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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.13 n.1 Belo Horizonte jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Vivência de mães de crianças com deficiência auditiva em sala de espera

 

Experience of mothers of children with hearing impairment in a waiting room

 

 

Sandra Fogaça Rosa RibeiroI,*; Midori Otake YamadaII,**; Liliam D’Aquino TavanoII,***

IUniversidade Estadual Paulista
IIHospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

O presente trabalho estudou a vivência de mães de crianças com deficiência auditiva em sala de espera, enquanto aguardavam os atendimentos da equipe interdisciplinar do Centro de Pesquisas Audiológicas (CPA), do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC/USP) – Bauru. O objetivo foi identificar, analisar e compreender essa experiência em relação ao que estava sendo mais significativo. A pesquisa foi pela abordagem qualitativa, seguindo uma orientação fenomenológica. Os resultados revelaram uma configuração grupal na convivência das mães, que foram apresentados por meio de quatro categorias: vivências semelhantes, ajuda mútua, educação e aprendizagem, insegurança na sala de espera. A última parte apresenta sugestões para uma abordagem grupal com as mães em sala de espera, enquanto mais uma oportunidade de atenção a população atendida.

Palavras-chave: Deficiência auditiva, Sala de espera, Grupos de apoio, Pesquisa fenomenológica.


ABSTRACT

This is a study of the experience of mothers of children with hearing impairment in a waiting room, while waiting for their appointment with the interdisciplinary team of the Centro de Pesquisas Audiológicas – CPA (Center for Audiological Research) of the Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais – Universidade de São Paulo – HRAC/USP (Hospital for Rehabilitation of Cranio-facial Anomalies), in Bauru, State of São Paulo. The aim was to identify, analyze and understand that experience concerning what was most significant in it. The research was based on a qualitative approach, following a phenomenological model. The results showed a spontaneous group configuration, as the mothers got together, in four categories: similar experiences, mutual help, education/learning and insecurity in the waiting room. The last part contains suggestions for a group approach to mothers in waiting rooms as another opportunity of care to the attended population.

Keywords: Hearing impairment, Waiting room, Self-help groups, Phenomenological research.


 

 

O atendimento à criança com deficiência auditiva é uma das demandas do Centro de Pesquisas Audiológicas (CPA), do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC/USP). Esse atendimento é diversificado, envolvendo especialmente o diagnóstico da deficiência auditiva, indicação do aparelho de amplificação sonora individual (AASI) ou o implante coclear (IC). Tanto um recurso quanto o outro tem como objetivo melhorar a comunicação, dentro de um programa de intervenção, contando com a atuação de uma equipe interdisciplinar (Mesquita et al., 2000).

Diante disso, é comum ter-se uma sala de espera com várias mães aguardando esses atendimentos, observando-se uma troca de informações entre as pessoas de maneira espontânea. Às vezes, essas informações são esclarecedoras ou, por outro lado, acarretam ansiedade, expectativas e dúvidas, que, apesar de interferirem no processo de atendimento, nem sempre eram contempladas.

Com essas necessidades, dúvidas e ávidas por saberem mais sobre a deficiência auditiva, é que as mães chegavam ao CPA, passando uma boa parte do tempo na sala de espera. Apesar de Costa et al. (2000) já terem constatado o nível de ansiedade das mães ao chegarem ao CPA, não havia um estudo sistematizado sobre a vivência das mães na sala de espera, demandando o estudo da questão como tema central desta pesquisa.

Para este estudo foi necessário um entendimento do ser humano na sua totalidade, indo além dos resultados que cada especialidade conseguiu obter separadamente, perpassando os princípios da humanização nos seus aspectos físicos, psíquicos e sociais.

A modernidade, segundo Canevacci (1981), desencadeada a partir do método cartesiano, proporcionou um inegável progresso para a medicina moderna, por meio do avanço na produtividade científica, separando os vários ramos do saber. Entretanto, trouxe também algumas dificuldades que, segundo Capra (1982, p. 141), “acelerou a tendência para a especialização e reforçou a propensão dos médicos de tratar partes específicas do corpo, esquecendo-se de cuidar do paciente como um ser total”.

