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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.12 n.20 Belo Horizonte dez. 2006

 

SEÇÃO ABERTA

 

Entrevista

 

Acerca da psicologia social, da análise institucional, da psicossociologia e da esquizoanálise*

 

Around the social psychology, the Institutional analyses, the psychosocially and the esquizoanalyses

 

Entrevistado Eugène Enriquez
Entrevista conduzida por Pedro Teixeira CastilhoI,**

IIsta - Instituto Santo Thomas de Aquino

 

 

Eugène Enriquez é o teórico francês que, como pioneiro, introduziu a psicanálise na interpretação de fenômenos sociológicos e políticos. Em seu vasto edifício teórico, a psicanálise ocupa um lugar central, mas sempre em fecundo diálogo com outras disciplinas, como a sociologia, a ciência política, a história, a antropologia. Ele é professor emérito da Universidade de Paris VII, estando ali associado ao Laboratoire de Changement Social, no Departamento de Sociologia, onde orientou teses de diversos pesquisadores brasileiros. É membro fundador do CIRFIP (Centre International pour la Recherche, Formation et Intervention Psychosociologiques), sendo também redator-chefe da Nouvelle Revue de Psychosociologie. Sempre atuou na área de intervenção psicossociológica, em instituições e organizações do trabalho. É autor de vasta obra, na qual se destacam, em português, Da horda ao Estado, Organização em Análise, Psicossociologia – análise e intervenção (colaborador), Cenários sociais e abordagem clínica (colaborador) e, mais recentemente, Figuras de poder. Ele ainda é autor de numerosos artigos, capítulos de livros e conferências, também ao alcance do leitor brasileiro. Na Psicologia em Revista, em seu n. 13, de junho de 2003, Enriquez publicou o artigo “A construção amorosa”, tema sobre o qual está lançando um novo livro, na França.

 

 

Pedro Castilho: Analise o panorama contemporâneo da Psicologia Social, na França, e suas possíveis interfaces com a Análise Institucional, a Psicossociologia e a Esquizoanálise.

Eugène Enriquez: A mudança mais importante é o fato de que a Psicologia Social, na França, tornou-se cada vez mais uma psicologia social do tipo experimentalista e cognitivista. Isto é, há uma corrente extremamente forte de psicologia social experimental, que se desenvolveu a partir de pessoas como Moscovici, Beauvois, Gigoni etc., que se diferenciou, cada vez mais, da psicossociologia do tipo clínico. Uma grande diferença é que, na psicologia social experimental, como se sabe, tenta-se controlar o conjunto de variáveis e os indivíduos são colocados em uma situação experimental na qual se sabe exatamente aonde se quer chegar, mesmo que os resultados possam ser diferentes como, por exemplo, na famosa experiência da submissão à autoridade. De toda maneira, os indivíduos são tratados como elementos totalmente instrumentais.

PC: Eles trabalham para a produção de subjetividade produtiva capitalista?

EE: Eu não diria que sim, porque um bom sociólogo experimental – como, por exemplo, na França, Beauvois – aponta, de fato, para o funcionamento de processos de influência, justamente para denunciar a maneira como se manipulam as pessoas. Bom, ele tem uma visão perfeitamente democrática, mas, em seu modo de trabalho, com o qual eu não estou de acordo, ele utiliza os indivíduos como instrumentos. Isso quer dizer, no mínimo, que utiliza a racionalidade instrumental e, por exemplo, constata que é perfeitamente possível, a partir de determinados elementos experimentais bem feitos, fazer com as pessoas façam aquilo que ele quer que elas façam. Isso trouxe tal problema que agora ele renunciou e abandonou a universidade, porque não quer trabalhar para dar elementos suplementares à possibilidade de manipulação dos indivíduos. Então, não é necessariamente uma ótica capitalista, pode sê-lo, mas não necessariamente.

