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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.12 n.20 Belo Horizonte dez. 2006

 

ARTIGOS

 

Entre o desejo e o sofrimento psíquico no trabalho: um estudo de caso com professora de educação infantil*

 

Between wish and psychological suffering at work: a case study of a children’s teacher

 

 

Flávia R. B. M. Bertão**; Francisco HashimotoI,***

IUnesp-Assis (SP)

 

 


RESUMO

Este artigo investiga a articulação entre o desejo e o sofrimento, a partir das relações que se estabelecem entre o trabalho e a subjetividade do indivíduo. O estudo parte de entrevistas semidirigidas com um professor de educação infantil. O conteúdo do relato pôde nos fornecer dados a respeito da vida psíquica e sua provável relação de ambigüidade entre o desejo e o sofrimento, bem como suas manifestações, na relação do sujeito com o trabalho. Discutiu-se como as experiências emocionais infantis são reeditadas no contexto do trabalho e esquadrinham a ressonância simbólica. No estudo concluiu-se que a importância do espaço da palavra no trabalho é condição para desenvolver o pensamento. Juntamente com a ressonância simbólica, o indivíduo pode manter uma articulação entre sua história pessoal e a realização do trabalho, o que possibilita alcançar sofrimento criativo e a superação do sofrimento patológico, sendo estes dois sofrimentos interligados, ambíguos e psicodinâmicos.

Palavras-chave: Inconsciente, Desejo, Sofrimento, Trabalho.


ABSTRACT

This article investigates the link between wish and suffering at work based on the relation that is set between the job and the human subjectivity. The study was built up from semi-directed interviews made to the teacher. The reported answers provided data about psychological life and the probable ambiguity between wish and suffering as well as its manifestations in the relation that the subject sets on his work. It was discussed how infant emotional relations are reedited in the work context and how that scrutinizes the symbolic resonance. In this study it was concluded that the importance of the word at work provides conditions to develop the mind. Joined to the symbolic resonance the subject can sustain a connection between his own personal history and his job performance what makes possible to reach creative suffering and to overcome pathological one in spite of those sufferings are interlinked, ambiguous and psycho-dynamics.

Keywords: The unconscious, Wish, Suffering, Work.


 

 

Inserir-se no trabalho assinala a conquista de uma identidade pela qual é possível adquirir reconhecimento social, passando então o sujeito a pertencer ao mundo da cultura e nele definimos um lugar e uma existência. No esforço de alcançarmos esse espaço e sermos reconhecidos pela nossa produção no olhar do outro, acontece um elevado gasto de energia psíquica para dar conta de despojar-se de desejos e vontades em nome da civilização.

Saldamos para isso um elevado custo emocional, somos forçados a gerenciar sentimentos ambivalentes com relação ao universo profissional pertencente à área da sublimação e parcelas de pulsão que permanecem reivindicando outras formas de satisfações. Este estudo discute a relação de trabalho através da sua subjetividade.

A sublimação é um caminho possível para alcançar as relações de trabalho. Nesse trajeto, a escolha profissional é um momento em que o individuo busca entrar na cultura e no mundo civilizado. Esse ingresso no mundo cultural exige uma parcela de renuncia pulsional, isto é, o individuo tem de abrir mão dos seus desejos e de sua liberdade para poder viver em sociedade em troca de uma suposta segurança e bem estar. Sabendo que o sujeito é um sujeito de sofrimento e desejo, este artigo busca voltar seu olhar para os conflitos, na esfera do trabalho.

 

Sobre o sofrimento e suas origens

Para compreendermos a relação entre o sofrimento psíquico e a vida do trabalhador é necessário observar a subjetividade do adulto e, para alcançarmos essa percepção, não podemos ignorar a história da infância dos indivíduos, como salienta M. Klein (1991, v. III, p. 280-297). Para Dejours (1986), a criança desde cedo tem um primeiro contato com as questões do trabalho, com as experiências e sofrimento dos pais nessa esfera. Essas situações geram angústias que não podem ser compreendidas e, portanto, sanadas pela criança e mais tarde, na vida adulta, acabam ressurgindo.

O sujeito pode ser definido como um conjunto de vivências afetivas nas várias situações da vida, suas relações familiares, sociais e no trabalho. Sujeito é, portanto, aquele que entra em contato com o mundo, registra suas experiências emocionais e afetivas vivenciadas desde o nascimento, ao longo de sua existência. Essas experiências englobam as situações de frustração sentidas pela falta, isto, é as ausências e desprazeres impostos pelo mundo tanto familiar como social sensações e vivências de prazer, acolhimento, contenção afetiva, que estão presentes desde os primeiros dias de vida do bebê até a vida adulta. São essas situações experimentadas, principalmente na infância, que vão determinar a história de vida do sujeito e sua singularidade.

As vivências afetivas têm grande importância no crescimento emocional, na formação do pensamento e, conseqüentemente, na estruturação egóica do indivíduo, porque a oportunidade de ter pais com a capacidade de compreender as necessidades da criança e ajudá-la a suportar as angústias iniciais impostas pela realidade externa e pelos seus medos e fantasias do seu mundo psíquico, através da capacidade de “rêverie”. Tal capacidade é a condição emocional necessária para conter, compreender e acolher as angústias da criança e ser capaz de lhe dar a sensação de segurança necessária para suportar as angústias e fantasias iniciais de desproteção naturais do nascimento, quando o bebê defronta-se com um mundo ameaçador e desconhecido, tendo que ser apresentado a este novo mundo de forma gradual, pode ajudar a amenizar características constitucionais do bebê, como a inveja e a agressividade, e ampliar a capacidade de suportar a frustração e de amar.