Assim, o resultado deste trabalho apontou para uma modalidade de atenção humanizada à deficiência auditiva, por meio da escuta das mães de crianças com deficiência auditiva, em um contexto amplo de produção de saúde, enquanto vivenciavam a sala de espera.

 

Objetivo

Este estudo teve como objetivo identificar, analisar e compreender a experiência das mães de crianças com deficiência auditiva em sala de espera, em relação ao que estava sendo mais significativo, enquanto aguardavam os atendimentos da equipe de profissionais.

 

Metodologia

Para esta pesquisa foi necessário recorrer à abordagem em pesquisa qualitativa, com base nas ciências humanas, que, segundo Queiroz (2003), tem privilegiado o aspecto subjetivo e intersubjetivo, destacando dimensões como a emoção, a sensibilidade e a intuição enquanto ampliação do foco científico, imprescindível neste caso. A metodologia de orientação fenomenológica proposta por Martins e Bicudo (1989) foi utilizada, uma vez que é um recurso apropriado para pesquisar a vivência e possibilita ampliar a compreensão em relação ao fenômeno vivido. Focaliza a experiência vivida e capta o significado atribuído a esta vivência, está dirigida para as percepções que os sujeitos têm daquilo que está sendo investigado, ou seja, a experiência das mães de crianças com deficiência auditiva em sala de espera. Permite mostrar, descrever e compreender os fenômenos vividos, que se revelam e se expressam por si mesmo na entrevista.

Para apreensão do fenômeno foi necessário percorrer a trajetória fenomenológica que requer a redução fenomenológica, que não poder ser confundida com simplificação, mas, ao contrário, possibilita o penetrar na vivência das mães. A atitude das pesquisadoras foi pré-reflexiva, desvestida de todos os conceitos e experiências anteriores. A suspensão ou o abandono dos conceitos e teorias sobre a experiência foi um exercício difícil, porém imprescindível. O “retorno às coisas mesmas”, preconizado por Husserl, requer um encontro do pesquisador com a existência do sujeito, não como uma representação, mas como fato real, em que ambos ficam imbricados mutuamente. Embora a essência e o significado do fenômeno fossem procurados, só puderam ser encontrados depois que a existência foi apreendida (Forghieri, 1993).

Os momentos mais difíceis para o pesquisador foram aqueles em que o silêncio marcava um existir de pesquisador e pesquisado, numa interação única, que precisava ser respeitada, não com uma interpelação provocadora e indiscriminada, mas para o aprofundamento na experiência do ser-no-mundo, da mãe da criança com deficiência auditiva em sala de espera. O choro permeou o discurso de várias mães, o que foi empaticamente respeitado, requerendo da pesquisadora/entrevistadora um esforço para conservar-se no seu lugar de apreensão da realidade vivida, com uma atitude acolhedora (Turato, 2003).

Essa abordagem propiciou a apreensão dos significados contidos nos discursos dos sujeitos da pesquisa, contribuindo para um entendimento contextualizado da vivência das mães em sala de espera no CPA.

Fizeram parte deste estudo oito mães de crianças com deficiência auditiva em sala de espera no CPA, do HRAC, em Bauru, que se prontificaram a participar, relatando a experiência, após a apresentação do termo de consentimento livre e esclarecido. Foi assumido um compromisso das pesquisadoras para com as mães de informá-las do resultado da pesquisa, realizado em forma de cartas às mães, constando um resumo e os principais pontos sobre o tema, visto que todas moravam em outras cidades.

A partir do questionamento de como era para as mães vivenciarem a sala de espera enquanto aguardavam os atendimentos dos profissionais e de como se sentiam, foi definida, para a investigação, a seguinte questão orientadora: Descreva sua experiência em sala de espera, relatando o que foi e o que tem sido mais significativo nesta experiência. Isto permitiu ao sujeito falar livremente, sem ser interrompido, sobre a questão na qual, ambos, pesquisador e pesquisado, estavam interessados.

