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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.13 n.1 Belo Horizonte jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Trajetos adolescentes na construção de toxicomanias

 

Adolescents trajectory in drug addiction construction

 

 

Sandra Djambolakdjian Torossian*

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

 

 


RESUMO

O presente artigo trata da construção das toxicomanias a partir de demandas de adolescentes usuários de drogas. Destaca-se a existência de diferentes lógicas de consumo que apresentam variadas problemáticas psíquicas. Os conceitos desenvolvidos por Rassial (1999), em relação à operação adolescente, e por Le Poulichet (1990), sobre as diferentes lógicas psíquicas encontradas nas toxicomanias, foram os norteadores deste trajeto. Ressalta-se a transformação de droga em tóxico associada às diferentes possibilidades e lugares que as drogas produzem no psiquismo. Além disso, resgata-se a significação que esses produtos adquirem para o sujeito adolescente, quer se trate de um sintoma endereçado ao outro ou de uma defesa perante uma ameaça de aniquilamento subjetivo. As considerações, aqui presentes, são acompanhadas de dois recortes de casos clínicos.

Palavras-chave: Adolescência, Toxicomanias, Clínica psicanalítica, Uso de drogas.


ABSTRACT

This article discusses drug-addiction construction with basis on adolescent drug-users’ demands. It emphasizes the existence of different logics of drug addiction, presenting various psychic problems. It and is based on the concepts developed by Rassial (1999), concerning adolescent operation, and by Le Poulichet (1990), about the different psychic logics found in drug addictions. It also focuses on the transformation of drug into toxic substance, associated to the different possibilities and places that drugs produce in the psyche. Besides, the meaning that those products have to adolescent subjects, be it a symptom addressed to the other or a form of defense in face of a threat of subjective annihilation, is also taken into account. Two clinical cases illustrate the text.

Keywords: Adolescence, Drug addiction, Psychoanalytical clinic, Drug use.


 

 

As demandas de tratamento por parte de adolescentes que usam drogas emergem como uma questão de investigação a partir de experiências de escuta clínica em diferentes contextos institucionais. A queixa sobre o uso/abuso de drogas se apresenta sob formas heterogêneas. Em algumas situações as drogas tornam-se o sofrimento principal, havendo quase uma impossibilidade de associação desse uso com outras questões da vida dos adolescentes. Isso se relaciona, geralmente, a uma exclusividade na utilização de substâncias psicoativas, em detrimento de outras atividades, como trabalho, relacionamentos, lazer. Em outras situações, no entanto, o consumo de drogas coloca a possibilidade de falar para além da droga e os adolescentes fazem esse consumo conviver com outras atividades na vida.

Questionamos a diferença presente nas situações descritas destacando que, para além de uma necessária descrição dos tipos de uso de drogas, essa apresenta uma relação diferenciada de cada um dos sujeitos com as drogas e exige diferentes posturas terapêuticas. Assim, detivemos-nos na observação e reflexão sobre as estratégias terapêuticas geralmente utilizadas nessas situações, bem como na nossa própria experiência em relação à direção desses tratamentos.

Freqüentemente, os adolescentes que utilizam drogas sem prejuízo das atividades cotidianas na vida são encaminhados a tratamentos nos quais precisam definir-se como “toxicômanos” ou “dependentes químicos”. Seguindo essa via terapêutica, muitos deles iniciaram incursões por variadas instituições de internação.

Aqueles sujeitos, cujo discurso centra-se nas drogas, numa quase impossibilidade de deslocamento associativo, apresentam maiores dificuldades em relação à inserção de outras atividades na vida que não seja o consumo de substâncias tóxicas. Neles emergem dificuldades relativas ao estatuto da droga e da subjetividade.

Após situar as questões iniciais em relação à demanda dos adolescentes, elaboramos um percurso de pesquisa, o qual será parcialmente apresentado neste artigo. Para dar sustentação teórica ao nosso trabalho escolhemos as proposições de Le Poulichet (1990), psicanalista que diferencia as lógicas toxicomaníacas da suplência e do suplemento, levando em conta a diversidade de lugares que as drogas ocupam no psiquismo.

