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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.11 n.18 Belo Horizonte dez. 2005

 

SEÇÃO ABERTA

 

RESENHA

 

 

Carlos Roberto Drawin*

Departamento de Filosofia e Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da UFMG

 

 

MEYER, Catherine (Dir.). Le livre noir de la psychanalyse. Vivre, penser et aller mieux sans Freud. Paris, Éditions des Arènes, 2005. 831p.
(O livro negro da psicanálise – viver, pensar e passar melhor sem Freud)
(The black book of psychoanalysis – how to live, think and get on better without Freud)

ROUDINESCO, Elizabeth. Pourquoi tant de haine? Anatomie du Le livre noir de la psychanalyse. Paris, Navarin éditeur, 2005. 95p.
(Por que tanto ódio? Anatomia do Livro Negro da Psicanálise
(Why so much hate? Anatomy of The black book of Psychoanalysis)**

Foi publicado em Paris, no início de setembro de 2005, um alentado volume que, apesar de sua extensão, pode ser considerado como verdadeiro libelo contra a psicanálise. Essa vasta peça inquisitorial foi organizada e dirigida pela editora francesa Catherine Meyer, juntamente com o filósofo franco-americano, de origem dinamarquesa, Mikkel Borch-Jacobsen, o psiquiatra francês Jean Cottraux e dois psicólogos, um francês, Didier Pleux, e um belga, professor na Universidade de Louvain-la-Neuve, Jacques van Rillaer, além de contar com a colaboração de 35 outros autores e depoentes.

Algumas características da obra chamam a atenção imediatamente. Em primeiro lugar, o seu título: O livro negro da psicanálise. Viver, pensar e passar melhor sem Freud, que, como bem observou Elisabeth Roudinesco, traz a marca de uma concepção conspiratória, uma vez que o que se adjetiva como “negro” é a face oculta, o lado tenebroso e, portanto, dissimulado de um saber e de uma prática que sempre se apresentaram como estando comprometidos com a cura e com a liberdade. Ao escreverem um “livro negro”, os autores pretendem trazer à luz os malefícios e os equívocos da psicanálise que jaziam encobertos e distorcidos e, desse modo, despertar os incautos, os fragilizados e os que se deixam facilmente enganar pelas falsas aparências. Mas o que se quer enfatizar não são simplesmente os erros e as contradições, já que esses são próprios de todos os saberes, e sim a intenção malévola e o cultivo da fraude, que, desde sua origem vienense, marcaram o desenvolvimento da psicanálise. Eis por que, tratando-se de uma conspiração, é preciso denunciá-la, de modo que a sociedade possa se defender e expulsar os que tão grave e persistentemente a prejudicam. Expulsar, porém, de onde? De que lugar? Além de visar à neutralização da influência social da psicanálise, a resposta mais precisa para essa pergunta seria: expulsar os psicanalistas das instituições universitárias e de saúde pública onde eles teriam obtido, através do logro, a hegemonia política.

O termo política nos aponta para uma segunda característica dessa obra coletiva e militante: os seus autores. O alvo a ser atingido é a psicanálise como um todo, e não uma ou outra de suas correntes e, por isso, todos são igualmente culpados, a começar por Freud; porém, o espectro dos acusados é abrangente e vai de Ernest Jones a Bruno Bettelheim, de Melanie Klein a Anna Freud, de Jacques Lacan a Françoise Dolto. Para travar esse encarniçado combate, aliam-se norte-americanos e franceses, tanto os historiadores revisionistas mais exaltados quanto os terapeutas comportamentais convictos.

Entre os primeiros, alguns são manifestamente sectários, como o galês Peter Swales, que contribuiu com extratos de um texto intitulado “Freud, lucro sujo e influência abusiva”; o norte-americano Frederick Crews, pivô de uma feroz polêmica antifreudiana, que, em 1993-94, agitou o The New York Review of Books; e o holandês Han Israëls, autor de um livro significativamente intitulado O charlatão de Viena. Cem anos de Freud e de freudismo. Outros historiadores que escreveram obras mais equilibradas e de maior peso intelectual apenas repetem os mesmos argumentos anteriormente publicados, como é o caso de Edward Shorter, que, em sua Uma história da psiquiatria, adota um ponto de vista francamente organicista e hostil à psicanálise, e o historiador da ciência Frank Sulloway, que, em seu volumoso livro Freud, biologista do espírito, contribuiu com uma investigação respeitável limitada, porém, por uma interpretação bastante questionável e parcial das influências científicas sofridas por Freud e que teriam, segundo ele, determinado a criação da psicanálise e desacreditado a sua originalidade.