Pesquisas sobre o psiquismo humano evidenciam a importância das relações dos pais com seus bebês para um desenvolvimento saudável do indivíduo. As relações de apoio, cuidados e afetos no início da vida favorecem o desabrochar das qualidades inatas do indivíduo. Porém se as relações primitivas forem escassas ou não corresponderem às necessidades do bebê, poderão acarretar sérios prejuízos à sua saúde. (Zavaschi, 2001, p. 45)

Um meio ambiente pouco propício à afetividade e compreensão das necessidades psíquicas e físicas, que não tenha capacidade de contenção dos pais, ou de figuras cuidadoras, pode gerar incapacidade na criança – e no futuro adulto – de suportar frustrações que, conseqüentemente interferirão na capacidade de contato do indivíduo com o mundo externo. Essa relação de cuidado é que dá à criança a capacidade de suportar suas angústias iniciais, portanto, de projetar menos suas características ruins e assim não as sentir como tão ameaçadoras, e também é responsável pela estruturação do ego do bebê que o acompanhará para o resto de sua vida.

Quando o indivíduo não se sente ameaçado por suas angústias interiores, ele não precisa lançar mão de tantos mecanismos projetivos e, dessa forma, pode manter um ego mais íntegro, cheio de conteúdos, onde os aspectos bons e ruins podem conviver, sem precisar se esvaziar. Se durante esse período precoce de vida, o bebê ou criança for acolhido e compreendido no sentido de ter sua angústia amenizada a partir dessas experiências, torna-se possível estabelecer uma maior relação de confiança com o mundo. Queremos enfatizar que esses cuidados são responsáveis por desenvolver no indivíduo a confiança e a segurança com relação aos seus pais, que podem protegê-lo das ameaças do mundo externo e também das ameaças do mundo interno

Podemos inferir que o meio familiar e as experiências vivenciadas neste contexto são muito significativas para a constituição do sujeito. São responsáveis pela forma como ele poderá discriminar entre o seu mundo interno e o seu mundo externo, bem como a maneira como se relacionará com os prazeres e sofrimentos impostos pela vida. Conforme afirma Dejours, “a afetividade é o modo pelo qual o próprio corpo vivência seu contato com o mundo. A afetividade está na base da subjetividade” (1999).

Estamos considerando a singularidade do sujeito, cuja história de vida é constituída pelas experiências de prazer e desprazer, privações e a forma como o sofrimento pode manifestar-se em sua relação psíquica com o trabalho ao longo de sua vida adulta. Desse modo, o estado de normalidade psíquica do indivíduo pode ser considerado como o frágil equilíbrio no qual se relacionam dinamicamente as situações de constrangimentos vivenciados no trabalho, com suas características patogênicas e as defesas psíquicas utilizadas para suportar esse conflito.

Os fatores constitucionais, a história de vida, as experiências positivas e negativas, a vivência familiar, determinarão como a pessoa vai se desenvolver emocionalmente e como seu ego se estruturará, podendo manter um maior ou menor contato com a realidade externa e discriminar entre o seu mundo externo e interno na luta defensiva contra o desprazer.

Freud (1996, v. XXI, p. 73-148), em artigo de 1920, considera que o bebê com o seu ego primitivo deve enfrentar sensações de desprazer em situações de sofrimento desde o momento em que se confronta com o “exterior” estranho e ameaçador. Desde o princípio, o mundo externo é sentido como amedrontador, dono de forças esmagadoras.

A sociedade é apontada como outra fonte de sofrimento, forçando ao homem regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos, tentando controlar os instintos através de sua renúncia.

O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. (Freud, 1988, v. XXI, p. 85)

Assim, para Freud, o homem precisa viver sob a pressão exercida por estas três direções de sofrimento, que restringem as possibilidades de felicidade.

O processo civilizatório tenta regular as relações sociais e estabelecer “deveres” em oposição à liberdade do indivíduo. Os membros da comunidade ficam com suas possibilidades de satisfação restritas às normas e imposições que regulam os valores, as leis e a moral social. Surge, da oposição entre a restrição da liberdade pulsional e o sempre presente desejo pela liberdade, o conflito entre desejo e restrição, de onde resulta o sofrimento psíquico.

O processo civilizatório implica em renúncia pulsional, tanto erótica quanto agressiva, sendo necessário, para ela, reprimir ou suprimir.

A abdicação a uma parcela das pulsões acontece por medo da autoridade externa, que foi internalizada desde a infância por meio da instância psíquica denominada superego. Toda renúncia que não encontrou outra forma de vazão através da sublimação, traz um sofrimento que muitas vezes se manifesta em sintomas.

Esse desconforto pode ser sentido no corpo, na parte somática, mas de fato é uma dor psíquica, decorrente dos problemas vivenciados nas relações com objetos totais. As situações do cotidiano oferecem incertezas com relação às demandas sociais, culturais e nos relacionamentos do cotidiano. Diante dessas exigências, o indivíduo oscila em seus estados mentais, dentro das suas possibilidades emocionais, para lidar, administrar ou fugir das angústias que são evocadas nestas situações.

A civilização impõe restrições à liberdade do desejo pulsional, ocasionando uma modificação na sua vontade original de plena satisfação de desejos. Tais modificações tornam possíveis as atividades científicas, artísticas e laborais.

A partir da necessidade de conter os impulsos instintivos, o indivíduo busca formas de conviver e de se relacionar com o mundo real, por meio do processo de sublimação, responsável pelo deslocamento da libido de sua finalidade sexual. A libido é direcionada a um novo objetivo socialmente valorizado.

Na tentativa de evitar o desprazer e afastar o sofrimento advindo das frustrações causadas pelo mundo externo, o psiquismo investe, por meio da sublimação, no trabalho. Esse processo não é totalmente eficiente e não consegue eliminar por completo o desprazer, dando conta de desfazer-se de apenas de uma parte, que é transformada em produção laborativa, através da qual a pessoa busca reconhecimento social e familiar para que se configure uma identidade pessoal. As pulsões podem ser temporariamente satisfeitas e o mecanismo de sublimação acontece na luta psíquica de contenção dos impulsos instintivos.

O trabalho pode ser uma forma de obter satisfação, quando permite que o indivíduo mantenha sua história pessoal articulada com a realidade social. Mas o trabalho não elimina por completo os sofrimentos advindos da inserção no mundo civilizado.

