” por ela. O que de fato interessa, no entanto, não são as evidências, em humanos, da mesma modalidade de imprinting observada em gansos, mas o fato, atestado pelo estudo dos transexuais, de que o contato íntimo e prolongado do bebê com o corpo da mãe é um dos fatores decisivos na constituição da feminilidade, mesmo quando se trata de mães pouco femininas ou até mesmo masculinizadas, como é freqüente nos casos de meninos profundamente feminilizados estudados por Stoller.

A segunda objeção nos faz constatar que apesar de todas as evidências que contrariam o ponto de vista freudiano de uma separação entre investimento de objeto e identificação com o objeto, Person & Ovesey insistem em diferenciar as duas coisas, já que admitir a coincidência entre elas os aproximaria de Greenson e os distanciaria da idéia de que tanto a identidade feminina quanto a masculina podem desenvolver-se primariamente, ou seja, que os bebês não são todos, inicialmente, nem masculinos (Freud), nem femininos (Stoller). Evidentemente, essa posição teórica, muito mais do que simplesmente contestar, como faz Judith Butler (1990), qualquer tipo de “naturalização” do gênero, preserva a possibilidade de uma aquisição não conflitiva do gênero: um menino poderia estar bem instalado na masculinidade desde o início, assim como a menina em sua feminilidade.

No que concerne a terceira objeção, ela nos lembra uma nota de rodapé francamente denegativa, na qual Freud esclarece que o desejo de Hans de ter filhos como sua mãe e de repetir com eles todos os cuidados que normalmente uma mãe dispensa ao bebê não deveria ser interpretado como “uma corrente feminina de desejo” (Freud, 1909), mas como uma reversão da passividade em atividade. Como se tal reversão, no caso específico, não implicasse uma convergência do desejo e da feminilidade. De forma análoga, o que Person & Ovesey deixam subentendido nessa objeção é a possibilidade de que a maioria ou, pelo menos, uma porcentagem significativa das mulheres que cuidam das crianças em seus primeiros meses de vida pertençam ao gênero masculino. Só assim poderíamos compreender que Stoller estivesse errado ao pensar que a feminilidade da mãe está diretamente relacionada com o desenvolvimento da feminilidade na criança.

Para finalizar nossa defesa de alguns aspectos da tese de Stoller sobre o imprinting feminino primário não podemos deixar de comentar a tentativa de Person & Ovesey de desqualificar, tachando-as de especulativas, as conclusões gerais por ele obtidas através do estudo de transexuais. Chega a ser surpreendente constatar que, depois de tantos anos ao longo dos quais acumulamos um volume impressionante de conhecimento sobre o que é considerado normal a partir do estudo do que é tido como patológico, alguém ainda se disponha a lançar o anátema da não-cientificidade sobre um pesquisador que, com base em investigações de formas desviantes da psicossexualidade, propõe teses sobre o desenvolvimento psíquico e sexual normais. Vale lembrar que Freud chegava a criar opositores imaginários que lhe objetavam a mesma coisa: generalizar conclusões obtidas por meio da observação e da escuta de pacientes neuróticos. Ironicamente, hoje, com a ajuda de Laplanche, lamentamos que a teoria da sedução de Freud não tenha sido por ele generalizada, mas aparentemente abandonada por ter sido considerada apenas em sua dimensão perversa e patológica.

 

ALGUNS ASPECTOS METAPSICOLÓGICOS INDISPENSÁVEIS PARA A ABORDAGEM PSICANALÍTICA DOS GÊNEROS

Nosso interesse em defender o valor de algumas das teses de Stoller sobre o que ele denomina “experimento transexual” (Stoller, 1975) justifica-se em grande parte pelo fato de compartilharmos com ele o ponto de vista de que a mãe do transexual realiza, espontânea e talvez inadvertidamente, uma espécie de experiência cujo procedimento principal é, a nosso ver, a super-exposição da criança a um determinado tipo de cuidado que é, para dizer da forma mais simples e enfática, um processo de modelagem do corpo e da alma, no qual uma feminilidade que a própria mãe desconhece desempenha o papel principal.