Por outro lado, a psicossociologia clínica, como se sabe, tenta o contrário, ver o indivíduo em sua totalidade, com seu psiquismo, suas interações com os outros, em um conjunto em que há normas sociais e maneiras de reagir a essas normas, de ver como elas são interiorizadas, como podem ser transgredidas, reorganizadas, com a idéia fundamental de fazer, ao contrário, com que os indivíduos, compreendendo bem a situação em que se encontram, possam efetivamente se tornar mais autônomos, em relação às determinações sociais nas quais se encontram.

Com relação à Análise Institucional, as coisas eram, há 15 anos, bastante separadas. Havia batalhas entre o pessoal da Análise Institucional e da Psicossociologia. Isso acabou, acabou totalmente. Hoje em dia, por exemplo, isso é claro, se considerarmos os nomes mais conhecidos da Análise Institucional que vieram freqüentemente a Belo Horizonte, como [Georges] Lapassade e René Lourau. Lapassade, mesmo que já esteja muito velho, trabalha de bom grado conosco: ele colaborou com o Vocabulário de Psicossociologia. E René Lourau, alguns anos atrás, antes de sua morte, tínhamo-nos reconciliado completamente com ele. Eu tinha até mesmo publicado um artigo na revista que ele dirigia. Creio que nossa aproximação deveu-se ao fato de que, de um lado, alguns psicossociólogos que não davam conta suficientemente dos problemas institucionais se aproximaram dos institucionalistas. E os institucionalistas se aproximaram dos psicossociólogos, ao abandonarem aspectos muitos provocativos de seu método de intervenção.

PC: Demasiadamente subversivos?

EE: Sim, exatamente. E começaram a trabalhar muito mais em nossa perspectiva.

PC: Que perspectiva é essa?

EE: A grande diferença é que a intervenção psicossociológica tem sempre como objetivo ter uma boa escuta das pessoas com quem se trabalha e trabalhar, talvez, mais como um psicanalista, atuando sobre suas resistências, escutando e colocando interpretações progressivas que lhes permitam evoluir.

PC: Essa resistência seria em relação ao agente que faz a intervenção?

EE: Trata-se das resistências individuais, das resistências entre os indivíduos e das resistências grupais, porque elas não são do mesmo nível.

PC: Vocês trabalham com o conceito de transferência?

