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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.13 n.1 Belo Horizonte jun. 2007

 

ARTIGOS

 

A vigilância na contemporaneidade: seus significados e implicações na subjetividade

 

Vigilance in contemporary society: its meaning and implications on subjectivity

 

 

Angela Maria Pires CaniatoI,*; Merly Luane Vargas do Nascimento**

IUniversidade Estadual de Maringá

 

 


RESUMO

O presente trabalho constitui uma pesquisa bibliográfica que problematiza a questão da vigilância como prática social e ideologia, disseminada nas relações na sociedade e aceita pelos indivíduos, apesar de perigosas distorções de significados construídos pela indústria cultural. Aproximam-se e equiparam-se os significados de vigilância, cuidado, proteção e segurança. Essa equalização é uma estratégia ideológica da mídia para confundir os indivíduos. A fim de elucidar as diferenças de sentido entre essas categorias, investigaram-se os significados lingüístico e etimológico desses termos. Resgatando-se etimologicamente a palavra “vigilância”, foi possível não só diferenciar vigilância e segurança, mas também identificar características da prática social da vigilância, o que impossibilitou-nos encará-la como cuidado ou segurança da população. Analisamos, por fim, os mecanismos psíquicos envolvidos devido à aceitação e reprodução da vigilância pelos indivíduos. A violência simbólica está implicada nesse processo e na repercussão de toda essa confusão simbólica nas relações sociais e nos vínculos afetivos.

Palavras-chave: Vigilância, Segurança, Cultura do medo, Ideologia, Subjetividade.


ABSTRACT

This is a bibliographical research that problematizes the issue of vigilance as a social practice and as an ideology, disseminated in social relations and accepted by individuals, despite dangerous distortions of meanings constructed by the cultural industry. The meanings of vigilance, care, protection and security are equivalent. Such similarity is an ideological strategy of the media to confuse individuals. In order to elucidate differences in meaning between those categories, the linguistic and etymological meanings of those terms were investigated. Retrieving etymologically the word ‘vigilance’, it was possible not only to make a difference between vigilance and security, but also to identify characteristics of the social practice of vigilance, which prevents us from considering it the population’s care or security. Finally, the psychic mechanisms involved as a result of the acceptance and reproduction of vigilance by individuals are analyzed. Symbolic violence is implied in that process and in the repercussions of all that symbolic mess on social relations and affective bonds.

Keywords: Vigilance, Security, Culture of fear, Ideology, Subjectivity.


 

 

Este trabalho, intitulado “A vigilância na contemporaneidade: seus significados e implicações na subjetividade”, surgiu a partir da constatação dos vários pesquisadores, pertencentes e não-pertencentes ao Projeto de Pesquisa Intervenção Phenix: “A ousadia do renascimento da subjetividade cidadão” – ao qual a atual pesquisa está vinculada –, sobre a vigilância ter se tornado cada vez mais banalizada em nossa sociedade. Enquanto muitos defendem seu uso, porque a identifica como proteção, grande parte da população sofre pela presença da violência, dissimulada nas ações de vigiar, o que vem a constituir mais um instrumento de controle da população.

No decorrer das intervenções realizadas junto ao programa governamental “Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano”, pudemos perceber que o discurso oficial (Governo Federal) caracteriza a população pauperizada como um risco social e, por esse motivo, prevê e idealiza formas de controle social que incluem ações de tutela (vigilância) e de represálias contra tal população (Caniato et al., 2002).

O estudo do significado lingüístico de vigilância, bem como o estudo de como a ação do vigiar tem sido realizada em nossas sociedades capitalistas, fezse necessário para melhor entender esse fenômeno que parecia atingir a toda a população, mas não de modo idêntico. Iniciamos nossa pesquisa com esse estudo e, a partir disso, a investigação dirigiu-se a desvelar como a vigilância apresentava-se a cada classe social e quais suas conseqüências mais imediatas e visíveis em uma sociedade capitalista.

O recorte temporal e espacial que fizemos, ao investigar elementos referentes ao cenário estadunidense pós-11 de setembro, pareceu-nos de suma importância neste trabalho, já que o fato evidenciou para o mundo, seja pela mídia impressa ou televisiva, um surto, por assim dizer, de vigilância nos últimos tempos. Esse recorte histórico e geográfico, bem como a análise dos fatos a ele correspondentes, compreendeu a segunda parte de nossa pesquisa e prestou-se a constatação do caráter predominantemente violento (e não protetor) da vigilância.

Por fim, dedicamo-nos a investigar como essa violência implicada na vigilância é assimilada, internalizada e apreendida (mesmo que em nível inconsciente) pela subjetividade do indivíduo contemporâneo. Nessa parte de nossa pesquisa, trabalhamos com a relação indivíduo-sociedade, já que a visão de homem que permeia nossos estudos o concebe como ser que constrói e é construído na relação com o outro, via a mediação da cultura (Leontiev, 1978).

Assim, iniciamos esta parte do trabalho discernindo as estratégias utilizadas pela “cultura do medo” (Glassner, 2003) para fragilizar/confundir o indivíduo. Em seguida, mencionamos os mecanismos psíquicos envolvidos nesses processos, ou seja, como a violência é internalizada e, enfim, como ela é externalizada, ou seja, reproduzida pelo indivíduo, dificultando a formação e a manutenção de vínculos sociais e afetivos significativos e/ou duradouros.

Para conduzir a investigação da mudança que ocorre na sociedade e nas subjetividades no que concerne ao significado da vigilância, pautamos no método de abordagem dialética (Lakatos & Marconi, 1989), que compreende o homem enquanto construtor da cultura por meio de sua atividade material (o trabalho), ao mesmo tempo em que o considera como sustentáculo subjetivo da realidade objetiva na qual está inserido. Dessa forma, o método permitenos historicizar os fenômenos sociais referentes à prática social da vigilância e relacionar as mudanças nas formas de compreender e empreender o vigiar em relação às normas sociais que são os alicerces do ethos cultural em que vivemos.

A opção por esse método de abordagem deve-se à visão de homem que permeia esse estudo (Leontiev, 1978). Como afirma Guinsberg (1994, p. 2), “[…] cada marco social e histórico concreto determina y/o influye en las características también concretas de los modelos de subjetividad predominantes […]” (p. 2). Percebemos que cada momento histórico também exige um modelo de subjetividade para que possa se sustentar.

A técnica utilizada para a realização desse projeto foi a pesquisa bibliográfica que, segundo Lakatos e Marconi (1989), consiste no levantamento de bibliografias publicadas que tenham relação com o objeto de estudo que o possa fazer inteligível e com o intuito de obter informações para respaldar as análises que serão feitas.

Devido à amplitude dos resultados obtidos com o desenvolvimento desta pesquisa, pareceu-nos pertinente dividir esse conteúdo em quatro subitens. Por último, fazemos algumas considerações de como a subjetividade contemporânea é atingida pela vigilância, em um contexto social que a torna instrumento de controle e poder.

 

A vigilância e seu significado lingüístico

Para investigarmos o que vem a ser vigilância, bem como a dimensão social que foi alcançada por ela na atualidade, fez-se necessário compreendermos as modificações históricas relativas ao seu significado lingüístico, ou seja, o que se entende por vigilância desde que ela passou a ser empregada e entendida pelos sujeitos como um elemento de sua prática cotidiana, ao se relacionarem uns com os outros no processo de construção social.

Entendemos a linguagem como materialização do pensamento e como uma mediação dialética por meio da qual o homem se orienta na produção de sua cultura e de sua própria vida, para que, assim, consiga se sujeitar às transformações sociais e históricas. Buscamos, igualmente, a derivação etimológica desse termo, pois pensamos ser esclarecedor identificar que tipo de significado e de prática essa palavra serviu para nomear. Acreditamos, assim, estarmos mais aptos para confrontar essas práxis com os significados das ações de vigilância atuais para entendermos como ela se insere e determina as relações na sociedade.

