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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.12 n.20 Belo Horizonte dez. 2006

 

ARTIGOS

 

Modos de subjetivar e de configurar o sofrimento: depressão e modernidade

 

Modes of subjectivating and configuring suffering: depression and modernity

 

 

Cristiane Daniel*; Mériti de SouzaI,**

IDepartamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina

 

 


RESUMO

Trabalharemogs O trabalho psicológico favorece as condições para a escuta da subjetividade e demanda conhecimento sobre os modos de subjetivação presentes no entorno dos envolvidos nesse trabalho. A depressão se configura como uma das modalidades de sofrimento predominantes no contemporâneo. Neste artigo problematizamos o cenário sócio-histórico produtor da subjetividade que vivencia a depressão e discutimos as abordagens direcionadas à escuta desse sofrimento.

Palavras-chave: Sofrimento, Depressão, Modernidade, Subjetividade.


ABSTRACT

The psychological task develops conditions for listening to subjectivity. It demands the knowledge of subjectivation modes that surround the people involved. Depression is one of the many modes of suffering predominant in the contemporary world. This article points out the social-historical scenario responsible for producing those subjectivities that are part of depression. It also discusses some approaches to the listening of such suffering.

Keywords: Suffering, Depression, Modernity, Subjectivity.


 

 

O debate a respeito das psicopatologias atravessa o cotidiano tanto dos profissionais que atuam de forma direta no trabalho com a saúde mental e o sofrimento psíquico quanto daqueles profissionais não vinculados de forma imediata a esse trabalho. Nesse contexto, chama a atenção o fato de existir uma preocupação crescente com uma psicopatologia específica: a depressão. Esse interesse tem mobilizado diversas áreas do conhecimento a desenvolverem inúmeras pesquisas a esse respeito e é possível afirmar que a depressão tem sido vista como um dos sintomas marcantes do mundo contemporâneoocidental.

Em conseqüência desse quadro, têm sido propostos tratamentos para a depressão em sua maioria oriundos da psiquiatria e da psicanálise. Segundo a leitura psiquiátrica, a intervenção está centrada no uso de medicações; para a psicanálise, o trabalho terapêutico utiliza terapias baseadas na história de vida do sujeito e na construção da sua subjetividade. Assim, pode-se observar a existência de divergências em relação aos tratamentos oferecidos por essas áreas do conhecimento. De forma abrangente, pode-se afirmar que essa oposição se baseia na adoção de visões de sujeitos diferenciadas.

A medicina, com suas práticas fundadas no princípio de racionalidade, procura causas ditas racionais, explicáveis cientificamente para elucidar os males humanos, pois assume uma visão de homem essencialmente consciente e racional. Nessa perspectiva, concebe o sofrimento humano como doença e utiliza-se de referenciais biológicos para explicá-lo.

No caso específico da psiquiatria, vê-se que a preocupação principal é encontrar as causas biológicas para as psicopatologias e desenvolver formas de tratamentos ideais calcadas no uso de psicofármacos. Dessa forma, desconsiderase a singularidade como aspecto constitutivo da existência humana.

A psicanálise adota uma concepção de sujeito atravessada pelo desejo, o sujeito do inconsciente, constituído em meio a uma realidade psíquica e social. A descoberta do inconsciente e a criação do conceito de realidade psíquica possibilitaram uma ruptura com a concepção de sujeito da consciência concebida pela modernidade (Birman, 1997, 1999; Bezerra, 1989). Nessa perspectiva, a psicanálise como teoria sobre a constituição subjetiva nos fala dos modos de organização psíquica e de como os sintomas são produzidos na interação do psíquico com o social, ou seja, do homem com o outro.

Dessa forma, a depressão pode ser vista de um ângulo que considera a construção da subjetividade, se for encarada como um fenômeno produtor de sofrimento que integra a vida humana. Analisar os diferentes contextos socioculturais produtores de formas de subjetivar associadas à constituição do sujeito que sofre com a depressão revela-se pertinente ao trabalho de compreender a organização desse fenômeno e de oferecer possíveis atendimentos a esse sujeito.

Pensar sobre a configuração da subjetividade que se expressa mediante a depressão demanda, inicialmente, compreender as articulações da constituição psíquica com o entorno social e cultural do homem. Conforme afirma Foucault (1987, 1990, 1985, 1976), considerar a subjetividade como imbricada no espaço e no tempo e produzida historicamente remete a pensar sobre os modos de subjetivação. Essa análise demanda ir mais além do que comportam os discursos calcados na descrição dos sintomas associados às manifestações do sofrimento humano.