As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas qualitativamente, segundo as orientações de Martins e Bicudo (1989): leitura das entrevistas, com o intuito de apreender o sentido e o significado numa perspectiva global, releitura dos discursos para discriminar as unidades de significado por uma perspectiva psicológica, focalizando o fenômeno estudado. Após o levantamento das unidades de significado, buscaram-se as convergências entre as unidades para serem agrupadas em categorias.

A participação das mães na pesquisa foi com grande interesse e motivação, o que foi observado tanto no momento dos relatos, quanto na disponibilidade em aguardar o tempo que fosse necessário para a entrevista, cuja realização nem sempre era possível logo em seguida à proposta feita.

 

Resultados e discussão

Todas as mães relataram suas vivências, relacionando-as com as de outras mães, emergindo quatro categorias significativas: vivências semelhantes, ajuda mútua, educação e aprendizagem e insegurança na sala de espera. Na verdade, as categorias e os discursos representaram um processo único. No entanto, a divisão favoreceu a compreensão/interpretação do material colhido. As contribuições teóricas, colocadas em suspensão no momento da apreensão do fenômeno, foram introduzidas nas discussões a seguir.

Os discursos apresentados, elucidando as categorias, tiveram a indicação apenas das iniciais dos nomes das mães, preservando a identidade pessoal e a privacidade de cada uma delas.

 

Vivências semelhantes

Relatando a convivência na sala de espera, as mães foram expressando e reconhecendo sentimentos e vivências semelhantes, o que fez com que elas descobrissem que aquilo que sentiam não era incomum, mas partilhado com outras mães. “São pessoas que estão vivendo o problema igual o nosso, com a perda auditiva. Então, na sala de espera, a gente procura pra ver qual que parece mais com o nosso caso, pra trocar idéia” (G. B. M. M.).

A convivência possibilitou contar muitas histórias, trocar experiências, fazer amizades e ter conversas informais sobre temas diversos, como: educação dos filhos, lugar que se hospedavam, cidade de origem, rotina diária de levarem os filhos(as) para atendimento com profissionais, os atendimentos profissionais do próprio CPA. Alguns desses fatos se expressaram nas verbalizações a seguir:

Bem, pra mim, a sala de espera, eu acho bom, porque a gente tem a convivência com as outras mães… Aí eu falei que era a primeira vez que eu tinha vindo aqui. Contei a história do meu filho. Ela contou a história da filha dela também… E é bom ficar ali, que você convive com outras famílias… (L. C. R. S.)
Pra mim, a sala de espera é um lugar que vai conhecendo mais pessoas, vai sabendo de cada caso, fazendo amigos e aí vai sabendo de cada caso um do outro… (M. A. R. L.)

A partir do relato da vivência das mães, foi possível compreender uma ação desenvolvida, a de agrupar-se. Para Zimerman (1997), a formação de grupos espontâneos é muito natural, principalmente pelo ser humano ser “essencialmente gregário” (Zimerman, 1997, p. 59), necessitando aproximarse uns dos outros em situações de necessidade de ajuda. Foi isso que as mães, espontaneamente, faziam: formavam grupos na sala de espera. Zukerfeld (citado por Barros, 1997) apresenta a homogeneidade como um dos aspectos desse tipo de grupo, que apareceu no relato de M. A. R. L.: “Me identifico… Tem mães que tem bastante identificação… Conversando a gente vê que é tudo a mesma coisa, que a gente quer que o filhinho da gente escute… Todas elas…” (M. A. R. L.).

Para o autor, essa homogeneidade é resultado de um processo de identificação, promovendo a coesão grupal, alianças fraternais e o desencadeamento de ações transformadoras em benefício dos membros do grupo.

 

Ajuda mútua

Muitos foram os depoimentos das mães envolvendo a ajuda mútua ou o cuidado de uma para com a outra.