O verbo vigiar, no Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (1986, p. 673), possui, dependendo da função com a qual seja empregado em uma frase, diferentes significados. Assim, utilizado como verbo transitivo direto, vigiar significa “observar atentamente, estar atento a, atentar em, velar por, procurar, campear, tomar cuidado, observar ocultamente, espreitar” (p. 673). Já como verbo intransitivo, essa palavra significaria “estar acordado ou atento, estar de sentinela, estar alerta, velar” (p. 673). Os supracitados significados não são sinônimos como se poderia pensar. Quando nos deparamos com o sentido de cada um deles, há uma divergência entre si, no que tange às diferentes implicações que tais atos poderiam ter. Quando falamos em velar, remetemonos a uma idéia de cuidado e até de respeito, sendo este, inclusive, um termo também utilizado para os rituais pós-morte. Por outro lado, há uma dimensão de incursão e perigo implícita no significado de espreitar. Aquele que espreita, ao contrário de quem vela, geralmente, não terá sua ação permeada por amor e cuidado, já que espreitar é observar ocultamente, sem a permissão ou sequer o conhecimento do observado. Desse modo, tratar-se-á, de qualquer forma, de uma invasão, ainda que não esteja envolvida no ato a intenção de ferir ou prejudicar o outro. Podemos constatar certa incompatibilidade nos significados de vigilância, bem como a facilitação da própria língua portuguesa para que tal contradição ocorra. Não obstante, é possível encontrar um elemento comum em todos os significados por meio da recuperação da etimologia dessa palavra.

Vigiar, de acordo com o Dicionário Etimológico Nova Fronteira (1982), deriva-se da palavra latina vig-lre, formada a partir do radical vig-l, que, por sua vez, segundo o Dicionário de Latim-Português (1983), forma também outros verbetes latinos com significados semelhantes, tais como: o substantivo feminino vig-l-a (vigília, insônia), o adjetivo vig-lãns (atento) e o verbo vig-lõ (velar, não dormir, estar acordado). Coerentemente, em relação aos seus derivativos, vig-l é um adjetivo e corresponde a “estar bem vivo, bem acordado, atento”.

Podemos entender que vigilância, definida como ação ou efeito do vigiar, refere-se ao ato ou ao resultado de um indivíduo ou um grupo estar em um estado de alerta permanente. Sob essa perspectiva, mesmo os significados supracitados como aparentemente opostos, parecem confluir para um mesmo sentido, já que ambos (velar e espreitar) remetem-nos à idéia de permanecer atento, seja no sentido de proteger o sujeito que se vigia, de precaver-se contra ele mesmo ou de conhecer suas fraquezas para melhor poder atacá-lo. A vigilância, portanto, terá diferentes implicações, dependendo de quem (ou o quê) é o vigilante, com que intuito vigia e quem é vigiado.

Apesar disso, o que se observa quanto ao significado de vigilância na atualidade é sua equiparação e identidade com a idéia de segurança. Isso se dá, principalmente, nos anúncios das empresas de private security e nas cada vez mais numerosas notícias impressas ou televisivas sobre a violência urbana. Os produtos destinados à vigilância (câmeras, sistemas de identificação e monitoramento via-satélite) são tidos como equipamentos de segurança, assim como as empresas e os serviços oferecidos autodenominam-se como segurança privada. Do mesmo modo, os recursos de vigilância empregados pelo Estado são justificados pela segurança da população a que, supostamente, destinar-seiam proporcionar. Sobre tal assunto, Abeche (2003, p. 151) afirma: “A primeira justificativa da proposta de uma vigilância absoluta surge como um antídoto para a insegurança e o medo advindos da violência disseminada, não apenas no âmbito mais restrito, mas até em âmbito global” (p. 151).

 

Significado social da vigilância: a insegurança pós-moderna e a ação dos instrumentos midiáticos na identificação da segurança com a vigilância

Do mesmo modo, a mídia, como instrumento da indústria cultural (Adorno & Horkheimer, 1985) e instância privilegiada do poder simbólico, capaz de “prescrever o nome adequado das coisas, de batizar, segundo os cânones da modernidade tecnológica e comercial” (Sodré, 2002, p. 61), passa também a empregar “vigilância” como sinônimo de “segurança”, com eficácia suficiente para incorporar tal prerrogativa no discurso social. A aceitação da vigilância como instância ubíqua em nossa sociedade começa então a ser empreendida.

A importância dessa equiparação entre vigilância e segurança reside no fato de que esta última configura-se como um dos bens de consumo mais prezados no mundo contemporâneo, de acordo com Bauman (1998). O autor afirma que nossa época, denominada “pós-modernidade”, está cada vez mais vivendo sob a égide do medo e da insegurança, a qual não se refere apenas à integridade física e moral dos indivíduos, mas, de forma geral, à própria configuração política e econômica do planeta, a ponto de podermos afirmar que vivemos em uma “atmosfera do medo ambiente” (Bauman, 1998, p. 33). Para o autor, esse clima de insegurança crescente estaria associado ao modo de se viver atual, que é caracterizado pela exacerbação da liberdade individual e por sua elevação à condição de valor supremo, em detrimento do respeito ao outro. Ao mesmo tempo, vive-se a “desregulamentação universal” do mercado, o desaparecimento do emprego, uma organização geopolítica cada vez mais ilógica e, assim, imprevisível, levando, por último, à desintegração dos laços afetivos e de parentesco.

Para Bauman (1998) a coexistência de todos esses fatores geraria um clima de insegurança perene e, por esse motivo, a necessidade mais presente, em nossa época, segundo o autor, seria justamente a de estar seguro. Simultaneamente, as dificuldades de satisfazer-se essa necessidade, entretanto, estariam nas próprias características conjunturais e estruturais do sistema socioeconômico que a geram. O capitalismo de consumo “ tal como esse sistema se define hoje “ caracteriza-se pela escassez de emprego, bem como pelo desaparecimento dos meios de amparo estatais.

Nesse clima, os consumidores “são ajudados e favorecidos por um mercado inteiramente organizado em torno da procura do consumidor e, vigorosamente, interessado em manter essa procura permanentemente insatisfeita” (Bauman, 1998, p. 23). Todos nós somos então convidados a experimentar sensações sempre novas e cada vez mais intensas, por meio de produtos cuja criação é calculada para “o máximo impacto e obsolescência imediata” (Bauman, 1998, p. 127-128). Desse modo, a aflição da incerteza torna-se suficientemente atrativa para induzir o sujeito a desejar sua permanência nessa situação. Trata-se da reeducação do desejo, agora por agências extrafamiliares, das quais se destaca a mídia como instância simbólica preponderante (Severiano, 2001).

Ocorre que esse grande engodo do capitalismo atinge a todos de maneira ampla e eficaz. O poder de abrangência da mídia é suficiente para a criação de um novo ethos (Sodré, 2002) e de uma nova moral: a do consumo, fundada na possibilidade de auto-realização e de felicidade, ideologicamente atribuídas ao mero ato de consumir (Severiano, 2001). Todavia, em uma sociedade de classes, há aqueles privados do poder do consumo constante, aos quais Bauman (1998, p. 24) denomina “consumidores falhos” (p. 24). Essas pessoas, segundo esse autor, são consideradas a impureza dessa sociedade consumista, dada sua incapacidade de responder aos atrativos do mercado de infinitas possibilidades, constante renovação e livre comércio que caracterizam esse “capitalismo turbinado” (Luttwak, 2001, p. 49). Conforme esclarece Bauman (1998), todos os esforços de manter-se a “pureza” dessa sociedade serão feitos no sentido de separar esse refugo menos privilegiado do consumismo daquela parte mais afortunada da população.

Por esse motivo, as já citadas condições de vulnerabilidade, responsáveis pelo clima de insegurança às quais todo indivíduo pós-moderno está sujeito, obviamente, não atingirão a todos de maneira idêntica. Apesar de a pobreza e miséria serem uma característica indelével de nosso sistema de produção, a óptica imposta pelo Capitalismo (entenda-se pela classe dominante) faz que esse problema social passe a ser compreendido como conseqüência imediata de vícios e malignidades inerentes aos indivíduos pobres (Coimbra, 2001).

