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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.13 no.1 Belo Horizonte June 2007

 

ARTIGOS

 

A invenção na ponta dos dedos: a reversão da atenção em pessoas com deficiência visual*

 

Invention on fingertips: attention reversion in visually impaired people

 

 

Virgínia Kastrup**

Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Diversos estudos têm indicado que a perda de visão produz uma reorganização do sistema cognitivo em função de novos investimentos da atenção, que são condição para a reinvenção da vida cotidiana dessas pessoas. Por outro lado, é cada vez mais evidente que o campo do perceber envolve um conjunto de experiências complexas, que vai além da dimensão funcional e utilitária. Existe uma atenção funcional, que é voltada para a vida prática, e uma atenção suplementar, que participa dos processos de invenção. O objetivo do texto é analisar, em pessoas que perderam a visão, duas mudanças da atenção: o redirecionamento da visão para o tato e a reversão, na qual a atenção sofre uma mudança de qualidade. A argumentação recorre a estudos de psicologia experimental, aos trabalhos de Bergson, Depraz, Varela e Vermersch, bem como a uma pesquisa de campo realizada numa oficina de cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida.

Palavras-chave: Invenção, Atenção, Deficiência visual.


ABSTRACT

Several studies have indicated that the loss of sight causes a reorganization of the cognitive system due to new allocations of attention, which are the condition for the reinvention of these people’s daily lives. On the other hand, it becomes more and more evident that the field of perception encompasses a set of complex experiences beyond the functional and useful dimension. There is a functional attention geared towards practical life, and a supplementary attention that permeates the process of invention. This paper aims to analyze two types of changes in attention in those who have lost their sight: the redirection of sight towards tact; and reversion, that is, a change in the attention quality. The argumentation is supported by experimental psychology studies; the works of Bergson, Depraz, Varela and Vermersch; and a field work carried out in a ceramics workshop with people presenting acquired visual impairment.

Keywords: Invention, Attention, Visual impairment.


 

 

A investigação da atenção ganhou relevo a partir da década de 1990 em função da retomada dos estudos da consciência pelas ciências cognitivas, mas os estudos sobre a atenção em pessoas cegas e com baixa visão ainda são pouco numerosos. O presente trabalho busca um entendimento da atenção em pessoas com deficiência visual adquirida, cuja cognição é distinta da de cegos congênitos. São considerados cegos congênitos pessoas que nunca viram. Seu sistema cognitivo é, desde o nascimento, constituído com base nos demais sentidos e sem referência a elementos visuais. Cegos precoces são aqueles que perderam a visão entre seis meses e um ano de idade. Como o diagnóstico da cegueira pode não ser imediato, a diferença mais significativa não é entre cegos congênitos e precoces, mas entre precoces e tardios, em função da existência, nos últimos, de referências visuais e coordenações neurais entre as modalidades sensoriais, que ocorrem, em média, até os três anos de idade (Hatwell, 2003). Os cegos tardios constituem casos bastante efetivos de deficiência visual adquirida, sendo palco de processos de aprendizagem e, em última análise, de uma exigência de profunda reinvenção cognitiva. O funcionamento cognitivo na cegueira adquirida guarda, por certo, diversos pontos em comum com o dos videntes e dos cegos congênitos, todavia é fundamental investigar suas possíveis especificidades.

Algumas das transformações cognitivas da deficiência visual adquirida estão diretamente relacionadas à redução da eficiência de habilidades e hábitos anteriores, ou seja, de comportamentos caracterizados pelo automatismo, como verter água num copo, colocar pasta na escova de dente ou caminhar pela rua. O comportamento automático é um comportamento sem atenção. Sua utilidade na vida prática é justamente liberar a atenção para outras atividades. Assim, quando um vidente caminha para o trabalho, seguindo seu percurso habitual, libera a atenção para pensar em algo que está lhe preocupando, em um compromisso que terá no final da tarde, para fazer projetos ou evocar lembranças do dia anterior. A perda da visão, quando se instala, produz uma redução das ações automáticas e um aumento da participação da atenção nas mais simples tarefas da vida cotidiana.

No domínio da psicologia cognitiva da deficiência visual, o tema da atenção surge no âmbito da discussão sobre o problema da compensação sensorial. Segundo as teorias mais tradicionais da compensação, a pessoa cega possui, em função da ausência da visão, um melhor desempenho de sentidos como o tato e a audição. Presente já em D. Diderot (1979) e bastante disseminada no senso comum, a idéia de compensação tem sido objeto de recorrentes análises. Vygotski (1997) afirma que a melhora no desempenho dos demais sentidos não é uma dádiva divina e nem pode ser explicada por uma reorganização fisiológica imediata, mas resulta de um processo de construção, em que ganham destaque vetores sociais e culturais, entre os quais se destaca a linguagem. Embora bastante utilizada, a noção de compensação não deixa de colocar muitos problemas. O apelo excessivo a ela pode levar a pensar que todo o problema da reorganização cognitiva dos que perderam a visão consiste em compensar uma perda para, enfim, continuar conhecendo o mundo como o fazem os videntes, apenas seguindo, para isto, caminhos indiretos e mais longos. Enfim, se chamada a explicar tudo, a noção de compensação acaba por não explicar grande coisa, além de obscurecer a dimensão inventiva que marca tal reorganização cognitiva, na qual a percepção tátil ganha papel de destaque (Belarmino, 2004; Rego- Monteiro, Manhães & Kastrup, 2007).

