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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.12 n.20 Belo Horizonte dez. 2006

 

ARTIGOS

 

Violência e medo permeando a exploração sexual de crianças e adolescentes

 

Violence and fear permeating children’s and teenagers’ sexual exploitation

 

 

Leonardo Balbino Mascarenhas*,I; Fernanda De Lazari Cardoso**,I; Gilmar Rocha***,II; Marília Novais da Mata Machado****,III

IUniversidade Federal de Minas Gerais
IIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
IIIFaculdade Novos Horizontes

 

 


RESUMO

Pesquisa realizada pelo Programa Pólos de Cidadania, Faculdade de Direito/UFMG, em 2004, detectou a exploração sexual infantojuvenil como um dos principais problemas de violação dos direitos humanos na região do Médio Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Nos dois anos seguintes, no intuito de prevenir a exploração sexual por meio da geração de trabalho e renda, o Programa Pólos realizou um projeto amplo de pesquisa-ação na região. Esse trabalho continua sob os auspícios da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. O presente artigo retoma algumas informações coletadas durante os trabalhos de campo, especialmente as entrevistas realizadas com crianças e adolescentes da região. O objetivo é o de analisar a alta incidência da violência na região e sua relação com a exploração sexual infanto-juvenil. Violência e medo são categorias recorrentes nos discursos analisados. A exploração sexual, violência sobre o corpo, é uma das suas manifestações.

Palavras-chave: Exploração sexual infanto-juvenil, Violência, Medo, Médio Vale do Jequitinhonha.


ABSTRACT

In 2004, a research work carried out by the Programa Pólos de Cidadania (Citizenship Focus Program) of the Law School of the Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG detected the commercial sexual exploitation of children and teenagers as one of the main problems of human rights violation in the Medium Jequitinhonha Valley (State of Minas Gerais, Brazil). In the following two years, aiming to prevent sexual exploitation by creating work and income, the Citizenship Focus Program developed a broad research-action project in the region. This work goes on sponsored by the Human Rights Special Secretary of the Brazilian Presidency. The article revisits data collected in the field work, especially interviews with children and teenagers in the region. It aims to analyze the persistence of violence and fear in the region, and their relation with children’s and teenagers’ sexual exploitation. Violence and fear are recurrent categories in the analyzed discourses. Sexual exploitation, a form of physical violence, is one of their manifestations.

Keywords: Children’s and teenagers’ sexual exploitation, Violence, Fear, Medium Jequitinhonha Valley.


 

 

Introdução e objetivos

A exploração sexual infanto-juvenil, compreendida como “violação de direitos humanos”, é um problema que agride a auto-estima, o respeito, a confiança e, principalmente, a dignidade da pessoa humana. É o “ato ou jogo sexual em que o adulto submete à criança ou ao adolescente (relação de poder desigual) para se estimular ou satisfazer sexualmente, impondo-se pela força física, pela ameaça ou pela sedução, com palavras ou com ofertas de presentes” (Andi, 2002, p. 44).

Consistindo numa das formas de violência sexual, a exploração sexual de crianças e adolescentes é fenômeno complexo que abarca aspectos sociais, culturais, políticos, econômicos e jurídicos. “A violência é um fenômeno antigo, produto de relações sociais construídas de forma desigual e geralmente materializada contra aquela pessoa que se encontra em alguma desvantagem física, emocional e social” (Leal, 1999, p. 8).

Nesse contexto, o Programa Pólos de Cidadania1 propõe o enfrentamento e prevenção ao problema da exploração sexual de crianças e adolescentes no Médio Vale do Jequitinhonha, por meio da geração de trabalho e renda e do desenvolvimento pessoal da criança e do adolescente, a partir da criação de núcleos socioculturais.

Entre novembro de 2002 e dezembro de 2003, em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e a Associação Microrregional dos Municípios do Médio Vale do Jequitinhonha (Ameje), entre outras entidades, o Programa Pólos diagnosticou a exploração sexual de crianças e adolescentes como um problema relevante no Médio Vale do Jequitinhonha de Minas Gerais, demandando uma atuação urgente e eficaz, principalmente daqueles atores responsáveis pelas políticas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente (Universidade Federal de Minas Gerais, 2004).

A partir desse diagnóstico, foi formulado o Projeto “Criança e adolescente em situação de risco: geração de renda como alternativa de prevenção à exploração sexual infanto-juvenil no Médio Vale do Jequitinhonha”, Projeto 18 de maio, no intuito de desenvolver um estudo mais aprofundado sobre o tema e compreender os motivos que causam a exploração sexual de crianças e adolescentes, bem como criar condições para a prevenção do problema.

Os trabalhos tiveram início em janeiro de 2005 nos municípios de Araçuaí, Comercinho, Itaobim, Medina, Padre Paraíso, Ponto dos Volantes e Virgem da Lapa, buscando a prevenção da exploração sexual infanto-juvenil por meio de ações de geração de trabalho e renda, contribuindo para a constituição de uma rede de proteção à entrada de filhas e filhos no mercado de exploração sexual, considerando a escassez de empregos e a situação de miserabilidade em que muitas famílias estão inseridas e o desenvolvimento pessoal da criança e do adolescente, a partir da criação de núcleos socioculturais.

Desde então, o Programa Pólos de Cidadania vem fomentando, por meio do Projeto 18 de maio e outros, a prevenção da exploração sexual de crianças e adolescentes, a partir: a) da construção de subsídios para a formulação de políticas integradas de prevenção e erradicação da exploração sexual infantojuvenil na Micro-Região do Médio Vale do Jequitinhonha; b) da constituição de empreendimentos autogestionários, nos marcos da economia popular solidária, promovendo a inclusão social produtiva de famílias em situação de risco; c) da formulação e implementação de estratégias de mobilização social visando sensibilizar e despertar a consciência pública, tornando os atores sociais da região co-responsáveis com a causa; e d) da criação de uma rede social mista de proteção à criança e ao adolescente.

Várias ações foram desenvolvidas tendo como orientação essas proposições. Destacam-se aqui as investigações (Gustin et al., 2005; Universidade Federal de Minas Gerais, 2004) que permitiram compreender melhor o fenômeno da exploração sexual infanto-juvenil no Médio Vale do Jequitinhonha. Realizouse, durante 2005 e 2006, um diagnóstico institucional que buscou verificar a percepção que os atores locais tinham da exploração e uma pesquisa direta com as crianças e adolescentes da região que estavam em situação de risco (Universidade Federal de Minas Gerais, 2005, 2006; Machado et al., 2006).