Essa estereotipização social produz a criminalização da pobreza e a culpabilização do indivíduo por um problema construído socialmente (Bauman, 1998). Com a transformação da classe trabalhadora em eminentemente consumidora, em vez de mão-de-obra explorada (e, assim, produtora), a razão econômica para a assistência a essas pessoas é extinta, de modo que a “indústria carcerária” (Bauman, 1998, p. 49) substitui o antigo Estado de bem-estar social. Os dispositivos da Previdência, antes considerados um direito do cidadão, são hoje estigmatizados como um sorvedouro de dinheiro destinado a vagabundos e incapazes. Concomitantemente, as classes, antes consideradas perigosas, são “redefinidas como classes de criminosos” (Bauman, 1998, p. 57).

A “indústria da prisão” (Nils Christie apud Bauman, 1998), assim como a “indústria do medo” (Duclos, 2005), passam a ser encaradas, então, como um destinatário necessário de grande parte dos recursos estatais e privados das sociedades ocidentais pós-modernas, bem como pontos-chave das plataformas de campanhas políticas. De acordo com Bauman (1998), mesmo antes do famigerado 11 de setembro e da subseqüente implantação da chamada “doutrina Bush” (Zizek, 2003, p. 12), vários ícones mundiais de poder, como Bill Clinton, utilizaram a promessa de investimentos nesse setor para ganharem suas eleições presidenciais.

Entretanto, dada a inviabilidade de trancafiar todos os pobres em penitenciárias, há de se lançar mão de outras alternativas. Nesse contexto é que as empresas de private security se instalam, com suas câmeras de vigilância, guardas armados, alarmes eletrônicos e toda a parafernália que, supostamente, destina-se a manter seguros os lares e empresas do consumidor amedrontado.

Segundo Duclos (2005), a estrutura do chamado capitalismo do medo concentra não só poderes políticos, econômicos, jurídicos e simbólicos (midiáticos), como também mobiliza a ciência e a tecnologia, na busca do aprimoramento dessa nova e promissora fatia de mercado. Por meio de softwares inteligentes, aparelhos de raios x, sistemas de identificação por radiofreqüência, satélites e outros sistemas de rastreamento, os novos produtos da chamada “tecnologia de controle” (p. 3, grifos nossos) prometem manter, sob vigilância, todo e qualquer indivíduo. Enquanto isso, a ideologia dominante, fundamentada em um clima de medo perene, promove a aceitação do “controle preventivo generalizado como nova normalidade da existência humana”. Glassner (2003, p. 27) afirma, porém, que há duas classes de perigos que permeiam essa atmosfera de medo na contemporaneidade: aqueles que realmente ameaçam nossa existência ou nosso bem-estar e aqueles fabricados e veiculados pela mídia a fim de servirem a interesses específicos e ocultos da maioria da população. O autor afirma ainda que esses últimos são justamente aqueles que mais mobilizam nossos recursos, tanto economicamente (incluindo os recursos públicos) quanto psiquicamente. Aos perigos reais dá-se uma importância secundária; sequer os mencionamos (p. 27).

A explicação para essa inversão de prioridade, segundo o autor que prefacia a edição brasileira do livro de Glassner (2003, p. 18), leva em conta o pavor de como a mudança é vista em uma sociedade calcada em desigualdades sociais profundas, de forma que “continuamos a investir nossos medos nos alvos mais improváveis, a dissimular o que efetivamente nos inquieta” (p. 18). O autor deixa bem claro, no entanto, que esse horror à modificação da sociedade não se refere a uma característica inerente dos indivíduos. A percepção do medo, na atualidade, está altamente contaminada pela manipulação da propaganda de caráter essencialmente político.

Glassner (2003, p. 55) considera que esses embustes oferecidos pela mídia constituem-se “oportunidades de evitar problemas que não queremos enfrentar” (p. 55), ou porque parecem demasiadamente complexos ou porque são aceitos como uma realidade imutável. O autor deixa claro, entretanto, o papel do poder político aliado ao poder econômico, para sustentar a chamada “cultura do medo”, ainda que a maior parte dos argumentos possa ser falsa:

Se a maior parte dos exemplos era insustentável, como os conservadores conseguiram engendrar o pânico com tanto sucesso? Dinheiro: eis uma resposta sumária, mas não incorreta […]. Algumas fundações de direita, […] além de pessoas físicas e jurídicas, financiaram uma rede nacional de organizações […]. Com um orçamento anual de quase US$ 1 milhão, a NAS1 tinha recursos necessários para suprir continuamente os políticos e a imprensa com discursos, declarações, historietas e artigos op-ed. (Glassner, 2003, p. 63)

Para continuarmos investigando a dimensão alcançada pela vigilância no cenário contemporâneo, faz-se necessário mencionar outro fator importante para a aceitação do vigiar em nossa época: a fama, apontada por Abeche (2003, p. 7) como “edulcorante que encobre a violência e o horror implícito na vigilância” (p. 7).

A vigilância, transformada em mercadoria espetacular por meio dos chamados reality shows, encerra em si, concomitantemente, um meio e um fim no contexto do espetáculo (Debord, 1997). Ao mesmo tempo em que é vendida como pré-condição para a fama, pois é por meio do olhar onipresente e vigilante do púbico que os indivíduos-atores são vistos e conhecidos em sua suposta intimidade, a vigilância torna-se um espetacular por si mesma. São os holofotes, a gravação e a transmissão de imagens em todo o território nacional, assim como os altos índices de audiência constatados (ou seja, a vigilância exercida pelo público), que conferem a esses programas o caráter de conspicuous production (Adorno & Horkheimer, 1985), ou seja, de superprodução glamourizada e glamourizante.

Todo esse glamour, evidenciado nesses denominados “shows da realidade”, é corolário de uma sociedade escópica, caracterizada por Abeche (2003, p. 147) como aquela que “impõe uma existência vinculada à visibilidade e, para isso, amplia cada vez mais a vigilância e o controle sobre cada indivíduo” (p. 147). Dessa forma, não somente se engendra a banalização da vigilância, como também sua aceitação como algo bom e desejável, como parecem querer fazernos crer os anúncios que se proliferam nas lojas, bancos e vários lugares públicos e privados: “Sorria, você está sendo filmado!”

 

A vigilância como instrumento do Capital e do poder político

Neste ponto de nosso trabalho trataremos de um tipo específico, de forma alguma desconectado de outros tipos de vigilância: aquela praticada pelos Estados nacionais, dando especial destaque aos mais poderosos, sobretudo, aos Estados Unidos. Destacaremos o papel da vigilância como mantenedora da dominação dos países mais ricos sobre os demais, em um âmbito global (Bandeira, 2005), assim como da situação de criminalização/tutela dos cidadãos pelo Estado com objetivos predominantemente econômicos, visando a manutenção do status quo (Ianni, 1981).

Quando falamos de vigilância de caráter político e em nível mundial, remetemo-nos ao maior projeto de vigilância já empreendido nesse sentido: o chamado Projeto Echelon, caracterizado por Rogério Costa (2005, p. 4) como um “esforço de vigilância jamais visto” (p. 4) e que, segundo Delemos (2006), coloca todos habitantes do planeta em uma situação semelhante a de um Big Brother, ou seja, em um clima de vigilância constante.

Segundo Azevedo (s. d.), a implantação do Echelon teve como ponto histórico de partida o acordo feito durante o período da Guerra Fria, mais precisamente em 1948, entre Estados Unidos e Reino Unido, com adesão posterior do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia. Esse acordo foi denominado “Pacto Ukusa” (Azevedo, s. d., p. 1) e tinha, durante esse período, como principal objetivo monitorar informações provenientes do eixo soviético e de outros Estados inimigos, tais como Alemanha e Japão.