Propomos, então, conceituar a problemática contemporânea das toxicomanias associadas à adolescência, a partir das diferentes posições e lógicas psíquicas que marcam o consumo de drogas. Isso tudo sem desconsiderar a lógica do consumo presente na contemporaneidade.

 

A toxicomania: uma configuração heterogênea

A homogeneização da toxicomania, o relevo dado a essa entidade em detrimento do sujeito toxicômano, bem como a indiferenciação entre as toxicomanias e os usos de droga, são características do imaginário social destacadas por Le Poulichet (1990). Segundo a autora, a postura inerente a esse entendimento não pode ser considerada um erro, já que revela o espírito do tóxico presente nos discursos sociais. Esse espírito pode ser observado nas leis que se aplicam para todos os toxicômanos; no objeto de discurso privilegiado que “a toxicomania” oferece quando aparece como um espelho das imagens sociais da “intoxicação”, da “epidemia” e do “flagelo social”; e, também, ao apresentar o imaginário do tóxico, que, na atualidade, cria uma teoria orgânica da psique.

Em harmonia com essas idéias, Giberti (1996) destaca a confusão existente entre uso de drogas e overdose, bem como a falta de discriminação entre uso esporádico, dependência ou adição. Atribui essa confusão a um imaginário permeado de posições morais e moralizantes.

A entidade toxicomaníaca, decorrente dos discursos e do imaginário social, precisa ser problematizada e desconstruída, ao escutar cada adolescente que se apresenta sob a queixa do uso de drogas. Esse trabalho desconstrutivo atravessa tanto o olhar terapêutico quanto o dos pacientes, que chegam clamando por uma categorização no quadro dos “drogados”. Os familiares compartilham com a sociedade a figura de um flagelo drogaditivo que merece ser trabalhado.

A compreensão das variadas demandas de tratamento será aqui analisada a partir da existência de diferentes configurações de toxicomania e dos sujeitos que fazem da droga um tóxico. Recorremos, para isso, ao conceito “operação farmakon”, proposto por Le Poulichet (1990), o qual atribui um estatuto metapsicológico à diferença entre uso de drogas e toxicomania, bem como à diferenciação entre as varias toxicomanias.

 

Do Phármakon à “operação farmakon” nas toxicomanias

A noção de phármakon, farmakon ou farmacéia, oriunda da obra de Platão e trabalhada por Derrida, é retomada por Le Poulichet (1990) para a compreensão das toxicomanias. Derrida (1972/1997) aponta como uma das principais características do farmakon a capacidade ser remédio e veneno simultaneamente.

Le Poulichet (1990) utiliza-se dessa propriedade para construir seu conceito de operação farmakon: “O Farmakon não seria, nas toxicomanias, senão o remédio de um sofrimento ‘insuportável’” (Le Poulichet, 1990, p. 12). Um remédio para a angústia que poderá ser transformado em veneno quando as drogas ocupem o lugar do pensamento. No ato do consumo de drogas, o sujeito não pensa, não deixa lugar para as palavras. Aí a droga vira tóxico, continuidade entre o remédio e o veneno.

A continuidade remédio-veneno pode ser ampliada a partir das contribuições de Petit (1990), o qual diferencia três momentos no discurso dos toxicômanos: o momento da perda do efeito inicial, o momento em que o sujeito fala dessa perda, e o da “lua-de-mel” – situado entre esses dois tempos. Sustenta o autor: não é o momento de “flash” que os sujeitos toxicômanos procuram ao drogarse, mas aquele no qual o efeito da droga desaparece.

Nesse ponto aparece o paradoxo na toxicomania. Ao mesmo tempo em que o sujeito pretende eliminar qualquer indício da angústia, ele a faz emergir. Tomemos emprestado um exemplo do próprio Petit (1990) para ilustrar essa situação. É comum que um toxicômano recuse-se a realizar atividades socialmente propostas como relevantes: estudos, trabalho, lazer etc. Essas são, geralmente, atividades superinvestidas e supervalorizadas socialmente e pelos pais ou cuidadores. Ao romper com isso, o toxicômano deixa-os “em falta” e, ao mesmo tempo, deixa-se “em falta”.