O presente artigo retoma algumas informações coletadas durante os trabalhos de campo: a fala de entidades e, especialmente, as entrevistas realizadas com crianças e adolescentes da região. O objetivo aqui é o de analisar as articulações entre a alta incidência da violência e as representações sobre a exploração sexual infanto-juvenil no Vale.

Para a população, a violência e o medo estão presentes nos comportamento e nas formas de sociabilidades construídas pelos atores do Vale. Citem-se dois exemplos: a) os moradores de Itaobim relatam ter muito medo de sair à noite ou freqüentar alguns lugares, mesmo durante o dia. Afirmam que a cidade é dividida em territórios de duas gangues rivais (o que pode estar relacionado com a alta incidência de homicídios, mais de sete vezes superior à média do Estado – ver tabela 1, confirmando essa representação social); b) em alguns bairros de Padre Paraíso os moradores mantém um constante esquema de vigilância, que monitora a chegada de pessoas estranhas (os vizinhos sempre alertam uns aos outros sobre a presença de “forasteiros”, que são recebidos geralmente com medo e desconfiança).

Para as entidades, como se verá, violência e medo, pelo menos no que diz respeito à compreensão da exploração sexual, não parecem ser tão fundamentais. Já as crianças e os adolescentes sentem fortemente a sua presença.

 

Metodologia

As atividades do Programa Pólos de Cidadania são norteadas pela pesquisaação (Thiollent, 1981, 1985), linha metodológica qualitativa que prioriza o envolvimento ativo da comunidade – aqui encarada como sujeito, e não como objeto – na investigação e resolução de seus problemas, além de buscar o interrelacionamento permanente das atividades de pesquisa e extensão e o entrecruzamento e retroalimentação dos respectivos resultados. Em outras palavras, priorizam-se ações, discussões e decisões coletivas, utilizando-se o controle metodológico da intersubjetividade e da interdisciplinaridade, criando deste modo condições para o estabelecimento de práticas emancipatórias (Santos, 2005) entre os atores envolvidos.

No que concerne às investigações promovidas para conhecer os aspectos que caracterizam a exploração sexual de crianças e adolescentes no Vale, foram entrevistados 74 representantes de entidades dos sete municípios de atuação do Projeto 18 de maio, o que culminou com a produção de um diagnóstico institucional (Universidade Federal de Minas Gerais, 2005, 2006), apresentando a percepção desses atores locais sobre o fenômeno. Com relação à pesquisa feita diretamente com as crianças, resumida em Machado et al. (2006) e retomada neste artigo, foram entrevistadas 34 crianças e adolescentes, de seis municípios (em Virgem da Lapa, a despeito de várias tentativas, não foi possível realizar entrevistas).

A coleta de dados com crianças e adolescentes foi trabalhosa, devido à dificuldade dos entrevistados se manifestarem sobre o tema. Contudo, buscouse garantir o sigilo e enfatizar que a proposta era compreender e prevenir o problema. A equipe tinha ciência de que o encontro para as entrevistas obstaria tanto os entrevistados, por medo de serem estigmatizados, denunciados ou mesmo por não quererem expor sua intimidade, quanto os entrevistadores, pela delicadeza do tema.

Para a produção deste artigo, utilizou-se o “arquivo” de pesquisa2 do Programa Pólos (2005), formado pelo conjunto de entrevistas com crianças e adolescentes. O que dá unidade ao arquivo é o fato de reunir as falas de uma “comunidade discursiva”3 específica, formada por crianças, adolescentes e jovens informantes que, segundo as entidades que lidam com o tema, são vítimas de exploração sexual comercial e/ou de abuso familiar. Não é certo que todos tenham vivido essas situações, mas todos têm algo a informar sobre elas ou sobre questões atinentes. Todos fazem parte de um mesmo posicionamento geográfico, lingüístico, social, econômico, compartilhando, assim, uma mesma história coletiva.4

Para a análise dos dados, buscou-se, primeiro, criar condições para uma verdadeira leitura do material produzido. Para tanto, as entrevistas foram transcritas pelos pesquisadores da forma mais rigorosa possível, com atenção a cada palavra, entonação, pausa, interrupção. Em seguida, cada uma foi cuidadosamente lida e relida por mais de um membro da equipe. Muitas transcrições foram corrigidas, voltando-se às fitas gravadas. Trechos foram escutados novamente, sobretudo quando segmentos de discurso inicialmente inaudíveis revelavam pontos importantes para a análise.

Nesse caso, não se percorreu as entrevistas transcritas para simplesmente codificá-las ou compará-las. Elas foram tratadas nas suas articulações lingüísticas: tomadas como textos que adquiriram sentido apenas quando colocados em relação uns com os outros, isto é, na sua intertextualidade. Foi possível, então, uma aproximação do mundo daquelas crianças, adolescentes e jovens. Pressupôsse que esse mundo continha sentidos acessíveis através de técnicas de leitura cuidadosas: cada entrevista foi tomada como um todo; foi analisada sua articulação com as outras; pontos obscuros, repetições, contradições, pressupostos e implícitos discursivos foram objeto de atenção especial; situações de risos, engasgos, mudanças de assunto, mudanças de tom de voz, silêncios e pausas acusaram trechos importantes que mereceram maior atenção.

Em alguns casos, valendo-se de procedimentos da análise do conteúdo, foram utilizadas “palavras-chave”, para detectar representações sociais feitas pela criança ou adolescente com relação a entidades como “Conselho Tutelar” e “polícia”; à “mãe”/”mãinha”; a assuntos como “escola”, “carona”, “trabalho”, “pista”, “rua”, “drogas” etc.

Foi durante esse tipo de análise que a violência e o medo mostraram-se recorrentes no discurso dos entrevistados. Praticamente todos apontaram a violência (e o medo dela derivado) como um dos mais graves problemas da região. A violência em geral é entendida como uma manifestação física de violação da integridade do outro. Diante disso, e fundamentados em outros dados e argumentos, os autores deste artigo sugerem que se veja na violência e no medo dois componentes que parecem ser fundamentais para o surgimento e a manutenção do problema da exploração sexual infanto-juvenil no Vale. A própria exploração sexual, nesse sentido, pode ser vista como uma das manifestações da violência.