EE: Há, por exemplo, a resistência de um grupo inteiro enquanto, teoricamente, não há resistência de cada uma das pessoas. Vou dar apenas um exemplo disso: o seminário que realizei em uma grande empresa, Electricité de France. Em certo momento, quando as pessoas estavam livres para discutir os problemas que escolhessem, meu papel era simplesmente analisar a maneira como tinham discutido e a significação do que tinham dito. Então, elas diziam que discutiam problemas em que não havia vontade de confronto... Que entravam rapidamente em um acordo. Isso não é muito interessante. É preciso tomar um tema a partir do qual seja possível realmente se confrontar e discutir uns com os outros. Isso foi há quinze anos. Eles diziam: “Há um tema que pode nos opor, é o problema do racismo” (que não era tão importante na França como é agora. Atualmente, ele se tornou muito mais importante). Então, eu dizia: “Vamos estudar o tema do racismo e vamos ver as posições de uns e de outros”. E eles: “Não podemos estudar o tema do racismo assim, temos de pôr um pouco de ordem na maneira de tratar o problema. Um de nós vai para o quadro tentar ver os diferentes pontos que nós deveríamos estudar, uns e outros”. Eles tinham três horas para fazer esse trabalho. Então, eles foram para o quadro e, pouco a pouco, fizeram uma lista de temas a serem explorados; por exemplo, o racismo na Antigüidade grega, na Antigüidade romana etc. Acabamos por chegar, ao final de três horas, a um índice que poderia ser uma enciclopédia geral do racismo através das épocas e das civilizações. Quer dizer, se fossem desenvolver tudo isso, eles teriam uma dezena de volumes. E, naturalmente, enquanto faziam esse trabalho, faziam-no de maneira totalmente organizada, sem brigar, porque é fácil dizer: “Vamos estudar o racismo da igreja católica por quais razões, se era a mesma coisa na Idade Média e agora. Se o racismo na França é a mesma coisa que o racismo na Alemanha”. Enfim... No final, eu analisei o que ocorreu, e cada um tinha, realmente, vontade de estudar o problema do racismo. Mas, no nível grupal, no nível do inconsciente do grupo, havia um mecanismo de defesa geral que foi colocado em funcionamento, o que mostra que, efetivamente, era muito perigoso, que eles realmente estavam correndo um risco feio de brigar. Mas esse era um mecanismo totalmente inconsciente. Quando eu trabalhei com eles, dizia-se que iriam derramar sangue e, de repente, o grupo inteiro não quis que se derramasse sangue. Então, pode haver resistência no nível grupal e não necessariamente no nível individual. Pode haver resistências diferentes, que não sejam de todo o grupo, que haja uma parte do grupo que queira fazer alguma coisa e outra parte que queira fazer outra coisa. Então, há interações entre os diferentes clãs que podem existir em um grupo. Estudavam-se todos esses fenômenos e também os problemas de transferência e de contratransferência entre os grupos e o animador do grupo. Então, a idéia era tentar fazer uma análise progressiva do que ocorreu. Na mesma época, a Análise Institucional era mais violenta, ou seja, a idéia central de Lapassade e de Lourau era a de que existe um recalque institucional, no qual se pode penetrar realmente “quebrando” as coisas. Isto é, insistiam bastante no fato de existirem os analisadores. E os analisadores querem dizer o seguinte: “O que é que, de fato, provoca a análise?”. Eles insistiam mais nisso que em se colocar numa posição de analista. Lourau queria escrever uma teoria dos analisadores, escreveu fragmentos que jamais terminou. E, pouco a pouco, eu intervinha na empresa Electricité de France. Agora, sou persona non grata... Após ter sido seu consultor durante cinqüenta anos. A primeira intervenção que eu fiz na Electricité de France foi em 1956, quando tinha 25 anos, mas parecia ter 35, todo mundo acreditava que eu já era um psicossociólogo muito conhecido! E então, quando eu era consultado, eu já tinha uma grande reputação! Mas eu tinha 25 anos. Agora tenho 75, e isso faz diferença!

PC: Com relação ao episódio sobre o racismo, poderíamos fazer, por exemplo, uma psicodramatização para quebrar a resistência com relação a seu trabalho?

EE: Não se pode dizer “quebrar a resistência”. Eu digo, por exemplo, sobre um psicodrama, “mettre en scène” (encenar). Eles haviam decidido estudar o problema. Tudo bem, que estudassem o problema. E depois analisariam todos juntos a maneira de tratar o problema. E as resistências podem ser muito diferentes. Por exemplo, se se intervém em um grupo, sobretudo de empresa, as pessoas têm grande dificuldade de falar de seus sentimentos, suas reações, elas falam freqüentemente de um modo frio, distante. O importante é poder fazer com que elas se coloquem de maneira mais pessoal, que seja mais a subjetividade que se implique. E que, então, não haja apenas racionalidade, mas também afetividade e até mesmo que se possam observar os processos inconscientes.

PC: Há trabalho conjunto entre os teóricos da Psicossociologia e da Análise Institucional?