 

Modos de subjetivar e modernidade

A consolidação dos princípios modernos no plano social trouxe algumas implicações. Dentre elas, observa-se a produção de discursos da ordem do universal sobre o homem, sua natureza e suas relações na sociedade, que acabam por remeter o humano a uma só esfera, a da consciência sobreposta a uma subjetividade plena e única. Em outras palavras, da modernidade advém uma concepção de sujeito constituído de forma plena pela razão. Essa concepção consolidou a noção do homem como sujeito da consciência autocentrado e, em paralelo, tanto consolidou a noção de uma subjetividade individualizada quanto imprimiu ao desejo configurações específicas. Dentre essas configurações, pode-se ressaltar a forma notadamente narcísica que atravessa a constituição do desejo concomitante à produção de relações humanas desinvestidas (Birman, 2000).

Quando se dedica ao estudo das formas de subjetivação, Foucault (1990, 1985, 1987, 1976) nos mostra o que podemos chamar de base para a compreensão de como o homem se voltou para si mesmo. O autor discute essa questão através da análise das “práticas pelas quais os indivíduos foram levados a prestar atenção a eles mesmos, a se decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos do desejo”. Foucault chama de “artes da existência” ou “tecnologias de si” essas práticas através das quais os homens fixam regras de conduta, procuram se transformar e fazer da sua vida um valor estético. Em concomitância, elas lhes possibilitam estabelecer de si para consigo uma relação que os leva a acreditar na verdade do desejo e a relacionar essa verdade com a suposta verdade do seu ser.

Nessa perspectiva, durante a modernidade, a subjetividade inscrita historicamente na ética, estética e política, e ordenada pelos discursos filosófico, religioso, científico e do senso comum, passou a ser objeto teórico e campo para as práticas de diversas ciências humanas.

Segundo Birman (2000), ao formular a existência das tecnologias de si, Foucault revelou que a subjetividade não se configura como um dado, ou ainda como um ponto de partida, mas antes como associada à ordem da produção. Assim, não se trata de trabalhar com concepções naturalistas e buscar localizar a origem do subjetivo ou afirmar que o subjetivo se encontra na origem. Trata-se de conceber a produção das subjetividades como um processo complexo e como um devir que nos remete ao trabalho de constituição do psiquismo. Além disso, a subjetividade produzida por tecnologias seria da ordem do múltiplo e do plural, transformada ao longo da história ocidental através do discurso de certas técnicas de produção de si mesmo.

Para Foucault (1990, 1985, 1976), existiriam formas de subjetivação engendradas pelas tecnologias de si, o que implica a produção do sujeito por um processo historicamente regulado. As subjetividades nascidas da produção seriam sempre forjadas nos registros ético e estético, com eles se transformando ao longo da história, não sendo os mesmos na Antigüidade e na tradição inaugurada pelo cristianismo. Na Antigüidade, a construção de si mesmo não implicaria algo da ordem da renúncia, o imperativo era o cuidado de si, que remetia ao trabalho de problematizar o como ser e o como agir e não a uma noção de interioridade. Na ética cristã, a ordem da renúncia seria o fundamento, com a subjetividade passando a ser vista como interioridade e consciência. A categoria de verdade havia se inscrito na produção da subjetividade. Nesse sentido, a verdade do sujeito seria a contrapartida da exigência deste em se conhecer.

Portanto, essa concepção original de subjetividade e de experiência ética, construída pelo cristianismo, seria a condição de possibilidade para a constituição da filosofia do sujeito que marcou o Ocidente e que incidiu fortemente na produção dos discursos das ciências humanas. Com isso, o cuidado de si, condição de experiência ética e da produção de si mesmo na Antigüidade, foi gradativamente substituído e até mesmo esquecido. Desse modo, as formas de subjetivação, reguladas pela categoria de verdade, seriam resultantes de relações de forças produzidas pelo poder.

Posteriormente a esses movimentos, encontramos a organização e a consolidação da época moderna. Estabelecer uma ordem cronológica exata para o surgimento da modernidade implicaria um equívoco, pois os saberes, situações e contextos que se aglutinam para configurar essa ordem social, histórica e econômica se organizaram ao longo de séculos.

