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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.12 no.19 Belo Horizonte June 2006

 

SEÇÃO ABERTA

 

O uso da imagem pela mídia e sua repercussão na subjetividade contemporânea*

 

The use of the image by the media and its repercussion in contemporary subjectivity

 

 

Suzana Faleiro Barroso1

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

 

 

A mídia alcançou um lugar dominante no dia-a-dia da nossa vida. Ela cria as demandas, orienta os costumes e hábitos da civilização, de maneira até então nunca vista. Mais do que divulgar um produto ou lançá-lo no mercado, a publicidade acabou desempenhando o papel de criar hábitos, modos de viver e de pensar, além de definir estilos, fabricar modelos identificatórios, testemunhando assim o poder das palavras e das imagens sobre os seres falantes. O papel de destaque da publicidade hoje não é sem relação com a organização do mundo globalizado, no qual a comunicação ascende a um lugar decisivo no circuito produtivo. A eficácia da publicidade, portanto, apóia-se na atual organização civilizatória e também no avanço tecnológico que, no caso da imagem, produz novidades cada vez mais sofisticadas.

Se abordarmos a teoria da lei do mercado e a teoria da lei do desejo, uma em oposição à outra, encontramos, de um lado, o consumidor, do qual se ocupa a publicidade, de outro lado o sujeito do desejo, do qual se ocupa a psicanálise. Tanto o consumidor quanto o sujeito do desejo remetem a um campo de investigação em que as necessidades humanas se encontram desnaturalizadas pela ação da linguagem, de tal modo que as supostas necessidades naturais são, de fato, criadas pela ação do aparelho da linguagem, pelo discurso no qual o sujeito está inserido.

Enquanto o consumidor tem suas necessidades fabricadas pelo discurso do mercado, tem também seus objetos indexados pelo valor de mercado e seus modos de satisfação se tornam, imperativamente, determinados pelos interesses soberanos do capital globalizado. Com o sujeito do desejo, por sua vez, tudo se passa de outra maneira, de acordo com outros valores e interesses. O sujeito do desejo tem suas necessidades fabricadas pelo discurso do Outro, implicando a dialética da demanda e do desejo, a saber, uma relação do sujeito ao Outro, na qual o que é desejável o é a partir de uma lei que regula as trocas, humanizando-as.

Nessa relação, portanto, as trocas são organizadas em torno do que tem valor para o desejo do Outro e que expressa o modo particular de inclusão do sujeito, desde seu nascimento, no campo do Outro. Isso define o ser humano como ser dependente de uma ação específica, que Freud, no Projeto para uma psicologia científica (1895), definiu como ação de um outro ser humano experiente.2O outro experiente, ao cuidar do infans, vale-se do aparelho de linguagem, com o qual nomeia, identifica e fabrica, com base na sua interpretação, as necessidades da criança. Mas, para que o sujeito se constitua, para que venha a responder, como sujeito particular, que tem uma história, desejos e um querer próprio, é preciso cumprir um trajeto demarcado pelas palavras e imagens do Outro.

As imagens norteiam a identificação do sujeito, são imagens-guias da constituição do eu, em sua mais radical alteridade. Para a psicanálise, a subjetividade se constitui e se sustenta com base no enlaçamento de três dimensões topológicas, as dimensões do simbólico, do imaginário e do real, designando, respectivamente, a relação do ser falante com o significante, com a imagem e com o objeto. Detenho-me aqui apenas na função do imaginário, visando a desenvolver o problema do uso da imagem e sua repercussão no sujeito contemporâneo. Se observamos um pouco o que se passa no mundo da publicidade, vemos como aí a função do imaginário é decisiva na divulgação dos objetos fornecidos ao consumidor.