 

MÉDIO VALE DO JEQUITINHONHA, TERRITÓRIO DO MEDO E DA VIOLÊNCIA: ALGUNS RESULTADOS

 

Estatísticas

Na tabela abaixo são apresentadas taxas de violência dos municípios pesquisados, segundo alguns indicadores escolhidos por se aproximarem dos fatos relatados pelas crianças e adolescentes entrevistados. A análise desses indicadores sugere que a violência se apresenta sensivelmente mais elevada na região do Vale do Jequitinhonha, em especial nos municípios de atuação do Projeto 18 de maio (microrregião do Médio Vale do Jequitinhonha), do que no resto do Estado de Minas Gerais. Isso nos permite levantar a hipótese de que a exploração sexual infanto-juvenil pode ser uma manifestação de uma violência local mais ampla.

 

 

A fala das entidades

Membros de entidades entrevistados apontaram como as duas principais causas para a entrada e permanência de crianças e adolescentes na situação de exploração sexual, nos municípios do Médio Vale do Jequitinhonha, a “configuração familiar” e “vulnerabilidade socioeconômica”, conforme apontam as seguintes falas (Universidade Federal de Minas Gerais, 2006, p. 23-27):

A questão é socioeconômica mesmo. As meninas saindo. Pais, mães, avós, tios, mandando as meninas saírem pra ganhar, entre aspas, o pão de cada dia. É principalmente questão socioeconômica e questão familiar, tá! (Entrevista 4.6).

As famílias pouco se importam com a educação dos filhos, o que se alia ao fator renda. Às vezes, toda uma família se mantém a custa da aposentadoria de um avô ou avó. (Entrevista 5.2)

A categoria “vulnerabilidade socioeconômica” envolve respostas que se referem ao desemprego, pobreza, miséria e baixa renda. Essas seriam causas da exploração sexual, conforme a seguinte fala: “No Jequitinhonha, aqui, acontece isso, justamente por causa da pobreza das meninas, que chega em casa e não tem o que comer, às vezes não tem o que beber” (Entrevista 7.2).

O termo mais utilizado pelos entrevistados para se referirem à configuração das famílias foi “desestrutura familiar”; chamaram freqüentemente atenção, também, para “ausência de orientação ou supervisão da família”, o que é ilustrado na seguinte fala:

É falta de acompanhamento da família, né! Porque é... a família às vezes não preocupa muito de acompanhar seus filhos, se tá indo na escola, né! E não participa de nada pra incentivar seus filhos, né, suas filhas a participar também de alguma coisa. (Entrevista 3.4)

Ainda foram citadas como possíveis causas, nessa categoria, a separação dos pais, a ausência do pai e/ou da mãe, a criação por terceiros, a existência de famílias numerosas e a antecedência familiar, isso é, mães prostitutas que iniciariam as filhas na exploração sexual.

“Abusos sexuais” (subitem de configuração familiar, uma vez que a maioria desses casos acontece com pessoas da família – tios, pais, padrastos, irmãos) foram também apontados como causa e/ou antecedentes da exploração sexual: “A maioria das vezes pessoas que se prostituem já foram abusadas desde pequena por pessoas próximas” (Entrevista 1.9).

Questões morais, oportunidade facilitada pela BR-116 e o uso de álcool e drogas foram igualmente citados pelos entrevistados:

As pessoas não têm religião e um monte de outras coisas. Isso é da própria índole, a pessoa já nasce com aquilo. Acho que pobreza num levava a tal coisa assim não. Sempre teve pobre. Mas hoje é muito comum meninas com modo de vestir agonizantes, com barriga grande. (Entrevista 4.3)

Tem perturbado muitos caminhoneiros as meninas na beirada da BR, a gente pára, a gente questiona o que estão fazendo com quem estão. Elas é que ficam em cima. Elas é que vão para as margens da BR, são constantes aí. (Entrevista 5.5)

Agora é claro que não existe corrupto sem corruptor. Então infelizmente existem as pessoas. Eu falo que homem é raça ruim demais, né? (Entrevista 1.8)

A BR-116, para muitos entrevistados, facilitaria a entrada das crianças e adolescentes na exploração sexual, o que fica ilustrado pela seguinte fala:

Existe gente que enche kombi de meninas e leva para um local e tal. (...) Existem muitas meninas que saem daqui e vão para fora, aliciadas. Elas ficam no Posto. Eles têm mais notícia de casos na zona urbana, mas tem alguns casos na zona rural também. Mais é na Rio-Bahia com caminhoneiros. (Entrevista 3.9)

Para as entidades, portanto, a violência não parece tão fundamental. Mencionam-se abusos sexuais, drogas e álcool. A “culpa” ou a “causa” da exploração reside, sobretudo, no interior das famílias. Não é o que dizem as crianças e adolescentes.

 

A presença do medo e da violência no discurso das crianças e dos adolescentes

As falas das crianças e dos adolescentes entrevistados evidenciam essa presença:

A cidade é muito assim violenta à noite. / Do nada eles mata, bate nos outro aqui... (Entrevista 29 - 14 anos)

[Meu tio] matava, vendia droga, fazia um tanto de coisa. / Ele matou o irmão do menino que matou ele. / Foi embora prá Belo Horizonte, aí depois ele voltou. / Ficou lá acho que um ano e pouco, aí voltou. / Na hora que ele veio de novo, eles mataram ele. / Fui no barzinho prá comprar pipoca, quando cheguei lá o homem furou o outro / o homem caiu de bruços e morreu. / [Furou com] faca de serra, aquela de cortar pão. (Entrevista 22 – 12 anos)

Ele [o namorado] tava com uma arma, aí foi e pegô ele, alguém telefonô e pegô ele... [5 segundos de silêncio]. Só que a arma não era dele não, era dum colega dele... / Nesse horário que os [policiais] pegô ele na rua ele tava então com a arma na mão, na rua, no meio da rua. Acho que era até um homem que tinha discutido com ele. Aí ele falô que ia matar ele, aí ele falou com minha mãe assim: “Ao invés de matá eu, eu mato ele primeiro!”. (Entrevista 10 – 17 anos)

 

As drogas

A presença das drogas no dia-a-dia da região contribui para aumentar a percepção do medo, da violência, na medida em que envolve disputas por territórios entre grupos de bairros diferentes e até entre cidades rivais:

Porque Itaobim é uma cidade vizinha, né, e sai os, os pessoal de, de Itaobim, os cara de Itaobim, e vem prá cá. Procura briga e acaba matano os daqui. (Entrevista 17 - 22 anos)

Ela [a cidade] tem de ruim essas violências, de carro, de jovem fumando, começando a fumar drogas, bem rapidinho... (Entrevista 14 - 16 anos)

Na rua, tá ruim demais de droga. (Entrevista 15 - 15 anos)