Para Dejours (1996), a criança é sensível ao sofrimento psíquico dos pais com relação à realização da sua vida profissional, podendo confundir-se e fundir a experiência da percepção dessas angústias e ansiedades e registrá-las como suas. Dessa vivência, a criança pode carregar a idéia de que o mundo externo é ameaçador e em especial a vida de trabalho. Essas impressões poderão ser reencontradas junto às futuras situações de conflitos na esfera da realização profissional. Neste momento, buscamos encontrar a possibilidade de aproximar as questões herdadas do passado singular de cada indivíduo, com as situações atuais no meio profissional, através da transferência.

As relações de convívio da criança com seus genitores, durante seu desenvolvimento, produzem impressões emocionais de como lidar com as experiências, as exigências da vida. Um contato afetivo e seguro podem resultar numa maior condição egóica, enquanto um contato com pais angustiados, inseguros e sofredores até mesmo por sua vivência insatisfatória de trabalho, pode dar origem à uma forma conflitiva de relação profissional. As interações entre pais e filhos são mescladas por sentimentos ambivalentes de amor e ódio, admiração e rivalidade, que vão determinar, junto com as experiências de vida somada à carga genética da criança, as futuras formas de relacionar-se com o mundo externo.

As experiências da vida infantil, as emoções, as ansiedades, os medos, os aborrecimentos e os vínculos afetivos, que foram se estabelecendo e determinaram a segurança e a forma como o sujeito vai conseguir se relacionar com as frustrações apresentadas pela vida, compõem o registro diacrônico, que ressurge transferencialmente e influencia dinamicamente na formação e na forma do registro sincrônico. Acontece na relação do sujeito com o trabalho o encontro entre a história singular da pessoa, seu passado, sua memória, como o contexto material, social e histórico das relações de trabalho (registro sincrônico) e a conjuntura desses dois registros: o registro imaginário (produzido pelo sujeito) e o registro da realidade (produzido pela situação de trabalho).

Ao observarmos esses aspectos, seu entrelaçamento e funcionamento dinâmico, torna-se possível entender melhor a relação psíquica do indivíduo com a relação do trabalho, ou seja, compreender como surge o sofrimento que atravessa essa relação. Dejours (1996) assinala dois tipos de sofrimentos produzidos no encontro do sujeito com o trabalho: o criativo e o patogênico.

Nas relações de trabalho é possível o encontro entre a história singular do indivíduo, formada pelas vivências infantis no meio familiar, há possibilidade de realizar no trabalho a continuidade da curiosidade infantil, marcada pela epistemofilia, na busca de suas questões internas, esse espaço de busca encontra vazão através da ressonância simbólica que permite a articulação com o trabalho, o indivíduo sua singularidade e ao mesmo tempo em harmonia com a realidade social. Portanto, “pela intermediação do trabalho, o sujeito engaja-se nas relações sociais, para onde ele transfere as questões herdadas de seu passado e de sua história afetiva” (Dejours, 1996).

O sofrimento patogênico ocorre pela impossibilidade do indivíduo estabelecer no seu trabalho a ressonância simbólica, não encontrando um espaço de palavra (espaço público) para expressar suas questões internas.

A organização do trabalho, por suas exigências e distanciamento entre o trabalho prescrito e o trabalho real, acaba provocando uma cisão entre a mente e o corpo. O indivíduo deixa de investir afetivamente no seu trabalho e, como mecanismo defensivo, paralisa o pensamento através da repressão pulsional.

Esse trabalhador fica impedido de fantasiar e essa impossibilidade interfere na sua proximidade com outras pessoas, podendo gerar um distanciamento, pessoal e profissional. Esse processo também pode conduzir o trabalhador à doenças psicossomáticas, devido ao ritmo acelerado do trabalho que se estabelece para afastar o pensamento e a percepção do sofrimento. O relacionamento familiar também sofre danos, já que o indivíduo tende a se isolar e ter uma postura individualista.

O sujeito, diante das pessoas na organização do trabalho, para suportar o sofrimento e continuar exercendo seu trabalho, se vê obrigado a burlar regras estabelecidas, criando uma lacuna entre o trabalho real e o trabalho prescrito. Essa situação ainda coloca o trabalhador no lugar do segredo, uma vez que, para conseguir trabalhar, põe em sigilo a sua maneira de atuar. Dejours (1996) propõe a criação de um espaço público (espaço da palavra), para que os indivíduos tenham dentro da organização a possibilidade de participar da concepção de seu trabalho como forma de preencher, significar criativamente a lacuna entre o trabalho prescrito e o real, aproximando-se do sofrimento criativo.

A transformação do sofrimento em criatividade está, portanto, implicada na articulação entre a ressonância simbólica e o espaço público.

Se a realização da sublimação não é garantia absoluta de saúde mental e física, as condições organizacionais propícias à criatividade têm, em todo o caso, para o sujeito, o interesse de fazer de seu trabalho um teatro de luta para negociar seu sofrimento e conquistar sua identidade. Se o trabalho faz, de fato, ressaltar seu sofrimento, ele lhe promete, em troca, um prazer que poderia jogar, em favor de seu equilíbrio psíquico e de sua saúde mental. (Dejours, 1996, p. 172)

Para que a ressonância simbólica ocorra são necessárias três condições: a primeira delas se refere a escolha da profissão, que depende do sujeito, seu registro imaginário, sua história familiar, seus vínculos afetivos. A procura pela independência dos pais e pela entrada no mundo do trabalho vai guiar sua busca profissional. A segunda, diz respeito a atividade de concepção da tarefa. Isso significa que o indivíduo tem de gerir uma lacuna que se encontra entre a organização prescrita do trabalho e a organização real do trabalho. A terceira condição submete o indivíduo a buscar o julgamento de um outro. Essa apreciação de outra pessoa traz reconhecimento à produção e à criatividade do indivíduo e lhe confere identidade e reconhecimento social como recompensa pela sublimação de uma parte da pulsão, trazendo junto a possibilidade de saúde mental.

Por meio da ressonância simbólica é possível transformar o sofrimento patológico em sofrimento criativo.