Ivette Hatwell (2003) afirma que os estudos atuais dão indicações que a cegueira não modifica diretamente os limites sensoriais de acuidade, mas orienta a atenção para signos não visuais, além de melhorar os procedimentos exploratórios do tato e da audição. Hatwell substitui a explicação psicofísica da redução dos limiares de sensibilidade pela tese do redirecionamento da atenção. A perda da visão não resulta imediatamente numa potencialização dos demais sentidos, mas, ao aprender a redirecionar a atenção para eles, a pessoa tira partido de signos que até então não faziam parte de seu domínio cognitivo. A atenção a tais signos é de suma importância para o desempenho de atividades da vida prática, como aquelas da escola, do trabalho e da vida social (Hatwell, 2003, p. 67-68).

Os estudos psicológicos sobre a atenção têm identificado algumas de suas características e propriedades. Trata-se de um processo que se acopla a outros processos cognitivos, como a percepção, a memória e o pensamento. Sua função é de modulação dos demais processos, podendo amplificá-los, atenuá-los ou inibi-los (Camus, 1996). A atenção é, nessa medida, o fundo de flutuação da cognição, sendo também uma atitude cognitiva (Vermersch, 2002a; 2002b). Ao longo da história da psicologia, alguns autores têm enfatizado suas funções de adaptação e de seleção (James, 1945; Ribot, 1931), e isto se acentua nos modelos cognitivos baseados no processamento de informação (Broadbent, 1958; Shiffrin & Schneider, 1977). Mas já nos estudos seminais de William James (1945) a função seletiva da atenção não pode ser separada da fluidez atencional, que acompanha o fluxo do pensamento (Ferraz & Kastrup). Trabalhos recentes têm demonstrado que a atenção não é um processo binário, 0-1, atenção-desatenção, como aparece, de forma mais ou menos explícita, em muitos textos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade – TDA/ H. O avanço dos estudos tem evidenciado a necessidade de considerar a atenção um processo heterogêneo, cujo funcionamento é complexo e composto por distintas variedades e gestos atencionais (Vermesch, 2002a, 2002b; Camus, 1996; Mialet, 1999; Kastrup, 2004, 2007).

A maioria dos estudos em psicologia experimental enfatiza o valor funcional e mesmo instrumental da atenção, o que não é destituído de importância do caso da deficiência visual adquirida. Para as ações da vida prática, é preciso aprender a prestar a atenção aos signos que chegam pela audição e pelo tato: reconhecer pessoas pela voz, ouvir o ruído dos carros para atravessar a rua, usar as sensações táteis dos pés e aquelas transmitidas pela bengala, perceber signos auditivos para saber a posição e distância de objetos do ambiente etc. É também preciso que se aprenda a distribuir a atenção entre mais de um sentido numa atividade complexa, como circular pela cidade, assistir uma aula ou participar de uma reunião social.

No entanto, é incontestável que nem todos os problemas da cegueira dizem respeito a questões de ordem prática (Oliveira, 2002). Um homem que estava perdendo gradativamente a visão como efeito de uma diabete persistente deu o seguinte depoimento, que expressa bem esta situação: “Quando a gente perde a visão, a gente fica muito pra baixo […]. Ainda mais eu, que era uma pessoa que gostava de viajar, adorava ver esse Rio de Janeiro, adorava ver o Corcovado, adorava ver…” (P2). Observa-se em sua fala que os problemas a serem enfrentados pelas pessoas que perdem a visão envolvem, por certo, a possibilidade de caminhar pela rua, trabalhar e manter uma vida autônoma, mas também poder contemplar o mundo, entrar em contato com coisas bonitas ou interessantes, experimentar contentamento com certas percepções e ter experiências que nada tem a ver, ao menos diretamente, com os problemas da vida prática. Nessa direção, Oliver Sacks (1995) narra o caso de um pintor que, tendo perdido a visão de cores em função de um desastre de automóvel, enfrentou sérios problemas em relação, por exemplo, à alimentação e à sua vida sexual. A comida cinzenta provocava náuseas e sua mulher parecia ter cor de rato, deixando de provocar nele qualquer atração. Os exemplos mostram que o campo do perceber envolve um conjunto de experiências complexas, que vai além da dimensão funcional e utilitária. As experiências perceptivas não utilitárias, muitas vezes, mobilizam uma atenção de qualidade especial que, conforme veremos, está envolvida nos processos de invenção de mundo e de si. É preciso sublinhar, entretanto, que não estamos nos referindo apenas a situações excepcionais de invenção, mas a de diferentes experiências que se dão no âmbito da vida cotidiana transpondo, em certos momentos, sua dimensão meramente pragmática (Kastrup, 1999).

Tomando como foco o processo de reconstrução do sistema cognitivo das pessoas que se tornam cegas, nosso objetivo será analisar dois problemas relativos à atenção: o redirecionamento e a mudança de qualidade. O primeiro problema – o do redirecionamento da visão para o tato e outros sentidos – envolve a atenção funcional, voltada para a vida prática, em que predominam uma atitude recognitiva e atos de focalização e de prestar atenção. Trata-se aí de uma atenção submetida a uma finalidade. O segundo problema envolve uma atenção suplementar, que não possui caráter funcional e utilitário, no qual prevalece uma atitude de abertura, contato e receptividade. A reversão na qualidade da atenção foi tematizada por N. Depraz, F. Varela e P. Vermersch (2003; 2006) e por H. Bergson (2006a; 2006b; 2006c). Ao discutir a mudança na qualidade da atenção, Depraz, Varela e Vermersch (2003) referem-se ao movimento que, no contexto da epoché fenomenológica, faz com que a atenção passe de uma atitude de busca para uma atitude de abertura ao encontro, que corresponde ao gesto de deixar-vir (letting-go). Sublinham, também, que essa reversão da atenção não é imediata, mas requer um tempo de espera em que se enfrenta um vazio, algumas vezes difícil de sustentar. Em diversos momentos de sua obra, Bergson faz referência a uma atenção suplementar (2006c) e ao fenômeno da conversão da atenção (2006b). A característica dessa segunda atenção é a ausência do interesse, que, por sua vez, define a atenção à vida prática, que é seletiva e envolvida com a ação. Bergson afirma ainda que a atenção suplementar inverte o fluxo cognitivo habitual e promove o alargamento da percepção, possibilitando uma apreensão direta do objeto. Ela o faz com o desaparecimento momentâneo do recorte utilitário operado pelo percebedor, que se sobrepunha, através de seus interesses, ao próprio objeto. Além de tomar como referência tais colocações, nos baseamos numa pesquisa de campo realizada numa oficina de cerâmica para portadores de deficiência visual adquirida, no Instituto Benjamin Constant,1 no Rio de Janeiro, com uma amostra de 18 participantes. Foi utilizado o método da cartografia (Deleuze & Guattari, 1995; Rolnik, 2006; Kastrup, 2007) para a observação das aulas de cerâmica e para elaboração dos relatos. Foram também realizadas entrevistas de explicitação (Vermersch, 2000) com nove participantes (P) e duas professoras. Por meio dessas estratégias metodológicas buscou-se examinar as mudanças da atenção que participam da reconstrução cognitiva e da reinvenção da vida de pessoas que perderam a visão.