O que mais rola aqui é drogas.../ Aqui o que rola mais assim, como eu já te falei mais é drogas. / Aqui, pode contá nos dedo esses meninim que passa aqui que num usa droga, a maioria! / Passa [na TV Araçuaí]. Demais prostituição, drogas, esse negócio de drogas e prostituição, é o que mais dá, é isso. (Entrevista 34 - 16 anos)

Ela [minha irmã] também é uma menina que ela é viciada em drogas. / Quando ela começou, ela usava só maconha. Hoje em dia ela também ela usa pedra também, entendeu? Então, é... / Quando ela começou, ela usava só maconha. Hoje em dia ela também ela usa pedra também, entendeu? Então, é... / [Relata, também, o caso do cunhado que, “drogado”, tenta bater na irmã]; / Eu experimentei droga [maconha] uma vez. (Entrevista 5 - 20 anos)

Eu tenho vários amigos sabe, que mexem com drogas e tudo mais. / Estes dias mesmo saiu que eu estava usando drogas, entendeu, coisas que eu nem fiz saiu que eu tô fazendo. / Esse cara que eu falei prá você pai e mãe é contra, porque ele mexe com droga e tudo mais e é todo cheio de tatuagem e aí meu pai e minha mãe é contra. / Eu também cai numa errada, mas hoje já sai fora, tipo assim né, foi assim, tava lá os caras lá fumando droga me ofereceram e fui e experimentei e fui comecei a gostar e comecei a dar dinheiro prá comprar e aí eu comecei a sair fora mãe já tava me caçando arrumei desculpa. (Entrevista 6 - 13 anos)

A droga? A droga muda as pessoa quando tá, tipo assim, quando tá bem / mesmo, que briga com os pais, com as mães, os irmãos, com os parentes, sabe? Aí acaba com o resto, assim as drogas... (Entrevista 10 - 17 anos)

Com onze anos de idade eu nunca pensava entrar e acabei entrando no mundo da droga, apenas com um cigarro de maconha. Hojeem dia já experimentei vários tipos de droga. Nunca fui um viciado que sai matando roubando por aí, sou um viciado. / É por isso que eu falo um moleque que usa droga a gente tem que ir mais... incentivar do que ir com a violência; quando minha mãe descobriu que eu usava ela batia xingava não resolve não adianta, tem de conversar, avisar o que é no dia a dia. Uso drogas há muito tempo. / Outra coisa que incentiva muito os moleques a usar drogas é o cigarro ele também incentiva a usar drogas. / Quando eu paro de usar drogas uns seis meses eu fico mais sistemático, nervoso se eu parei de usar se neguinho vier me perturbar eu posso fazer besteira né, se o viciado quando está na sua forma de descanso querendo separar das drogas ele tem de ficar num lugar bem calmo, sossegado, tranqüilo, agora se ele ficar aqui na escola no canto dele e chegar gente pra perturbar ele vai ficar nervoso então é difícil. / Já queria, namorar, beijar as meninas, mas as drogas já estavam no meio. (Entrevista 9, 20 anos)

Ainda foram citadas como possíveis causas, nessa categoria, a separação dos pais, a ausência do pai e/ou da mãe, a criação por terceiros, a existência de famílias numerosas e a antecedência familiar, isso é, mães prostitutas que iniciariam as filhas na exploração sexual.

“Abusos sexuais” (subitem de configuração familiar, uma vez que a maioria desses casos acontece com pessoas da família – tios, pais, padrastos, irmãos) foram também apontados como causa e/ou antecedentes da exploração sexual: “A maioria das vezes pessoas que se prostituem já foram abusadas desde pequena por pessoas próximas” (Entrevista 1.9).

Questões morais, oportunidade facilitada pela BR-116 e o uso de álcool e drogas foram igualmente citados pelos entrevistados:

As pessoas não têm religião e um monte de outras coisas. Isso é da própria índole, a pessoa já nasce com aquilo. Acho que pobreza num levava a tal coisa assim não. Sempre teve pobre. Mas hoje é muito comum meninas com modo de vestir agonizantes, com barriga grande. (Entrevista 4.3)

Tem perturbado muitos caminhoneiros as meninas na beirada da BR, a gente pára, a gente questiona o que estão fazendo com quem estão. Elas é que ficam em cima. Elas é que vão para as margens da BR, são constantes aí. (Entrevista 5.5)

Agora é claro que não existe corrupto sem corruptor. Então infelizmente existem as pessoas. Eu falo que homem é raça ruim demais, né? (Entrevista 1.8)

A BR-116, para muitos entrevistados, facilitaria a entrada das crianças e adolescentes na exploração sexual, o que fica ilustrado pela seguinte fala:

Existe gente que enche kombi de meninas e leva para um local e tal. (...) Existem muitas meninas que saem daqui e vão para fora, aliciadas. Elas ficam no Posto. Eles têm mais notícia de casos na zona urbana, mas tem alguns casos na zona rural também. Mais é na Rio-Bahia com caminhoneiros. (Entrevista 3.9)

Para as entidades, portanto, a violência não parece tão fundamental. Mencionam-se abusos sexuais, drogas e álcool. A “culpa” ou a “causa” da exploração reside, sobretudo, no interior das famílias. Não é o que dizem as crianças e adolescentes.

 

A presença do medo e da violência no discurso das crianças e dos adolescentes

As falas das crianças e dos adolescentes entrevistados evidenciam essa presença:

A cidade é muito assim violenta à noite. / Do nada eles mata, bate nos outro aqui... (Entrevista 29 - 14 anos)

[Meu tio] matava, vendia droga, fazia um tanto de coisa. / Ele matou o irmão do menino que matou ele. / Foi embora prá Belo Horizonte, aí depois ele voltou. / Ficou lá acho que um ano e pouco, aí voltou. / Na hora que ele veio de novo, eles mataram ele. / Fui no barzinho prá comprar pipoca, quando cheguei lá o homem furou o outro / o homem caiu de bruços e morreu. / [Furou com] faca de serra, aquela de cortar pão. (Entrevista 22 – 12 anos)

Ele [o namorado] tava com uma arma, aí foi e pegô ele, alguém telefonô e pegô ele... [5 segundos de silêncio]. Só que a arma não era dele não, era dum colega dele... / Nesse horário que os [policiais] pegô ele na rua ele tava então com a arma na mão, na rua, no meio da rua. Acho que era até um homem que tinha discutido com ele. Aí ele falô que ia matar ele, aí ele falou com minha mãe assim: “Ao invés de matá eu, eu mato ele primeiro!”. (Entrevista 10 – 17 anos)