A publicidade demonstra, de modo contundente, como as necessidades humanas são criadas, formadas e deformadas pela ação das palavras e das imagens sobre o ser falante. Os anúncios publicitários são sempre ricos de promessas de felicidade. Para obter tal efeito, estabelecem uma associação entre o objeto divulgado, a sua posse e a satisfação de anseios de toda ordem, a saber, a vontade de poder, de prestígio, de reconhecimento e de todo tipo de vaidade que promove a ilusão de completude. Cada anúncio é uma promessa de realização de ideais aos quais o eu poderá ter acesso, desde que seja bom consumidor. Mas, para que essa engrenagem funcione, é necessário o uso de imagens capazes de seduzir e influenciar o consumidor. Não é raro que um novo produto seja associado à imagem de gente famosa, a pessoas de sucesso, que se tornam referências ideais para todos os consumidores. A eleição dessas imagens-referência não é conforme às leis do sujeito do desejo, isto é, à singularidade de cada um, mas conforme às leis do mercado, aos interesses soberanos do capital, que devem valer igualmente para todos. Por exemplo, basta a uma jovem criança usar o celular da Xuxa para sentir-se como a própria Xuxa. Isso só já constitui motivo para nos perguntarmos pela relação do ser humano com a imagem, para verificar que a eficácia da publicidade se baseia em uma particular relação do sujeito com a imagem, a saber, a captura do ser falante pela imagem.

Além disso, o imaginário contemporâneo sofreu inovações de tal ordem que modificou a relação sujeito/imagem. As novas tecnologias da imagem, como a imagem computadorizada e a realidade virtual, promovem outro estatuto para a imagem. Com o avanço da computação gráfica, no mundo virtual, tem-se acesso a imagens nunca antes captadas pelo olho humano. A questão de terem ou não referência concreta no mundo material tornou-se sem importância. "A imagem é apenas a atualização provisória de um conjunto de leis simuladoras de um mundo possível e autônomo" (Garcia, 1995, p. 101). A imagem ganha autonomia, tem realidade própria, implica a invenção e a criatividade e se distingue da imagem especular. "Aqui as imagens não se oferecem como espetáculo, mas como objetos de manipulação, como estratégia de ação" (Garcia, 1995, p. 101). A imagem especular, diferentemente, é sempre dependente do original, pois corresponde à reprodução invertida que uma superfície polida dá de um objeto nela refletido. Entretanto, a relação do sujeito moderno com a imagem não se reduz mais à relação com a imagem especular. Trata-se de saber que efeitos isso tem para a subjetividade.

O problema-chave é que, na produção veloz e fugaz de imagens, no capitalismo globalizado, estas são completamente desvestidas de seu contexto particular, de sua verdade histórica, de seus valores éticos e ideológicos e, portanto, rapidamente descartáveis, como quer a máquina do consumo. O que pensaria Che Guevara ao ver seu rosto estampado nas peças da Vide Bula como mais uma das imagens produzidas em série, num deslocamento infinito?

A questão maior, relativa ao mal-estar no imaginário da civilização contemporânea, é que as imagens produzidas em série não só não se sustentam, não se mantêm, como também adquirem, da noite para o dia, o estatuto de dejetos da civilização. O que hoje pode parecer uma imagem adequada ao eu e aos seus ideais, amanhã já não se sustenta. Conforme Laurent (1995, p. 28), "não é a produção em série o fenômeno maior, é a absorção da imagem no lixo universal. A industrialização é somente a produção do dejeto".

 

A preferência pela imagem no ser falante

O ser falante é tão susceptível à influência das imagens que chega a não poder prescindir delas. Caso contrário, permaneceria numa condição devastadora para o eu e para a consciência. As imagens têm importância para o ser humano desde muito cedo, antes mesmo que ele comece a falar. O sentido pleno do termo "imagem", em psicanálise, remete à relação do sujeito com as identificações formadoras do eu. O que é próprio da imagem é o investimento pela libido, quer dizer, aquilo pelo qual um objeto se torna desejável. Em todo processo de inserção e reconhecimento do sujeito nos laços sociais, sua identificação fundamental supõe a relação com a imagem. A identificação é, propriamente, a transformação produzida no sujeito, quando ele assume uma imagem. O acesso a uma imagem implica a identificação no duplo sentido do termo, isto é, o de reconhecer sua própria forma e o de assimilar o que reconhece.

Freud problematizou a relação do ser humano com a imagem através da teoria do narcisismo, na qual encontramos, inicialmente, uma concepção energética da libido, uma elaboração da economia libidinal, isto é, do movimento de investimentos e desinvestimentos da libido nos objetos. Quando a libido investe o próprio ego, o sujeito toma a si como objeto de amor, isto é, o amor pela imagem de si mesmo, cujo modelo Freud foi buscar no mito de Narciso. Em Freud, assim, a concepção estrutural do narcisismo designa uma ação psíquica capaz de constituir o ego como uma unidade psíquica.