São as dificuldades com as referências simbólicas que levam os sujeitos a precisar empreender essa via sintomática. Segundo o autor, a função simbólica aparece enfraquecida nesses sujeitos, os quais precisam encontrar uma solução na droga (Petit, 1990). Uma solução pela via do tóxico a qual, segundo Le Poulichet (1990), revela um mundo contínuo em que as diferenças se esvanecem.

A operação farmakon não está associada somente à autodestruição, mas também é uma operação de defesa que conserva e protege uma forma de narcisismo. Essa estabelece as condições necessárias para a satisfação dos sujeitos, quando produz um cancelamento tóxico da dor, ao dar continuidade e reversibilidade aos opostos remédio e veneno. O farmakon, no entanto, não apresenta soluções homogêneas. Na construção da heterogeneidade, Le Poulichet (1990) introduz as lógicas do suplemento e da suplência.

 

O suplemento e a suplência

O suplemento e a suplência são duas lógicas descritas por Le Poulichet (1990) para diferenciar duas modalidades de relação dos sujeitos com as drogas e das representações psíquicas dos tóxicos. Essas lógicas não são lidas como entidades estáveis ou categorias fixas, mas destacam-se pela sua flexibilidade e composição. Podemos encontrá-las alternando-se como modalidade de consumo num mesmo sujeito.

Derrida (1972/1997) situa o suplemento como um acréscimo e afirma: “Acrescentar não é senão dar a ler […], o suplemento de leitura ou de escritura deve ser rigorosamente prescrito, mas pela necessidade de um jogo […]” (p. 7- 8). No suplemento tóxico há dificuldades em suportar ausências. Lembremos aqui do jogo de “fort-da”, resgatado por Freud (1920/1981) para mostrar a elaboração da ausência da mãe. A criança simboliza com o carretel o afastamento e a volta da mãe na tentativa de suportar melhor a dor que a ausência desta lhe provoca. Esse jogo torna-se um recurso simbólico para suportar a angústia.

Nas toxicomanias configuradas a partir do suplemento o tóxico assemelhase ao carretel. Se, como vimos anteriormente, acrescentar é “dar a ler”, na lógica do suplemento o sujeito mostra-se ao outro para ser lido, para ser significado.

Nos adolescentes com história de uso de drogas as significações encontradas, freqüentemente, priorizam o tóxico. Isso emerge tanto na resposta (dos pais, da escola, de outras instituições) “tu és um drogado” quanto na ausência de resposta, com a qual muitos adolescentes se deparam.

A lógica da suplência nas toxicomanias, de acordo com Le Poulichet (1990), supõe um enfraquecimento simbólico em função do qual a droga transformase em tóxico, instaurando uma relação dual. Há aí uma impossibilidade de incluir uma mediação entre o sujeito e a droga

O sujeito está quase totalmente entregue à droga. O corpo transforma-se numa máquina a ser administrada. Com diferentes doses, faz-se funcionar a máquina-organismo a serviço da imaginária da família e das instituições. Nesse momento, não há possibilidade de interromper o circuito. Investe-se tudo para manter um bom funcionamento do processo de consumo. Assim, poderá ser preciso o aumento da quantidade de doses para evitar a interrupção (Le Poulichet, 1990).

Floriana e O Príncipe são dois adolescentes escutados em situação de tratamento em diferentes instituições. O tratamento da primeira se deu num setting terapêutico de atendimento individual, numa instituição não especializada em “dependência química”. O Príncipe realizou seu percurso de tratamento num setting de hospital-dia, numa instituição especializada no tratamento para usuários de drogas. Ressaltamos essa diferença de instituições por considerar que o ingresso numa instituição especializada pode representar para o adolescente uma resposta a sua demanda de significação.

 

Floriana e a significação de um “novo corpo”: o suplemento como lógica

O tratamento de Floriana dura, aproximadamente, um ano. Após “resolver” os sintomas mais emergentes e angustiantes – as drogas e os problemas escolares –, bem como organizar os namoros, Floriana se despede.