 

As drogas

A presença das drogas no dia-a-dia da região contribui para aumentar a percepção do medo, da violência, na medida em que envolve disputas por territórios entre grupos de bairros diferentes e até entre cidades rivais:

Porque Itaobim é uma cidade vizinha, né, e sai os, os pessoal de, de Itaobim, os cara de Itaobim, e vem prá cá. Procura briga e acaba matano os daqui. (Entrevista 17 - 22 anos)

Ela [a cidade] tem de ruim essas violências, de carro, de jovem fumando, começando a fumar drogas, bem rapidinho... (Entrevista 14 - 16 anos)

Na rua, tá ruim demais de droga. (Entrevista 15 - 15 anos)

O que mais rola aqui é drogas.../ Aqui o que rola mais assim, como eu já te falei mais é drogas. / Aqui, pode contá nos dedo esses meninim que passa aqui que num usa droga, a maioria! / Passa [na TV Araçuaí]. Demais prostituição, drogas, esse negócio de drogas e prostituição, é o que mais dá, é isso. (Entrevista 34 - 16 anos)

Ela [minha irmã] também é uma menina que ela é viciada em drogas. / Quando ela começou, ela usava só maconha. Hoje em dia ela também ela usa pedra também, entendeu? Então, é... / Quando ela começou, ela usava só maconha. Hoje em dia ela também ela usa pedra também, entendeu? Então, é... / [Relata, também, o caso do cunhado que, “drogado”, tenta bater na irmã]; / Eu experimentei droga [maconha] uma vez. (Entrevista 5 - 20 anos)

Eu tenho vários amigos sabe, que mexem com drogas e tudo mais. / Estes dias mesmo saiu que eu estava usando drogas, entendeu, coisas que eu nem fiz saiu que eu tô fazendo. / Esse cara que eu falei prá você pai e mãe é contra, porque ele mexe com droga e tudo mais e é todo cheio de tatuagem e aí meu pai e minha mãe é contra. / Eu também cai numa errada, mas hoje já sai fora, tipo assim né, foi assim, tava lá os caras lá fumando droga me ofereceram e fui e experimentei e fui comecei a gostar e comecei a dar dinheiro prá comprar e aí eu comecei a sair fora mãe já tava me caçando arrumei desculpa. (Entrevista 6 - 13 anos)

A droga? A droga muda as pessoa quando tá, tipo assim, quando tá bem / mesmo, que briga com os pais, com as mães, os irmãos, com os parentes, sabe? Aí acaba com o resto, assim as drogas... (Entrevista 10 - 17 anos)

Com onze anos de idade eu nunca pensava entrar e acabei entrando no mundo da droga, apenas com um cigarro de maconha. Hoje em dia já experimentei vários tipos de droga. Nunca fui um viciado que sai matando roubando por aí, sou um viciado. / É por isso que eu falo um moleque que usa droga a gente tem que ir mais... incentivar do que ir com a violência; quando minha mãe descobriu que eu usava ela batia xingava não resolve não adianta, tem de conversar, avisar o que é no dia a dia. Uso drogas há muito tempo. / Outra coisa que incentiva muito os moleques a usar drogas é o cigarro ele também incentiva a usar drogas. / Quando eu paro de usar drogas uns seis meses eu fico mais sistemático, nervoso se eu parei de usar se neguinho vier me perturbar eu posso fazer besteira né, se o viciado quando está na sua forma de descanso querendo separar das drogas ele tem de ficar num lugar bem calmo, sossegado, tranqüilo, agora se ele ficar aqui na escola no canto dele e chegar gente pra perturbar ele vai ficar nervoso então é difícil. / Já queria, namorar, beijar as meninas, mas as drogas já estavam no meio. (Entrevista 9, 20 anos)

 

A família, a escola e a polícia

Essas três instituições – família, escola, polícia –, na região, colocam-se com freqüência ao lado da violência. Assim, na maneira como os pais educam seus filhos, punições físicas costumam ser violentas:

Ela [a mãe] uma vez arrumou o cinto assim em mim, oh. Aí, minha irmã, ela tava querendo dormir, nessa época que ela trabalhava, assim, que ela se prostituía, ela, nós morava lá em cima. Aí ela tava querendo dormir e eu mais lá no fundo com minha irmã, entendeu. Aí eu peguei e vim sem ver, ela tava... ‘tô mandando cês calar a boca, que eu quero dormir’. Aí nós... aí eu fui e sentei, e ela continuou lá mexendo com uns trem lá. Ela foi deixou cair, minha mãe foi lá e voltou com o cinto. Aquele cinto que tem um fivelão, assim, de ferro. Aí ela caiu fora e me deixou sozinha. Aí minha mãe foi e me pegou, acho que, com a raiva, eu fui a primeira que ela achou. Aí na primeira cintada que ela deu pegou assim, aí deu um corte [mostra a cicatriz no supercílio] assim em mim. (Entrevista 5 – 20 anos)

Em ambiente escolar, percebe-se uma violência verbal marcante, envolvendo professores, outros profissionais e alunos. Às vezes, chega-se à violência física:

Cê vai prá escola, cê tá sendo humilhado dentro da escola, os próprio professor tá pisando na gente, entendeu? Aí, ela [uma assistente social]: “Vai voltar prá escola”. Falei: “Não vou voltar prá escola, não, ninguém vai fazer eu voltar prá escola. Eu não vou prá escola”. “Por que você não vai?” Aí eu falei assim: “Cê sabe porque eu não vou. Cê sabe porque eu não vou, não dou certo com professor, o professor quer me humilhar e eu não escuto, entendeu?” /Aí eu /falei assim: “Oh, E., vou sair dessa escola, porque cê sabe como é que eu sou, eu vou acabar fazendo uma coisa com o professor dentro dessa escola”. E ela: “Por quê?”. “Professor gosta muito de criticar os outro, e não é assim, não”. Que eu brigava com elas porque elas humilhava meus colega também do... que era da zona rural. Elas falava: “Cês é burro, que que cês tá caçando aqui? Cês vai é continuar burro assim. / Cês é burro, prá que que cês pegam ônibus de lá até aqui? Burro tem que ficar é na roça, plantando mandioca”. (Entrevista 5 – 20 anos)