Depois de Freud, Lacan retomou a questão do narcisismo na teoria do estágio do espelho. O estágio do espelho, elaborado inicialmente em 1949, designa o processo de formação do eu através da identificação do sujeito infans com a própria imagem especular, com a gestalt visual de seu corpo. Desde então, Lacan sempre foi contundente em afirmar a preferência pela imagem no ser falante. Ele se perguntou por que o homem é tão submisso à sua imagem. A investigação lacaniana sobre o porquê dessa preferência nos seres falantes é oportuna para compreendermos a influência decisiva das imagens propagadas pela mídia, como também para avaliarmos a repercussão da produção em série de imagens na subjetividade contemporânea.

Com a teoria do estágio do espelho, Lacan compreendeu a função organizadora que tem, para o ser humano, o acesso a uma imagem, o que faz da experiência da criança, no espelho, uma etapa estruturante de sua subjetividade. Mais do que se projetar em uma imagem, o ser humano é constituído por ela. A própria constituição da realidade implica a constituição do imaginário, que atua na formação das fantasias e dos sintomas. A primeira subjetivação humana remete à forma do corpo. Está na origem do primeiro símbolo do sujeito, isto é, a imagem do eu. O sujeito se vê no outro e seu eu se constitui à imagem e semelhança do outro. Tal processo evidencia a função da imagem na constituição e na manutenção dos laços sociais. Mas, por outro lado, a alienação na imagem do outro pode significar, em condições patológicas, uma captura avassaladora para o sujeito, tal como se vê no trágico destino de Narciso.

Para elaborar a teoria do estágio do espelho, Lacan recorreu à física, mais precisamente ao esquema ótico, buscando compreender a formação de imagens. Descreveu a formação da imagem real e da imagem virtual, uma vez que cada uma delas se encontra, respectivamente, na base da formação da imagem do próprio corpo e da imagem do corpo do Outro. A imagem do corpo é a imagem real, projetada na realidade pela ação do espelho côncavo. Ela representa um eu primitivo que precisa se diferenciar do mundo exterior. Nesse momento, a imagem é mediadora entre o externo e o interno, para que o interno seja vivido como próprio. A simples visão da forma total do corpo humano pode dar ao infans um primeiro domínio imaginário de seu corpo, prematuro em relação ao domínio real, mas crucial para a constituição de um corpo. Sem domínio de seu corpo, o sujeito só pode ver sua forma realizada fora de si mesmo.

Antes do acesso a uma imagem fundamental, uma unidade comparável ao eu não existe na origem, e a constituição do eu supõe uma série de operações, implicando a incidência da imagem do Outro sobre o infans e a simbolização dessa imagem. O reflexo no espelho introduz a relação com o outro. O homem se vê e se concebe, pela primeira vez, como um outro diferente do que ele é, pois não tem o domínio motor do seu corpo. A imagem do corpo é o que dá ao sujeito a primeira forma que lhe permite situar o que é do eu e o que não é. A constituição dessa identificação significa uma "encruzilhada estrutural" (Lacan, 1998) e, desde então, o ser humano fica cativo da imagem. A prevalência da imagem funda-se, portanto, em diversos fatores. O primeiro é um fator de ordem biológica, isto é, a condição de prematuração na qual nasce o ser humano, cujo funcionamento neurofisiológico não lhe permite integrar suas funções motoras e aceder a um domínio real de seu corpo, tampouco promover a satisfação de suas necessidades, no início da vida. É essa prematuração, concernente ao registro do real, que explica a preferência pela imagem, uma vez que somente ela, com seus efeitos de ilusão, atenua o desamparo primordial do ser humano, inerente a essa condição de prematuração.

Se o espelho fornece ao sujeito uma armadura corporal até certo ponto pacificadora, munindo-o de uma gestalt, de um eu ideal, para que isso funcione é preciso que essa imagem seja sustentada pelo olhar de um representante do Outro. O sujeito só se vê no espelho através desse ponto simbólico situado fora da imagem, suporte de uma identificação simbólica ao ideal do eu. A criança se fixa na imagem que ela é, sob o olhar do Outro, de onde ela se vê amável pelo Outro, a partir do ponto de vista do Outro. A criança, na posição de eu ideal, é o que seus pais fazem dela, na medida em que nela projetam seu ideal.