A modernidade seria, então, o resultado de um movimento que se desenvolveu durante um período de transição marcado pelo Renascimento, pela Reforma protestante, pela Contra-Reforma e pelo Iluminismo. Através desse movimento, foram redefinidas as idéias sobre política, sociedade, natureza e fundamentalmente sobre o homem (Burdeau, s/d; Chauí, 1984; Bauman, 2001, 1998).

Uma nova ciência da natureza é constituída na modernidade. O conhecimento não mais se ancora em pressupostos especulativos e passa a ser ativo, visando dominar a natureza. Essa nova ciência passa a explicar os fenômenos naturais de uma forma quantitativa e mecanicista. Esses se tornaram, por sua vez, objetos de observação, de investigação, orientados por uma reflexão racional, entendida como instrumento de explicação.

A passagem para a modernidade é marcada pelo estabelecimento do ideal moderno como paradigma e pela concepção de uma noção de sujeito atravessada pela idéia de razão. Essa idéia se refere ao fato de que todos os homens são constituídos por uma capacidade cognoscente que lhes possibilita o conhecimento do real. Assim, por um lado, essa capacidade seria o único meio através do qual se poderia chegar ao conhecimento verdadeiro e, por outro, apenas ela poderia julgar o seu entorno e a si própria. Através da razão e da consciência racional, o sujeito poderia conhecer a si mesmo e ao mundo, constituindo-se no sujeito do conhecimento ou sujeito da consciência.

No plano subjetivo, a marca da modernidade é a postulação da subjetividade individualizada, baseada na consciência autônoma e centrada na razão como fundamento para o conhecimento (Bezerra, 1989; Dumont, 1985). Essa subjetividade considera o ato de conhecer como o ato individual de conhecerse a si mesmo, reconhecer-se como objeto e como sujeito do conhecimento, sendo essa a condição para se chegar à verdade. Desse modo criou-se, então, uma noção de mundo interior, em que se abrigam o eu e uma identidade aos quais se pode ter acesso somente através da volta para si mesmo.

A partir desse caldo cultural, a subjetividade apresenta algumas configurações. O desejo tem assumido, dentre outras formas, uma forma notadamente autocentrada, em que as relações humanas se encontram desinvestidas. A exacerbação do individualismo cresce enquanto as relações humanas fundadas na alteridade esmaecem.

Para Birman (2000) o desejo implica o outro, o descentramento, no entanto, tem tomado o sentido contrário, o autocentramento e a volta para si mesmo. Essa volta nos remete à mis-en-scène, o sujeito em busca da estetização de si mesmo transformada na finalidade crucial de sua existência. A alteridade e a intersubjetividade são modalidades de existência que foram deixadas de lado, o que por conseqüência levou o sujeito ao esvaziamento e ao silêncio. O sujeito vazio e silencioso faz com que o individualismo e as relações sociais descartáveis sejam tratados como naturais nas vidas dos indivíduos. Entretanto, o autor também pontua a existência de outros modos de subjetivação, em que o sujeito se vê em meio a valores totalmente opostos, como valores de interioridade e exterioridade. Essa oposição de valores é um dos fatores que também acabam por levar o sujeito ao esvaziamento, pois implica a perda de limites entre o eu e o outro.

Todos esses acontecimentos e mudanças colocam o homem num estado de desamparo e convergem para uma degradação, cada vez maior, do laço social. Esse processo se manifesta pelo aumento do individualismo, pelo fim das ilusões e pelo crescimento da depressão, que, mais do que uma miséria afetiva, vem se transformando num modo de existência.

Torna-se possível aliar as transformações que ocorrem na construção da subjetividade com o que nos diz a psicanálise, pois esta é também uma teorização da relação do sujeito com o mundo. O que interessa à psicanálise não é só a clínica no sentido do exercício terapêutico, mas também a clínica no sentido da produção do conhecimento acerca do sofrimento manifesto pelo sujeito e que converge para a compreensão da constituição do singular e do coletivo. Nessa perspectiva, nenhum sintoma singular se forma sem uma implicação do coletivo e o sintoma está situado numa zona de interseção entre o mais íntimo do sujeito e o discurso universal no qual ele se inscreve (Fèdida, 1988, 1999, 1998; Birman, 1997, 1999).