O “Sistema Echelon” refere-se a “uma sofisticada máquina cibernética de espionagem” (Azevedo, s. d., p. 1), sendo capaz, na atualidade, de interceptar e decodificar praticamente qualquer informação transmitida por rádio, telefone, fax e mesmo por e-mail, no mundo inteiro. Trata-se de uma poderosa interconexão de todos os sistemas de escuta, cuja imensa massa de informações captadas são pré-selecionadas por meio de um sistema de inteligência artificial. Esse sistema é programado com palavras-chave consideradas significativas, para posterior avaliação dos agentes da NSA, em sua maioria matemáticos, engenheiros, lingüistas, físicos e oficias de segurança. Rogério Costa (2004), resumidamente, descreve o que seria a estrutura e o modo de funcionamento do Echelon:

[…] estações de interceptação de sinais em todo o mundo capturam todo o tráfego de comunicações via satélite, microondas, celular e fibra ótica, processando essas informações em computadores de alta capacidade. Isso inclui programas de reconhecimento de voz, programas de reconhecimento de caracteres, procura por palavraschave e frases no dicionário Echelon, que capacitam o computador a marcar as mensagens, gravá-las e transcrevê-las para futuras análises. (Costa, R., 2004, p. 4)

A captação das informações, conforme explica Delemos (2002), dá-se por meio de uma rede de 25 satélites, os quais são operados em cinco bases principais, duas delas localizadas nos Estados Unidos, e as demais na Grã- Bretanha, na Nova Zelândia e na Austrália. As bases secundárias encontram-se hoje espalhadas por 20 países. As informações provenientes da América Latina são processadas na estação de Sabana Seca, localizada em Porto Rico. Segundo o autor, o Echelon constitui-se um sistema de vigilância cuja abrangência é sem precedentes, já que cerca de 95% de toda a comunicação global passam por seus computadores.

Conforme nos afirma Rogério Costa (2004), não obstante o Echelon ter sido criado com fins de espionagem política, constituindo-se uma das mais importantes armas de guerra das forças aliadas, e tendo, portanto, como guia de suas atividades as questões militares e diplomáticas, já a partir dos anos 1960, ele passa a ser utilizado também para interceptar informações dos campos econômico e científico. A respeito da vigilância no âmbito do comércio internacional, o autor declara:

O governo Clinton, por exemplo, teria apoiado, em 1993, a atuação das operações de interceptação no plano comercial. É significativa a lista apresentada por Campbell das empresas americanas que teriam vencido concorrências graças à intervenção do governo norte-americano e com a ajuda de informações obtidas pela NSA. (Costa, R., 2004, p. 4)

Um exemplo dessa vigilância econômica realizada pelo projeto Echelon, no qual o Brasil esteve diretamente envolvido, nos é dado por Azevedo (s.d). Tratouse do episódio em que as comunicações feitas entre o governo Fernando Henrique Cardoso (em seu primeiro mandato) e a empresa francesa Thompson foram interceptadas. O conteúdo dessas negociações dizia respeito à compra de equipamentos de vigilância para a implantação do projeto Sivam – Sistema de Vigilância da Amazônia. Segundo o autor, a Thompson foi derrubada pela empresa norte-americana Raytheon, com a ajuda dos dados obtidos pelo sistema Echelon. De acordo com Faria (2006), os americanos também ficaram responsáveis por parte do financiamento necessário à execução do Sivam.

Essa mudança de foco da vigilância, viabilizada pelo Echelon, passando do político ao econômico, não se configura como um fator isolado ou exclusivo do governo de Clinton nos Estados Unidos, conforme nos permite compreender Luttwak (2001), ao afirmar que, no mundo contemporâneo, de forma geral, a guerra travada entre os Estados nacionais é eminentemente econômica. A vigilância econômica em nível internacional seria, portanto, mais uma arma utilizada nessa disputa. O autor faz uma analogia entre a guerra militar e essa nova guerra, batizada por ele de “geoeconomia”, na qual:

[…] o capital de investimento para a indústria fornecido ou orientado pelo Estado equivale ao poder de fogo; o desenvolvimento de produtos subsidiados pelo Estado é o equivalente da inovação armamentícia; e a penetração de mercado apoiada pelo Estado substitui as bases e as guarnições militares em território estrangeiro. (Luttwak, 2001, p. 160)

Sodré (2002) também enfatiza a utilização de sistemas informacionais preconizados, no período da Guerra Fria, para receptar informações úteis às grandes corporações econômicas na atualidade. O autor menciona a utilização do Echelon para espionagens de caráter econômico e industrial, em vários lugares do mundo, como China, Rússia, países membros da União Européia e América Latina, caracterizando tal forma de vigilância não como um ato de proteção do Estado para com seus cidadãos, mas justamente o oposto disso, ou seja, a descaracterização do cidadão político pela vigilância contínua e imobilização deste na mera função de consumidor. Designa essa forma de vigilância como “infocontrole” ou “datavigilância” (Sodré, 2002, p. 15).

Segundo Rogério Costa (2004), a utilização do Echelon pelo governo Bush esteve mais voltada para o crime organizado e para grupos dos assim denominados terroristas. A “Estratégia de Segurança Nacional dos EUA”,2 montada ainda em seu primeiro mandato, cerca de um ano após os atentados de 11 de setembro, denuncia a intenção de vigilância absoluta do governo estadunidense, usando o subterfúgio da segurança e proteção contra o terrorismo, como é possível perceber no seguinte trecho do documento, traduzido por Vaz (2004):

Terroristas estão organizados para penetrar em sociedades abertas […]. Para derrotar essa ameaça, nós devemos fazer uso de toda ferramenta em nosso arsenal – poderio militar, melhores defesas do território, garantia de obediência às leis, inteligência e esforços vigorosos para cortar o financiamento de terroristas. […] E como é um problema de senso comum e autodefesa, a América vai agir contra as ameaças desses inimigos antes que elas estejam totalmente formadas. (Vaz, 2004, p. 1-2)

Como podemos perceber, a utilização da vigilância, inclusive internacional, está implícita nesse trecho, pois os Estados Unidos não teriam como saber sobre ameaças, antes mesmo de elas estarem prontas para agir, caso não utilizasse seu poderoso arsenal tecnológico, sobretudo, as tecnologias e sistemas de vigilância. A segurança nacional e a paz mundial são mencionadas nesse documento como os objetivos principais a serem atingidos. No entanto, conforme a análise de vários autores que apresentaremos em seguida, o objetivo dessa vigilância mostrou ser, predominantemente, de caráter econômico.

De acordo com Bandeira (2005, p. 653), o sistema Echelon esteve monitorando comunicações entre Bin-Laden e a organização chamada al-Qaeda mesmo antes dos famigerados ataques que ocorreram no dia 11 de setembro de 2001. Segundo o autor, a NSA teria interceptado 34 comunicações de Bin- Laden e enviara um relatório ao presidente Bush no início de agosto daquele ano, informando acerca da possibilidade de seqüestros de aviões e atentados em território norte-americano. Essas informações, entretanto, de nada serviram para evitar os referidos ataques ou proteger a população, como ficou evidente; exceto, é claro, para os oficiais de alto escalão do Pentágono, que teriam cancelado seus vôos na noite anterior ao dia 11 de setembro (p. 653).

Por meio de uma extensa análise da própria documentação americana, Bandeira (2005) chega à conclusão de que não somente os órgãos de segurança dos Estados Unidos sabiam que os ataques ocorreriam, como também se conectaram para permitir que acontecessem. O autor afirma que não houve falha alguma do sistema de segurança ou de inteligência, mas sim um entrelaçamento de interesses que resultaram em uma espécie de voto de silêncio, totalmente conivente com a ocorrência daquele atentado. A conveniência desse episódio se expressa em diferentes resultados dele advindos, a saber: o fortalecimento político do presidente e a repressão aos movimentos que se opunham à sua duvidosa candidatura; o impulso dado às atividades da CIA, que, desde 1994, encontrava-se ameaçada de extinção; a valorização das ações de várias empresas controladas pelo Carlyle Group.