Porém, nem tudo da realidade subjetiva é captado pela imagem, e a aventura no espelho deixa sempre um resto não assimilável, algo não especularizável, isto é, o objeto fora do espelho. O que o sujeito pode apreender da experiência no espelho é que, diante da pergunta sobre seu ser, ele se vê sempre impelido a compensar sua condição de incompletude, de falta a ser, através do recurso às imagens unificadoras do eu. Mas é no âmago do espelho que o sujeito se defronta com a impossibilidade de captar-se totalmente numa imagem.

 

As imagens produzidas em série e a fragmentação do eu

Na atualidade, se por um lado há imagens em abundância, por outro verifica-se carência e - por que não dizer? - falência dos ideais norteadores da identificação do sujeito, dos ideais que constituem o lastro simbólico das imagens. No mundo virtual, o dos "semblantes", os simulacros se sobrepõem, determinando uma subjetividade cada vez mais errante. Conforme Soler (2001), assistimos à multiplicação contingente dos ideais, com efeitos de fragmentação no nível do eu.

Conseqüentemente, problemas atingem a relação do sujeito com suas imagens estruturantes. Segundo Miller (1995), a psicanálise extrai do mundo das imagens três imagens fundamentais para o sujeito do desejo, isto é, a imagem do próprio corpo, a imagem do corpo do Outro e o falo. A imagem do próprio corpo é a imagem especular, a matriz do eu, que pode definir-se como a idéia de si mesmo, como corpo. A imagem do corpo do Outro é aquela cuja especificidade é apresentar ao sujeito uma falta, a castração, através do encontro do sujeito, no âmago da experiência do espelho, com o que não é especularizável, um buraco na imagem. Tal encontro se refere, essencialmente, à diferença de sexos. E, por fim, o falo, que não é o órgão masculino da reprodução, mas sua forma erigida e transformada em significante, através da operação que a psicanálise chama de castração. Destaco aqui os problemas que comprometem uma dessas imagens estruturantes, a imagem do próprio corpo. Trata-se, hoje, do desaparecimento de uma imagem do corpo que se mantenha, que não seja rapidamente destituída. É o que os adolescentes experimentam, de maneira cada vez mais avassaladora.

Mas interessa aqui salientar o que Soler (1999) chamou de "processo de esquizofrenização" do sujeito moderno: "Chamo assim todos os processos de esquize que se inscrevem no real ou no simbólico e que têm por efeito atacar a coesão dos laços sociais" (Soler, 2001, p. 237). No que diz respeito ao imaginário, a autora fala de um "espelhamento plural", que, somado à falência dos ideais, compromete as agregações simbólicas de Eros. Para a psicanálise, Eros implica, no mundo pulsional, tudo aquilo que tende à união, à aspiração da unidade, à vida, à reprodução, enquanto Tânatos, a pulsão de morte, tende à destrutividade e à desunião. Bem, é na esquizofrenia, mais do que em qualquer outro tipo clínico, que se verificam os efeitos da desfusão pulsional na organização do eu, como na ocasião de um surto psicótico, de tal maneira que o sujeito soçobra no campo do desejo e dos ideais unificadores do eu. É freqüente que a irrupção dessa patologia dissolva a identificação do sujeito, fragmentando o eu e dispersando a subjetividade, afetando, portanto, todo o plano imaginário do sujeito e sua imagem corporal.

Por se constituir fora do campo do desejo do Outro, o esquizofrênico não se vê no espelho, através desse ponto simbólico situado fora da imagem, suporte de uma identificação simbólica ao ideal do eu. Conseqüentemente, seu eu não é coordenado por uma identificação organizadora e, assim, evoca o que Lacan chamou de "imago do corpo despedaçado". Todo o problema do sujeito esquizofrênico com seu corpo, decorrente de estar fora do laço social, é de não poder recorrer a um discurso estabelecido que o oriente na sua relação com seu corpo, fornecendo-lhe imagens norteadoras do que fazer com o corpo. Quando uma criança se socializa e entra no discurso, ela aprende muito cedo a norma civilizatória que regula a sua relação com o corpo, ao internalizar a lei do pai, as regras do convívio social, através da própria educação. Porém, quando isso não ocorre, o corpo torna-se para o sujeito um problema e ele o experimenta como algo cujas partes não fazem um todo e se dispersam numa fragmentação devastadora para o eu.

No caso do uso da imagem pela mídia, cabe perguntar se a produção em série das imagens e sua utilização não estariam contribuindo para a esquizofrenização do sujeito moderno. O uso das imagens pela mídia pode ter efeitos de dispersão na subjetividade contemporânea, penalizando o eu, ao coisificá-lo.