A acompanhar essas análises, faz-se necessária uma retomada da psicanálise, pois o inconsciente freudiano é o que nos permite falar de um outro sujeito cindido. Essa perspectiva de sujeito clivado não está relacionada com a concepção moderna de sujeito regido exclusivamente pela razão e pela consciência, explicado biologicamente pela medicina.

 

Psiquiatria, psicofármacos e depressão

A medicina e a psiquiatria como áreas de conhecimento têm, em grande medida, ignorado a dimensão social na qual o homem está inscrito. Alicerçadas no status de ciência produtora de conhecimento sobre o homem, essas áreas fundam discursos em que a subjetividade, historicamente constituída e articulada com o tempo, cai no esquecimento. Preferencialmente, considerase a pontualidade da intervenção, centrada no uso do psicofármaco, como panacéia para o sofrimento humano.

O referencial da psiquiatria está calcado fundamentalmente nas neurociências e na procura, para todas as psicopatologias, de uma causa baseada em disfunções orgânicas ou genéticas. No caso específico da depressão, uma das patologias de maior destaque na atualidade e que está se configurando como um modo de existência do humano, a psiquiatria possui um consenso em relação à sua leitura.

A Classificação Internacional das Doenças da Organização Mundial da Saúde, em sua décima revisão, a CID-10, representa os transtornos do humor, em suas linhas gerais, como um F32 – episódio depressivo. Esse episódio é descrito como associado a três variações consideradas típicas, a leve (F32.0), a moderada (F32.1) e a grave (F32.2 e F33.3). Assim, segundo a classificação normativa da CID-10, o depressivo, na maioria das vezes, apresenta o humor deprimido; perde o prazer e o interesse; tem a energia reduzida e em conseqüência sua atividade diminui e sua fadiga aumenta.

A Associação Psiquiátrica Americana, no DSM-IV, classifica os transtornos depressivos como: 296. xx, considerado um transtorno depressivo maior, que por sua vez é subdividido em um episódio único ou em episódios recorrentes; 300.4, entendido como um transtorno distímico, por sua vez delimitado em função do seu início (que pode ser precoce ou tardio) ou em decorrência da presença ou ausência de aspectos atípicos.

Em complemento a essa descrição, em artigo publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria (Porto, 1999), é possível localizar a idéia de que a depressão concebida como doença apresenta várias formas de classificação a depender da opção normativa adotada. Assim, ela pode se associar ao período histórico ou à referência teórica, por exemplo. Na literatura atual, podemos encontrar a depressão classificada como transtorno depressivo maior, melancolia, distimia. Ainda, ela é classificada como componente de outros quadros nosográficos, integrando o transtorno bipolar dos tipos I e II ou compondo a ciclotimia. A acompanhar essa leitura, é possível verificar que a etiologia da depressão envolveria apenas fatores fisiopatológicos e genéticos.

A análise da etiologia da depressão é uma constante nos trabalhos de autores que adotam a perspectiva apontada acima. Artigo publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria (Lafer; Vallada, 1999) aponta que estudos genéticoepidemiológicos realizados com gêmeos monozigóticos e dizigóticos, com famílias, com adotados confirmam a existência de um componente genético para a depressão. O mesmo artigo menciona outros estudos, relacionados à genética molecular e direcionados a localizar os genes causadores de doenças, que no caso da depressão constataram um fator poligênico ou multifatorial associado ao seu aparecimento e que não há apenas um gene a condicionar o seu surgimento. Também são apresentadas as pesquisas em neuroquímica, uma área que vem recebendo maior destaque nas pesquisas sobre a fisiopatologia da depressão. Essas pesquisas tiveram início a partir do descobrimento do mecanismo de ação dos antidepressivos e visam levantar e testar hipóteses relacionadas aos disfuncionamentos neuroquímicos, ou seja, alterações nos níveis sinápticos de neurotransmissores, como dopamina, adrenalina, noradrenalina e serotonina.

Por último, localizamos pesquisas que utilizam avanços nos métodos de neuroimagem, os quais têm por objetivo verificar alterações neuroanatômicas ou anormalidades cerebrais em pacientes com depressão. Essas pesquisas apontam como resultados alterações volumétricas, metabólicas e de fluxo sangüíneo global e regional nesses pacientes.

Compartilhar essa visão a respeito da depressão, implica deixar para segundo plano as terapias que têm por base a história de vida dos pacientes e a sua subjetividade. Com isso, o discurso psicanalítico é jogado para a periferia, restando classificar as psicopatologias na ordem dos disfuncionamentos orgânicos.