Segundo Freud (1929/[ 1930]/1981), somente é possível unir um povo, por meio de fortes laços libidinais, quando existe outro grupo a quem se destinem os impulsos destrutivos, ou seja, o ódio e a agressividade. Esse entendimento permite-nos não só compreender melhor a exacerbação do nacionalismo ocorrida nos Estados Unidos, após os atentados, mas também o porquê de o pânico gerado e disseminado pelos meios de comunicação constituir-se uma ferramenta útil para Bush empreender seu plano de dominação. O que ficou oficialmente conhecido como USA Patriot Act, o qual previa o uso maciço da vigilância e monitoramento eletrônico de qualquer cidadão norte-americano, representou, de acordo com Bandeira (2005, p. 646), uma investida contra os direitos civis, com implicações tão amplas “que poderia ser usado contra qualquer tendência política que praticasse a desobediência civil” (p. 646). Dessa forma, qualquer oposição ao regime adotado por Bush estava passível de ser considerada uma manifestação antinacionalista, ou mesmo uma adesão ao terrorismo. Segundo o autor, não somente os direitos civis, mas também os direitos humanos dos americanos foram violentados, ao ponto de ter sido permitido efetuar detenções de cidadãos sem acusação prévia ou julgamento legalmente determinado. O Patriot Act representou, portanto, uma investida contra as liberdades individuais e contra os cidadãos, e não a sua proteção, como se pretendeu fazer acreditar.

Bandeira (2005), por várias vezes, tece comparações e analogias entre o governo Bush e o regime totalitário implantado por Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. O autor afirma que, do mesmo modo que o incêndio do Reichstag, ocorrido em 1933, levara Hitler a obter uma autorização prevista em lei (denominada “Ermächtugungsgesetz” (Bandeira, 2005, p. 645)), para implantar o Estado totalitário nazista, os atentados de 11 de setembro oportunizaram a aprovação, praticamente unânime, do USA Patriot Act pelo Congresso norte-americano. Esse ato, por sua vez, destinou-se a criar, conforme observa Bandeira (2005, p. 646), condições para implantar um “Estado policial” (p. 646) nos Estados Unidos, cujas características de restrição aos direitos civis, garantias individuais e liberdade pública também lembram muito a Alemanha nazista. Além disso, a criação do OSI – Office of Strategic Influence – dentro do Pentágono, pelo secretário de defesa de Bush, Donald Rumsfeld, cumpriu a função de divulgar falsas informações, transformando importantes jornais e redes de televisão dos Estados Unidos em “agências de propaganda bélica” (Bandeira, 2005, p. 707). Essa atuação governamental não contribuiu para a informação e sim para a desinformação maciça, tanto dos cidadãos norteamericanos quanto os de outras nações, a fim de manipular a opinião pública favoravelmente em relação à guerra contra o Iraque. Semelhante objetivo teria o Ministerium für Propaganda und Volksaufklärung, dirigido por Joseph Goebbels durante o Terceiro Reich.

Essa aproximação entre Hitler e Bush é feita também por Zizek (2003). Segundo ele, a chamada Estratégia de Segurança Nacional, sustentada por Bush, apóia-se na lógica de que o poder americano deve permanecer incontestável, observando-se que os Estados Unidos teriam o direito, inclusive, de empreender ataques preventivos, ou seja, sem que a ameaça esteja evidente e sem necessitar, para tanto, sequer de uma aprovação internacional representativa. O autor define a “doutrina Bush” (Zizek, 2003, p. 12) como sendo de caráter paranóico e, ao mesmo tempo, violento. Destaca o fato de que se viver em uma atmosfera de medo perene, apoiado em uma suposta ameaça constante, pode ser considerado tão terrível ou mesmo pior que a própria catástrofe que se supõe iminente. É esse medo, juntamente com o que chama de “lógica da vitimização” (Zizek, 2003, p. 14) que, segundo o autor, justificarão a ideologia dominante cunhada pelo “establishment conservador americano” (Zizek, 2003, p. 13), senão com nenhum intuito de impor o estilo de vida consumista norte-americano, de forma irrestrita e a todo o mundo.

Sodré (2002) aponta a globalização e o neoliberalismo como uma tendência político-econômica do século XX e afirma que isso seria uma conseqüência necessária da expansão econômica vivenciada pelos Estados Unidos nessa mesma época. Afirma que seria vital para a economia norte-americana difundir seus produtos e seu estilo consumista não apenas em âmbito doméstico, mas também de forma global.

A vigilância insere-se, nesse contexto, como um instrumento importante para o capital monopolista estadunidense manter seu poderio sobre o mundo e expandir-se para áreas do globo ainda não conquistadas de forma efetiva. Podemos concluir, além disso, a partir do que expomos até aqui, que a “cultura do medo” tem uma finalidade bem definida dentro desse sistema expansionista, dentro e fora dos Estados Unidos. Do mesmo modo, a vigilância, como corolário necessário dessa cultura que usa o medo dos indivíduos para mantê-los desunidos e acuados, constitui-se um poderoso instrumento de controle sobre a população (ou populações) e de captura de informações em âmbito global.

 

A subjetividades em tempos de terror: o sofrimento psíquico e o desamparo do indivíduo na sociedade vigilante

Após termos contextualizado a vigilância na contemporaneidade, perpassando as estratégias sociais ligadas à sua aceitação e reprodução, bem como sua utilização como instrumento de poder político e econômico, passaremos a discutir os seus desdobramentos em nível subjetivo. Abordaremos, assim, algumas características do aparelho psíquico que, segundo uma visão psicanaliticamente orientada, estariam relacionadas com a aceitação/reprodução da vigilância pelos indivíduos. Subseqüentemente, discutiremos as conseqüências da disseminação do “vigiar” no plano das relações afetivas.

Como já explicamos anteriormente, a disseminação da prática do vigiar no tecido social está ligada à chamada “cultura do medo” e à associação contínua e praticamente ubíqua na mídia entre vigilância e segurança. Mas seria essa a função do medo? Seria o medo o grande responsável pelas políticas públicas destinadas ao policiamento da população, assim como pela proliferação cada vez mais evidente das empresas de private security e dos produtos destinados à vigilância? Uma análise mais cuidadosa a respeito desse sentimento demonstranos que um “sim” a essas perguntas seria, no mínimo, uma resposta insuficiente, para não dizer incorreta.

Freud (1921/1948a, p. 262-263) considera o medo, assim como o estado afetivo que lhe acompanha, ao qual denomina ansiedade, como uma manifestação do instinto de autopreservação, já que esse estado, caracterizado como “um aumento da atenção sensória e da tensão motora” (p. 262-263), diz respeito a uma resposta do organismo à percepção de um perigo iminente. Ele prepara o indivíduo para fugir ou defender-se, conforme o que lhe for mais pertinente na situação, ou seja, para combater a ameaça, segundo suas condições físicas. O autor constata, assim, que o medo é uma característica protetora do ser humano e que sua ausência poderia acarretar conseqüências desastrosas tanto para o indivíduo como para a nossa espécie.

Chauí (1993, p. 61), ao referir-se à “cultura do medo”, afirma que essa é também uma cultura de submissão suprema. Para a autora, devido ao medo, o indivíduo fica exposto às flutuações de ânimo e à superstição, que se caracteriza como “maneira de viver, existência entristecida que, na busca de alívio para o medo, dá ensejo ao desespero que, por seu turno, buscando alento, abre as comportas da servidão” (p. 61).