O poema "Eu, etiqueta", de Drummond, transmite precisamente a condição do eu coisificado no mundo globalizado. Trata-se do eu fabricado pela mídia, semelhante a uma mercadoria e anulado em sua particularidade: "Hoje sou costurado, sou tecido, / sou gravado de forma universal, /saio da estamparia, não de casa, / da vitrina me tiram, recolocam, / objeto pulsante, mas objeto / que se oferece como signos de outros / objetos estáticos, tarifados" (Drummond, 2001, p. 87). Permanentemente a serviço das leis da demanda, não das leis do desejo, o eu-etiqueta é um eu subordinado ao seu senhor, a saber, o mercado:

Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, / minha gravata e cinto e escova e pente, / meu copo, minha xícara, / minha toalha de banho e sabonete, / meu isso, meu aquilo, / desde a cabeça ao bico dos sapatos, / são mensagens, / letras falantes, / gritos visuais, / ordens de uso, abuso, reincidência, / costume, hábito, premência, / indispensabilidade, / e fazem de mim homem-anúncio itinerante, / escravo da matéria anunciada. (Drummond, 2001, p. 86)

A fragmentação do eu, no plano dos ideais, com seus efeitos de despersonalização, faz-se presente desde os primeiros versos: "Em minha calça está grudado um nome / que não é meu de batismo ou de cartório, / um nome... estranho" (Drummond, 2001, p. 85). O que o poeta revela é um eu que consente na sua própria anulação:

Eu é que mimosamente pago / Para anunciar, para vender / Em bares festas praias pérgulas piscinas, / E bem à vista exibo essa etiqueta / Global no corpo que desiste / De ser veste e sandália de uma essência / Tão viva, independente, / Que moda ou suborno algum a compromete. (Drummond, 2001, p. 87)

Ao renunciar à sua bagagem imaginária particular, a suas imagens estruturantes, em nome do logotipo ou da etiqueta global, o eu não tem outro destino senão o anonimato: "Onde terei jogado fora / meu gosto e capacidade de escolher, / minhas idiossincrasias tão pessoais, / tão minhas que no rosto se espelhavam, / e cada gesto, cada olhar, / cada vinco da roupa / resumia uma estética?" (Drummond, 2001, p. 87).

O sujeito contemporâneo não é, certamente, um esquizofrênico. Se ele vive uma dispersão dos ideais que modifica a sua relação com seu corpo, afetando o eu a ponto de poder se tornar "um homem-anúncio itinerante", isso não basta para especificar a esquizofrenia. A diferença maior é que, na esquizofrenia, o sujeito se encontra fora do discurso e da ordem estabelecidos. Já a dispersão e fragmentação do sujeito contemporâneo provêm da incidência e da ação do discurso capitalista sobre a vida neste tempo de globalização.

 

Referências

Drummond de Andrade, C. (2001). Corpo. Rio de Janeiro: Record.

Freud, S. (1969). Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. XIV, p. 89-125). Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1914).

Garcia, C. (1995). O imaginário e o infinito. Opção Lacaniana, 5 (13), 99-103.

Lacan, J. (1998). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto original publicado em 1949).

Lacan, J. (1953). Os escritos técnicos de Freud. In: O Seminário: livro 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Laurent, Eric. (1995). O mal-estar na cultura. Opção Lacaniana, 5 (14), 25-29.

Miller, J. (1995). A imagem rainha. Opção Lacaniana, 5 (14), 12-22.

Soler, C. (2001). A esquizofrenia. In: Quinet, A. (Org.). Psicanálise e psiquiatria: controvérsias e divergências. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos. p. 237-248.

 

 

*Este texto aborda tópicos trabalhados na disciplina "Psicologia aplicada à Publicidade e Propaganda", em 2002, no curso de Publicidade da PUC Minas, e foi objeto de uma conferência proferida na "IV Semana de Psicologia" do Instituto de Psicologia da PUC Minas, em setembro de 2003.
1Mestre em Psicologia pela UFMG, professora do Instituto de Psicologia da PUC Minas. E-mail: suzanabarroso@terra.com.br
2Trata-se do papel do outro ser humano, cuja experiência diz respeito ao uso da língua e da linguagem, por meio da qual as necessidades do infans sofrem a nomeação, a interpretação e a satisfação

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