O nome fictício por mim atribuído na construção desse caso, associa-se à homofonia com seu verdadeiro nome e, além disso, transmite a sensação de leveza característica do seu nome e de sua forma de agir.

As sessões têm um colorido especial, extraído de uma mistura entre a fala “adulta” e o brincar infantil. Ela só consegue falar por meio do horóscopo, do desenho e das músicas. As sessões finais, acontecidas após um período de faltas, são dedicadas ao “relato” das suas conquistas, mostrando-me suas melhoras.

Floriana faz de sua toxicomania uma demanda de significação das modificações produzidas no seu corpo, em função da puberdade, bem como questiona, por meio do uso de drogas, as referências simbólicas. Embriaga-se para mostrar-se a seus pares de forma escandalosa. É também sob efeito de álcool e medicamentos que faz piadas questionadoras dos princípios filosóficos de sua escola.

A toxicomania de Floriana organiza-se prioritariamente numa lógica de suplemento, na qual as drogas transformam-se em tóxico quando são acrescentadas aos outros recursos por ela disponíveis para dirigir diversas demandas aos pais e à escola. Floriana expõe seu sofrimento adolescente “dandose a ler” (Derrida, 1972/1997).

As mudanças corporais são provocadoras de angústia. A solução inicial que esta adolescente encontra para lidar com a angústia é mostrar seu corpo de forma escandalosa num lugar público, freqüentado por seus pares. Numa tentativa fracassada de anular a angústia provocada pelas mudanças do corpo e pelo escândalo produzido, deixa fluir o álcool no seu corpo e esquece.

A adolescência pode ser compreendida como uma pane subjetiva, relacionada ao olhar e ao reconhecimento social; ao questionamento e denúncia da falta de eficácia simbólica e à relação genitalizada ao outro (Rassial, 1997). É nessa pane que as drogas se apresentam como uma solução na qual a angústia parece ser aliviada.

Uma das estratégias encontrada por Floriana para apresentar seu sofrimento, no decorrer do processo terapêutico, é o desenho, a lápis, de uma menina, quase criança, que muda seu corpo pelo traço sobreposto da caneta hidrocor. Esconde o corpo infantil (as linhas do lápis ficam apagadas sob as da caneta) e mostra seu “novo corpo”. A partir desse momento ela inicia um questionamento sobre seu lugar no mundo, seja em relação a sua atividade de estudante ou aos seus amigos e colegas.

Aos meninos, dirige um pedido de reconhecimento de seu novo estatuto corporal e a seus professores um pedido de reafirmação de referências. Aos amigos, demanda a significação de questões corporais; às figuras de autoridade, a retomada das referências simbólicas. A demanda de cura inclui as drogas e um pedido de respostas relativas ao amor e ao destino. A menina exige, da analista, respostas imediatas a suas perguntas.

A escola insiste numa denominação que a levaria por um caminho toxicomaníaco: solicitaram que ela fosse internada. No entanto, a mãe se opõe a essa exigência re-situando as questões subjetivas, por entender que sua filha precisa tratar da adolescência, as drogas não são o problema. Nesse ponto, Floriana responde ao pedido materno tratando de sua passagem adolescente.

O recurso ao tóxico efetiva-se nos momentos de dificuldades com a autoridade. Floriana recorre ao tóxico para lidar com a angústia provocada pela passagem do “ser criança” para o “ser adulto”. O álcool, a cola e os medicamentos parecem estar colocados na transição entre os brinquedos (imagens da infância) e a responsabilidade implicada no estudo, que vem apontar o “ser adulto”.

Apresenta-se, aqui, uma outra face da operação adolescente: o teste à eficiência da autoridade. As drogas auxiliam-na a transgredir e perguntar-se pelos limites dessas transgressões. Pergunta-se: o que ela deve mostrar? O que ela deve ocultar? Engaja-se num jogo de esconde-esconde ou esconde-mostra: escondeu o álcool, mas mostrou os seus efeitos, aparecendo alcoolizada. Além disso, ataca um dos fundamentos da filosofia de sua escola: a religião. Ao rebelarse contra a autoridade, mostra que esta existe. Há uma função contra a qual se rebelar.