 

O redirecionamento visuo-tátil da atenção: algumas distinções entre o tato e a visão

Muito se tem destacado a relevância funcional do tato na vida prática e cotidiana das pessoas cegas. O tato é considerado o sentido mais apropriado para fornecer as referências para deslocamento no espaço, que deixaram de existir com a perda de visão, e é por meio dele que a maior parte do conhecimento espacial deve ser reconstruída. Investida pela atenção, a audição também tem papel importante na discriminação de estímulos e na detecção de obstáculos, tal como ocorre no fenômeno de ecolocalização. Pela localização dos objetos por sons, que são, às vezes, inaudíveis para os videntes, a audição pode vir a dar aos cegos indicações sobre a direção e a distância dos objetos. A audição serve, sobretudo, à apreensão de signos temporais e sucessivos, podendo perceber ainda as modulações de intensidade e de timbre da voz, muito importantes nas relações sociais. A audição parece mais dependente da ordem sucessiva de apresentação dos estímulos que o tato, que pode criar, ele próprio, uma ordem de apreensão por meio da exploração com as mãos e os dedos.

A principal característica do tato é que ele é uma percepção proximal, de contato, diferentemente da visão e da audição, que são sentidos que possibilitam a percepção à distância. O tato possui um campo perceptivo exíguo, sendo quase nulo quando há ausência de movimento exploratório voluntário. Por esse motivo, o princípio de figura-fundo não dá conta de modo adequado da percepção tátil. Segundo Gentaz e Hatwell (2000, p. 130), em função do caráter seqüencial da exploração e da possibilidade de modificar à vontade o tamanho do campo perceptivo tátil, o tato é menos sensível que a visão às leis gestaltistas de organização da configuração espacial. Nessa direção, outros estudos têm revelado a não sensibilidade do tato à lei da proximidade (Hatwell, Orliaguet & Brouty, 1990) e ao princípio de simetria (Locher & Wagemans, 1993; Wagemans, 1995; Walk, 1965).

Por ser uma percepção de contato, o tato tem uma capacidade cognitiva geralmente intensificada por movimentos de exploração envolvendo dedos, mãos e braços. Neste caso, percepções cinestésicas se reúnem a percepções cutâneas, resultando numa percepção tátil-cinestésica também chamada percepção háptica. G. Revesz (1950), J. Gibson (1962) e I. Hatwell (2003) definem a percepção háptica como uma percepção por fragmentos, aos pedaços, sempre sucessiva e às vezes parcial. Enquanto a visão dá lugar a uma percepção distal e global da cena, o tato fornece um conhecimento por partes, isto é, menos estruturado. Os movimentos de exploração são efetuados sucessivamente, o que confere ao conhecimento tátil um caráter seqüencial e uma apreensão da forma que é mais lenta que pela visão. Diferente do tato, a visão pode perceber a forma, o tamanho e a cor dos objetos em frações de segundos, sem o recurso a movimentos de exploração mais específicos, embora haja exploração com os olhos. Por esse motivo, o tato sobrecarrega a atenção e a memória de trabalho, pois requer operações cognitivas de integração e síntese para chegar a construir uma representação2 unificada do objeto.

A sobrecarga da atenção no uso do tato não parece, entretanto, uma regra. Após um processo de aprendizagem, o reconhecimento tátil pode se tornar rápido e automático nos cegos, dispensando a atenção, da mesma maneira que ocorre quando um vidente pega um objeto na bolsa sem olhar, abotoa a camisa ou pisa nos pedais do automóvel. É curioso notar que a maior parte dos trabalhos sobre percepção háptica em deficientes visuais é voltada para o estudo de processos de identificação e reconhecimento de objetos. O reconhecimento de um objeto consiste em situá-lo em categorias de nossa experiência passada (Klatzky, Lederman & Metzger, 1985; Lederman & Klatzky, 1997). Nos casos estudados, o reconhecimento háptico revela-se rápido e preciso, levando em conta propriedades materiais como textura, peso e temperatura.

Segundo a tese da especialização das modalidades sensoriais, defendida por Lederman e Klatzky (1993), cada modalidade sensorial é mais habilitada para o tratamento de certas propriedades dos objetos e menos habilitada para outras. Em razão de seu modo de exploração, o tato não tem bom desempenho na percepção espacial (forma, tamanho e cor), mas funciona com excelência na percepção de propriedades materiais. No entanto, é preciso destacar que o tato pode efetivamente chegar a um conhecimento da forma. Mesmo por um processo mais lento e mais laborioso que aquele da visão, o tato pode atingir, para tarefas de reconhecimento, resultados bastante semelhantes (com exceção do limite da cor), fazendo com que, em termos de produto final, a distinção entre tato e visão seja atenuada.