O grande engano de Person & Ovesey é confundir, por um lado, identificação com simbiose ou indiferenciação e, por outro, des-identificação com separação- individuação. Tomando como referência os trabalhos de Stoller, a “fusão” da mãe do transexual com seu filho não produz autismo nem psicose. Ao contrário, Stoller chama nossa atenção para o fato de que essas crianças são inteligentes, sociáveis, independentes e notavelmente criativas. Se quisermos ser provocativos, podemos dizer que o experimento transexual parece produzir uma super individuação. É justamente isso que impressionou Stoller e todos os que já tiveram oportunidade de observar esses meninos radicalmente feminilizados. Esse é, por assim dizer, o maior escândalo que o estudo dessas crianças traz.

As evidências de um processo de individuação bem sucedido no menino transexual levaram Stoller a falar de um desenvolvimento não-conflitivo da feminilidade nesses casos. Essa hipótese, que foi contestada por outros autores (Golosow & Weitzman, 1969 e Ovesey & Person, 1973) nos conduz à questão que julgamos decisiva para a abordagem dos problemas ligados ao gênero e principalmente para a formulação de uma teoria psicanalítica sobre a masculinidade. Podemos formular essa questão nos seguintes termos: como se articulam a formação da identidade de gênero e as exigências pulsionais resultantes do recalcamento originário e da concomitante formação do eu?

Adiantaremos, desde já, nossa discordância com a hipótese não conflitiva de Stoller, apesar de admitirmos, por razões eminentemente teóricas a serem discutidas adiante, que a feminilidade dos meninos transexuais é, de fato, menos conflitiva quando comparada com meninos e mesmo com meninas considerados normais. A maior dificuldade de uma concepção não conflitiva da identidade de gênero reside no caráter essencialmente conflitivo da própria constituição do aparelho psíquico, ou seja, do surgimento do inconsciente recalcado e da instância egóica.

Naturalmente não poderemos desenvolver aqui, em toda sua extensão, nossas idéias sobre recalcamento originário, formação do eu e surgimento da pulsão. Remetemos o leitor interessado ao último capitulo do livro de nossa autoria, intitulado O Problema da identificação em Freud (RIBEIRO, 2000). Visando apoiar alguns dos argumentos que apresentaremos, contentar-nos-emos com a breve menção de alguns pontos fundamentais, que enumeraremos como segue:

1) Diferentemente de M. Malher, que concebe, a partir de um estado de autismo monadário inicial, uma progressiva abertura do bebê ao mundo, compartilhamos o ponto de vista de Laplanche a respeito de uma abertura primária do bebê aos estímulos que lhe vêm do ambiente e principalmente do outro;
2) Em lugar de pensarmos em termos de uma fase de simbiose, tal como foi proposta por Malher e adotada por Person & Ovesey, concebemos as primeiras trocas adulto-criança como um período dominado por um processo de sedução originária (Laplanche, 1987), em que a criança é permanentemente inoculada pela sexualidade inconsciente do adulto, daí resultando uma espécie de implantação de estímulos cujo caráter sexual e atacante será revelado a posteriori, ou seja, a partir de uma primeira configuração da unidade corporal, precursora do eu-instância;
3) O recalcamento originário coincide, portanto, com a formação de um primeiro esboço corporal do eu e o surgimento de exigências pulsionais que são, em última instância, vivências de excitações cuja natureza fragmentária, parcial e invasiva só vêm a se tornar atacante e pulsional em contraposição, justamente, à função unificadora e coesiva do eu;
4) Dentro da perspectiva tradutiva do recalcamento proposta por Laplanche, podemos dizer que o eu-corporal é uma primeira tradução defensiva, capaz de organizar parcialmente um aglomerado amorfo de excitações que não dispunham, no momento em que foram produzidas pelo outro, de nenhum agente psíquico, nenhum sujeito ou qualquer instância capaz de dotá-las de representação;
5) Essa primeira oposição estabelecida entre o eu e as excitações disruptivas e, inicialmente, não representáveis é, do nosso ponto de vista, o solo onde se instalará o conflito psíquico do qual participarão os fatores ligados ao gênero. Nesse ponto, nossa forma de nos apropriarmos das idéias de Laplanche sobre o recalcamento envolve a possibilidade de pensar uma simetria insuperável entre a função unificadora do eu e o surgimento do ataque pulsional. De tal forma que o que Laplanche designa como sendo os restos não-traduzidos que permanecerão como objetos-fonte da pulsão coincida com a totalidade das excitações sobrevindas à criança antes mesmo que ela disponha de subjetividade, logo anteriormente à possibilidade de representá-las. Em outras palavras, em lugar de pensar o eu como a parte traduzida das implantações sexuais do outro e nos objetosfonte da pulsão como uma outra parte não traduzida, preferimos pensar no eu como a face recalcante e os objetos-fonte como a face recalcada de um mesmo fenômeno originário;
6) Situamos entre o recalcamento originário e o secundário um estado particular da relação mãe/criança que denominamos “relação de penetração” e cujas características principais serão resumidas um pouco mais à frente. Consideramos a incidência da descoberta da diferença dos sexos sobre essa relação como um fator decisivo para a constituição da identidade de gênero, para a efetivação da força atacante da pulsão e para a criação do conflito psíquico inconsciente.