Sei lá. Saber que não é só a gente que passa por isso, mas não é querer que os outros passem… mas é saber que tem outras pessoas que passam pelo mesmo sentimento que a gente tem fortalece mais… (I. B. M.)
Chorava tanto que eu não lembro, não sei te falar. Ela [outra mãe] me viu chorando e disse que as coisas de Deus a gente não tem jeito de ir contra. E o que me ajudou, é que eu falo muito na sala de espera. E, às vezes, elas revezavam comigo. (E. Q. M. L.)

Essa mãe relatou também conversas com outras mães, mostrando sua cordialidade e empatia:

Eu sentindo só pelo olhar delas, que elas tavam com vontade de chorar. Eu dizia: “Você tá esperando resposta se seu filho? Vai ser implantado?” “É… tá pra sair, eu tô com uma agonia.” [outra mãe respondendo] Aí eu falei: “então chora, tá com vontade de chorar, chora”. Porque isso faz parte, é importante. (E. Q. M. L.)
Uma coisa que fica por dentro da gente, que a gente nem fala. Difícil de explicar. Sentimento que a gente, às vezes tá rindo, mas por dentro a gente tá triste. Depois da segunda vez [referindo-se a segunda vinda ao CPA], eu fui conversando e já fui melhorando. Achei que a sala de espera ajuda muito a gente conversar com outras mães, me ajudou muito. (E. M. S. P.)

Conforme esses relatos, essas e outras situações de ajuda mútua observadas foram: identificação com a outra mãe, empatia pelo problema do outro, construção de um significado mais positivo frente à deficiência, visualização de novos horizontes no desenvolvimento do filho, diluição do próprio preconceito e desenvolvimento de alternativas para lidar com o preconceito do outro, troca de idéias sobre dificuldade na vinda para Bauru (transporte, recurso financeiro, ansiedade por aguardar o dia de vir), apoio, encorajamento e companheirismo em momentos de choro e desespero, prestação de conforto espiritual (preces), incentivo e encorajamento para ampliação da participação na reabilitação. Essa ajuda mútua entre as mães foi caracterizada por um acolhimento. Frente ao sofrimento causado pela deficiência do(a) filho(a), isto se constituiu numa continência para a mãe mais fragilizada.

Barros (1997) e Zimerman (1997), ao realizarem estudos de grupos espontâneos, caracterizam-nos com elementos de ajuda mútua, revelando uma dinâmica muito semelhante à vivência das mães em sala de espera. Eles trouxeram contribuições específicas a respeito do mecanismo de funcionamento desses grupos.

Segundo Barros (1997), o acolhimento é inerente a esse tipo de grupo, desencadeado por meio do que ele chama de mecanismo suportivo. Esse mecanismo é uma conseqüência da homogeneidade, observada clinicamente por Zukerfeld (citado por Barros, 1997), através do aparecimento de três fenômenos expressos por três palavras com a mesma terminação, ou seja, “ança”: semelhanças, esperança e confiança. São as três “anças” do grupo. Nesse sentido, parece que as mães criaram uma atmosfera receptiva, favorecendo a expressão de idéias e sentimentos.

 

Educação e aprendizagem

A sala de espera como espaço de educação e aprendizagem foi claramente relatado por G. B. M. M.:

Eu vi que tinha uma mãe que tinha um caderninho que tudo que as outras falavam e ela achava legal, ela anotava pra ela fazer em casa. Ela falou que ela tem um quartinho, que tudo ela faz nesse quartinho. Até então eu resolvi radicalizar, arrumei um quartinho e eu mesmo faço as coisas. Tenho uma lousa, tenho uma cortiça, prego ali as fotos as figuras e vou mostrando pra ele. Então você vê que não adianta só levar o filho pra fazer a terapia os 40 minutos. Você em casa tem que interagir. (G. B. M. M.)