O trabalho que acompanhamos na oficina de cerâmica consistia, em diversos momentos, em desenvolver uma percepção háptica com atenção, levando a perceber e mesmo a aprender a reconhecer formas através do tato. Certo dia, uma participante (P4) estava fazendo uma vasilha com o barro. A professora a orientava no sentido de tocar a peça que estava criando, para perceber o andamento do trabalho e o que ainda precisava ser retocado. A professora dizia: “Vai passando a mão ao redor da peça e vai sentindo como ela está ficando. Está vendo onde ela precisa ser consertada?” A moça foi contornando a peça com as mãos, com um toque bem leve e paciente. “Agora estou sentindo. Este lado aqui está um pouquinho mais alto que o outro, não é?” E a professora acrescentou: “Sempre que você estiver fazendo uma peça, tenta tocá-la e sentila como um todo, porque assim você vai começar a visualizá-la melhor e vai ter uma noção de como está ficando.” Fica claro na fala da professora que neste momento o tato é utilizado para suprir a falta da visão. Trata-se aqui de uma espécie de tato ótico, cujo objetivo é perceber o objeto como um todo. Para isso, procede pela construção, passo a passo, da percepção da forma. A percepção da forma resulta então de um movimento voluntário de exploração atenta envolvendo uma seqüência de sensações táteis elementares, que culmina numa síntese.

Observamos que a aprendizagem anterior pode constituir um obstáculo para o direcionamento da atenção para o tato, tão necessária àqueles que experimentam um processo de perda da visão. No caso de pessoas com baixa visão, foi observado que a fixação no resíduo visual pode causar dificuldades para a utilização plena dos recursos da percepção tátil. Uma participante descreveu esta situação: “Era bom quando eu tinha olho, porque o olho mandava a mão fazer e a mão fazia. Agora, sem olho, quer dizer, no tato […], a relação fica muito, assim, de ansiedade. Porque como eu tenho resíduo visual, eu quero ver, mas eu não estou vendo. Então eu não sei mais mandar na minha mão. Porque eu quero que a minha mão faça através do olho, mas a mão não obedece. Quando eu quero que o tato funcione de verdade eu fecho o olho.” (P9) Notese que o fechamento voluntário do olho é a estratégia desenvolvida pela mulher para se livrar do investimento atencional nos signos visuais e então investir a atenção no tato de maneira mais eficiente. Embora residual, a visão ainda é o sentido que domina seu sistema cognitivo e a hegemonia da visão acaba por dificultar o direcionamento da atenção para a percepção e a exploração tátil.

Até algumas décadas atrás se acreditava que havia uma atenção específica para cada modalidade sensorial, ou seja, que visão, audição e tato dispunham de recursos atencionais próprios (Wickens, 1980; 1984). Hoje, prevalece a tese de uma distribuição da atenção entre as diferentes modalidades. Foram feitos estudos com sujeitos videntes sobre distribuição da atenção em tarefas bimodais, visando produzir conhecimento para otimizar situações como a do piloto de avião, que deve receber e tratar vários sinais ao mesmo tempo. Pensouse que, para evitar sobrecarga da visão, seria mais eficiente que os estímulos fossem enviados por diferentes modalidades sensoriais. No entanto, estudos consecutivos mostraram que a atenção a uma modalidade repercute sobre as demais. Sucessivos deslocamentos intermodais não esperados sobrecarregam a atenção, fazendo com que a atenção multimodal pareça ter um custo cognitivo maior do que a unimodal (Spence & Driver, 1997). Os estudos indicaram também que o custo da divisão da atenção entre modalidades parece ligado à prática maior ou menor com as modalidades concernidas, como mostra a comparação entre cegos e videntes (Kujala et al., 1997).

Consideramos, entretanto, que a sobrecarga atencional evidenciada nas tarefas multimodais não pode ser dissociada do contexto em que tais pesquisas foram realizadas. É importante notar que os experimentos investigam situações de realização de tarefas, que requerem atos de focalização. Por outro lado, é possível observar que as situações multimodais, que envolvem mudança de direção e atenção dividida entre diferentes modalidades, são freqüentes na vida diária de pessoas cegas, assim como na de videntes. Andar de ônibus, fazer compras no supermercado ou almoçar num restaurante são atividades multimodais que não parecem sobrecarregar de modo importante a atenção. Ocorre que nos experimentos enumerados anteriormente a atenção é voltada para a realização de tarefas, requerendo, principalmente, atos de focalização e de prestar atenção. Ao que tudo indica, é isto que sobrecarrega a atenção, e não a mudança de direção para diferentes modalidades sensoriais.

Nesse sentido, foi curioso ver surgir nas entrevistas depoimentos de participantes acerca da atenção distribuída entre o tato e a audição, apontando que a atenção aos signos auditivos, dependendo da situação, podia, inclusive, criar condições propícias ao trabalho com a cerâmica. Alguns afirmaram que não gostam de falar enquanto trabalham, mas que ouvir conversas paralelas não atrapalha. Já ouvir música e cantar “ajuda na inspiração e na concentração”. “Quanto menos [a gente fala] melhor” (P7). “Eu me concentro, eu me concentro de tal maneira que eu não converso. Só converso se precisar de uma orientação […]. Eu ouço tudinho. O que eles estão conversando, eu estou ouvindo, mas eu estou dedicado ali no meu trabalho” (P1). “Na hora que eu estou fazendo, eu me isolo mesmo. Agora, isto não quer dizer que eu não escute o meu exterior […]. Eu sempre gostei de estudar ouvindo música. A música para mim não perturba” (P5). A música parece propícia para instalar uma atenção aberta e receptiva, capaz de cavar um vão no seio da estreita conexão sensório-motora que predomina na vida prática. A experiência com a música, ouvindo ou cantando, não é de reconhecimento, mas de contato, encontro, sem mediação da representação. Ouvir música concorre para desmontar a relação sujeito-objeto. É um convite ao encontro. O sujeito não tem uma representação da música, mas mistura-se com ela, entrando em contato com um plano de forças moventes. Ouvir ou mesmo cantarolar uma música não requer o ato de focalização ou de prestar atenção. Ao contrário do ato de falar, que requer uma relação ativa com a língua para a construção de frases e de sentido, e que por isto exige uma atenção mais focada, ouvir música e cantar mobilizam uma atenção de fundo, que, ao invés de interferir na atenção concentrada na argila, parece ajudar a guiá-la e sustentá-la.