 

Sobre o desejo

O trabalho não é só sofrimento, porque se constitui no desejo do sujeito. De acordo com Laplanche e Pontalis (1997, p. 114), o desejo apresenta-se ligado às vivências de satisfações realizadas num primeiro momento da vida infantil. Quando o bebê experimenta as sensações de fome, frio e angústias, essas vivências são percebidas como desprazerosas. No momento em que um adulto pode entender a criança adequadamente e saciar-lhe a fome, aquecê-la ou embalá-la aliviando seu mal estar, ela poderá sentir conforto com a eliminação da fonte de tensão e registrar, através de traços mnésicos, a obtenção de satisfação. Num outro momento, quando o desconforto gerado pela situação de falta reaparecer, o movimento pulsional é capaz de reinvestir a imagem mnêmica da percepção do objeto, reproduzindo a situação de satisfação original. Desta forma, restabelece a situação da primeira satisfação: a essa moção é que chamamos desejo, o reaparecimento da percepção e a realização.

O desejo, na concepção freudiana, está ligado aos desejos inconscientes das vivências infantis que, estarão sempre presentes na vida do adulto, não se repetindo da mesma maneira, mas em reedições. Esses conteúdos retornam porque a satisfação não pode ser completa, apenas parcial, mas esse retorno não é o do “mesmo”, trata-se do retorno do diferente, uma nova produção do desejo.

Chanlat (1992) entende o indivíduo como um ser de desejo, pulsão e relação, que se constitui através do contato com o outro, nas interações entre o que é interno e o que é do mundo externo. Através das relações de transferência, introjeção, projeção e identificação, desde o nascimento do bebê, em suas primeiras interações com a família, e durante todo o desenvolvimento da infância até a vida adulta, o ser humano estabelece uma troca com o outro, onde perpassam afetos e hostilidades, mas também acontece a busca para reconhecer seu desejo e sua existência nessas relações. Conforme (Chanlat 1996), “a constituição de todo o ser humano, enquanto sujeito, passa por esta relação polimorfa com o outro. É através dele que se constitui, se reconhece, sente prazer e sofrimento. Satisfaz ou não seus desejos e suas pulsões”.

No desejo de ser desejada, a criança assume para si a tarefa de levar para a vida adulta a realização dos projetos familiares e as expectativas que foram criadas inconscientemente pra ela. É no seio da família que a criança retira suas expectativas, valores e afetos, é com essa bagagem que aprende a se relacionar no mundo, com as pessoas e com o trabalho. Também é essa carga que a acompanha da infância à vida adulta, e com ela o indivíduo precisa se encontrar e conferir sentido para dar continuidade aos seus projetos, que na verdade pertencem ao sujeito e as suas experiências afetivas, sendo tais projetos de posse da pessoa e de uma rede de outras pessoas que o constituíram. É no desejo dos pais que a criança encontra a energia necessária para fundar o seu desejo.

Uma das características do desejo é a indestrutibilidade, assim com o inconsciente, o desejo também é atemporal. Todo desejo permanece e luta pela sua realização durante toda a vida do individuo e são os desejos infantis que produzem permanentemente os seus conteúdos. O objeto do desejo é um objeto perdido, ausente, que se presentifica como falta de um prazer que já foi experimentado e que continua procurando ser realizado através de substitutos ao longo da vida.

Em Freud (apud Mezan, 1998, p. 92) o desejo é o impulso para encontrar uma satisfação perdida e o sonho é o modo infantil de conseguir alcançar essa satisfação, determinada por sua origem inconsciente.

Supomos que a busca de satisfação ocorra permanentemente na vida do indivíduo, da infância à velhice; assim, também nas relações de trabalho, onde o sujeito busca inserir-se no mundo cultural e conviver com outras pessoas torna-se lugar do encontro entre o desejo e a angústia. Isto é, a busca pela vivência de satisfação e o sofrimento. O sujeito em questão é o sujeito de desejo e sofrimento.

 

Metodologia

Escolhemos o método psicanalítico, por entendermos que ele possibilita observar os fenômenos psíquicos inconscientes, a ambigüidade de sentimentos e a dualidade pulsional de onde provém o sofrimento e o desejo presentes na vida do indivíduo, responsável pela forma como a pessoa estabelece suas relações familiares, sociais, afetivas, como interage com o universo do trabalho e suas representações.

Por meio dos instrumentos oferecidos pela psicanálise, isto é, da associação livre e dos fenômenos da transferência, contra-transferência, resistência e do processo de interpretação e construção, podemos nos aproximar dos conflitos psíquicos.

Buscamos compreender o dinamismo psíquico, enfocando a relação ambivalente entre desejo e sofrimento psíquico em sua relação com o trabalho. Para tanto, o trabalho interpretativo resultará na descoberta do conteúdo latente na fala do sujeito, revelando sua subjetividade. Assemelha-se a elaboração de um sonho, quando vários elementos são utilizados para se formular uma idéia que era desconhecida.

Para alcançar a compreensão da constituição do sujeito, seus desejos e conflitos, nos guiamos durante as entrevistas buscando dados sobre a história pessoal, relacionamento familiar, o entrelaçamento do passado do sujeito com a história de trabalho dos pais, a vida afetiva, os valores, a escolha profissional, a busca de identidade no reconhecimento do seu trabalho, o sofrimento advindo do trabalho e o desejo, dados sobre como o sujeito percebe/compreende a sua relação com o trabalho e as manifestações das angústias, ansiedades e satisfações relacionadas à situações laborativas.

Sua história presente nos conta a respeito de suas reedições infantis, seus desejos e identificações, permitindo a nossa aproximação do dinamismo psíquico e sua relação na esfera do trabalho.

Permitimos que o sujeito falasse sobre si e de suas relações. Criamos então um espaço de escuta através da atenção flutuante, não privilegiamos nenhum material, e esperamos para ver o que emergia. Procuramos entender de que forma o conteúdo latente apareceu no meio do material manifesto apresentado pelo sujeito e sua significação, através das conexões existentes entre um assunto e outro.