 

DEFESA DO CARÁTER CONFLITIVO DA AQUISIÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO E CONTINUAÇÃO DA CRÍTICA DAS TESES DE PERSON & OVESEY

Pois bem, uma vez apresentados esses poucos elementos metapsicológicos, retomemos nossa questão sobre gênero, recalcamento e exigências pulsionais.

Tudo seria muito mais simples se pudéssemos concordar com Person & Ovesey, quando eles afirmam que:

A identidade de gênero nuclear normal advém da atribuição e criação sexuais. Ela é não-conflitiva e é construída cognitiva e experimentalmente. Por outro lado, a identidade da função de gênero, tanto a normal como a aberrante, é formada pelo corpo, ego e socialização, e pelas relações objetais sexualmente discrepantes [quer dizer: com pessoas do mesmo sexo e também com as do outro sexo]. Diferentemente da identidade de gênero nuclear normal, ela representa um feito psicológico e está carregada de conflito psicológico. (1999, p. 146)

Trata-se, no entanto, de uma simplificação que somos obrigados a recusar com base nos seguintes questionamentos: como a identidade de gênero nuclear, ou seja, aquela que na visão de Person & Ovesey “reflete uma auto-imagem biológica” e pode ser definida como “a auto-designação pelo indivíduo da sua qualidade de macho ou fêmea” poderia ser independente do eu, da socialização e das relações objetais sexualmente discrepantes? O que poderia ser uma autoimagem biológica construída pela atribuição (inicialmente proveniente dos outros) e pela educação (upbringing), e que fosse, ao mesmo tempo, capaz de tratar a percepção da diferença dos sexos de forma estritamente objetiva, ou seja, como um fenômeno meramente cognitivo e experimental? Ao postularem uma identidade de gênero nuclear não-conflitiva, Person & Ovesey parecem não levar em conta o fato de que nenhuma criança se auto-designa macho ou fêmea, nem constrói uma auto-imagem biológica sem que essas coisas sejam totalmente permeadas por processos identificatórios inevitavelmente conflitivos. Uma criança nunca se vê macho ou fêmea simplesmente porque associou a apreensão cognitiva de seus órgãos genitais com uma designação clara do sexo por parte dos pais ou substitutos. Ela é identificada e posteriormente se identifica com pessoas libidinalmente investidas. Em outras palavras, a criança que começa, ao final do seu primeiro ano de vida, a auto-designar-se menino pode sentir-se “menino como mamãe”, ou “menino como mamãe e papai”, ou ainda “menino diferente de mamãe e papai”. Esta seria então a condição para que a identidade de gênero fosse não-conflitiva: que ela não acarretasse perdas identificatórias e que ela não impusesse a lógica do terceiro excluído, como na oposição macho ou fêmea, por exemplo. Mas se essa condição fosse atendida, qual seria o sentido de se falar numa identidade de gênero nuclear, uma vez que tal identidade desconheceria aquilo que é a marca essencial do gênero, a saber, a existência de apenas dois e o imperativo de situar-se relativamente aos dois, mesmo quando se recusa uma escolha exclusiva de um ou de outro?

Concluímos, portanto, que não existe identidade de gênero não-conflitiva e que a diferenciação entre uma identidade de gênero nuclear não-conflitiva e uma identidade de função de gênero conflitiva reflete, em última instância, a tendência a resguardar uma parte da identidade de gênero como passível de desenvolver- se ao largo das questões ligadas à sexualidade, ao Édipo e à castração.