Chauí (1993, p. 60) ainda esclarece o papel de cada classe nesse cenário, já que estamos nos referindo a uma sociedade capitalista. A “servidão suprema” (p. 60) é vivenciada pela plebe (classe economicamente menos favorecida), já que se encontra sob condições de flagrante vulnerabilidade psicossocial e, desse modo, acuada e amedrontada. Esse medo, entretanto, pode levar tanto à obediência e submissão de que nos fala a autora quanto a atitudes semelhantes às sintetizadas por Bauman (1998, p. 42): “[…] atitudes bizarras, quebrando normas, quebrando garrafas, janelas, cabeças, e lançando retóricos desafios à lei” (p. 42). É forçoso ressalvar, entretanto, que em nosso contexto social e histórico, nenhuma dessas atitudes tem sido tomada no sentido de empreender uma transformação social.

Bauman (1998, p. 41) apresenta uma concepção semelhante à de Chauí (1993), ao afirmar que as pessoas pobres vivenciam o mundo “como uma armadilha, não como um parque de diversões” (p. 41). Os prazeres e as diversões, por sua vez, estariam destinados àqueles a quem sobram os recursos para ceder à “sedução do mercado” (Bauman, 1998, p. 55). A preocupação com a perpetuação do deleite, entretanto, faz a classe dominante temer também a classe mais desfavorecida, já que esta expressa, por sua própria existência, a parte desagradável e opressora das contradições inerentes ao sistema capitalista, a saber: a produção concomitante da riqueza e da pobreza, guardando em si o potencial de rebelar-se contra o sistema.

Por esse motivo, Chauí (1993, p. 41) afirma que a “cultura do medo” é “alicerçada sobre o horror à plebe” (p. 41). O horror, todavia, não geraria a mesma covardia obediente da classe menos privilegiada, pois “os pilares da moral da valentia erguem um edifício onde coragem é virtude natural dos nobres e obediência, virtude própria da plebe” (Chauí, 1993, p. 41-42). Isso significa que o discurso da classe dominante encoraja os que já estão no poder a manter-se desse modo com bravura, enquanto determina que os subordinados se mantenham em sua condição de sujeição à ordem vigente.

Mas qual seria, então, a forma assumida pela covardia da classe dominante em reação ao seu horror à plebe? De acordo com Bauman (1998, p. 25), a tendência mais comum frente à preocupação com o que chama de “pureza do deleite pós-moderno” (p. 25) seria a incriminação dos problemas socialmente produzidos. Em outras palavras, frente ao medo da pobreza e dos pobres, a classe dominante reage com a criminalização deles. Já não se trata de lhes atribuir apenas periculosidade, o que seria lhes conferir um potencial perigoso, mas sim de definir toda essa classe como “classe de criminosos” (Bauman, 1998, p. 57), como se a criminalidade fosse uma pré-condição para pobreza ou sua conseqüência necessária.

O medo que os detentores de poder têm da plebe (aqueles que não detém o poder), no que se refere ao seu potencial de rebeldia e transformação social, é considerado, assim, a mola propulsora para a classe dominante pretender tornála criminalizada e, desse modo, evitar a legitimidade das contestações à ordem socioeconômica. Por esse motivo, Chauí (1993, p. 41) observa que é com a plebe que “surge o medo do inimigo interno, fantasma da inconfessada percepção da cisão interna à própria sociedade” (p. 41), o que faz nascer também um crescente anseio por segurança. Esta última, entretanto, identificada com a manutenção da ordem vigente, determina, assim, uma espécie de pavor de tudo que seja capaz de perturbá-la, ou seja, de tudo que tenha o potencial de causar alguma transformação em nível socioeconômico.

A pergunta que se nos afigura, dado o exposto, seria então: Se o medo é tão imprescindível à preservação da vida humana, como pode constituir-se também um sustentáculo de um sistema injusto para a maioria dos indivíduos? Responder apenas a essa pergunta parece-nos menos complicado nessas alturas de nossa reflexão: não é o medo em si que perfaz o supracitado sustentáculo. A explicação de como se constrói este último é mais complexa e exige que voltemos nossa atenção para como, normalmente, se dá a percepção do medo: qual o papel da mídia nesse processo quando falamos de um contexto de “cultura do medo”.

Conforme concebe Freud (1916-1918/1948a, p. 262), a percepção de um perigo e a correspondente geração de ansiedade dependem “do estado de conhecimento da pessoa e de seu senso de poder vis-à-vis com o mundo externo” (p. 262). Dessa forma, um sujeito que tem conhecimento de um sinal de perigo, bem como de suas capacidades de enfrentá-lo, utiliza o sentimento de medo e as alterações corpóreas a ele correspondentes para defender-se ou fugir da fonte de ameaça, conforme o que lhe parecer mais apropriado na ocasião. Entretanto, se esse conhecimento é ocultado ou, de alguma forma, impedido de ser vivido pelo sujeito, este permanecerá desavisado e, dessa forma, vulnerável à ameaça. Do mesmo modo, falsos sinais de perigo mostram-se igualmente inconvenientes, já que determinam alterações fisiológicas desnecessárias à proteção do sujeito que tendem a se repetir, sem que ele possa defender-se de tal ansiedade. Freud (1916-1918/1948a) nos adverte que, dependendo da intensidade da ansiedade, ela pode, inclusive, paralisar o indivíduo, em vez de prepará-lo para responder a uma ameaça. Há também a possibilidade da repetição desses estados de ansiedade excessiva e sem ação subseqüente determinar uma neurose ansiosa (em que a ansiedade é denominada flutuante, isto é, sem objeto específico) ou uma fobia (na qual a geração de ansiedade está condicionada a algum ou a alguns objetos ou situações particulares).

Desse modo, o conhecimento, ou seja, a compreensão do indivíduo acerca da situação que vivencia é apontada por Freud (1916-1918/1948a, p. 262) como importante para determinar o tipo de ansiedade gerada, ou seja, se essa será uma “ansiedade realística” (p. 262), definida como uma manifestação do instinto de conservação que prepara o indivíduo para ação de fugir ou lutar; ou se essa será inadequada em intensidade ou fim, não correspondendo, assim, à ação de defesa do organismo frente à ameaça real externa, constituindo-se, por esse motivo, no que o autor denomina “ansiedade neurótica” (p. 264-265).

Ocorre que tal conhecimento dependerá do grau de preservação das funções egóicas do indivíduo, já que o Ego é o responsável por exercer sobre o id as exigências do mundo externo, (Freud, 1921/1948b), ou seja, por manter o contato com a realidade, representando o que comumente se entende por razão, referente às capacidades de discriminar, julgar, escolher, discernir, entre outras. Freud (1921/1948b) afirma ainda que a percepção está para o ego assim como os instintos estão para o id. Se o ego está prejudicado, ou, por algum motivo, impedido de exercer adequadamente suas funções frente às percepções falseadas ou inteiramente ilusórias, a ansiedade não cumprirá adequadamente sua função, determinada pelo instinto de conservação.

Como vimos, uma das principais características da chamada “cultura do medo”, conforme descrita por Glassner (2003), é a fabricação de medos por meio da disseminação de notícias parcialmente ou mesmo inteiramente falsas, que visam atender a interesses, normalmente de cunho político e/ou econômico, de indivíduos ou grupos específicos. Nesse caso, portanto, temos a manipulação da percepção da realidade por meio da utilização de instrumentos midiáticos de significativo poder simbólico que, em última instância, mentem, iludem e manipulam a maior parte da população.

Glassner (2003) esclarece, além disso, que as mentiras referentes à origem das ameaças e perigos são publicadas e, na maioria das vezes, mantidas como verdade, apenas e tão-somente porque há um capital investido para que isso ocorra. Quando o autor afirma que “nos bastidores, milhões de dólares foram gastos para gerar aquele nível de barulho” (Glassner, 2003, p. 63), evidencia-se a existência de interesses caracterizados pelos pesados investimentos que se destinaram à criação e a manutenção das mentiras e ilusões veiculadas pela mídia, com o propósito de disseminar medos convenientes, por assim dizer, para o propósito de alguns detentores de poder.