Foi assim... Eu tava com a matéria, né? Ele passou a matéria no quadro e passou exercício. Eu fui e fiz, fiz assim: “Oh, professor, é, olha aqui...” Ele tava conversando sobre carro, entendeu? Com o / que fica na escola. Aí ele tá assim: “Manda outra pessoa te ensinar”. Aí eu falei assim: “Mas você que é o professor, num é os aluno, não”. Ele começou olhar prá mim na hora e falou assim: “Ah, menina, vai pa merda!”. Eu falei assim: “Vai pa merda você!” (Entrevista 23 – 14 anos)

A professora lá era muito nojenta, a gente... Tipo, a gente tava escrevendo alguma coisa, tava lá escrevendo alguma coisa no quadro, aí os menino pegava e mexia com a gente, aí a gente furava eles de lápis e ela dava ocorrência na gente. (Entrevista 22 – 12 anos)

Tem vezes que a professora é boazinha, fica boazinha, mas tem vezes que fica brava demais, aí é ruim. / Ela grita, ela bate na mesa de vara... Tava na segunda série, ela tinha uma vara bem grande, que ia lá no final da sala. Quem bagunçasse ela dava uma varada... / Um dia ela, ela deu uma varada ne mim eu mandei ela tomar no cu. Aí ela me deu uma ocorrência. E me expulsou da escola. (Entrevista 22 – 12 anos)

Em se tratando da atuação da polícia, vários casos de maus-tratos ou abuso de poder foram identificados nas falas dos jovens entrevistados. A violência policial se estende à escola:

Aqui se a gente apronta na escola eles chamam a polícia e fazem a ocorrência. Quando eu era moleque, tinha 14 anos de idade tava na escola na hora do recreio, os meninos estavam pulando o muro e eu tava no pé do muro, os meninos tavam pulando o policial achou que eu tinha pulado, veio e me deu um tapa na cara. Aí, gente boa, começa por aí, um tapa na cara de um moleque de 14 anos vai gerar o que? Só revolta, até hoje não gosto desse policial... (Entrevista 9 – 20 anos)

 

Exploração sexual, medo e violência

Agressões físicas, assassinatos, estupros, brigas e sentimento de insegurança são corriqueiros. Em muitos momentos a violência ganha relevância maior do que o problema da exploração, ou se mostra inevitavelmente relacionada a ela. Essa representação parece estar associada a vários fatores, sendo o mais evidente o silêncio que cerca o tema da exploração sexual. (A respeito desse silêncio, ver Machado (2006) artigo escrito com base nas mesmas entrevistas, demonstrando a articulação entre a fofoca, o estigma e o silêncio nos municípios estudados.)

Além das indicações de circunstâncias violentas na realidade do Médio Vale do Jequitinhonha, o discurso das crianças e adolescentes é carregado de falas que relatam experiências pessoais envolvendo essas situações:

Medo de ir embora sozinha à noite e alguém me pegar. / Ela tem filho já. Quatorze anos e tem filho. / Só que foi um homem que pegou ela à força. / Estupró ela, né, na verdade. / Tava quereno fica com ela, entendeu? Só que ela num quis aí ele pegou à força, entendeu? (Entrevista 30 - 15 anos)

Eu conheço uma pessoa que estuprou uma menina. (Entrevista 1 – 16 anos)

O único caso que já vi aqui assim sabe, foi um home que ti..., diz qui istrupô uma menina de três anos... / ... bebezinha, uma menininha que, pequenininha que morava aqui nessa rua aqui, por que a mãe dela num cuidava dela direito, aí o Conselho Tutelar foi e pegô ela, sabe? (Entrevista 34 – 16 anos)

E eu tinha uma colega [de 15 anos] aí também que foi morta por um caminhoneiro. / Só sei que ela foi viajar pro outro lado da Bahia. / Aí acho que foi assaltar o caminhão, acho que ele matou ela. / As menina fala que é, minha mãe também fala que é perigoso. (Entrevista 24 – 14 anos)

Malandragem aumentou muito. / A gente não tá tendo segurança; há assaltos com “touca preta”. / A gente não tá tendo segurança nem mais dentro da casa da gente. / [Falando de uma vizinha que se prostitui]: quatro caras pegaram ela, acho que violentou ela e ainda tomou um cordão que ela tava no pescoço / e ainda bateu nela / [Sobre o assassinato de um homem envolvido com drogas]: acho que ele era traficante, e mataram o cara dentro do posto de saúde. (Entrevista 5 – 20 anos)

Tem uma menina que eu tava conversando na praça, era uma mulher, sabe? Moça, mas essa mulher o homem tava enforcando ela! / O homem tava batendo, tirando a roupa dela, tentando fazer a coisa à força na praça! (Entrevista 1 – 16 anos)

Os cara não pagou ela [amiga] colocou o revólver na cabeça dela tomou o dinheiro que ela tinha ganhado durante a noite e acho que estupraram ela. (Entrevista 6 – 13 anos)

Nota-se que em muitos casos é impossível dissociar a exploração sexual da violência. Com efeito, a exploração sexual no Vale do Jequitinhonha é um fenômeno que se processa principalmente no âmbito da rua, do espaço público, no terreno do “econômico” e do “político”. Os relatos associam a prática quase sempre à rodovia (“pista”), às casas noturnas, bares, praças e postos de combustíveis. Nesse sentido, Faleiros (2004) assinala:

A exploração sexual e a exploração econômica se articulam de formas variadas no cotidiano de suas práticas, aproveitando-se de eventos culturais como danças, shows, festivais, desfiles, rodeios, concursos de beleza, canções, passeios, vestimentas erotizadas para a colocação do “produto” no mercado. (Faleiros, 2004, p. 66)

Ora, esse terreno do “econômico” e do “político” é notadamente marcado pela necessidade de realização pessoal, obtenção de poder, reconhecimento, status e prestígio. Associa-se dessa forma a valores como o fingimento, a desonestidade, o individualismo e a competição. Nessa perspectiva, a violência pode ser encarada como um instrumento para se alcançar algum desejo. Nas palavras de DaMatta (1982):

[Violência é] a ação que dispensando intermediários age numa relação direta dos meios com os fins. (...) Deste modo, se quero, tomo; se desejo, estupro; se não possuo, roubo; se odeio, assassino; se sou contrariado, espanco. É a força bruta que conta na violência, não o uso de um elemento intermediário direto como o costume, a palavra, o amigo ou a lei. (DaMatta, 1982, p. 26)