 

A reversão da atenção: a mudança de qualidade e o problema da conversão

 

A mudança de qualidade

O problema da mudança na qualidade da atenção foi discutido por Depraz, Varela e Vermersch (2003; 2006). Os autores referem-se ao movimento que, no contexto da epoché fenomenológica, faz com que a atenção passe de uma atitude de busca para uma atitude de abertura ao encontro, que corresponde ao gesto de deixar-vir (letting-go). Afirmam que o movimento de busca é o movimento espontâneo, que é próprio da atitude natural. A reversão da atenção é, por sua vez, um gesto mais raro e mais difícil, posto que exige a reversão de tal atitude. Sublinham ainda que tal reversão da atenção não produz efeito imediato. Ela requer – e daí advém uma de suas maiores dificuldades – um tempo de espera em que se enfrenta um vazio, algumas vezes difícil de sustentar. A atenção precisa ser concentrada e, ao mesmo tempo, aberta. Trata-se de atenção receptiva, sem ser passiva, já que depende de um gesto específico. Mas esse gesto não equivale ao prestar atenção.

Um dos exemplos explorados por Depraz, Varela e Vermersch (2003) é a visão estereoscópica. A visão estereoscópica, ou em 3D, é uma experiência em que uma percepção tridimensional emerge de um desenho bidimensional, após alguns instantes de fixação do olhar. O foco do olhar não pode incidir em qualquer ponto do desenho, mas deve pousar na ponta do nariz. Depraz, Varela e Vermersch apontam que é apenas no momento em que abandonamos a atitude de busca da forma e eliminamos o esforço da atenção voluntária, sustentando uma atitude de espera atenta, que uma imagem estável pode surgir. Num primeiro momento, a atenção perde o foco, atravessando um tempo em que nada se distingue. Então, adotando uma atitude atencional de deixar-vir (letting-go), a forma emerge subitamente, introduzindo uma mudança clara na percepção. Esse fenômeno envolve uma desaceleração do tempo, que contrasta com a velocidade cognitiva habitual. Além da velocidade mais lenta, a dificuldade advém de ser preciso entregar-se a um movimento involuntário. Trata-se aí de uma experiência pouco usual, que é paradoxal no sentido em que consiste em adotar voluntariamente uma atitude involuntária. Ocorre controle das condições da atenção, mas não do conteúdo que virá a preencher o vazio.

Além da visão estereoscópica, outras práticas evidenciam uma reversão da atenção que busca para a atenção que encontra. No campo da deficiência visual, Paul Bach-y-Rita (1972) desenvolveu, na década de 1970, o TVSS – Tactile- Visual-Substitution-System, que consiste num dispositivo que converte uma imagem visual, captada por uma câmera de vídeo, numa imagem tátil. Essa é produzida por uma matriz de vibradores, que é colocada nas costas ou no tórax da pessoa. Sem qualquer treino, uma pessoa cega é capaz de detectar alvos simples e de se orientar com eles, além de discriminar linhas horizontais e verticais e também o sentido de alvos móveis. O dispositivo requer alguma aprendizagem para reconhecimento de formas geométricas simples. Seu uso é menos adequado para objetos dotados de diferentes orientações e para o reconhecimento de rostos, além de não servir para percepção de cores. Com a evolução técnica, o dispositivo passou por um processo de miniaturização, melhorou a definição da imagem e foi adaptado para bebês (Sampaio & Dufier, 1988; Bach-y-Rita & Sampaio, 1995). Se a câmera não for manipulada pela pessoa cega, e sim pelo experimentador, não são obtidos os resultados esperados (Sampaio, 1994). O próprio sujeito precisa manipular ativamente a câmera, com a cabeça ou com as mãos, usando movimentos direita-esquerda, altobaixo, zoom etc, no sentido de produzir uma constante variação de estimulação. Só assim ele pode vir a ter a experiência de que o objeto percebido está na sua frente, o que é condição para que ele consiga utilizá-lo para sua orientação.

O TVSS produziu um grande debate acerca de suas possibilidades e limites. Além de uma tecnologia para pessoas com deficiência visual, os estudos tiveram um alcance epistemológico e, por evidenciar a importância da ação para a cognição, transcenderam o domínio da psicologia cognitiva da cegueira. Varela, Thompson e Rosch (2003) ressaltam sua relevância em destacar o papel da ação na cognição. Afirmam: “Quando a pessoa cega comporta-se ativamente dessa forma, depois de poucas horas de experiência ocorre uma notável emergência: ele não interpreta mais as sensações da pele como tendo relação com o corpo, mas como imagens projetadas no espaço sendo exploradas pelo ‘olhar’, dirigido pelo corpo, da câmera de vídeo. Então, para experienciar ‘objetos reais lá fora’, ele deve dirigir a câmera ativamente (com a cabeça ou as mãos).” (Varela, Thompson & Rosch, 2003, p. 179) Lenay et al. (2000, p. 294) também comentam que o dispositivo constitui um forte questionamento do modelo cognitivo computacional, não apenas de processamento linear e seqüencial, mas também de processamento paralelo, que pressupõe uma informação passivamente recebida. Segundo os autores, o TVSS, ao apontar a indissociabilidade entre percepção e ação, constitui uma “prova empírica direta” da construção progressiva das representações, baseada na regulagem constante entre ação e sensação. Para os autores, o TVSS não substitui a visão e não faz ver, no sentido pleno do termo, mas constitui uma prótese efetiva no que concerne à dimensão utilitária da percepção.