O constante ouvir e aprender sobre a reabilitação fez parte da vivência das mães, incluindo situações como: experiências que deram certo, esclarecimento de dúvidas por mães com filhos com mais tempo de uso do AASI ou IC às mães que iniciavam a reabilitação dos filhos, informações sobre a cirurgia de IC, cuidados pré e pós-cirúrgico, informações sobre os resultados da reabilitação (IC e AASI), aprendizagem de novas atividades com a criança no processo de reabilitação desenvolvido em casa pelos pais. A seguir, mais algumas expressões referentes a isso.

Vou perguntar o que que ela fez depois da cirurgia, se é difícil. (N. C.)
Porque é a primeira vez que eu estou aqui. E no caso do implante, a gente tem muita curiosidade de saber como é que é. Porque, futuramente, a criança da gente pode ser implantada, aí a gente quer saber os detalhes de tudo a partir que ela começa usar o aparelho, logo no começo, se ela começa falar umas palavrinhas. E quando usa o implante se é mais rápido. (M. A. R. L.)

A mãe citou algumas curiosidades em relação ao IC, perguntando sobre isso a uma das mães em sala de espera. Seu relato continuou mencionando o esclarecimento de outras questões.

Aí eu pensei que recebia o aparelho, já colocava e já escutava. Aí, com outras mãezinhas, aprendi. Primeiro com as mães, depois com os profissionais que tinha contato, sabe. Na sala de espera tinha as mães com criança com aparelhinho, e aí fui perguntando se a criança dela já escutava logo, ela foi falando que não era assim. Que tinha que colocar, esperar, aprender. Eu gosto de esperar na sala de espera e ter contato com as mães e acho que com elas vai aprendendo mais. (M. A. R. L.)
Porque elas passaram experiência para mim, o jeito assim de se comunicar com os filhos delas, eu aprendi também, muita coisa. (E. M. S. P.)

Esse aspecto educativo da vivência das mães vem ao encontro da finalidade educacional de grupos espontâneos (Zimerman, 1997; Barros, 1997). A concepção de Freire (1983) vem corroborar com esse entendimento, apresentando a educação como um processo construído a partir da relação homem-mundo. Nesse sentido, educação “é comunicação, é diálogo, um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados”. Essa comunicação foi mediada por um fato concreto, no caso das mães, o desenvolvimento da reabilitação com seus filhos. Isto possibilitou uma conscientização sobre um “que-fazer” (Freire, 1983, p. 76) constante da vivência de ser mãe.

A busca de informações das mães na sala de espera sobre a deficiência auditiva conferiu ao espaço um caráter pedagógico ou educativo, num sentido mais amplo da educação, preconizado pelo ilustre educador Freire (1980). Dentro de uma concepção crítica, o autor ressaltou o caráter social ou coletivo da educação, representado na sala de espera exatamente pela formação espontânea de grupos.

Nesse enfoque transformador, libertador e humano foi possível entender a sala de espera como um espaço que proporcionou “um humanismo científico (que nem por isso deixa de ser amoroso)” (Freire, 1983, p. 74), apoiando a ação educativa e comunicativa das mães.

 

Insegurança na sala de espera

Os relatos foram unânimes em descrever o fenômeno da insegurança na sala de espera. Foi uma experiência de natureza diferente do que já foi apresentado até agora.

Eu tava na sala de espera, eu tava chorando… Era uma insegurança… Eu via as outras mães fortes… Parece que comigo era diferente, que não era a mesma coisa… Eu sou manteiga, eu choro… Eu sentia vergonha assim, de tá ali chorando ainda. Eu sentia vergonha. Saía das salas com o olho vermelho. Sentia inferior aos outros. Mas era uma coisa minha. Sentia muita pena da criança [do filho]. (I. B. M.)
Tem horas que a gente se anima com outras mães, tem horas que a gente fica decepcionada… (I. B. M.)