O método psicanalítico não é privilégio da psicoterapia, como discute Silva (1993, p. 20.) na pesquisa em psicanálise ao referir-se ao trabalho de Freud.

Esse método ele o empregou muito À vontade fora do setting e mesmo quando estava em jogo não uma pessoa, mas um produto humano. Assim, ele analisou quadros, esculturas, livros, mitos, peças teatrais, instituições, etc. Assim, ele analisou seus próprios sonhos, lapsos e dados biográficos. (Silva, 1993, p. 20)

Efetuamos uma análise dos relatos utilizando o referencial teórico psicanalítico, com base nos seguintes autores: Freud (1920), Klein (1991), Pellegrino (1987) e Dejours (1996), com o intuito de desvelar os significados dos conteúdos latentes, por meio de fragmentos, lembranças, sonhos e atos falhos, que são trazidos pelo sujeito em suas falas e vão compondo um cenário cheio de significações, dando contorno à história emocional dessas pessoas. Por meio da escuta investigativa, que possibilita a decodificação do que o sujeito traz, para o entendimento dentro do referencial teórico e da relação transferencial estabelecida entre o par sujeito e pesquisador, tornou-se possível compreender a respeito da subjetividade do sujeito.

Tentamos compreender o momento presente de sua vida, seus relacionamentos pessoais, familiares e sua relação com o trabalho; mas o entendimento destes elementos só foi acessível ao olharmos atentamente para a história dessa pessoa e de suas lembranças, que são constituídas dos registros emocionais de experiências vividas desde a infância.

Na análise, assim como na pesquisa, é preciso deixar fluir a capacidade de escuta daquele que se propõe compreender o que se passa na vida psíquica. Na psicanálise tudo o que é humano traz junto de si a marca do inconsciente.

O que é latente só é perceptível àquele que exercita a atenção flutuante. O escutar sem privilegiar um dado assunto do discurso, evitando focalizar certos aspectos como preconceitos, pressupostos teóricos e tendências pessoais, deixar surgir sem a preocupação de compreender todo o significado de uma vez. O psicanalista deixa de ser aquele que sabe antecipadamente para assumir a posição daquele que escuta, deixando que a fala do sujeito percorra os caminhos associativos do inconsciente (Laplanche; Pontalis, 1997, p. 247). Esse jeito de ouvir permite ao analista descobrir as conexões inconscientes no discurso do sujeito. O equivalente à atenção flutuante no analista é, no paciente, a associação livre, considerada a regra fundamental da psicanálise.

Freud nos ensinou que o racional mergulha no emocional, que a inteligência também é governada pelas paixões, que o conteúdo manifesto de uma idéia se ancora numa complexa rede de desejos e pensamentos latentes. (Mezan, 2000, p. 54)

No inconsciente inexiste o tempo e os opostos coincidem, o pensamento funciona pelo processo primário, com mecanismos de deslocamento, condensação e simbolismo, como nos sonhos, podendo surgir e ser desvelado por meio da associação livre e da interpretação, que são instrumentos imprescindíveis na realização da análise, assim como na pesquisa.

Como trabalho interpretativo, o analista pode trazer à consciência do paciente as vivências transferenciais dos seus primeiros objetos infantis, criando a possibilidade de colocá-lo frente ao desconhecido. Aquilo que move o presente, mas cuja origem está no passado, ao tomar ciência dos nós emocionais, surge a possibilidade de re-significar os registros de experiência afetiva, gerando um novo olhar sobre si e conseqüentemente sobre as relações externas.

Existem tanto nos sintomas quanto nos sonhos, aspectos manifestos e latentes ou reprimidos, estes fora da consciência. Sendo que as associações livres permitem correlacionar os dois elementos. Sendo que tudo se passa na relação com o analista através da transferência. (Pavan, 2001, p. 81)

As questões internas só são observáveis a partir da externalização do que ocorre no mundo psíquico. Dizendo de outro modo, o conteúdo latente tem de se manifestar. Escutar e observar como é a relação que o paciente desenvolve com os objetos externos, projeções e introjeções, conta como é estabelecida a dinâmica de funcionamento psíquico do indivíduo, por meio da transferência. A forma como o analista reage a essas questões do paciente e os sentimentos despertados pelo paciente no analista, foram denominados por Freud de contratransferência. Esse fenômeno ajuda o analista a compreender os conflitos existentes que o paciente não consegue verbalizar (Pavan, 2001).

Ouvir e interpretar o discurso do sujeito exige a capacidade de decodificação do pensamento, uma escuta atenta e acolhedora que possa suportar as angústias transferências que porventura surjam durante os contatos. Isso significa estar vinculado à situação e à pessoa que ali se presta a falar sobre si, deixando que surja para só depois tomar em consideração

Este material constitui-se de um estudo de caso de um professor da educação infantil, sobre as vivências dele na infância com o trabalho dos genitores, sua escolha profissional, seu contato com o trabalho e o sofrimento psicopatológico e criativo. O material foi obtido por meio de entrevistas semidirigidas. Utilizamos nome fictício para o sujeito com o objetivo de preservar sua identidade.

 

Discussão

Clara, 45 anos de idade, formada em pedagogia, casada há 25 anos, tem uma filha adulta, trabalha com educação infantil há 16 anos na mesma escola, iniciou o trabalho na educação infantil como auxiliar de classe de jardim (permaneceu por cinco anos) e depois assumiu uma sala como professora de educação infantil.

Clara conta as suas dificuldades de relacionamento e comunicação com a mãe durante a infância e como essas dificuldades se fizeram presentes durante toda a adolescência e ainda permaneceram atuantes e foram reeditadas na vida adulta, profissional e pessoal.

A mãe foi uma pessoa muito reservada e deixou o registro da ausência, enquanto o pai foi muito presente em sua vida, deixando importantes lembranças afetivas. O nascimento da filha promove transformações em Clara, na esfera profissional e pessoal. Impulsiona a necessidade de buscar a resolução de conflitos infantis no teatro do trabalho, por meio da compulsão à repetição. Conta ainda sobre seu transtorno depressivo, como esse episódio a mobilizou a procurar terapia e com pode repensar a própria história de vida.