No que diz respeito ao funcionamento da atenção durante o uso do dispositivo, pode-se notar que este exige, em primeiro lugar, um redirecionamento. Como observa E. Pacherie (1997), a sensação é tátil, mas a percepção a que ele dá origem é visual. Em outras palavras, a sensação é tátil, portanto próxima do corpo, mas para ter a experiência de distalização, ou seja, do objeto real, na frente, a pessoa não pode prestar atenção no próprio corpo. É necessário que a atenção não se detenha nas costas para que a experiência do objeto “lá fora” possa emergir. Em segundo lugar, a percepção distal, do objeto “na frente”, requer uma mudança na qualidade da atenção que revela semelhanças com aquela da visão estereoscópica. A emergência da percepção do objeto se faz a partir de certo deslocamento da atenção. É abandonando a atitude de busca e adotando uma atitude de receptividade ativa que a atenção aberta vem preenchida por um conteúdo. Assim, Paul Bach-y-Rita e Eliana Sampaio, além de produzirem um dispositivo para auxiliar deficientes visuais, que dá evidências do papel da ação na cognição, dão também indicações da mudança da qualidade da atenção à qual se referem Depraz, Varela e Vermersch (2003).

A cartografia na oficina de cerâmica trouxe situações que também revelam a reversão da atenção. O trabalho com a cerâmica não se limita à atenção funcional, caracterizada por uma atitude cognitiva de busca e em que predominam atos de focalização e de prestar atenção voltados para o reconhecimento e a ação. Ela mobiliza uma atenção suplementar durante os processos de criação, que se caracteriza por uma atitude cognitiva de abertura ao encontro de algo que não se buscava. A atenção suplementar surge quando o sujeito sai da posição de piloto da atenção, ou seja, deixa a atitude intencional e desmancha o foco na realização de tarefas.

Uma das participantes descreveu a dificuldade em perceber, através do tato, a forma de uma peça que ela havia moldado. “Quando eu fiz o meu primeiro rosto, o primeiro rosto mesmo de escultura, eu não conseguia ver o rosto. Eu estava com a bola na minha mão, construindo o nariz, o olho, a boca, e eu pegava, e isso me dava uma aflição tão grande, tão grande… E eu não conseguia, eu não conseguia ver o rosto ali com a minha mão. Então eu apalpava com as duas mãos, a cabeça na minha mão e eu apalpando e alisando e eu não via” (P4). O problema que se evidencia na criação de peças de cerâmica é que nem sempre a percepção, mesmo a do próprio ceramista, é convocada ao reconhecimento. A participante comentou sua aflição ao tentar reconhecer o rosto que ela própria esculpia. “Se você pegar numa caneca, você sabe que é uma caneca, mas se você pegar num objeto abstrato, você não vai saber que aquilo é um objeto, é uma coisa qualquer. Você não sabe o que é, pode parecer várias coisas, mas não é realmente aquilo que é com a luz acesa. Assim era eu com aquele rosto. Eu pegava no rosto, na peça, na argila e não via o rosto […]. E olha que ele cabia na palma de minha mão. Eu passava assim e não via. Uma coisa muito estranha. Me deu muita aflição, eu fiquei muito angustiada. Eu queria tirar dali um rosto, mas eu não conseguia ver um rosto, sabe? Foi muito difícil pra mim” (P4). O fato de a mulher não reconhecer o objeto que ela própria estava criando atesta o quanto o processo de criação se dá, em parte, fora de foco, e sem um controle absoluto por parte do eu. Como a pessoa não coloca na cerâmica um objeto representado dentro da cabeça, mas a criação se dá através de um movimento de composição entre a idéia e a matéria fluida do barro (Kastrup, no prelo),3 a relação com o objeto criado nem sempre é de reconhecimento imediato. A experiência pode ser mesmo de estranhamento.

A mesma mulher continuou falando de sua experiência.

Aí a professora virou pra mim e falou assim: “Deixa o rosto surgir naturalmente, deixa que ele vai surgir, relaxa que ele vai surgir.” E eu fiquei com aquilo ali, respirei fundo, tentei relaxar, aí eu fui e coloquei a mão… […] A cabeça na minha mão […], e eu não conseguia ver um rosto naquilo que eu tava fazendo. Se eu pegasse no nariz eu sabia que era um nariz, se eu pegasse na boca eu sabia que era a boca, mas num todo eu não conseguia ver a peça. E foi um processo muito lento, de muitos dias. Eu acho que eu levei uns dois, mais de um mês pra fazer o primeiro rosto. Até que eu consegui passar a mão e ver. […] Ela falou no primeiro momento que eu comecei, mas eu levei mais de um mês. (P4)

Quando a professora aconselha a “relaxar”, parece que o intuito é fazer com que a mulher abandone a atitude de busca voluntária de reconhecimento da forma, como se fosse preciso deixar de buscar para, enfim, encontrar. Em termos de atenção, trata-se de uma orientação para uma mudança de qualidade, para uma atitude de letting-go. Só assim ela pôde vir a encontrar o que não buscava mais.