Esses relatos revelaram que nem tudo aquilo que foi dito ou percebido na sala de espera proporcionou coisas boas. A vivência foi permeada por sentimentos negativos de insegurança, vergonha, decepção e sentimento de inferioridade. Às vezes, a troca de informações ou a observação do desempenho aquém do esperado de algumas crianças com AASI ou com IC em companhia de suas mães desencadeavam ansiedade, dúvida, desânimo e decepção, gerando questionamentos como: “será que meu filho(a) vai ouvir, será que vai falar?”.

I. B. M. contou a decepção e frustração de um pai ao falar de sua filha, que realizou o IC e ainda não estava falando. Continuou o relato, expressando como foi a experiência de ouvir esse pai.

A criança, a filha dele [de um pai] tava implantada, então ele disse que a menina não fala. Mas cada caso é um caso. Ele [um pai] acha que não é assim como falaram… É ruim quando é assim, tipo o pai de ontem, meio desanimado. (I. B. M.)

Outras situações geradoras de insegurança e incômodo relatadas por algumas mães foram: abordagem de questões sobre a etiologia da deficiência auditiva, com intensificação do sentimento de culpa, comentários sobre a idade da criança quando a deficiência auditiva foi diagnosticada, agitação das crianças na espera pelos atendimentos, trocas sobre as possibilidades ou não da realização do IC. “Aí eu via crianças implantadas e queria que meu filho fizesse implante e tava muito longe disso acontecer…” (E. Q. M. L.).

Em outro momento, a mesma mãe fala da culpa, partilhando com outras mães como era isso na relação com seu marido.

Entendeu? Um [ela] fica querendo empurrar o problema pro outro [marido], como se tivesse culpado. (E. Q. M. L.)
O outro lado seria a gente batalhar de repente, e a criança ter uma perda mais profunda e não ter jeito… A grande agonia é a gente ver as crianças querendo falar, querendo mostrar…. [choro]. (G. B. M. M.)

Os relatos indicaram o aparecimento de conteúdos permeados por um abalo emocional intenso, marcado pelo choro. Retrataram claramente os momentos difíceis em torno de temas dolorosos.

Porque tinha hora que eu achava que eu tinha descoberto a deficiência do G. cedo. Mas aí quando eu via uma mãe com um nenezinho de colo e meu filho já tinha um ano, eu falava: “Nossa, eu já tô muita atrasada.” E aí batia um desespero muito grande. (E. Q. M. L.)

O relato de E. Q. M. L. representou a angústia de algumas mães que pensavam ter descoberto o problema precocemente e passaram a achar o contrário, ao saber de outras que souberam do diagnóstico quando os filhos eram mais novos. Desesperavam-se por achar que perderam tempo na reabilitação e que seus filhos não alcançariam resultados favoráveis.

Esses relatos revelam um clima vivencial de tensão, que, para Romero (1998), é um dos estados de ânimo que revela conflitos e incapacidade do sujeito diante do sofrimento. Pode iniciar com uma mera preocupação, passar para a apreensão, caminhar para a ansiedade e transformar-se em angústia e desespero. É a maneira como essas mães se encontravam, atribuindo esse significado à situação.

As crianças não têm paciência de ficar muito tempo num local só. A gente quer mais é ficar sentada, quieta, mas eles não, quer andar. A minha menina não deixa também a gente ficar conversando. De repente, tá conversando e tem que interromper. (N. C.)

Essa situação foi expressa por uma minoria de mães, com ênfase maior no desejo de participar das conversas, sem serem interrompidas pelos filhos(as), do que na própria agitação da criança.

Esses relatos mostraram um constante abalo afetivo, que percorreu o caminho do sofrimento, implicando na desestabilização dessas mães no cuidado para com os filhos e na disponibilidade existencial para viverem as próprias vidas. Essas mães vivenciaram sentimentos de insegurança, culpa, vergonha e incômodo, os quais já foram constatados por outros autores, em diversos trabalhos de orientação e pesquisa: Luterman e Ross (1991), Almeida (1991), Costa et al. (2000), Yamada (1998).