 

A infância e o trabalho dos pais

As pessoas carregam para a vida adulta a lembrança de como seus pais se relacionavam com o trabalho e como essa relação interferia na vida familiar. Recordam-se da presença ou ausência dos pais, da competência ou receio em assumir as responsabilidades advindas da vida adulta. Essas lembranças são novamente encontradas na vida da pessoa, em diversas esferas, na familiar, na social e na vida profissional. Como é sabido, muitas vezes o adulto não traz uma clara relação entre o presente e o passado, entre as angústias e os projetos de vida. No decorrer das entrevistas, essas relações vão se mostrando através de reedições desses registros com a subjetividade do indivíduo, é o retorno de impressões do passado associadas às situações do presente, é o retorno do diferente.

Aspectos dos genitores, suas angústias, conflitos e desejos são reeditados, às vezes, numa repetição sem percepção dos seus significados e, às vezes, na tentativa de resolvê-los como se fossem apenas seus.

Clara conta que o pai sempre foi “um amigão”, presente com os filhos e nunca o viu reclamar do seu trabalho e nem de nada da vida, essa lembrança a incomoda trazendo sofrimento, porque não confere com sua percepção; Clara percebia uma vida com algumas dificuldades entre o relacionamento do pai e da mãe e também acha que o pai não reclamava dos problemas da vida e do trabalho, por não se permitir.

A mãe era percebida como uma pessoa muito reservada, que não conversava. Clara lembra-se que passou a infância perto da mãe, mas não se recorda de nenhuma situação, era como estar “junto, mas só”. Não consegue se lembrar de muitas coisas da infância apenas de um sentimento de solidão, e de uma dor quando toca nesse assunto.

Clara traz o registro do sofrimento paterno que não tem voz, apenas sentimento. Também carrega a dificuldade de se comunicar com a mãe, as emoções não adquirem significados e nem espaço para a fala, a relação com a mãe é precária afetivamente e não deixa recordações calorosas, apenas um sentimento de dor e ausência.

O pai é percebido como a figura de vinculo afetivo, que pode dar continência emocional para a filha. Nessa relação, Clara vivencia acolhimento afetivo que dará base ao desejo de acolher, cuidar e de ser professora.

 

A escolha da profissão

A escolha da profissão não acontece por acaso. Como todas outras escolhas em nossa vida, é resultante de determinações inconscientes, constituídas de todas as experiências vivenciadas desde a mais tenra infância no meio familiar até o momento da escolha na adolescência.

Com o ingresso na vida profissional, firma-se o pacto social, por meio do trabalho. Quando ocorre a aceitação do princípio de realidade e renúncia ao princípio do prazer, o indivíduo insere-se no tecido social, aceitando a lei. Esse pacto social é antecedido pelo pacto com a lei do pai, que veda o incesto, já preparando o sujeito para a aceitação da cultura. Devendo arcar com direitos e deveres no pacto social, o homem oferece seu trabalho em troca, esperando ser reconhecido socialmente. Pelo reconhecimento do outro, busca sua identidade.

A escolha profissional, necessária para o ingresso no mundo laborativo, é entrelaçada pelas expectativas familiares, a história de vida dos genitores que, de uma forma ou de outra, buscam em seus filhos realizar seus próprios desejos inconscientes. A escolha passa ainda pelos registros emocionais que os filhos trazem de sua infância, da forma como perceberam a relação dos pais com o trabalho e o envolvimento familiar. Nota-se que o passado está sujeito a retornar nas reedições do filho. É o retorno do diferente, porque vem acrescido das impressões e fantasias vivenciadas na relação com o outro.

Clara conta que escolheu trabalhar com crianças na educação infantil, depois do nascimento de sua filha. Sentia-se incapacitada para cuidar de uma criança, mas tinha o desejo de aprender e assumir a própria filha. Clara não queria delegar essa tarefa a mais ninguém. A partir dessa necessidade foi fazer cursos e achou que o magistério seria uma boa opção. Sua escolha profissional foi dirigida por sentimentos inconscientes da sua relação com a mãe e pelo medo de ser incapaz de cuidar da própria filha, por não ter formado vínculos afetivos com a sua mãe, isto significa dizer que Clara não foi autorizada pela mãe a viver a maternidade.

O bom vínculo afetivo com o pai foi importante no desejo de superar o medo e cuidar da filha, assim como cuidar de outras crianças da educação infantil. Encontramos aqui reeditados na escolha do trabalho os conflitos do vinculo mãe-filha.

 

O contato com o trabalho

Buscamos compreender como se estabelece a relação do sujeito, sua subjetividade no contato com a atividade laborativa, permeado pelos desejos que passam por modificações em sua finalidade e para adequarem-se ao mundo social, tendo como uma das formas possíveis a sublimação, que auxilia na tentativa de aliviar a angústia gerada pelos desejos, embora sua eficácia não seja completa. A maneira como a pessoa se relaciona com as situações de trabalho, com as outras pessoas que a acompanham e com a instituição de trabalho parece depender de fatores externos referentes às exigências sociais e às características da instituição, juntamente com as características do indivíduo. O contato com o mundo externo é também direcionado a partir das vivências internas, das relações que se estabeleceram com seus objetos internos.

Clara trabalhou primeiro em creche e depois como auxiliar de classe e por fim na educação infantil. Aprendeu a gostar desse trabalho com o dia a dia, e então cursou Pedagogia. Sua escolha profissional foi direcionada por uma necessidade inconsciente. Cercada pelo medo no cotidiano, o trabalho foi vivido durante anos com sofrimento.

 

O sofrimento psíquico

O sofrimento no trabalho é articulação constante entre o sofrimento singular, herdado da história pessoal e familiar (dimensão diacrônica), e entre o sofrimento relativo, a situação atual de trabalho a (dimensão sincrônica). O sofrimento entrecruza a vivência na relação de trabalho dentro da instituição e fora dela, no ambiente social e familiar. Então, o passado da infância é reeditado no espaço atual da vida adulta. Os processos inconscientes são atemporais e permanecem intensos, à procura de significações.