EE: Quando eu intervenho em hospitais psiquiátricos para crianças autistas (atualmente eu tenho uma grande intervenção em Lyon, em uma associação de saúde mental que engloba diferentes hospitais), percebe-se, exatamente, o inverso: que todo mundo é capaz de falar de seus sentimentos. Eles adquiriram o hábito de falar de seus sentimentos. E, então, de tanto falar de seus sentimentos, eles nunca falam do trabalho que realizam. Ou seja, estão de fato no “eu te amo, eu te detesto, você é muito narcisista” etc. Nesse momento, é preciso fazê-los trabalhar. Justamente fazer quase o inverso, mostrar a eles que a exposição de todos esses sentimentos, da forma como se fala o tempo todo, é também a maneira que cada um tem de proteger sua técnica e seu método. Por exemplo, aqueles que são psicanalistas dizem: “Para nós, o que é importante é receber cada criança em nosso canto e vocês não precisam saber disso”. Os educadores dizem: “Nós fazemos bem às crianças, colocando-as para estudar”. E há outros que são, eu diria, trabalhadores sociais que os ajudam psicologicamente e dizem: “Nós sabemos perfeitamente ajudá-los em sua maneira de fazer”. Dessa forma, eles não confrontam seus trabalhos e a conclusão, por exemplo, é que as crianças e os adolescentes, de um lado, são psicanalisados, de outro lado, são ajudados, e de outro, postos a trabalhar, sem que haja qualquer ligação entre os diferentes trabalhos. Então, a resistência nesse caso é uma resistência justamente sobre o trabalho, os métodos que cada um tem, o que permite a cada um proteger a “igrejinha” na qual se encontra. Não é, necessariamente, uma boa coisa que as pessoas falem tanto de seus sentimentos e de suas afetividades... Atualmente, na TV francesa, todo mundo fala de sua afetividade! Podemos interrogar as pessoas que dizem “eu tive tal problema”, “eu fui violentado” etc. Vê-se isso a todo momento. E isso não serve estritamente para nada. É simplesmente uma espécie de descarga psicológica. Várias pessoas telefonam depois e dizem: “Coitadinho, como você é infeliz!”. Coisas assim... E isso não serve estritamente para nada, a não ser para se dar um espetáculo. E não é à toa. Poderíamos falar da sociedade do espetáculo. É um espetáculo, não é um aprofundamento. Então, o problema é sempre como se pode trabalhar com as pessoas, fazendo com que elas trabalhem com alguma coisa com a qual não tenham o hábito de trabalhar. Fazê-las trabalhar com algo de que elas habitualmente não tratam. E isso só pode ser feito relativa e progressivamente. Os analistas institucionais tendiam a ser bastante violentos e incisivos, em intervenções muito curtas. Eu trabalhei durante muito tempo na Électricité de France, e havia um grupo de analistas institucionais que trabalhava no mesmo lugar, com todos os problemas nucleares, que são algo muito importante na França. Há quinze centrais nucleares, cem mil pessoas que trabalham lá dentro, é enorme. Eu era, lá, o consultor de todos os consultores. Eles tinham realizado um trabalho de pesquisa, e entre o que eu fiz e o que eles fizeram não havia muita diferença. E posso dizer que não há muita diferença, porque as pessoas que estavam no grupo de análise institucional eram meus antigos alunos. O que faz a grande diferença é a psicologia social experimental, de um lado, e a psicossociologia clínica, englobando, ao mesmo tempo, a análise institucional.

PC: Elas estão juntas agora?

EE: Sim. Há, por vezes, diferenças. Mas diferenças individuais, na maneira de funcionar e de cada um trabalhar. Felizmente, não funcionamos todos da mesma maneira! O que se desenvolveu também, e neste aspecto a diferença não é grande, foi o que é denominado de sociologia clínica, que visa recolocar melhor o que acontece nos diferentes grupos e nas diferentes interações entre os grupos, no contexto geral da sociedade, das normas sociais, de leis sociais etc. As razões pelas quais talvez não haja diferença é que eu fui um dos primeiros (digo um dos primeiros porque houve outros, [Guy] Palmade, [Max] Pagés etc.) a lançar a psicossociologia clínica. Eu fui o primeiro na França, em 1972, a realizar o curso de sociologia clínica, na Universidade de Poitiers, até o momento em que o reitor me proibiu, dizendo que eu não poderia ensinar uma disciplina que não existia! Eu disse: “Mas eu a estou inventando!”. Mas isso foi proibido. E depois, o que aconteceu particularmente em Quebec, com Fernand Dumont, Robert Sévigny, Jacques Réhaume, nós conhecemos muito bem. Então formamos o primeiro grupo de sociologia clínica, ao qual chegou Vincent de Gaulejac, que termina o seu livro La lutte des places com um capítulo em que pedia: “por uma sociologia clínica”, isso quer dizer que ele esperava que existisse uma sociologia clínica. Assim, todos nós nos descobrimos juntos, nos encontramos todos juntos. Então, nós tentamos. Vincent, eu e Jacques, com a Vanessa [Andrade de Barros] realizaremos uma mesa-redonda geral e vocês poderão ver bem os pontos de semelhança, que são mais importantes do que os pontos de divergência. Mas há diferenças, felizmente! A mim, podem me chamar de psicossociólogo clínico, de sociólogo clínico, Vincent pode ser chamado de sociólogo clínico e, ao mesmo tempo, com Nicole Aubert, ele organizou um livro chamado As aventuras da Psicossociologia. A diferença, eu diria, são os experimentalistas de um lado e os clínicos do outro. Com nuances, evidentemente, em cada um dos casos.