A maioria das pesquisas e dos estudos sobre a depressão desenvolvidos atualmente manifesta a preocupação de verificar qual a freqüência dos transtornos depressivos na população, quais os fatores de risco, como prevenir que casos menores de depressão evoluam para casos maiores (mais graves) e qual antidepressivo usar. Além disso, também se verifica, em relação à saúde pública, o quanto esses procedimentos podem onerar os cofres do governo.

Com relação ao tratamento, as pesquisas giram em torno do mesmo eixo dos psicofármacos, mais especificamente antidepressivos. O termo que já se encontra em uso é “terapia antidepressiva”, que considera fatores como: qual é o melhor antidepressivo a ser usado; o que fazer quando os antidepressivos não surtem o efeito esperado; por que os efeitos colaterais são importantes na escolha dos antidepressivos; os antidepressivos devem ser ou não prescritos indefinidamente; como apressar os seus efeitos.

O uso dos psicofármacos é ainda justificado por outros estudos. O campo dos estudos epidemiológicos mostra que os antidepressivos produzem, em média, uma melhora dos sintomas depressivos de 60% a 70%, no prazo de um mês, em comparação com a taxa do placebo que é em torno de 30% (Souza, 1999).

Outros estudos mostram a eficácia dos antidepressivos mais usados, conforme as classificações farmacológicas. Foram estudadas três classes de antidepressivos, os ADT (Antidepressivos Tricíclicos), os ISRS (Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina) e os IMAO (Inibidores da Monoaminoxidase). Verificou-se que em cada 4,3 pessoas tratadas com antidepressivos tricíclicos a resposta terapêutica foi de 68% enquanto o placebo obteve resposta de 32%; em cada 4,7 pessoas tratadas com os ISRS a resposta terapêutica foi de 65% enquanto no grupo placebo a resposta foi de 35%; com os IMAO a resposta terapêutica para cada 2,9 pessoas tratadas com estes antidepressivos foi de 55%. No final do artigo em que foi publicado o resultado dessa pesquisa, chega-se à conclusão de que a evidência mostra que pacientes com depressão podem se beneficiar com o uso de antidepressivos em curto prazo e a custo relativamente baixo (Lima, 1999).

Conforme pode ser observado, o referencial da psiquiatria calcado nas neurociências procura para todas as psicopatologias uma causa baseada em disfunções orgânicas ou genéticas. No caso da depressão, anteriormente mencionada como uma das patologias de maior destaque da atualidade, a psiquiatria possui um consenso. Por seu turno, a psicanálise utiliza-se de terapias que têm como base a história de vida do sujeito e a construção da subjetividade no tratamento da depressão.

 

A depressão na psicanálise contemporânea

A psicanálise nos fala dos modos de organização psíquica e de como os sintomas são produzidos na interação do psíquico com o social ou do pulsional com o representacional. A descoberta do inconsciente e a criação do conceito de realidade psíquica possibilitaram uma ruptura com a concepção de sujeito da consciência concebida pela modernidade. Ao acompanhar o discurso freudiano, é possível considerar que o mal-estar cultural e singular, gerado pelo aumento dos casos de depressão, reporta-se ao fato do sujeito depressivo confrontar os ideais postos pela modernidade para o funcionamento do sujeito racional e autônomo.

A construção da subjetividade, na obra freudiana, tem como base alguns conceitos fundamentais desenvolvidos por Freud na sua investigação sobre o inconsciente e sobre as pulsões. Dentre eles, os conceitos de narcisismo, ideal de eu, identificação, entre outros. Por conseguinte, a construção do conceito de depressão na obra freudiana encontra-se entrelaçada com a construção desses conceitos-chave da psicanálise, que dizem da constituição do sujeito do desejo. Assim compreendida na obra freudiana, a depressão assume uma dimensão que ultrapassa os limites da patologia clássica para tornar-se parte integrante dos processos constitutivos do sujeito.

A depressão é compreendida e analisada pelos profissionais e pesquisadores da área, a partir de diferentes abordagens. Alguns psicanalistas a consideram como um estado, ressaltando um ou outro dos processos psíquicos que constituem o sujeito. Cintra (1999, 2001) e Peres (1996, 2002) consideram a depressão como um estado relacionado principalmente a uma falha na integridade narcísica. Já Delouya (2000, 2001, 2002), no trabalho que desenvolve acerca da depressão, a vê como parte integrante das dimensões econômica, dinâmica e tópica do aparelho psíquico, bem como associada à pulsão de morte.