Assim, podemos dizer que a mídia exerce a função de veicular uma espécie de medo ideológico, pois está contaminada pela ideologia da classe dominante e com o propósito definido de manter uma ordem social que lhe favorece. Segundo Costa (1986, p. 53), a ideologia caracteriza-se como violência simbólica, pois faz que os indivíduos “formem convicções subjetivamente não coercitivas, mas ilusórias, e que, por isso mesmo, passam a ser levados a gerar um ‘poder’ que pode ser usado contra esses mesmos participantes, no momento que se institucionaliza” (p. 53).

Não objetivamos aqui fazer acreditar que não há nada a temer na vida urbana contemporânea, porque acreditamos exatamente no contrário e concordamos com a concepção psicanalítica, segundo a qual o medo é necessário e também protetor do ser humano. O falseamento dos fatos da realidade e sua veiculação pela mídia, como se verdades fossem, entretanto, impede o exercício apropriado das funções do ego no discernimento entre o bem ou o mal, entre o que é perigoso e inofensivo, entre quem é vilão e quem é vítima. Finalmente, fica prejudicado o discernimento do que realmente se constitui ameaça e do que não passa de embuste, deliberadamente criado, para desviar a atenção da população dos problemas sociais que de modo efetivo comprometem e dificultam uma vida digna e relativamente tranqüila. O cidadão fica, então, exposto a uma condição de vulnerabilidade psicossocial.

Glassner (2003) afirma que, enquanto os americanos de classe média e baixa deviam estar preocupados com a taxa crescente de desemprego e com os índices igualmente alarmantes de desigualdade social e pobreza na década de 1990, as notícias referentes à violência urbana proliferavam (ainda que os índices de criminalidade estivessem, na realidade, diminuindo) e a população, cada vez mais assustada, aprovava, em sua maioria, os altos investimentos do governo no custeio da polícia e nas penitenciárias, o que, aliás, não parecia resolver o problema: “[…] gasta-se mais em cadeias do que no ensino superior. […] a transferência dos recursos públicos de programas de bem-estar infantil e antipobreza para o sistema penitenciário não produziu nem mesmo reduções no medo relativo à criminalidade” (Glassner, 2003, p. 26).

Há ainda o que Glassner (2003, p. 37) denomina “pânico em relação à violência contra crianças” (p. 37), caracterizado pelo pavor, segundo ele infundado, que passou a inundar os lares norte-americanos, quanto aos perigos aos quais as crianças estariam expostas, que iam desde supostos professores pedófilos até possíveis pervertidos que colocavam lâminas afiadas ou drogas nos doces do Halloween. Para o autor, esse pavor nada mais é do que uma projeção da culpa de toda uma sociedade que não vem conseguindo oferecer moradia, cuidados maternos e paternos, nutrição adequada, serviços médicos e todos os cuidados, normalmente, necessários ao crescimento e desenvolvimento saudável de suas crianças.

Ainda que deixemos à parte, entretanto, a questão da projeção de culpa, o fato é que tal privação de cuidados atingiu, conforme observa o autor, um número bem maior de crianças do que esses episódios isolados de pedofilia ou crueldade. Muitos desses fatos foram denunciados como mentiras ao final de sua apuração. Apesar disso, pelo grau de sensacionalismo e difusão das notícias, esses poucos episódios mostraram-se com um potencial muito maior para preocupar a maioria das pessoas do que os problemas sociais supracitados. Para Glassner (2003, p. 27), esse é um paradoxo característico de uma cultura do medo, a saber: que os problemas sérios continuam a ser ignorados, “ainda que causem exatamente os perigos mais abominados pela população” (p. 27), enquanto os recursos públicos e privados e os medos da população estão sendo investidos em preocupações substitutivas e/ou supérfluas, as quais são instigadas e, de maneira mentirosa, sustentadas pela mídia.

A respeito das implicações devastadoras da mentira no aparelho psíquico, Caniato (2007) afirma que esta tem uma dimensão ético-moral que vem sendo internalizada e sustentada pelos indivíduos. É acolhida no âmbito da irracionalidade e dos afetos contaminados pela indiferenciação/inversão que o mundo atual impõe à angústia e aos sentimentos dos indivíduos. A autora afirma que a afetividade dos indivíduos é usada em estratégias para confundilos e manipulá-los, o que não ocorreria se eles pudessem usar sua racionalidade para integrar a historicidade e a narrativa nos episódios do dia-a-dia. Ocorre, entretanto, que, sob a ação da mentira e do segredo que oculta a realidade dos fatos sociais e históricos, o monopólio de alguns os distorce ou mesmo os esconde inteiramente da maioria da população e, desse modo, “a atividade relacional da apreensão perceptivo-intelectual não se efetua e a representação simbólica do objeto é feita de forma deformada” (Caniato, 2007, p. 93). Essa privação de informações e o impedimento do uso das capacidades intelectivas/ discriminativas dos sujeitos são considerados pela autora como violência contra eles mesmos.

Costa (1986, p. 58) corrobora com essa idéia, ao afirmar que a “A linguagem em seus conteúdos ou usos contextuais pode tornar-se um instrumento de violência” (p. 58). Portanto, a linguagem da mídia, ao pretender enganar/ iludir ou mesmo desviar a atenção da população de problemas sociais que devem ser encarados e combatidos, está carregada de violência. Podemos considerar que essa violência não fica restrita ao âmbito da palavra, pois é tomada pelos indivíduos como se verdade fosse, e, porque internalizada, passa a ser encarada como convicções próprias que determinam “atitudes concretas e observáveis […] em suas relações com os demais” (Caniato, 2008). Isto quer dizer que, apesar de a ideologia ser determinada socialmente, ela assimila-se à subjetividade do indivíduo de modo que ele seja levado a acreditar que aqueles valores são seus, passando a atuar de acordo com as premissas neles contidas.

A vigilância pode ser considerada uma dessas ações concretas, pois a cultura do medo, com a disseminação da insegurança, não apenas promove a aceitação do vigiar do Estado ou de alguns grupos de poder, mas também acaba por transformar o cidadão vigiado em vigia do outro, à medida que a ideologia reinante é a de que todo mundo é potencialmente perigoso e, assim, precisa-se ficar atento a tudo e a todos.

É essencial ressaltarmos, entretanto, que tal clima de desconfiança mútua não é inaugurado pela “cultura do medo” e sim apenas intensificado e manipulado por ela. O contexto atual do chamado “turbocapitalismo” (Luttwack, 2001; Sodré, 2002), do qual a “cultura do medo” é, aliás, corolário, impinge nos indivíduos seu ideário de competição exacerbada e individualismo extremo, devido ao próprio modo de estruturação no qual há o fenômeno do desaparecimento do emprego, a decadência gradual e cada vez mais acentuada do papel do Estado, no sentido de assegurar meios de amparo e sobrevivência digna do cidadão.

Tendo em vista essa configuração de sistema socioeconômico, a ideologia que o acompanha não poderia deixar de primar pela sua sobrevivência a qualquer custo. Para Bauman (2004), esse é um imperativo em nossa época, observandose que os meios usados para manter-se a sobrevivência são postos fora de questão, à medida que alcançam esse fim. Esse autor afirma ainda que algumas formas básicas e solidárias de relacionar-se com o outro, tais como confiança, compaixão e mesmo a colaboração gratuita (ou seja, sem obter qualquer benefício próprio) passam a ser tidas como “fatores suicidas”, sendo, desse modo, completamente desencorajadas em nossa sociedade. A solidão e o medo do outro passam a preponderar de tal forma nesse contexto que determinam desde comportamentos (incluindo-se aí a vigilância e os hábitos de consumo que sustentam a chamada indústria do medo) até arquiteturas, como nos esclarece o autor: “Os lares de muitas áreas urbanas do mundo agora existem para proteger seus habitantes, não para integrar as pessoas a suas comunidades” (Gumpert & Drucker apud Bauman, 2004, p. 119).