Nossa posição a este respeito difere daquela de Person & Ovesey, principalmente quando eles afirmam que “a identidade de gênero nuclear, uma vez estabelecida, localiza o objeto apropriado para a imitação e identificação” (1999, p. 144). Se assim fosse, uma criança que se auto-designasse menino e fosse criado como tal só se identificaria e imitaria outros meninos ou adolescentes e adultos homens, o que seria uma aberração, uma espécie de depuração masculina absolutamente incompatível com a infinidade de traços identificatórios que compõem o que chamamos de identidade. Somos partidários de uma teoria conflitiva da formação da identidade de gênero, acima de tudo porque estamos convencidos de que a oposição criada pelo recalcamento originário não só incide sobre a formação do gênero como também depende dela para se transformar em conflito propriamente sexual e sexuado, como buscaremos mostrar em seguida.

 

A PRIMAZIA DO FALO COMO OBSTÁCULO À CONCEPÇÃO CONFLITIVA DA AQUISIÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO

Considerando a função organizadora que o gênero desempenha no psiquismo, Person & Ovesey citam J. Fineman que, ao se perguntar por que existem apenas dois gêneros, conclui que tal fato confirma a “semântica peniana de Freud” (Fineman, 1979). De fato, nada parece ser mais natural do que relacionar a existência de dois gêneros com a existência de dois sexos anatômicos. Porém, a “semântica peniana de Freud” leva em conta a existência de apenas um sexo, ou, para ser mais preciso, apenas um órgão genital, que pode estar ausente ou presente. Uma teoria do gênero construída a partir da oposição fálico/castrado introduz uma atribuição de valor cuja decorrência lógica é o estabelecimento de uma primazia. A afirmação da precedência do masculino sobre o feminino em Freud produziu, desde os anos vinte do século passado, controvérsias e debates que focalizaram a existência ou não de um reconhecimento precoce da vagina e sua importância no surgimento da feminilidade. Por mais interessante e produtivo que tenha sido o que passou a ser chamado de controvérsia Freud/Jones, ela deixou intocada aquela que nos parece ser a questão principal colocada pela suposta primazia fálica, a saber, o obstáculo que ela representa para uma concepção conflitiva da aquisição da identidade de gênero. Com efeito, a suposição de tal primazia, nos termos em que Freud a descreveu, ou seja, como primazia do órgão e da condição masculina, só poderia acarretar como conseqüência teórica a convicção de que, na ausência de extravios contingentes e de anomalias congênitas ou adquiridas, os meninos estariam orgulhosamente instalados em sua masculinidade e as meninas ansiosamente à espera do crescimento do órgão que lhes asseguraria uma masculinidade mais confortável do que aquela na qual se encontram nos primórdios de seu desenvolvimento psicossexual. A partir dessas posições em que não há conflitos entre posições masculinas e femininas, as vicissitudes do desejo seriam as únicas responsáveis por gerar fatores de instabilidade e conflito. Em outras palavras, a primazia fálica transpõe o conflito inerente à aquisição de elementos identificatórios ligados ao gênero e ao sexo para as conseqüências que as escolhas objetais feitas a partir dessa suposta masculinidade originária produziriam.

Toda a formulação freudiana sobre o complexo de castração organiza-se a partir dessa suposta primazia da masculinidade e do pênis e não do significante falo como pretende a corrente lacaniana (Ribeiro, 1998). Ela faz com que a sexualidade infantil, juntamente com o conflito psíquico que lhe é inerente, e todo o cortejo de conceitos diretamente relacionados com ele (como a censura, a defesa e o ataque pulsional) sejam vinculados à proibição do incesto e a uma

concepção do complexo de Édipo em termos de desejo incestuoso, fantasias de eliminação do rival, culpa e punição. A aparente simplicidade e poder explicativo deste romance familiar, que tanto enfeitiçou Freud e muitos de seus seguidores, felizmente não foi suficiente para impedir que uma outra concepção do conflito psíquico e da sexualidade infantil se insinuassem através das fraturas e demais efeitos desorganizadores que produzem sentidos inesperados nas teses trabalhosamente construídas e sustentadas por Freud. Os problemas relacionados à identificação não tardam a complicar esse romance familiar, transformando- o num jogo de forças muito mais complexo do que Freud pensara inicialmente. É o que se torna claro, por exemplo, quando ele se propõe a entrar em detalhes sobre as vicissitudes do complexo de Édipo em seu texto de 1923, “O eu e o isso”. Mas bastaria uma leitura cuidadosa e crítica dos casos Hans e Homem dos Lobos para que já pudéssemos constatar uma dimensão do conflito psíquico e da sexualidade infantil em que as questões de rivalidade e de desejo incestuoso ficam totalmente ofuscadas pelas questões ligadas às identificações e ao posicionamento perante a diferença dos sexos e dos gêneros. Ao contrário do que se poderia esperar como efeito de uma primazia masculina, tanto Hans quanto o homem dos lobos hesitam entre uma identificação masculina que lhes preservaria o pênis e uma identificação feminina forte o suficiente para fazer emergir o desejo de castração e a angústia que lhe é correlata (Ribeiro, 2000).