Luterman (1991), audiologista interessado no estudo com a família, apontou que a tarefa dos pais com filhos com deficiência auditiva é algo muito parecido com o de quaisquer outros, entretanto exigindo mais atenção e, conseqüentemente, maior desgaste.

Esse desgaste foi descrito em outros estudos no que se refere: a modificação da dinâmica familiar, flutuações no processo de aceitação da deficiência auditiva, suspeita inicial do problema em geral pela mãe, luto pelas expectativas frustradas, as fases de negação, rejeição e ansiedade, medo no enfrentamento, privação do som como desencadeante de dificuldades no desenvolvimento afetivo, limitações e dificuldades de comunicação e, finalmente, as limitações na aquisição e no desenvolvimento da linguagem (Almeida, 1991; Iervolino & Souza, 1994; Samea, 1994; Yamada, 1998; Kudo & Pierri, 1994).

Conforme Yamada (1988), a atuação da mãe na família com crianças com deficiência auditiva tem uma especificidade quanto ao significado do som na constituição do ser humano desde a tenra idade. Para evitar ou minimizar as dificuldades desencadeadas pela privação do som, o esforço da mãe é muito intenso. Em geral, é um relacionamento caracterizado por um apego maior com a criança, seja efetivamente para prestar cuidados ou por uma exigência interna, desencadeada por querer dar mais proteção frente a suposta vulnerabilidade da criança.

Diante da tônica da sala de espera enquanto espaço de trocas de experiências, foi natural que esses aspectos também tenham aparecido. Entretanto, é questionável o quanto a troca entre as mães, por si só, tenha sido suficiente para dar continência a essas angústias e inseguranças. Ou se, pelo contrário, foi em alguns momentos a razão do aumento delas.

Esse fato remete a uma reflexão sobre quais seriam os ganhos para a população de mães em sala de espera do CPA, mediante uma atuação técnica da equipe junto a ela.

Zimerman (1993) afirma que, apesar desses grupos espontâneos não prescindirem de uma coordenação técnica, é necessário que se mantenha por parte de algum técnico “um respaldo ao grupo, tanto através de uma continuada presença e participação não muito diretiva, como de uma forma em que ele não participa dos encontros, mas mantém uma permanente atitude de disponibilidade” (Zimerman, 1993, p. 156).

Para Bleger (1998), essas oportunidades de atuação, junto ao que ele denominou como grupos naturais, têm sido pouco aproveitadas. O autor reforça a necessidade de aproveitar a possibilidade de intervenção grupal em situações ainda não muito exploradas nas instituições. Afirmou que todo lugar que tem ser humano, tem formação de grupos. Assim, num sentido preventivo, é oportuno ir até eles, não esperando que procurem o atendimento, que nem sempre contempla tudo que foi explicitado nesses momentos coletivos.

A fim de ser possível essa operacionalização, Bleger (1998) apontou a necessidade de algumas modificações institucionais, tais como: aperfeiçoamento das técnicas de intervenção, elaboração de técnicas de ação nos grupos naturais para inserção grupal, revolução na administração dos recursos técnicos.

Segundo o autor, isto significa, entre outras coisas, maior investimento na formação dos técnicos em dinâmica de grupo, bem como a utilização dessas técnicas de grupo de forma otimizada na instituição, requerendo da estrutura organizacional uma ampliação do foco de atenção que envolve outros campos de conhecimento como: sociológico, humanista, econômico e antropológico.

Na literatura encontraram-se diferentes modelos de atuação profissional em sala de espera, concernentes a vários fatores, como periodicidade, local de ocorrência do grupo (na própria sala de espera ou em outro lugar), caráter da intervenção, ênfase em aspectos informativos ou terapêuticos. Compreensivelmente, esses autores identificaram as dificuldades das instituições em assimilar a implementação do trabalho grupal em sala de espera, requerendose mudanças de rotina na instituição, promovidas por meio de orientações e esclarecimentos aos funcionários (Esperidião et al., 1992; Branco et al., 1988; Maldonado, 1982; Moreira et al., 2002).