 

A conversão da atenção

Bergson distingue dois tipos de percepção. A primeira é voltada para interesses práticos e é assim definida: “Auxiliar da ação, ela isola, no conjunto da realidade, aquilo que nos interessa; mostra-nos menos as coisas do que o partido que delas podemos tirar. Antecipadamente as classifica, antecipadamente as etiqueta; mal olhamos o objeto, basta-nos saber a que categoria ele pertence” (Bergson, 2006b, p. 158). A segunda é descrita com a percepção do artista: “Quando olham para alguma coisa, vêem-na por ela mesma, e não mais para eles; percebem por perceber – por nada, pelo prazer” (Bergson, 2006b, p. 158). Por este desprendimento dos interesses do eu, possuem “uma visão mais direta da realidade”. Segundo Bergson é por um deslocamento da atenção que o espírito se distancia dos interesses que limitam a percepção para chegar a sua ampliação. Denomina conversão o movimento de transformação da atenção funcional na atenção suplementar. Adverte ainda que habitualmente predomina a atenção funcional, mas existem episódios que concorrem para a dita conversão. A conversão brusca da atenção é narrada pelos afogados, que vêem, em poucos segundos, sua memória desfilar inteiramente. A morte iminente ou emoções fortes também operam a conversão da atenção, mas pequenas conversões são relativamente freqüentes na experiência de cada um de nós. A experiência com a arte provoca, muitas vezes, a inversão do fluxo cognitivo habitual, concorrendo para o alargamento da percepção. Bergson afirma ainda que esta atenção suplementar pode ser cultivada e educada (Bergson, 2006). A educação da atenção consiste, na maior parte das vezes, em “retirar seus antolhos, em desabituá-la do encolhimento que as exigências da vida lhe impõem” (Bergson, 2006b, p. 160).

A perda da visão pode ser um episódio de transformação do funcionamento atencional e de intensificação de movimentos de conversão. Bergson comenta ainda que visão é “o batedor do tato” (Bergson, 2006b, p. 170), antecipandose a ele e preparando a ação no mundo. Comprometida com a ação, a visão recorta, do conjunto do campo, figuras relativamente estáveis, deixando de lado o fundo de duração e a mudança que existe por trás das formas estáveis. Mas a inversão do curso cognitivo habitual não é fácil. Encontra resistências nos hábitos anteriores e exige esforço. De todo modo, é por meio da atenção suplementar que se promove o alargamento da percepção, possibilitando uma apreensão mais direta do objeto.

Durante os processos de criação na oficina de cerâmica a atenção suplementar comparecia, por exemplo, no momento em que se tinha uma idéia. Foram também observados indícios da reversão da atenção quando havia mudança de idéia ao longo da elaboração da peça. Um participante afirmou “Você vai fazendo alguma coisa e na hora você muda. […] Você fica tão desligado, que acaba esquecendo aquela idéia que você tinha, e você parte para uma outra coisa, na hora ali” (P6). Trabalhar “desligado” é trabalhar solto, sem a atenção comprometida em atingir um objetivo predeterminado. Isto significa que a idéia não funciona como um ponto de chegada prefixado, mas como um ponto de partida. Outro participante descreveu assim o momento da mudança de idéia: “Eu estava fazendo uma chuteira. Uma chuteira que era pra colocar um celular: um porta-celular […]. Quando eu fui fazer as travas da chuteira […], eu tive que fazer quatro pontinhos, assim, como se fossem as travinhas, né? Aí quando eu vi aqueles quatro pontinhos eu falei: ‘Pôxa, isso ficou parecendo a letra ‘g’’ […]. Dali me surgiu, me abriu a idéia, né?” Enquanto manipulava o barro, ele foi tocado por um fragmento, em que percebeu uma forma emergente. A surpresa em perceber a letra “g” do alfabeto Braille fez com que o processo de criação sofresse uma bifurcação e tomasse outro rumo. E ele continua. “Aí pensei bem e falei: ‘Pô, dá pra fazer as letrinhas em braile em cerâmica’ […]. E aquilo ficou na minha cabeça […] A idéia. Aí eu fui pra casa, levei um pedaço de argila. Cortei, fiz o molde […]. E comecei a fazer as peças, as pecinhas” (P2). Após a surpresa do toque, a atenção pára, se detém na idéia. Há um movimento de pouso (cf. Kastrup, 2007). O participante foi tomado, mobilizado e então é a idéia que toma conta do processo de criação. Ele é levado a dar forma à idéia, atualizá-la, compondo com a matéria. Tudo isto tocando e se deixando tocar pelo barro. Não cabe entrar aqui nos detalhes da continuidade do processo de criação e nos movimentos de vaivém entre a idéia e os signos da matéria (Kastrup, no prelo).4 Basta lembrar que o tato revela aqui sua dimensão plenamente háptica. É o fragmento da peça, e não sua forma global, que respondem pela conversão da atenção. Por outro lado, a experiência transpõe os limites da relação entre um sujeito e um objeto. O encontro é contato direto e sem mediação. Tocar o barro é, ao mesmo tempo, e de modo indiscernível, ser tocado por ele.

 

O ótico e o háptico na cognição inventiva

A fecundidade da noção de percepção háptica, como percepção de fragmentos e por contato direto, levou ao questionamento de que se ela seria restrita ao tato. Trazendo a investigação da percepção para o campo da arte, G. Deleuze (1981) propôs que a distinção mais importante não é entre os diferentes sentidos, mas entre o funcionamento ótico e o funcionamento háptico da percepção. A percepção ótica se caracteriza pela organização do campo em figura e fundo. A segregação autóctone faz com que a forma salte do fundo, o que instala uma hierarquia, uma profundidade no campo. Além do dualismo figura-fundo, faz parte da percepção ótica a organização cognitiva no dualismo sujeito-objeto, que configura uma visão distanciada, característica da representação. O ótico não remete apenas ao domínio visual, mas este, em função de suas características, é aí dominante. Já a percepção háptica é uma visão próxima, em que não vigora a organização figura-fundo. Os componentes se conectam lado a lado, localizando-se num mesmo plano igualmente próximo. Além da mão, o olho tateia, explora, rastreia, o mesmo podendo ocorrer com o ouvido ou outro órgão. De todo modo, a distinção mais importante aqui é entre percepção háptica e percepção ótica, e não entre os diferentes sentidos, com a visão, a audição e o tato. Para Deleuze, o movimento da percepção háptica se aproxima mais da exploração de uma ameba do que do deslocamento de um corpo no espaço. O movimento da ameba é regido por sensações diretas, por ações de forças invisíveis como pressão, estiramento, dilatação e contração. Não é o movimento que explica a sensação, mas, ao contrário, é a elasticidade da sensação que explica o movimento (Deleuze, 1981, p. 30). A especificidade da percepção háptica é que pode não vir a produzir uma representação, e sim uma experiência direta, que pode concorrer para a inventividade da cognição (Kastrup, 2007).