É nesse inter-relacionamento que buscamos as manifestações do sofrimento patológico e criativo. Falar sobre seu presente na relação de trabalho e falar sobre o passado, as lembranças de infância trouxeram mobilizações e reflexões sobre como as escolhas ocorrem durante a vida e que aparentemente são aleatórias, mas, na verdade, são definidas por questões internas das singularidades de cada um. Pensar sobre a própria história traz a dor de perceber a falta e a necessidade de conhecer sobre si, mas traz também a possibilidade de ressignificar escolhas, suportar o processo de pensamento.

O sofrimento psíquico está ligado ao desconhecimento de si, de sua história, seus desejos e fantasias inconscientes, que por essa característica manifestam-se sob a forma de sintomas. Quando o sujeito encontra sua história reimpressa na atualidade consegue significar o que até então era desconhecido. Utilizando o conceito freudiano de “construção” e entendendo as lacunas deixadas no curso de seu desenvolvimento, cria-se a possibilidade de alcançar o sofrimento criativo, aquela dimensão do sofrimento que traz movimento e criatividade à vida profissional.

Clara cria um vínculo de dependência com alunos e outros funcionários, tentando proteger a todos de qualquer possibilidade de sofrimento, acabava adotando uma responsabilidade que não lhe pertencia. Mesmo acolhendo e fazendo o papel de mãe, restava a angústia que não tinha significação, portanto não podia ser elaborada.

Eu acho que eu buscava minha infância na infância das outras crianças... Então, eu sentia que eu tinha que dar conta de tudo... tudo que fosse possível e impossível pra fazer aquela criança feliz... eu tinha que ser perfeita pra que ela se sentisse bem, tivesse uma infância maravilhosa.

A busca pela própria infância determinou a escolha profissional, de modo inconsciente na época. Clara pôde conhecer melhor seus conflitos após ter iniciado a psicoterapia, sua busca inicial foi causada por um transtorno de pânico e depressão. A falta de compreensão e sentido dos seus sentimentos de ambigüidade com relação a mãe e o sentimento de despreparo para cuidar da filha, a levam para um sofrimento onde a angustia transformava-se em somatizações.

A voz das emoções era silenciada pelas dores físicas. O trabalho passava a ser a maior fonte de sofrimento. Clara, para exercer a função de professora, “misturava-se” com os papéis de mãe ausente, mas protetora, e de filha carente. Era com este olhar que acabava cuidando dos alunos de sua sala. Para conter o choro e a angústia dos pequenos era necessário um grande esforço emocional. Assumia para si a responsabilidade de ser perfeita com as crianças.

 

Do espaço de palavra ao espaço público

No espaço de palavra pode emergir a compreensão dos encontros entre as pessoas, da significação das características individuais, do entrosamento e do conhecimento sobre o trabalho real que permaneciam encobertos pelas defesas contra o sofrimento. Nesse espaço torna-se possível que as pessoas se reconheçam e sintam-se pertencentes a um grupo, através da palavra, da transparência sobre como o professor trabalha e como se sente durante as situações e vivências. Confere sentido às inquietações psíquicas, desvela o motivo secreto dos sintomas, torna claro o que até então era escondido, cria a possibilidade de construir novas relações, ressignifica emoções e confere um estado de proximidade diferente do individualismo. Aproxima as pessoas, diminuindo as defesas, o espaço de palavra é integrativo do ego e das relações de objetos.

Clara, durante anos de trabalho, não conseguia se posicionar profissionalmente diante da direção da escola e de seus colegas de trabalho. Sempre chorava e sentia-se magoada, ficava impossibilitada de falar. Notamos que os sentimentos ambíguos com relação a mãe eram reeditados na figura da autoridade da diretora por meio da transferência. Novamente aqui percebemos a história pessoal tentando buscar elaboração de um conflito através da repetição no trabalho. Ao longo dos anos Clara cria um bom vínculo de trabalho com as outras professoras, nesse meio desenvolve-se uma relação de amizade onde podem falar sobre suas angústias e seu trabalho, sua vida pessoal conferindo totalidade às pessoas. Esse espaço de palavra amplia-se entre as relações professorprofessor, professor-direção, professor-aluno, professor-pai, favorecendo os vínculos afetivos e estabelecendo confiança.

Clara salienta como as amizades puderam expandir-se para o plano pessoal e consideração e amizade pelas outras professoras e desta forma, as tem como pessoas da família. Essa proximidade confere identidade profissional e pessoal.

 

O sofrimento patogênico e o criativo

O sofrimento está presente em todas as esferas da vida humana, desde o nascimento até o momento da morte. No trabalho, observamos duas possibilidades de sofrimento: o patológico e o criativo. Ocorre o patológico quando o sujeito vive uma compulsão de repetição de seus conflitos, sem o entendimento de sua significação, portanto sem recursos para alterá-lo. Esse tipo de sofrimento leva à somatização das dores psíquicas, também desconecta o trabalho do pensamento aumentando o ritmo de ações sem significação. Já no trabalho criativo, é preciso ligar o pensamento à atividade laborativa e as questões emocionais dos sujeitos.

A criatividade consegue acontecer com a integração dos aspectos da infância, a história da escolha profissional e o contato com o trabalho de cada sujeito. Quanto maior a integração, maior será a aquisição de sentido entre esses aspectos. A transformação do sofrimento em criatividade passa por um espaço público. Em troca, cada vez que o espaço público tender a se fechar, a criatividade estará ameaçada (Dejours, 1996).

O espaço público oferece do uso da palavra onde podem ocorrer trocas de opiniões nas discussões e onde também o psíquico tem lugar, manifestando-se na subjetividade do sujeito e nas relações estabelecidas pela proximidade com o grupo que fala-escuta, procurando entender as significações e razões das diversas escolhas realizadas nas situações de contato com o trabalho e suas equivalências pessoais. A pessoa pode transformar o sofrimento em iniciativa e em mobilização criativa, trazendo o novo nas ações e percepções antigas.