Do lado da menina, contentar-nos-emos em assinalar, de forma extremamente breve e resumida, que a inveja do pênis surge tanto como uma pretensão de completude narcísica em que o órgão masculino viria em acréscimo e não necessariamente em substituição ao feminino (Roiphe & Galenson, 1987), quanto como força recalcante incidindo sobre uma feminilidade primitiva demasiadamente incompatível com os imperativos de síntese e coesão do eu (André, 1995).

Podemos dizer, então, sem com isso pensarmos estar trazendo uma contribuição original, que a primazia fálica é uma primazia defensiva, cuja função é recalcar uma feminilidade que não é castrada mas sim orificial. A “semântica peniana de Freud”, para retomar a expressão de Fineman, é uma semântica recalcante que tende a escamotear o conflito sexual e identificatório sem o qual ela não precisaria existir.

 

A RELAÇÃO INICIAL MÃE/CRIANÇA COMO “RELAÇÃO DE PENETRAÇÃO”

Nossa hipótese sobre a existência de dois gêneros pretende ir um pouco além da diferença anatômica dos sexos para recorrer, como já dissemos, às condições de surgimento do sujeito psíquico como fatores determinantes.

Tendo em mente alguns dados sobre as particularidades da relação inicial do menino transexual com sua mãe, tal como descrita por Stoller, e buscando aprofundar, ao mesmo tempo, as elaborações de Jean Laplanche e de Jacques André sobre, respectivamente, a sedução originária e as origens femininas da sexualidade, propusemos uma descrição dos primórdios da relação mãe/criança em termos de uma “relação de penetração” (Ribeiro, 2000). Nossa concepção dessa relação ressalta o fato de que, a partir do momento em que passa a existir a representação psíquica de uma fronteira epidérmica do eu, toda a relação da criança com o outro adquire uma potencialidade de representação em termos de penetração. Podemos supor que todos os estímulos que atingem a criança – desde a ingestão dos alimentos até os movimentos excretórios involuntários, para citar apenas os mais banais – são vivenciados pelo eu incipiente como experiências que não só confirmam a existência de um espaço interior passível de preenchimento e esvaziamento, mas atestam também, e principalmente, a susceptibilidade à penetração. Ressaltamos ainda a importância das fantasias despertadas no adulto pelo contato corporal com a criança e particularmente a utilização metafórica do bebê como objeto penetrante: o corpo materno envolvente – que ao segurar contra o seio a criança, a transforma num objeto de prazer instalado num espaço metaforicamente interno – mimetiza a boca onde seu mamilo penetra e assegura, assim, um estado de holding em que a criança e a mãe são as duas faces de uma mesma penetração. Trata-se, portanto, de uma relação de “penetração” – e não de incorporação ou de introjeção/projeção – porque apesar de não nos referirmos apenas às vivências intrusivas, queremos privilegiar três aspectos dessa relação: o caráter eminentemente penetrável e epidérmico do eu incipiente, a prevalência da passividade da criança nas trocas com o adulto e a força das fantasias inconscientes do adulto, nas quais as representações de penetração ocupam um lugar de destaque.