Deleuze aponta a importância do rastreio próximo e da percepção de fragmentos. Tais características não constituem um limite do tato, mas uma possibilidade e mesmo uma potência, que pode ser desempenhada por outros sentidos, inclusive pela visão. Todo sentido possui, em princípio, uma virtualidade háptica. Por outro lado, a percepção da forma, império da visão e tão útil para o deslocamento no espaço, pode cegar para certos atributos do objeto. Essa idéia surgiu na fala de um participante, que declarou que percebera, pela primeira vez, o fundo de uma caneca após ter ficado cego. Este fragmento da caneca, que jamais havia sido percebido antes, ganhou existência através da exploração háptica.

Deleuze propõe o conceito de percepção háptica para dar conta da experiência com a arte, independentemente de qual o sentido envolvido. Há então uma visão háptica, assim como uma escuta háptica ou um tato háptico. A visão pode ser ótica háptica e o tato pode ser ótico. O tato pode ser ótico se quer só substituir a visão. É háptico ao sentir movimentos emergentes ou formas que se insinuam de modo inesperado. Deleuze coloca ênfase não tanto no caráter seqüencial e demorado na construção da representação, mas no aspecto positivo da captação direta de fragmentos e sensações. O que ele sublinha é o acesso, através da percepção háptica, à dimensão de virtualidade da forma. O fragmento, como a forma que apenas se insinua, não salta aos olhos como uma gestalt e pode ou não seguir o caminho da representação.

Para concluir, podemos dizer que a perda da visão reduz o nível de automatismo cognitivo e mobiliza a atenção. Na vida prática, o automatismo é substituído pelo esforço de uma atenção focada e da memória de trabalho, para ações cognitivas diversas como a reflexão e o cálculo. Mas a redução do automatismo pode também dar lugar à experiência direta, à atenção suplementar a ao alargamento da percepção. A situação de criação no trabalho com a cerâmica é distinta da situação de realização de tarefas, pois não segue objetivos predefinidos. Mesmo quando há uma idéia prévia ao trabalho, esta pode sofrer modificações ao longo do processo de criação. Quando a perda da visão abre a possibilidade de desenvolvimento de processos de criação, como é o caso que observamos na oficina da cerâmica, esta perda pode acionar um processo de reinvenção, atualizando outras virtualidades da atenção e da percepção. Retirados de boa parte dos compromissos da vida prática, encontram um tempo solto. Na oficina de cerâmica, isto é, favorável ao desenvolvimento de um trabalho sem pressa e sem a exigência de resultados. Os processos de criação funcionam, neste caso, como outro tipo de compensação. Não mais como busca de caminhos indiretos para chegar ao mesmo fim, mas para trilhar outros caminhos. Como afirma o fotógrafo cego Eugen Bavcar, “A escuridão pode ser uma iluminação”. Do momento que não vê, percebe de outra maneira, traçando nova fronteira entre o visível e o invisível.

 

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Texto recebido em fevereiro/2007.
Aprovado para publicação em março/2007.

O Processo editorial deste artigo foi acompanhado pelo Editor Responsável e pelos membros da Comissão Executiva.

 

 

*Agradeço ao Instituto Benjamin Constant e, sobretudo, aos participantes da oficina e às ceramistas Clara Fonseca e Dóris Kelson, que acolheram gentilmente a equipe da pesquisa. Agradeço também aos bolsistas de iniciação científica Paula Rego Monteiro Marques Vieira, Luciana Manhães, Filipe H. Carijó e Maria Clara de Almeida, que participaram de todas as etapas da pesquisa que deu origem a este texto. Agradeço também ao CNPq, pelo apoio.
**Doutora em Psicologia, professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: vkastrup@terra.com.br
1O Instituto Benjamin Constant é um centro de referência nacional para as questões da deficiência visual, ligado ao Ministério da Educação. Possui uma escola, capacita profissionais da área, assessora escolas e instituições, oferece consultas gratuitas à população, possui oficinas de reabilitação, produz material especializado, impressos em braile e publicações científicas. A oficina de cerâmica, na qual foi realizada a pesquisa, é ligada à Divisão de Reabilitação e é coordenada pela ceramista Clara Fonseca.
2A noção de representação é utilizada aqui em sentido pragmático, sem referência a fundamentos, significando um modo particular de conhecer. Nos termos de Francisco Varela, trata-se aqui da representação em sentido fraco, e não em sentido forte, como é utilizada pelo cognitivismo computacional. A representação em sentido forte traz consigo uma tomada de posição ontológica – há um mundo prévio que lhe serve de fundamento – e epistemológica – o conhecimento é objetivo quando corresponde a este mundo. Cf. Varela, Thompson e Rosch (2003).
3Kastrup, V. (No prelo). O lado de dentro da experiência: atenção a si e produção de subjetividade numa oficina de cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida.
4Kastrup, V. (No prelo). O lado de dentro da experiência: atenção a si e produção de subjetividade numa oficina de cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida.

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