De acordo com Fèdida (1999) a depressão, na psicanálise pós-freudiana, não constituiria uma estrutura clínica, como são a neurose, a perversão e a psicose. O autor caracteriza a depressão como um estado se manifestando em qualquer estrutura. Não existiria, por conseguinte, a depressão neurótica, a perversa e a psicótica, haja vista que a depressão seria uma só nas diversas estruturas clínicas.

Esse estado seria caracterizado pela letargia, por um processo que torna mais lenta a percepção sensorial. O fenômeno-alvo psicopatológico visado na letargia e, portanto, na depressão, é mesmo a condição vegetativo-vital que é de caráter inespecífico, segundo a perspectiva da nosologia (Bucher, 1979, in Fèdida, 1999). A partir de uma metáfora, Fèdida (1999) afirma que, nessa condição, a intensidade das cores esmaece, assim como o claro-escuro, dando lugar a uma tonalidade cinza, sem contraste. Os cheiros e as texturas deixam de ser registrados, os sons ficam amortecidos e podem até desaparecer. O processo digestivo fica prejudicado e o corpo passa a ficar pesado com os movimentos corporais lentos. Por fim, o corpo penetra um estado de insensibilização sensorial.

Os estados depressivos teriam sempre, de alguma maneira, origens em experiências traumáticas, como uma perda fundamental que deixou uma ruptura na integridade narcísica. Essa perda poderia significar que alguma perturbação nos contatos afetivos mais precoces deixou sua marca sob a forma de uma impotência para a vida relacional e de fantasia (Cintra, 1999). Assim, encontra-se prejudicada na vida do sujeito sua possibilidade para constituir um mundo de fantasias e sonhos que funcionaria como uma reserva psíquica, apta a protegê-lo contra a excessiva vivacidade das experiências emocionais ligadas à oscilação entre ausência e presença do objeto de amor.

Todo desenvolvimento considerado “normal” segundo Cintra (1999) mantém uma oscilação perpétua entre movimentos de satisfação narcísica, nunca plena e absoluta, e momentos de colapso narcísico, mais ou menos profundos. Posteriormente, à medida que há uma função paterna a operar, a mediação entre os estados de plenitude e de rompimento narcísico pode ser tecida. Entretanto, mesmo quando ocorre a formação desse tecido simbolizador, há sentimento de abandono, desamparo e potencial à depressão.

Nos casos em que a depressão se transforma no modo predominante de defesa contra o acontecer psíquico, pode-se afirmar que o ferimento narcísico polarizou para si próprio toda a energia psíquica possível, na tentativa de elaborar a dolorosa perda de valor. Passa a existir, então, uma fixação do deprimido a uma mesma situação de satisfação, configurando a impossibilidade de substituir uma satisfação específica por alguma outra.

Dessa forma, concentrar a libido no desejo infinito por um encontro irrecuperável, embora essa experiência de satisfação não tenha existido de fato, configura não apenas uma cena traumática, mas a repetição sem fim do trauma. Essa repetição imobiliza o funcionamento psíquico e motor, levando ao desejo de morrer, de isolar-se, de emudecer, de dissolver-se no nada. Nessa cena, o trabalho de recuperar o objeto perdido e a integridade narcísica ocupa todo o espaço e tempo, o que oblitera o prazer de viver, a possibilidade de amar e de se relacionar.

A autora recorre à definição freudiana da identificação primária e utiliza a concepção de que a inabilidade humana para experimentar tristeza e perda está baseada em um nível primitivo de conexão com o próprio mundo de objetos internos. Esta conexão não permite perder alguém sem a correlata perda da porção do ego que está ligada ao objeto e, para evitar tal situação, o deprimido se retira em seu mundo interno, para negar a perda narcísica. Dessa forma, conclui-se que há um elemento narcísico na escolha de objeto que predispõe alguém à depressão.

No seu trabalho sobre a depressão, Delouya (2000, 2001, 2002) a considera como um estado, sem, no entanto, lhe atribuir como função uma delimitação e preservação do psiquismo. Ele frisa que a depressão se relaciona com a economia do aparelho psíquico. Nesse sentido, diz que o resguardo da vida psíquica pela depressão se deve à preponderância do princípio que a rege, da pulsão de morte, mesmo que sempre em relação – ou agindo sobre – à pulsão de vida.

