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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.12 n.20 Belo Horizonte dez. 2006

 

SEÇÃO ABERTA

 

Resumo de Tese

 

Vertigens de uma psicanálise a céu aberto: a cidade. Contribuições do acompanhamento terapêutico à clínica na reforma psiquiátrica

 

Vertigo of an open-sky psychoanalysis: the city. Contributions of therapeutic accompaniment to the clinic in psychiatric reform

 

 

Analice de Lima Palombini*

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Instituto de Psicologia

 

 

A pesquisa, interessada em precisar as ferramentas conceituais que possibilitam operar a clínica no campo da reforma psiquiátrica – quando a cidade invade o setting do tratamento e vem colocar a clínica em questão –, tem como ponto de partida o percurso de uma experiência desenvolvida nos últimos dez anos junto à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em parceria com serviços de saúde mental da rede pública, tendo a atividade do acompanhamento terapêutico (AT) como vetor. Clínica e cidade foram os fios condutores da investigação, impondo, primeiramente, confrontar-se à polissemia de sentidos de que se revestem os discursos sobre a cidade, igual à polifonia que a habita. Walter Benjamin serviu aqui de “guia turístico”, fornecendo instrução, ou seja, método, para perder-se na cidade, que é a melhor forma de conhecê-la. Foi dessa maneira que se cruzou por ruas da história, filosofia, literatura, psicanálise, ciências sociais, até perfazer um caminho que informava o suficiente sobre a cidade para os propósitos desta pesquisa, acompanhando desde a formação das cidades medievais até o advento das metrópoles contemporâneas.

O nascimento do alienismo é inscrito nesse contexto, no momento de instauração das sociedades democráticas modernas, cuja ambição pelo governo das almas engendra o ideal isolacionista que o asilo psiquiátrico veio presentificar,de forma que a psiquiatria e suas congêneres, nascidas na cidade, dela vêm se apartar, o que se coloca como paradoxo presente nos processos de reforma psiquiátrica contemporâneos, que propugnam o retorno da loucura ao convívio nas cidades.

Considerando que é esse paradoxo que o acompanhamento terapêutico, ao abrir-se à cidade, vem habitar, a pesquisa busca identificar as ferramentas conceituais de que se serve o acompanhamento terapêutico em cada uma de suas vertentes teóricas – referendadas seja em Lacan, em Winnicott ou em Deleuze e Guattari – e o modo como essas ferramentas possibilitam à clínica a incorporação do espaço público, por meio de objetos e relações, tanto simbólicos como materiais, sem fazer uso de uma relação de domínio à parte, que implique segregação com respeito à sociedade comum.

Pode-se, com efeito, identificar, nessas três vertentes da clínica, alguns princípios comuns, norteadores de uma concepção de subjetividade que articula dentro e fora, interior e exterior: a idéia de que a subjetividade se constitui na relação a uma alteridade; a idéia de que se trata de uma subjetividade não transparente a si mesma, guardando uma dimensão de resistência que não se deixa apreender integralmente por um saber. A pesquisa apresenta, então, no tocante a cada uma delas, os conceitos que permitiam estabelecer uma direção clínica para o trabalho e que possibilitavam uma leitura dos processos subjetivos em jogo nas cenas que o AT protagonizava. Mas, uma vez que a relação com a cidade impunha-se como matéria de que era feita essa clínica, buscou-se suporte, também, tanto na figura do flâneur, que Benjamin propõe, quanto na conceituação da amizade como política, tal como é abordada por Derrida e Foucault.

O último capítulo tratou de extrair as conseqüências do percorrido realizado. Um pequeno texto de Foucault, chamado “Polêmica, política e problematizações”, fez-se útil no sentido de dissipar qualquer intenção de consagrar uma ou outra das teorias abordadas como a que melhor se aplicaria a um exercício do acompanhamento terapêutico em consonância com os princípios da reforma psiquiátrica. Também não se tratou de reunir essas teorias num amálgama obscuro em que se diluiriam suas diferenças. Uma vez constatada a possibilidade de uso de seus conceitos na direção requerida por uma reforma, que tem no seu horizonte a concretização de uma sociedade sem manicômios, ou seja, uma sociedade que não evita os laços possíveis com seus loucos, interessou poder situar a problemática comum, que desafia hoje qualquer uma dessas teorias, e que se apresenta, de forma emblemática, na prática do AT, na medida em que esta se caracteriza em especial por essa incorporação da cidade, ou o que se propôs chamar de “empuxo à cidade”, nos seus esquemas de ação. O que é próprio ao AT se apresenta, assim, como o que é próprio, no seu limite paradoxal, à clínica que, como foi dito, tendo nascido da cidade, dela veio se apartar, enredada no ideal isolacionista com o qual pretendeu responder à ambição de governo das almas.

A pesquisa situa, portanto, na cidade, naquilo que a caracteriza como pólis, encontro de diferenças, território de lutas, resistência, negociação, o desafio a ser enfrentado por uma clínica que não se retira da sociedade comum, que não quer se assegurar das pessoas nem se colocar como referência única, que busca o alargamento dos modos de habitar essa cidade para que nela possam habitar também as subjetividades loucas sob os seus cuidados.

 

 

*Doutora em Saúde Coletiva UERJ, docente do Instituto de Psicologia UFRGS, psicóloga, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Plastino. E-mail: analicepalombini@uol.com.br

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