 

O Príncipe: entre o suplemento e a suplência

O Príncipe permaneceu, aproximadamente, um ano em tratamento. A droga por ele escolhida foi cocaína, aplicada de forma injetável. O nome por nós escolhido para apresentá-lo refere-se a uma lembrança de sua infância: sua mãe, apesar de não ter condições financeiras para isso, vestia-o como um príncipe.

Diz sentir-se um intruso na sua família atual (mulher e filhas), em função de não estar trabalhando e pela sua “vida nas drogas”. Uma lembrança associa-se a esse lugar: perambulou por várias famílias durante sua vida. Uma das que mais o acolheu foi a de sua tia, mas ele sentia-se um agregado.

Intruso e agregado demarcam um lugar de acréscimo e estranhamento em relação ao grupo familiar, um lugar que demonstra o desejo de ser adotado. Sua mãe fez isso parcialmente já que, em alguns momentos, ela o entrega às outras “mães”. O Príncipe teve quatro padrastos, mas nenhum deles o adotou. Tem a idéia de terem sido homens que se sucederam na vida de sua mãe.

Apesar de ser sua mãe biológica a referência mais constante – a mãe à qual ele pode retornar –, sua tia e sua madrinha são, por ele, também, consideradas como suas mães. Aqui, os trajetos também se truncam.

Quando O Príncipe tinha seis ou sete anos, sua tia ficou hospitalizada e houve uma proibição do padrasto da época: ele e sua mãe não podiam visitála. Quando O Príncipe conseguiu fugir e chegar até o hospital, ela já tinha morrido e tinha sido sepultada como indigente. As datas festivas trazem-lhe sua lembrança.

Sua madrinha, a quem “adorava”, morreu pelo uso de uma medicação injetável. O Príncipe associa esse fato à toxicomania, quando traz a imagem das ampolas e a seringa vistas no meio das roupas, naquela ocasião. Mais uma vez, a morte aparece associada a comemorações. Era essa madrinha a pessoa que realizava suas festas de aniversário.

Não é de se estranhar que as datas festivas marcassem várias voltas d’O Príncipe ao abuso de drogas. Durante o tratamento que acompanhamos, e também em internações anteriores, a chegada de datas comemorativas remetiam-no, diretamente, à cocaína.

Várias mães, vários padrastos, vários lares marcam a trajetória de sua vida. Nesses percursos a única referência mais estável parecia ser a mãe. Na época da gravidez, esta fugiu do pai d’O Príncipe “para protegê-lo”, por ser o pai muito agressivo. A imagem da gravidez é associada nas lembranças d’O Príncipe ao falar das perambulações de sua vida, são idas de um lugar para outro. A saída torna-se traço. Traço esse que se repete: sair do lado do pai, sair da casa da mãe, sair da casa dos tios, sair da escola, sair dos tratamentos, sair do casamento, sair da vida “careta”, sair da “drogadição”. Quando se encontra “bem” num lugar precisa sair.

Nesses trajetos de saída, O Príncipe prioriza as “ausências”, em contraposição às “presenças”. Isso aparece, por exemplo, quando no encontro com seus padrastos ele salienta as falhas dos mesmos, sem poder reconhecer as possibilidades de cuidados que eles, muitas vezes, lhe ofereciam. Assim, no seu percurso de vida, são freqüentes os momentos em que O Príncipe coloca-se a necessidade de escolher entre duas opções, uma delas costuma ser a saída do lugar no qual se encontra. Essa situação se re-atualiza na sua vida “com as drogas”, refere sempre ter que escolher entre o mundo dos “bons costumes” e o da “marginalidade”.

Ser príncipe ou “marginal”? É essa uma pergunta constante na sua vida Sua mãe demanda-lhe ser um príncipe, sem ter as condições necessárias para tanto, condições essas que encontrará na marginalidade. Na vida “nas drogas” ele era “o cara”.

As drogas transformam-se em tóxico quando lhe permitem realizar o desejo materno. O início do convívio com as drogas data da época em que viveu com a família dos seus tios, o primo lhe apresenta o “primeiro baseado”. Lembra ter detestado o efeito produzido, mas ter continuado por “ver os outros se sentirem bem”. Não é somente o efeito químico da droga que se torna tóxico, mas também a identificação com o bem-estar de seus amigos.