Para Dejours (1996), além do espaço público, a ressonância simbólica é necessária no percurso do processo de transformação do sofrimento em criatividade. A sublimação não pode garantir por completo a ausência de sofrimento e a saúde mental e física.

O processo da transformação do sofrimento em criatividade é psicodinâmico, portanto, freqüente, já que o sofrimento é constantemente imposto pela realidade da vida, pelas obrigações sociais e culturais. É apenas no teatro do trabalho, em diversas situações de trabalho, uma após outra, experimentando reconhecimento em reconhecimento, que o sujeito terá condições oportunas para alcançar o sofrimento criativo pela ressonância simbólica e com o espaço público. O indivíduo pode fazer de seu trabalho um teatro de luta para “negociar” seu sofrimento e buscar sua identidade (Dejours, 1996).

O sofrimento criativo é derivado do sofrimento infantil, que é, por sua vez, reeditado nas relações adultas. E através da repetição que se busca a possibilidade de ser elaborado, pela ressonância simbólica, o processo que confere no trabalho um modo de dar significação às questões da infância que ficaram sem respostas e produziram com o passar do tempo uma zona de fragilidade para o equilíbrio psíquico.

Clara relata seu sofrimento, através da sua tendência a ajudar todas as crianças, buscando ajuda para a sua própria infância, o conflito era reeditado dia a dia no trabalho. A mudança de atitude começa lentamente com o reconhecimento da necessidade de separar as suas angústias das angústias das crianças. Embora se reconhecia e extrapolava seu papel de professora, sofria e misturava-se com a angústia dos pais.

Uma criança precisava tomar remédio, e na escola tomava e em casa não tomava. Aí a mãe me ligou pra saber o que ela devia fazer. O que eu falava que a menina tomava o remédio e em casa não. “Bom não faço nada, eu só falo pra ela, que ela precisa tomar o remédio.” Ah, então você fala? “Não, não vou falar, você chama ela pra perto do telefone e fala assim, você vai toma o remédio porque você precisa pra sarar, pra você ficar bem. Fala e dá o remédio, não fica questionando você quer ou não quer, ela não tem que querer, ela vai ter que tomar mesmo. Não querer é normal é assim que eu faço, não pergunto se ela quer.” Se fosse em outra situação ou época, eu me sentiria responsável e eu ia lá no prédio dela dar o remédio.

Conta como pôde mudar de atitude na esfera do trabalho depois que pôde pensar e discriminar entre seus conteúdos psíquicos e os objetos externos. Clara vai ressignificando sua trajetória pessoal e profissional, entendendo o que pertence à sua história pessoal e o que pertence à criança e sua família. Com esta diferenciação consegue delimitar sua identidade profissional. Decorrente dessa mudança, sua atitudes passam a ser mais prazerosas.

 

Desejo e satisfação no trabalho

A satisfação está ligada a desejos inconscientes. São vivências precoces de bem estar, que ficam registradas na vida do sujeito e tendem a voltar reeditadas. No trabalho, observamos que a satisfação vem do reconhecimento do esforço, que é conferido não somente pela empresa, mas pela outra pessoa que pode ser o aluno, os pais, os colegas de trabalho. Esse reconhecimento confere ao sujeito uma identidade. A satisfação vem dar significado à história de vida do indivíduo. O que é realmente significativo para uma pessoa está associado às suas vivências, aos seus registros emocionais das experiências que se desenrolam ao longo de seu desenvolvimento.

Clara consegue conferir sentido a sua identidade profissional no convívio com os alunos, no processo de crescimento e desenvolvimento de cada um deles, no encontro alegre com a professora. Agora, sem a angústia e sem somatizações, Clara pode encontrar o desejo de trabalhar na superação da falta de sentido para seus sentimentos infantis. Aprender e ensinar significa buscar o conhecimento da vida, mas também é buscar o conhecimento sobre si mesma. Clara agora pode pensar sobre sua vida psíquica.

 

Últimas palavras

Clara só conseguiu interromper seu transtorno somático com a interferência da terapia que possibilitou a aproximação e sentido aos seus conflitos com a figura materna, que foi percebida como ausente e pouco cuidadora emocionalmente.

Sentiu-se acolhida de modo precário afetivamente durante a infância e ficou impedida de ser acolhedora com a filha. A maternidade e o nascimento da filha trouxe a necessidade de dedicar-se a crianças através do ensinar. Buscou, com esta escolha permeada pela angústia, aprender a ser mãe, mas permaneceu distante de seus conflitos com a sua mãe e ficou aprisiona ao sentimento de culpa. Clara, então, repetia compulsivamente aspectos de sua história infantil sem conferir significação afetiva, confundindo limite com ausência de amor junto da filha e dos alunos.

O trabalho lhe confere a tentativa de controlar os seus sentimentos ambivalentes o ódio pela mãe e o amor pela filha. Tinha medo de não ser boa mãe e não ser amada pela filha, e que esta também tivesse conflitos assim como ela e a mãe.

Toda essa ambigüidade apresenta-se junto ao seu trabalho. Clara até sabe posicionar-se como professora, mas teme também não ser amada pelos alunos. As somatizações impedem que Clara se aproxime desses conflitos. Ainda assim, traz para a sala de aula um modelo de contenção e cuidados que encontrou na figura do pai, visto como uma pessoa bondosa.

É no trabalho que Clara busca a significação de sua história familiar desde a escolha da profissão até o modo como as relações se estabelecem no cotidiano profissional. O jogo da infância foi substituído pelo teatro do trabalho e as relações atuais são estabelecidas a partir das reedições pessoais.

 

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Texto recebido em agosto/2006.
aprovado para publicação em novembro/2006.

 

 

*Artigo produzido no grupo de pesquisa Subjetividade e Psicanálise: práticas clínicas e educacionais (Unesp-Assis).
**Mestre em Psicologia Unesp-Assis (SP). E-mail: frbmbertao@ibest.com.br
***Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da Unesp-Assis (SP). E-mail: franciscohashimoto@yahoo.com.br

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