A tristeza depressiva, segundo o autor, aludiria para, ou coincidiria, com a primeira noção, no sujeito, de seu desenlace com o objeto (seio, mãe). Desse modo, o estado de desamparo do início da vida constituiria o protótipo da feição depressiva da psique. Ele se criaria em meio a uma defesa ante a violência das exigências pulsionais e da intrusão do ambiente, sensório e objetal. Além disso, o desamparo seria sentido através da ameaça de desagregação, de decomposição, da morte.

O autor rememora a concepção freudiana ao afirmar a vida psíquica constituída como função de um aparelho representado como uma extensão espacial. Do ponto de vista econômico, a extensão se refere a um espaço, sendo ele um núcleo de energia do narcisismo primário, que é assegurado pelo princípio do nirvana. Nessa linha de raciocínio, menciona que o desamparo é conseqüência de uma perturbação desse estado de nirvana, pois o nascimento implica a exposição da vesícula psíquica de origem aos ataques vindos, de um lado, do mundo sensório e, de outro, daqueles liberados pelas exigências pulsionais.

Dessa forma, a proteção contra essas forças brutas, de um lado, e a assimilação, sempre parcial das mesmas, de outro, em favor de uma complexidade e da construção do futuro sujeito é mediada pelo outro, pelo objeto. Nesse aspecto, segundo o autor, a idéia da depressão perpassa o tema da preservação e do desenvolvimento do psiquismo. Ela revela a função defensiva mantendo “os interesses” dessa partícula diante da efração sensória e pulsional. Portanto, a depressão teria como função dar cobertura, ou seja, compensar a falha do objeto, funcionando na dimensão energética como um freio que desacelera a tendência “natural” à desintegração.

A depressão, para Delouya (2000, 2001, 2002), não figura entre os quadros clínicos clássicos da psicanálise e nunca ocupou um lugar de destaque entre seus temas. No entanto, é possível avaliar que a investigação de Freud acerca da depressão o acompanha desde a última década do século XIX. Desenrola-se ao longo da sua obra com variada intensidade, mas sempre produzindo efeitos. Existem mais de 40 obras de referência, entre artigos, ensaios, conferências, além dos comentários distribuídos em cartas, especialmente nas dirigidas a Fliess, Abraham, Ferenczi e à sua própria esposa Marta (Moreira, 2002).

O trabalho de refletir sobre a depressão, à luz da psicanálise, demanda olhar para o homem em toda a sua complexidade, bem como direcionar esse olhar amplo à construção da subjetividade. O discurso da psiquiatria, ao pensar o homem como capaz de expurgar as paixões e de se constituir de forma exclusiva pela razão, engendra a concepção sobre a depressão como uma doença que o retirou do seu estado natural racional. Esse discurso possibilita e estimula o tratamento dessa doença por meio de psicofármacos, compreendidos como instrumentos capazes de restabelecer a condição natural do humano. Por seu turno, a psicanálise entende a depressão como associada ao funcionamento psíquico. Assim, concebe o terapêutico como escuta do sofrimento orientado à produção de conhecimento sobre as condições singulares e coletivas que agenciaram e mantém o sujeito vinculado a essa forma de funcionamento psíquico.

Na contemporaneidade, convivemos com diferentes concepções de sujeito. Por um lado, num mundo onde se cultua a produção, a atividade e se pretende o fim da depressão, o sujeito da modernidade, centrado, produtivo e ativo, encontrou seu lugar. Por outro, os espaços para um modo de existência do sujeito do desejo ficaram restritos, porém, ainda existem. É tarefa do profissional preocupado com o humano concebido como atravessado pelo pathos e pelo logos pensar sobre esses discursos produtores de subjetividades que sofrem e produzem sofrimento e lhes oferecer um lugar.

 

Referências

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Texto recebido em setembro/2006
aprovado para publicação em novembro/2006.

 

 

*Psicóloga pela Unesp, bolsista da Fapesp. E-mail: cristianedaniel@hotmail.com
**Psicóloga, doutora em Psicologia Clínica pela PUC SP, pós-doutorado no CES - Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, professora no Departamento de Psicologia da UFSC. E-mail: meritidesouza@yahoo.com

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