No seu relato sobre o uso de drogas ressalta que, inicialmente, o ritual de uso era grupal, mas em determinado momento percebeu não gostar de dividir a cocaína com ninguém. Apresentam-se, aqui, diferentes modalidades de uso que nos dizem de diferentes lógicas toxicomaníacas.

Inicialmente, a droga entra num processo grupal, no qual o compartilhar com o outro fazia parte do prazer. Num segundo momento, a exclusão dos outros para viver um idílio com a cocaína.

O remédio para as dores relativas às diferentes faltas mencionadas pelo Príncipe, transforma-se em veneno e apontam para a lógica da suplência na operação farmakon (Le Poulichet, 1990). O uso de drogas com a função de compartilhar algo com seus amigos ou para sentir o prazer que os outros sentem dá lugar à exclusão dos outros, entrando num circuito dual – corpo e droga. Até o dinheiro perde seu valor de mediação para transformar-se somente num instrumento que lhe proporciona mais cocaína. Passa a utilizar a modalidade injetável.

A passagem da aspiração à injeção representa, também, uma passagem da prioridade do olhar para o usufruto. No início ele aspirava e olhava os outros se injetarem, posteriormente, precisa também sentir o efeito da injeção. Diz ter entrado por uma via de prejuízos dos quais conseguiu sair com o casamento. Constrói uma vida de sucesso profissional e familiar. No entanto, mais uma vez, o sucesso torna-se insuportável e precisa voltar a ser “o cara”, num momento de desentendimento conjugal.

Encontramos nos autores que teorizam sobre as toxicomanias a referência a uma fragilidade na instância simbólica. Fragilidade essa que destrói ou deixa inacabada a sustentação necessária na construção de possibilidades de vida. O Príncipe carece de um rei. No seu lugar, encontramos uma rainha com vários candidatos ao trono, mas nenhum reconhecido com força suficiente para adotar o herdeiro como filho.

Perante essa insuficiência, as drogas apresentam-se como uma solução mágica e viável, capaz de sustentá-lo. No entanto, cedo descobre a volatilidade dessa solução, quando o suporte encontrado também desaparece.

Dos amigos “da ativa” (gíria referente ao grupo consumidor de drogas), demanda o reconhecimento de um lugar diferenciado do lugar familiar. Se no mundo familiar ele é o último, entre os “amigos” é o primeiro.

No corpo encontra um limite que lhe faz demandar tratamento. Quando falha o circuito organismo-droga, o pensamento retoma um lugar de mediação e O Príncipe pode questionar-se sobre “o monstro” no qual está se transformando.

Nos recortes de caso aqui apresentados – Floriana e O Príncipe –, sublinhamos, preferencialmente, as temáticas da transformação da droga em tóxico e a escuta das diferentes lógicas toxicomaníacas. Partindo deles, ampliaremos nosso campo de reflexão para situar a relação entre a adolescência e o início das toxicomanias.

 

O início das toxicomanias na adolescência

Nos dois casos apresentados constatam-se variadas funções que as drogas adquirem na vida dos sujeitos, indicando diferentes lógicas toxicomaníacas. Em um há o endereçamento de um pedido aos outros e no outro este vai se transformando numa relação dual e exclusiva com as drogas. Para além de diferentes modalidades de uso de drogas, os casos nos ensinam sobre as diferentes construções das toxicomanias, num momento específico que é o da adolescência.

Floriana encontra alguém que interveio num momento em que as drogas remediavam situações pubertárias, relacionadas à mudança do estatuto de seu corpo (Rassial, 1999). O recurso ao tóxico manifestou um caráter lúdico. Sua brincadeira predileta era a de esconde-esconde. Escondia as drogas das figuras de autoridade e aparecia “drogada” perante seus olhos. Além disso, mostrava e escondia seu corpo dos seus pares. É neste momento que sua mãe positiva-se, numa intervenção que minimiza as drogas e faz prevalecerem as questões adolescentes.