Embora as dificuldades existam, os estudos também enfatizaram os ganhos para as mães, acompanhantes ou o próprio paciente, buscando-se compreender a família dentro de um contexto mais amplo da saúde, em sala de espera. Esses estudos apontaram para o seguinte: reconhecimento da sala de espera como um espaço comunicativo e de ressignificação das práticas, esclarecimento de dúvidas e ansiedades através de trabalho profissional, dificuldades institucionais na implementação do trabalho junto à sala de espera, que se minimizavam ao ser articulado com a equipe, riqueza da expressividade de problemáticas diversas, identificação entre as pessoas, tempo de espera como propiciador de trocas de informação e potencializador de cooperação mútua (Maldonado, 1982; Esperidião et al., 1992; Jarussi, 2002; Lopes, 2001; Branco et al., 1988; Moreira et al., 2002).

Segundo Samea (1994), essas práticas podem promover a integração da equipe com a população atendida, “não como uma pseudoparticipação onde se delega às instituições as soluções necessárias, mas de forma a assumir criticamente o planejamento e a construção de novas perspectivas, através da mobilização e organização dos próprios sujeitos envolvidos” (Samea, 1994, p. 246).

 

Considerações finais

O estudo da vivência das mães em sala de espera, por meio dos seus relatos, indicou a ocorrência de uma constituição grupal, com vários benefícios, como ajuda mútua e trocas de experiências positivas, mas também com situações desencadeantes de incômodo, ansiedade e inseguranças. O mecanismo de formação de grupos, denominados de espontâneos ou naturais, respectivamente por Zimerman (1993) e Bleger (1998), foi observado no discurso das mães.

A compreensão disso remeteu a uma reflexão sobre de que modo a equipe poderia atender as necessidades das mães, no processo grupal espontâneo em sala de espera.

Como contribuição final, esta pesquisa apresenta como sugestão uma ação conjunta da equipe do CPA, estabelecendo uma estratégia de atenção que possa contemplar a configuração grupal das mães em sala de espera, como uma oportunidade de construção de novos recursos nos serviços de atendimento. Essa estratégia poderá ser um acolhimento grupal, levantandose expectativas e o que mais aflige a cada uma. Uma avaliação cuidadosa das verbalizações poderá constituir-se numa preliminar do projeto de assistência, definindo condutas de produção de saúde, que nem sempre seriam detectadas tão precocemente nos atendimentos individuais.

Esse procedimento também poderá oferecer um ganho para a reorganização do fluxo na unidade, esclarecendo melhor a demanda e direcionando os encaminhamentos. Assim, os casos poderão ser rápida e conjuntamente conduzidos, otimizando o tempo dos usuários e dos profissionais.

Conforme já explicitado na introdução deste trabalho, torna-se evidente que a consideração do ser humano na sua totalidade, dentro do pressuposto da humanização, só tem a contribuir para um melhor funcionamento dos serviços de saúde, tanto qualitativamente, na medida em que torna mais eficiente o atendimento, quanto quantitativamente, por meio da otimização do tempo ao ouvir logo de início aquilo que o usuário busca para produção de sua saúde.

 

Referências

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Texto recebido em abril/2007.
Aprovado para publicação em maio/2007.

O Processo editorial deste artigo foi acompanhado pelo Editor Responsável e pelos membros da Comissão Executiva.

 

 

*Psicóloga, professora/tutora do IUSC – Faculdade de Medicina – Unesp/Botucatu, professora do Departamento de Psicologia – Unesp/Bauru, mestre em Saúde Coletiva pela Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp. E-mail: sandrafogacarr@gmail.com
**Psicóloga do HRAC/USP/Bauru, mestre em Distúrbios da Comunicação Humana. E-mail: miotake@centrinho.usp.br
***Psicóloga do HRAC/USP/Bauru, mestre em Distúrbios da Comunicação Humana. E-mail: ltavano@centrinho.usp.br

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