Pois bem, nossa hipótese é que essas condições originárias de surgimento do sujeito psíquico são determinantes do surgimento dos gêneros porque antes de qualquer apreensão da diferença dos sexos pela criança e antes mesmo que ela perceba as marcas culturais distintivas dos gêneros, as marcas deixadas pela sedução originária já estarão produzindo efeitos somato-psíquicos em que prevalecem o que poderíamos chamar de um estado penetrante/penetrado de consolidação identificatória do eu. Esse estado de consolidação do eu coincide com o que nos parece ter a maior potencialidade pulsional e que, uma vez submetido ao recalcamento, se conjugará com os elementos de efração e fragmentação do recalcado originário para constituir-se como fonte da pulsão. Antes de se tornar um par de opostos (como veremos em seguida), o estado penetrante/penetrado é um estado de dissolução de oposições, no qual a presença do outro induz mimetismos que funcionam, paradoxalmente, como poderosos fatores de individuação. Deste ponto de vista, podemos supor que os meninos transexuais estudados por Stoller são tão independentes e criativos justamente por estarem super-expostos a esse contato corporal responsável por uma modalidade muito particular de identificação. Modalidade que certamente não requer representações bem estabelecidas nem do eu nem do outro, sugerindo, assim, mecanismos psíquicos automáticos que nos ajudam a entender porque termos como imprintig ou mimesis (Borch-Jacobsen, 1982) acabam sendo solicitados nas tentativas de nomear esse fenômeno.

 

“RELAÇÃO DE PENETRAÇÃO” E A FEMINILIDADE ENTRE A MÃE E A CRIANÇA

A questão que se coloca a partir dessa concepção dos momentos iniciais da relação mãe-bebê refere-se à vinculação dessa vivência somatopsíquica com a masculinidade e a feminilidade. Para Stoller, como já foi mencionado, essa relação implica uma transmissão da feminilidade da mãe para o bebê, realizada de forma direta, ou seja, não intermediada por representações. No caso dos meninos transexuais, uma vez efetivada esta espécie de imprinting, a criança passaria, tão logo disponha dos recursos necessários, a sorver “como um aspirador- de-pó” tudo o que lhe parece feminino ou relacionado com a feminilidade.

Mesmo considerando a possibilidade de que a feminilidade da mãe participe da formação de uma identificação feminina da criança, consideramos necessário poder pensar o surgimento dessa identificação primária independentemente dos traços de feminilidade presentes na mãe, ou seja, de forma desvinculada do que pode ser considerado como uma fenomenologia da feminilidade ou como uma manifestação concreta daquilo que se considera feminino numa determinada época e numa cultura dada. Pensamos que a própria constituição do eu como instância primariamente delimitada por fronteiras epidérmicas que se opõem à efração e à fragmentação impõe ao campo das sensações e das vivências perceptivas em geral uma dimensão de penetração na qual o estado penetrante/ penetrado, inicialmente desconhecedor das relações opositivas, sofrerá o efeito da partição genital e se decomporá em posições de gênero marcadas pela oposição. O caráter orificial e penetrável da vagina passará a se opor à conformação apendicular e penetrante do pênis. Desta instauração da oposição entre masculino e feminino, advém o efeito a posteriori, responsável pelo surgimento da pulsão: o que era apenas oposição entre, de um lado, aspectos de efração e fragmentação da sedução originária e, de outro, aspectos de síntese e delimitação corporal do eu, transforma-se em conflito sexual, ou seja, conflito entre uma potência fálica penetrante e representante dos valores narcísicos de unificação, que se mantêm em permanente embate com as exigências pulsionais de ser penetrado, invadido e fragmentado. Antes, portanto, de haver transmissão da feminilidade da mãe para a criança, esta já se encontra marcada pela relação de penetração, predestinando-a, assim, a sofrer a exigência pulsional de ser penetrada. É nesse sentido que podemos afirmar que a descoberta da diferença dos sexos vem dar uma configuração anatômica e opositiva a um estado do eu no qual já se encontra pré-figurada uma potencialidade pulsional à espera de ser encampada pela oposição dos gêneros e, desta forma, transformada em conflito propriamente sexual.

Essas formulações que acabamos de apresentar possuem muitos pontos de convergência com as conclusões de Jacques André sobre as origens femininas da sexualidade. Na visão desse autor, o efeito das fantasias sexuais do adulto sobre a criança – e principalmente as fantasias de penetração – produzem um “corpo invadido originário” que encontrará no caráter orificial e penetrável da vagina uma primeira simbolização e uma primeira forma de circunscrição do ataque pulsional resultante da sedução originária. Sua concepção da feminilidade nas origens da sexualidade baseia-se, em última instância, na seguinte idéia:

“A vagina é a coisa mesma”: o lugar repetitivo da intrusão sedutora originária e, por isso, particularmente propícia à manutenção do enigma. A “confusão” cloacal, a natureza “interna” dos processos somáticos, a “invisibilidade” dos lugares excitados, tudo isso contribui para acentuar o caráter não dominável da feminilidade precoce. “O ser-penetrado feminino tem com o recalcamento, como colocação do outro no interior, um parentesco que não se vale simplesmente de palavras”. (1995, p. 130)