Essa articulação entre exploração sexual e violência, localizada no espaço da rua, é, todavia, insuficiente para explicar sua grande expressividade no caso do Vale. É preciso considerar ainda a incidência da violência e do medo no espaço da casa. Se, no âmbito da rua, a lógica que prevalece é a do econômico e do político, com todas as suas representações, no âmbito doméstico os valores esperados são a fidelidade, o respeito, a lealdade e a amizade. Contudo, em se tratando da região do Médio Vale do Jequitinhonha, o espaço da casa muitas vezes é regido pelas mesmas representações e valores que imperam no espaço público. As relações cotidianas envolvendo marido e mulher, pais e filhos, irmãos, namorados ou companheiros, e outros familiares são marcadas pela intolerância e pela violência:

Eles [os pais] me batem / Meu pai não fica em casa, não... porque chega em casa brigando com mãe” / “Pai não xinga não, já chega dando porrada mesmo. (Entrevista 6 – 13 anos)

[Falando de N., sua irmã] Ela pregava a mão em mim, puxava meu cabelo, eu descia o cabelo dela, metia tanta porrada nela. Nós briga feio, porrada mesmo. Nossa, eu joguei até faca lá em casa. Já cortei o braço dela assim, ó... Já cortei o braço dela assim, ó. Ela teve que ficar /, que ela levou quatro ponto assim, ó. E antes ela já jogou a faca no meu pé, entendeu? Num sei se fiquei marca. Mas mesmo assim, ó, me / na faca. Quase que enfiava a faca, se eu num tirasse... Passou raspano assim, sabe? Se ia direto no meu pé, nó... Meu pé ia ter um corte feio. (Entrevista 23 – 14 anos)

[Falando sobre o padrasto] Batia – nossa, ela [a mãe] tem marca, ela é horrível, tá horrível, toda acabada, toda apanhada. E judiava assim, da minha irmã, ficá xingando tal, ficá tirando a roupa dela, olhando ela no banheiro... / Falou “M., eu sei que cê não vai ficar guardada prá sempre (início de risos). Transa comigo!” Cara eu fiquei [risos misturados com suspiro] Porra véi, lá eu chorei demais, logo meu padrasto! / [O padrasto] falando sobre os meus seios... Aí quando ele falou o negócio do meu peito tá grande tal, aí zanguei mesmo. Falei assim com ele, mandei ele tomá naquele lugar... briguei mesmo com ele, minha mãe chegou e rolou aquilo tudo, ele rasgou a minha blusa, quase fiquei nua... quebrou uma alça, que a outra ficou.... aí minha mãe tava brigando com meu pai lá... meu pai, padastro! Tava brigando com meu padastro. Aí eu saí prá fora por que ele me empurrou prá fora, por que eu num quis sair, queria enfrentar ele! E ele tacou a pedra de todo tamanho aqui... (Entrevista 13 – 16 anos)

Teve uma vez que ele [o padrasto] tentou me abusar três vezes de mim, só que não deu, eu fiquei nossa traumatizada, até doente no dia... (Entrevista 13 - 16 anos)

Até de me falar em me matar meu pai fala! Eu odeio eles totalmente, odeio todo mundo. / Meu pai batia o tempo inteiro, por qualquer coisa, minha madrasta fazia o inferno, falava um monte de coisa prá ele, eu não podia nem sair na porta, com ninguém, deixa eu ver.... eu arrumava a casa ela sujava, ganhava roupa, eles pegavam, tudo que eu ganhava de bom eles pegavam, me deixava mixaria, eles saíam prá curtir eu ficava em casa, trabalhando.... escola prá casa, nada mais.... é isso. (Entrevista 13 - 16 anos)

Meu pai faliceu tem três anos./ Ah... é... porque eu e meu pai discutia muito assim, né?! A respeito assim, que eu fazia uma coisa e ele achava que tava errado. (Entrevista 17 - 22 anos)o

Existem relatos de convívio violento entre jovens que vivem, ou já viveram, uma vida amasiada ou conjugal:

[Falando sobre o marido] Que a gente brigava dimais. Ele era muito ciumento. Aí eu falei “Vamo separá, cada um pro seu lado”. / Nós pegamo e separamo. Num deu certo. Nós brigava e... e tudo. Aí ele queria me batê, essas coisa assim. Aí nós separamo. (Entrevista 17 – 22 anos)

 

Incorporação de práticas de violência

Percebe-se, de modo geral, que as relações cotidianas das crianças e dos adolescentes entrevistados incorporam as práticas da violência, fazendo desta uma forma de linguagem social, que organiza as relações de poder, de território, de autodefesa, de inclusão e exclusão e se erige como manifestação legítima e natural no contexto em que se insere:

[Sobre um amigo que está preso] Porque ele atirou num homi / Matou não. Ele só deu seis tiro no homi / Só... (Entrevista 7 – 13 anos)

O tio dela foi matado. Eles tirou os trem da cabeça dele todinha, e matou... (Entrevista 29 – 14 anos)

Dei uma surra nela / Por que eu peguei a menina cum jeito... quase matei ela. / Ameacei ela. Com a parada na cabeça. / Mas num saio dessas vida, me arrisco à toa / Ela dava uma de...boazooona, gostosona, e nada disso tinha! Falava de gangue, só que, nó! Falava que batia, matava, num sei o quê, parece que é sonsa, lerda! (Entrevista 13 – 16 anos)

Cheguei assim é falei: “Oh, fia! Cê perdeu alguma coisa? Cê perdeu o seu cu na minha testa?”. Virei prá ela e falei. Ela tá assim: “Não, eu perdi”. Falei assim: “Cê quer vim buscar?”. Ela tá assim: “Vou”. Acabou que eu dei uns tapa na cara dela e falei assim: “Toma... seu cu aí. Cê já arreganhou”. (Entrevista 23 – 14 anos)

Aí ince, incentiva você assim, falando com você assim e tal, quando esses colega assim, que “Num sei o quê, tem uns colega assim, que tá bo, quereno botá ocê no mal caminho...”. Ah, chama ocê: “Ah, vamo, vamo ali, matá num sei quem”. Aí cê pensa que é mintira assim, e chega lá, mata a gente, cê tá indo, igual um colega meu: um colega meu esses dia aí, foi atirá num, o outro foi no meio, o outro que foi preso. Aí... já incentiva você assim. (Entrevista 8 – 15 anos)

 

Exploração sexual, uma violência sobre o corpo

Finalmente, há depoimento demonstrando explicitamente instâncias em que a exploração sexual é uma violência sobre o corpo:

Assim, que eles [em alguns programas] querem destruir o corpo delas, fica cheia de ruga, esses negócio assim. Estraga, acho que estraga o corpo da pessoa. / Ah, assim... suruba de dois homi. De jeito que já teve de sete homi... / Porque assim, porque a pessoa dá prá vários homens assim, sabe? Dá prá vários homens... Ah, acho que o corpo dela fica esquisito demais. Ela anda com a perna aberta... / Não, é verdade. É verdade. Praticamente, dependendo da transa, estraga. Né?/ Olha, assim... Tem umas que é uma esculhambação c’os caminhoneiro, entendeu? /Assim... Ele é uma pessoa que num posto, entendeu? Ele leva pro posto, chega lá, vai ficar com ela, mas, porém tem um amigo que fica com ele, entendeu? Aí a menina não percebe. Aí vai dois homi na menina. E a menina não se toca, entendeu? (Entrevista 23 - 14 anos)

 

Conclusões

Falar em Médio Vale do Jequitinhonha é, pois, falar em relações instituídas e legitimadas pela violência. Esta é incorporada e institucionalizada, com alguma regularidade, nas formas de convivência observadas entre os moradores da região. Agressões físicas e verbais, delitos, conflitos à mão armada, e outras formas de violência tornam-se corriqueiras e atuam como elementos responsáveis por um ajustamento social, numa região em que o Estado é muitas vezes inoperante ou ineficaz.

A compreensão do atual quadro de violências no Vale do Jequitinhonha poderia suscitar imediatamente o entendimento do processo de formação histórica e das bases de ocupação da região, adotando como perspectiva a correlação entre violência, subdesenvolvimento, vulnerabilidade social, inoperância estatal e necessidades básicas de sobrevivência. Em outras palavras, poder-se-ia enxergar a violência como um produto histórico e linear, buscandose estabelecer suas causas e origens (que provavelmente estariam localizadas em fatores macroeconômicos, políticos e sociais).

Todavia, caso se adote uma perspectiva sociológica, enxerga-se nas representações da violência “filtros pelos quais nós podemos discernir certos aspectos do mundo social” (DaMatta, 1982, p. 14-15), dentre eles, a exploração sexual infanto-juvenil. Ou seja, a violência no Médio Vale do Jequitinhonha pode ser vista como um código cultural que estrutura relações sociais. Em um mundo onde a presença (ausência) do Estado se faz sentir de maneira dramática, ora beneficiando os setores dominantes da sociedade ora negando saúde, proteção, educação aos mais necessitados, resta à população local desenvolver outros mecanismos de controle social, sendo o mais usual o recurso à violência.

Buscou-se, neste artigo, analisar as articulações entre violência, medo e exploração sexual infanto-juvenil no Vale, sem contudo colocá-los em termos de causas e efeitos, mas como categorias sociológicas. Nesse sentido, esses três fenômenos misturam-se num tecido social repleto de possibilidades e significados, nos quais os diversos fatos sociais são produzidos, percebidos e interpretados.

Percebe-se que as relações cotidianas no Médio Vale do Jequitinhonha incorporam as práticas da violência, fazendo desta uma forma de linguagem social, que determina regras de conduta, códigos e normas sociais, organiza as relações de poder, de território, de autodefesa, de inclusão e exclusão e se erige como manifestação legítima e natural no contexto em que se insere.

Violência e medo ocorrem tanto no âmbito da vida pública quanto no da vida privada. No Vale, eles estão amplamente presentes nas relações sociais, como fenômenos naturalizados, banalizados e quase legitimados. Do mesmo modo, a exploração sexual infanto-juvenil e outras violências sobre o corpo assumem, no imaginário local, uma condição de normalidade, na medida em que suas representações aproximam-se das representações de qualquer outra violência.

Tudo isso aponta para o fato de que violência e medo devem ser levados em conta em programas de prevenção à exploração sexual de crianças e adolescentes.

 

Referências

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Texto recebido em agosto/2006.
Aprovado para publicação em outubro/2006.

 

 

*Bacharel em Administração (UFMG) e graduando em Ciências Sociais (UFMG), integrante do Projeto 18 de maio/ Programa Pólos de Cidadania – Faculdade de Direito/ UFMG. E-mail: naomemandeporcarias@yahoo.com.br
**Bacharel em Administração de Cooperativas (UFV), integrante do Projeto 18 de maio/Programa Pólos de Cidadania – Faculdade de Direito/ UFMG. E-mail: fernandadelazari@yahoo.com.br
***Doutor em Antropologia, professor da PUC Minas, consultor do Projeto 18 de maio/Programa Pólos de Cidadania (2005-2006). E-mail: gil@pucminas.br
****Doutora em Psicologia, professora da Faculdade Novos Horizontes (FNH), consultora do Projeto 18 de maio/Programa Pólos de Cidadania (2005-2006). E-mail: marilianmm@terra.com.br
1O Programa Pólos de Cidadania é um programa de pesquisa e extensão da Faculdade de Direito da UFMG, que atua na área de Direitos Humanos, promovendo a emancipação e inclusão social de grupos em situação de vulnerabilidade social. Constituído em 1995, é um programa interinstitucional e interdisciplinar, com profissionais e estudantes de Direito, Ciências Sociais, Psicologia, Administração, Economia, Belas Artes, Comunicação Social, Artes Cênicas e Serviço Social.
2Arquivo – palavra de origem grega cujo significado condensa memória e instituição – é noção bastante utilizada em análise do discurso, referindo-se (Maingueneau, 2000; Charaudeau; Maingueneau, 2004) ora a um tipo de estudo arqueológico, como para Foucault (1987), ora ao corpus arquivado sobre o qual o historiador trabalha, distinto do corpus experimental criado para uma análise específica (Pêcheux, 1975), ora aos diferentes tipos de corpora (plural de corpus) que compartilham um mesmo posicionamento social histórico (Maingueneau, 1991). Utiliza-se, aqui, a noção nesse terceiro sentido, entendendo-se por corpora o conjunto dos dados lingüísticos obtidos através de entrevistas e aqui utilizados como unidades para uma descrição lingüística e social histórica (Crystal, 1988; Charaudeau; Mainguenau, 2004; Castoriadis, 1982; Machado et al., 2006).
3“Entende-se por ‘comunidade discursiva’ os grupos sociais que produzem e administram um certo tipo de discurso” (Maingueneau, 2000, p. 29; Machado et al., 2005).
4Programa Pólos (2005). Projeto 18 de maio: A exploração sexual de crianças e adolescentes no Médio Vale do Jequitinhonha. Relatório parcial. Belo Horizonte: Programa Pólos de Cidadania, 91 p. (inédito).

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