Quanto aos psicólogos e aos psiquiatras, é evidente que o cerrado ataque à psicanálise é apenas a pedra de toque que, contra o “fundo negro” do saber freudiano, permite uma avaliação encomiasta das terapias comportamentais e cognitivas (TCC). Dois dos organizadores da obra, Jean Cottraux e Didier Pleux, não são apenas partidários e apologistas da TCC, mas se empenham em contrapô-la ao obscurantismo psicanalítico como uma alternativa moderna, científica e eficaz para remediar o sofrimento psíquico. E, com base em uma contraposição tão evidente, lança-se uma suspeita: por que tantos ainda teimam em se aferrar à psicanálise quando parece ser óbvio que ela não encontra qualquer justificação epistemológica? A resposta não se faz esperar: porque se trata simplesmente de uma questão de crença ou, como concluiu ironicamente Frank Cioffi em outro artigo: “Dito numa linguagem mais corriqueira, podemos afirmar que a cisão extrema da controvérsia em torno de Freud se dá entre os que gostariam e os que não gostariam de comprar dele ou de seus defensores um carro usado. A psicanálise é uma ciência do testemunho”. Pois bem, Cioffi, professor de Filosofia da Ciência na Universidade de Kent, é colocado como o grande representante da epistemologia em O livro negro da psicanálise e em seu ensaio “Epistemologia e má fé: o caso do freudismo”. Ele arrola algumas supostas teses psicanalíticas que ele qualifica, com empáfia, como “mentiras de Freud” como seriam as suas alegações acerca da descoberta do complexo de Édipo, do caso Anna O. e da confirmação da sexualidade infantil. Ora, qualquer conhecedor mediano da literatura em Filosofia da Ciência logo toma conhecimento da extensão e da complexidade das controvérsias em curso, e de que a velha arrogância neopositivista já foi, há muito, deixada para trás. De onde então provêm a aparente segurança e a altivez científica desses atuais detratores de Freud e da psicanálise?

Eis aqui uma questão crucial e com ela passamos a uma última caracterização genérica desse cartapácio de ódio a Freud e à psicanálise, que, no pequeno espaço de uma recensão, não pode ser analisado com rigor e minúcia. Não obstante, o subtítulo da obra nos indica uma pista: “viver, pensar e passar melhor sem Freud”, já que parece que o pano de fundo de toda essa discussão está radicado no coração mesmo do pensamento psicanalítico: o problema do mal-estar na cultura. Afinal, se podemos usufruir do bem-estar proporcionado por uma sociedade que nos assegura liberdade individual e nos oferece uma quantidade inesgotável de objetos de consumo, então não podemos e não devemos acolher uma doutrina que, ao invés de contribuir com o progresso da democracia e da racionalidade tecnocientífica, propaga o fracasso da ação, o pessimismo do sentimento e o retrocesso do saber. Ou, o que ainda é pior, não podemos e não devemos conviver com uma doutrina que só pode subsistir à custa do fracasso, do pessimismo e do retrocesso. Não é difícil ver que o adjetivo “negro”, atribuído à psicanálise, não remete apenas a uma concepção conspiratória, mas é também portadora da metáfora da luz, que, desde o Iluminismo do século XVIII, acompanha as ideologias da modernização.

Por que tanto ódio? É a interrogação de Elizabeth Roudinesco no título de sua brilhante e certeira resposta ao O livro negro da psicanálise, no qual nos baseamos extensamente para fazer esta resenha e que, temos certeza, logo será traduzido para o português. Por que tanto ódio? Porque a visão triunfalista da modernização hipercapitalista e neoliberal – sobretudo quando a sua máscara sorridente e que foi tão festejada na mídia não é mais capaz de encobrir o rosto dos bilhões de sofredores e excluídos – não suporta conviver com o pensamento crítico. A psicanálise, é claro, não inventou o mal-estar, e ninguém nega que o último século foi pródigo em horrores cruentos e incruentos, mas, e aí não é banal reiterar, ao invés de apenas se encolher defensivamente no desconhecimento e na comodidade das ilusões, a comunidade psicanalítica, em meio a inúmeras contradições e vicissitudes, teve a coragem de afrontá-lo e elevá-lo ao plano do pensamento e da reflexão.

É amplamente conhecida a definição hegeliana de filosofia como “o seu tempo captado no conceito”. Podemos ampliar essa definição para dela fazer a vocação e o apanágio de todo pensamento crítico, que consiste em não negar o presente recuando nostalgicamente para o passado nem apenas vivê-lo para se dissolver em sua inconsciência, mas fazer a sua travessia do único modo lúcido, que é recorrendo a um jogo sutil, difícil e sempre retomado de compromisso e distanciamento.

A psicanálise, é claro, não é a detentora única do pensamento crítico. Não foram poucas as vezes em que ela sucumbiu ao dogmatismo, à mistificação, à estreiteza doutrinária, às ortodoxias pretensiosas e estéreis, ao enclausuramento narcísico e ao hermetismo medroso de um jargão vazio e repetitivo. É imprescindível reconhecê-lo, porque a psicanálise é também, como bem nos mostra a sua história, expressão do malestar que ela mesma tematiza. Por isso, é bom que ela seja sempre instigada em duas direções: a de refletir sobre si mesma em sua própria interioridade e a de abrir-se para o diálogo com outros saberes e outras práticas. Portanto, é bem vindo este O livro negro da psicanálise, porque, apesar de suas gravíssimas distorções, ele anima o debate e leva a psicanálise a examinar o seu lado sombrio, visto que, como ela bem sabe, esta é uma condição incontornável do humano: há que reconhecer as sombras que nos habitam, para que possamos enfrentar com desassombro o nosso futuro e o nosso destino.

 

 

* Psicólogo. Psicanalista. Professor de Filosofia e de História do Pensamento Psicanalítico no Departamento de Filosofia e no Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da UFMG; e-mail: carlosdrawin@yahoo.com.br.
** Gostaria de agradecer à Dra. Regina Teixeira da Costa pelo generoso empréstimo das duas obras que são o objeto desta resenha.

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