PC: Como é a articulação entre a psicanálise e a sociologia clínica?

EE: Isso é realmente diferente segundo cada um dos indivíduos. Veja dois exemplos: Vincent de Gaulejac e eu. A psicanálise me influencia muito, de maneira muito importante. Eu tive uma formação psicanalítica, além da formação sociológica. E me parece essencial tentar fazer surgir as resistências mais profundas que existem no interior do grupo. Vincent se interessa também por essa questão, porém, tem maior interesse pelas determinações socioeconômicas e sócio-históricas que pesam sobre os indivíduos. O que ele mais tenta fazer nos seminários que dirige sobre a trajetória social, sobre as histórias de vida, é fazer as pessoas tomarem consciência das determinações que pesam sobre elas e tentar se libertar. Eu tento mostrar alguma diferença. É verdade que no meu primeiro artigo que teve alguma importância (foi há cinqüenta anos, em 1957), que se chamava La sociologie est-elle une théorie de l’action?, eu tentei mostrar como se poderia, simultaneamente, pensar o papel das instituições, o papel dos grupos informais e o papel dos indivíduos. Eu terminei dizendo que meu desejo (que eu jamais consegui realizar totalmente) era o de criar uma verdadeira antropologia, uma verdadeira ciência do homem, na qual poderia haver conceitos “trans-específicos”, que poderíamos ver funcionar. Por exemplo, o conceito de “recalcamento”, que tem certo sentido na psicanálise. Há também fenômenos de recalcamento grupal e que não funcionam exatamente da mesma maneira. Há o recalcamento organizacional, que não é da mesma maneira. Mas o processo de recalcamento é exatamente o mesmo.

PC: O senhor trabalha com os textos freudianos que abordam os grupos? O chamado Freud social, Psicologia de Massa...

EE: No livro que Jacyara [Nasciutti] e Tereza [Carreteiro] traduziram, De la horde à l’Ètat (Da horda ao Estado), eu mostro, desde o início, a importância do pensamento antropológico de Freud. Totem e tabu, Moisés. É verdade que eu tento sustentar coisas diferentes.

PC: O conceito freudiano de inconsciente é diferente do conceito de inconsciente da socioanálise? O senhor disse que poderíamos pensar as questões políticas e econômicas mais próximas do inconsciente de Guattari e Deleuze?

EE: Tem-se aí um outro problema. É que Deleuze e Guattari tiveram um sucesso no Brasil que não tiveram jamais na França. Isso é extraordinário! Deleuze, Guattari, Foucault etc. são admirados aqui como eles não são admirados na França. Eles são amados, respeitados etc., mas como muitos outros. Eles não são uma influência...

PC: Lacan também?