Nosso principal ponto de concordância com J. André situa-se, portanto, na concepção de uma feminilidade originária fundada na confluência da sedução com a penetração nas origens do sujeito psíquico e não na transmissão da feminilidade (como forma feminina de ser) da mãe para a criança. No entanto, em lugar de pensarmos, como J. André, num “ser-penetrado feminino”, propomos uma concepção da feminilidade originária como equivalente do estado penetrante/ penetrado tal como o descrevemos sucintamente acima. Mais do que uma referência apenas ao penetrado e/ou ao invadido, vemos a feminilidade como fundada na própria relação de penetração, ou seja, no estado ou fenômeno no qual a alteridade encontra-se presentificada em ato e por meio do qual a consolidação do eu se faz pela via do outro. De forma breve, podemos dizer que o elemento definidor da feminilidade é a coalescência do eu e da alteridade numa relação de penetração na qual a dissolução dos limites corporais apresenta-se como condição necessária à consolidação do eu como instância do aparelho psíquico.

É nesse sentido, portanto, que nos posicionamos ao lado de Stoller no que diz respeito ao caráter primário da feminilidade em meninos e meninas. Apesar de não compartilharmos com ele uma mesma concepção de feminilidade e de divergirmos também quanto à forma de sua transmissão para a criança, não podemos deixar de reconhecer que uma identificação feminina primária é uma passagem necessária na constituição do sujeito psíquico. Mas, diferentemente de Stoller, afirmamos que se trata de uma feminilidade primária condenada ao recalcamento tanto nos que se posicionam do lado da masculinidade quanto daqueles que se posicionam do lado da feminilidade.

 

CONCLUSÃO

Podemos concluir, então, que tanto a masculinidade quanto a feminilidade secundária são constituídos como uma superação defensiva e denegativa desse estado primitivo do eu. O mecanismo de sua formação depende, naturalmente, do estabelecimento de uma oposição entre penetrante e penetrado, mas apóiase principalmente no recalcamento da posição penetrado por meio de um superinvestimento fálico de todas as representações penetrantes. Por meio desse recalcamento, constitui-se a posteriori a natureza efetivamente pulsional da relação de penetração e do estado do eu penetrante/penetrado que lhe é correlato.

As vicissitudes desse recalcamento secundário não serão, obviamente, as mesmas para a menina e o menino. Disto não trataremos aqui, mas não deixaremos de dizer que elas são, em muitos aspectos, bem mais trabalhosas e problemáticas para o menino do que para a menina. Estas, de um modo geral, poderão acolher e reconhecer com mais naturalidade e tranqüilidade os resíduos e derivados da feminilidade das origens.

Finalizaremos estas reflexões definindo nossa posição frente a questão sobre a primariedade ou não de um dos gêneros nas origens do sujeito psíquico. Todo os argumentos apresentados até aqui nos conduzem à reafirmação de uma feminilidade originária e do caráter secundário e defensivo da masculinidade; o que nos deixa próximos de Stoller. É fundamental acrescentar, no entanto, que as crianças de ambos os sexos encontrarão na masculinidade a via régia do recalcamento dessa feminilidade originária, cuja primariedade tenderá inexoravelmente a ser recoberta pela primazia do falo; o que nos leva a pensar no ponto de vista de Freud como sendo uma espécie de verdade do recalcamento. Finalmente, é preciso admitir que meninos e meninas individualizam-se (consolidam o eu) pela via da feminilidade inerente à relação de penetração, mas separam-se (recalcam determinados estados do eu e são submetidos a escolhas identificatórias restritivas) pela via da oposição masculino/feminino e pelo concomitante reconhecimento do valor atribuído pela mãe à masculinidade e ao falo; o que, com a ressalva das objeções anteriormente apresentadas, nos faz lembrar Person & Ovesey, quando dizem que não é apenas o menino que se des-identifica, mas que todas as crianças devem individualizar-se e separar-se.

 

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Texto original recebido em julho/2005 e aprovado para publicação em setembro/2005.
* Médico, psicanalista, doutor em psicopatologia e psicanálise pela Universidade Paris 7; Professor adjunto do Depto. de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMG; e-mail: icaro.bhz@terra.com.br.

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