A “cultura do medo” promove, portanto, o agravamento da já existente dissolução dos laços afetivos e sociais, reforçando assim “a velha representação do mundo como uma selva, onde cada um tem de lutar como pode para sobreviver” (Costa, 1986, p. 119). Nesse ambiente hostil, a tendência do indivíduo é voltar-se cada vez mais para si mesmo, buscando, em uma defesa de cunho narcísico, sua autopreservação e fortalecimento psíquico. Essa tentativa, entretanto, mostra-se, além de infrutífera, também condutora a fins equivocados e indesejáveis para o indivíduo, já que, ao invés de fortalecer seu ego, imprime-lhe tendências regressivas, deixando-o ainda mais entregue à autoridade externa e à repressão social, como nos esclarece Costa (1986): “[…] este recentramento corpóreo do individualismo repercute penosamente no psiquismo do sujeito, levando-o compulsoriamente a recorrer cada vez mais a agências de controle” (p. 120, grifo do autor).

Bauman (2004), do mesmo modo, defende a idéia de que quanto mais os indivíduos se agarram a si mesmos, mais eles tenderão a ficar indefesos e desamparados. Podemos afirmar que isso ocorre, em primeiro lugar, porque, conforme nos esclarece Severiano (2001, p. 124), “o equilíbrio psíquico depende de um balanceamento energético entre os investimentos do ego e dos demais objetos” (p. 124), pois que, mesmo para a imagem unificada de corpo, necessária à constituição do ego, depende-se do olhar libidinizado e libidinizador do outro. Além disso, sozinho, o indivíduo é impotente para empreender mudanças em si mesmo e em seu coletivo (Caniato, 2008), de modo que a tentativa de prescindir do outro em busca de tornar-se todo-poderoso não pode resultar senão em mais fragilidade para o sujeito e conseqüente conformismo à ordem social posta (Enriquéz, 2003).

A aceitação e reprodução da vigilância pelos indivíduos, por sua vez, também se denuncia como uma estratégia infecunda, já que, exceto por breves períodos e de forma, portanto, ilusória, a vigilância não se mostra capaz de propiciar a esperada segurança que se busca nela. Isso ocorre, principalmente, por dois motivos: em primeiro lugar, a vigilância realizada, tanto pelo Estado quanto pelos grandes conglomerados econômicos, não objetiva proteger ou beneficiar aqueles que são vigiados, mas utilizar as informações em benefício próprio como meio de manter o poder. Ao exercer uma vigilância de forma análoga à descrita por Foucault (1977, p. 153), que o autor denomina de poder disciplinar – o qual tem por fim “adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor” (p. 153) –, a vigilância acaba por conduzir à já mencionada estratégia de atomização dos indivíduos como forma de obter tal adestramento. O segundo motivo para a vigilância não trazer a tranqüilidade buscada pelos indivíduos refere-se ao próprio caráter ideológico dos medos nos quais ela se sustenta. Tais medos, como já dissemos, não passam de medos substitutivos frente às verdadeiras angustias que a configuração atual de nossa sociedade tende a suscitar. A esse respeito, Bauman (2004) afirma:

A incerteza em relação ao futuro, a fragilidade de posição social e a insegurança existencial – ubíquos acessórios da vida na “líquida modernidade” de um mundo notoriamente enraizado em lugares ermos e retirados do controle individual – tendem a se concentrar nos alvos mais próximos e a serem canalizadas para as preocupações com a segurança individual. (Bauman, 2004, p. 132, aspas do autor)

Desse modo, o clima reinante de insegurança na contemporaneidade não é dissipado, por mais ubíquo e banalizado que o ato de vigiar possa tornar-se e por mais pesadas que possam ser as punições para os bodes expiatórios eleitos pela sociedade para canalizar seus medos e inseguranças. Bauman (2004, p. 129) afirma que “a líquida vida moderna tende a permanecer inconsistente e caprichosa, sejam quais forem os apuros infligidos aos ‘forasteiros’ indesejáveis” (p. 129, aspas do autor) e, acrescentamos, a qualquer outro bode expiatório que possamos escolher.

Dessa forma, podemos constatar que tanto a aquiescência silenciosa em relação à vigilância, seja do Estado ou de qualquer órgão ou empresa privada, quanto sua prática pelos indivíduos em seu convívio social, referem-se a um recurso estéril, ao qual se recorre em busca de uma suposta segurança que nunca parece ser atingida. Ao mesmo tempo, entretanto, esse recurso acaba constituindo-se em uma armadilha para os próprios indivíduos que a aceitam e reproduzem, na medida em que a única proteção proporcionada por essa vigilância está voltada para garantir a ordem vigente que a gera. O resultado mais imediato dessa disseminação do vigiar é, portanto, a manutenção de um sistema econômico e de uma ordem social que, por produzir tanta ansiedade e injustiça para grande parte dos cidadãos, parece não poder se perpetuar, a não ser por ardilosos e perversos meios, dos quais a vigilância, aliás, não é senão mais que um desses artefatos.

 

Considerações finais

Com base nas leituras feitas durante a realização desse trabalho, pudemos diferenciar o significado de vigilância e segurança, identificar situações e objetivos para os quais a vigilância foi e é ainda empregada, e, além disso, algumas conseqüências – tanto da prática da vigilância como da ideologia que a acompanha – nas subjetividades de nosso tempo. Isso nos permitiu analisar a vigilância na contemporaneidade e identificar algumas finalidades de sua prática em nosso contexto socioeconômico.

Em primeiro lugar, constatamos que a palavra vigilância não necessariamente remete-se à idéia de cuidado ou proteção, apesar das constantes aproximações e mesmo equivalências de significado entre esses termos, via instrumentos midiáticos impressos e televisivos da Indústria Cultural (Adorno & Horkheimer, 1985).

Ao contrário de proteção e cuidado, pudemos entender o vigiar como prática de uma sociedade de controle (Costa, R., 2004) que prima pela manutenção de seu sistema socioeconômico, ainda que, para isso, necessite ser opressora para grande parte da população, desenvolvendo, inclusive, sofisticadas tecnologias para melhor realizar tal opressão. Desse modo, é a proteção do capital (e não da vida ou da subjetividade) que aparece como prioridade e finalidade última da vigilância e da ideologia a ela correlata.

Nessa conjuntura, o ser humano é compreendido como alguém cada vez mais fragilizado e destituído de seus direitos e necessidades, enquanto a vigilância torna-se um fator agravante dessa fragilidade, invadindo e desapropriando-o de sua humanidade, o imobiliza sob a mera função de consumidor (Sodré, 2002). Além disso, quando internaliza e reproduz a vigilância, esse indivíduo torna-se também vigilante, ficando cada vez mais incapacitado para confiar e formar vínculos com o outro. Como resultado, encontramos um ser humano solitário, atomizado e, portanto, mais frágil ainda em relação ao poder que o vigia.

O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior adestrar […]. Ele não amarra as forças para reduzi-las […], leva seus processos de decomposição até as singularidades necessárias e suficientes. (Foucault, 1977, p. 153)

 

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Texto recebido em março/2007.
Aprovado para publicação em maio/2007.

O Processo editorial deste artigo foi acompanhado pelo Editor Responsável e pelos membros da Comissão Executiva.

 

 

*Professora do curso de Mestrado em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, coordenadora do Projeto de Pesquisa Intervenção Phenix: “A ousadia do renascimento da subjetividade cidadã”. E-mail: ampicani@onda.com.br
**Psicóloga, integrante do Projeto de Pesquisa Phenix: “A ousadia do renascimento da subjetividade cidadã”. E-mail: merlyluane@yahoo.com.br
1NAS refere-se à National Association of Scholars, ou seja, a Associação Nacional de Acadêmicos. Segundo o autor, esta e outras associações e grupos acadêmicos dedicaram-se a pesquisas que visavam suprir os jornais e revistas com artigos sobre a violência urbana.
2A tradução da introdução desse documento encontra-se publicada na Folha de S. Paulo jojouoiyudo dia 29 de outubro de 2002.

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