EE: Lacan no Brasil se tornou hegemônico e na França, de forma alguma. Mesmo alguns psicanalistas que não se interessavam por Lacan tomam alguns elementos de Lacan. Já que ele morreu... depois da morte todo mundo se reconcilia! É bem sabido. Eu, que em certo momento critiquei muito Lacan, tenho excelente relação com os lacanianos franceses, nos dias de hoje. Eu acho que há ainda gente, aqui no Brasil, que se diz esquizoanalista, como Deleuze e Guattari. Na França, mesmo Guattari voltou a fazer uma psicanálise completamente clássica, porque ele não sabia o que era uma esquizoanálise...

PC: Ele nunca saiu da Escola Freudiana Francesa?!

EE: Sim. Ele nunca saiu. E, ao mesmo tempo, ele tinha bons relacionamentos com os psicossociólogos. Há um fenômeno cultural que é interessante: quando as teses escritas em determinados países são exportadas para outros países, acontece de duas uma: ou quem as recebe as toma de maneira mais rígida do que nos países em que nasceram; ou, como por exemplo nos Estados Unidos, eles fazem misturas extraordinárias de Foucault, Derrida, Baudrillard etc. Eles inventaram a French Theory, que é uma espécie de mistura extraordinária. E, no fim, percebemos que eles nunca disseram isso. Uma espécie de sincretismo de teoria francesa que nunca existiu.

PC: Sobretudo no campo da literatura?

EE: Sim, sobretudo no campo da literatura. Há fenômenos culturais interessantes de se observar: como nascem e são exportados os pensamentos desses países, seja de maneira muito massiva ou, ao contrário, de maneira muito confusa.

PC: O senhor fala dos países colonizados?

EE: Não. O inverso é também verdadeiro. Eu dou um exemplo. Durante muito tempo, por causa de um certo nacionalismo francês que sempre esteve interessado no que os alemães escreviam (e os alemães foram, ao menos por cem anos, inimigos dos franceses), a psicanálise teve muita dificuldade de entrar na França. Não é à toa, Freud era alemão. Então era preciso afrancesá-lo. Os primeiros psicanalistas franceses afrancesavam as coisas, inventavam novos conceitos. E, então, há muitos textos alemães que não foram traduzidos na França. E eu dou um exemplo de um autor que eu aprecio bastante, George Simmel, que é um grande psicossociólogo alemão. Ele é o avô da psicologia social americana e na França praticamente ninguém o tinha lido. Há somente quinze anos que Simmel foi traduzido na França. Eu, no Vocabulário de Psicossociologia, escrevi um breve artigo sobre Simmel. Ao final da escrita, quando Jaqueline Barus-Michel leu meu texto, ela me disse: “Engraçado, tenho a impressão de que, quando você fala de Simmel, está falando de você mesmo”. Porque efetivamente eu descobri (eu não leio alemão) uma aproximação de pensamento absolutamente extraordinária e percebo que ela tinha descoberto, cem anos antes de mim!

Às vezes, encontramo-nos muito curiosamente em pensamentos que não conhecemos. Pensamentos perfeitamente interessantes e admiráveis. Eu escrevi muito sobre o Marquês de Sade, e no meu livro, que acabou de ser traduzido para o português, há um capítulo sobre Sade. Eu percebi, lendo o texto que escrevi, que eu não dizia exatamente a mesma coisa, mas que dizia coisas análogas ao que dizia Adorno e Horkhein sobre Sade. Há um capítulo sobre isso, no livro deles, sobre a dialética negativa. Eu me disse: “Isso eles escreveram em 1935 e eu escrevi em 1985!”.

 

 

*Entrevista realizada durante o XI Colóquio Internacional de Psicossociologia e Sociologia Clínica, UFMG, Belo Horizonte (MG). Tradução de Pedro Teixeira Castilho e Adriana Maria Brandão Penzim (Psicóloga, mestre em Ciências Sociais, doutoranda em Psicologia Social pela UERF, professora da PUC Minas). Revisão de Nina de Melo Franco (Bacharel em Direito, professora e tradutora de francês).
**Psicólogo, mestre em Literatura e Psicanálise, doutorando em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, professor do Ista – Instituto Santo Thomas de Aquino.

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