O trajeto d’O Príncipe denuncia dificuldades quanto a sua adoção como filho e uma repetição dos traços herdados do pai: a saída. Os olhos da mãe espelham, no momento das re-atualizações adolescentes, uma imagem construída na infância, imagem essa que o sujeito prioriza e procura satisfazer. Assim, o tóxico associa-se à marginalidade possibilitando-lhe, entre outros “benefícios”, o de tornar-se o príncipe desejado pela mãe. Nesse caso, foi se construindo também uma exclusão da alteridade que caracterizara o recurso ao tóxico. O corpo, então, foi entrando num circuito no qual o abastecimento de drogas para um bom funcionamento do organismo tomou conta do psiquismo.

Para realizarmos uma compreensão mais abrangente das toxicomanias, devemos situar as soluções encontradas pelos sujeitos no cenário contemporâneo. Esses adolescentes vivem numa cultura na qual a toxicomania inscreve-se no discurso dominante. Uma cultura que prioriza os valores da evitação da angústia, do imediatismo do prazer, do consumo exacerbado, entre outras experiências. A solução encontrada, então, está de acordo com os valores propostos pela cultura. Precisamos, ainda, compreender a adolescência nesse contexto, para apontar a sua relação com o início das toxicomanias.

O descompasso entre as mudanças orgânicas e as suas conseqüências psíquicas foi inicialmente apontado por Freud (1905c/1981, 1914/1981), quando, ao diferenciar a puberdade da adolescência, situa o trabalho psíquico a ser realizado em função da maturação sexual. A adolescência renova questões infantis que propiciarão ao sujeito o afrouxamento dos laços contraídos na infância em relação aos primeiros objetos de amor e à autoridade. É pela primazia da genitalidade que o sujeito adolescente encontra-se, segundo Freud (1905c/1981; 1928/1981), no trabalho de vencer as fantasias incestuosas e encaminhar-se para novas escolhas de objeto, bem como libertar-se da autoridade dos pais para novas formas de autoridade.

As “novas” escolhas realizadas pelos adolescentes têm, para Freud, um fundamento nas questões infantis. A operação adolescente é, então, um processo de retomada e relançamento das referências parentais. A criação do “novo” nesse lançamento é um processo sofrido.

Ao tratar do tema da toxicomania, Freud (1930/1981) enfatiza a função dos tóxicos em relação ao alívio do mal-estar associado às renúncias provocadas pela civilização. Alívio de um sofrimento relativo ao peso da realidade e a conseqüente busca de prazer.

Em outros momentos de sua obra, refere-se a diferentes tipos de adições, inclusive aos tóxicos, explicando-os como uma substituição das pulsões sexuais. A utilização de álcool é ainda associada à diminuição da crítica superegóica e ao levantamento das inibições (Freud, 1897/1981, 1898/1981, 1905a/1981, 1905b/1981, 1905c/1918, 1917/1981).

Freud (1928/1981) nos deixa rastros que nos permitem associar as toxicomanias à adolescência, por exemplo, quando relaciona a paixão pelo jogo às fantasias da puberdade. Por um lado, aponta o sofrimento do trabalho psíquico a ser realizado na adolescência e, por outro, associa a função dos tóxicos ao alívio do sofrimento provocado pelo superego e à substituição das pulsões sexuais. Então, a angústia surgida do trabalho adolescente, relativo à primazia das pulsões sexuais genitais e às mudanças em relação à autoridade, poderá ser aliviada pela utilização de tóxicos.

Retomando as propostas freudianas e lançando novas proposições, Rassial (1997) define a adolescência como um momento de après-coup (ou a posteriori), do estágio do espelho, no qual são retomadas e relançadas às questões infantis associadas à apropriação da imagem corporal, do sintoma e ao teste da eficácia das referências simbólicas.

Em relação à imagem corporal, o autor ressalta que as modificações pubertárias são inicialmente não-simbolizadas e, depois, mal-simbolizadas. Nesse momento constrói-se uma nova imagem corporal, sustentada no olhar anterior, paradoxalmente questionado. É nesse hiato de passagem, entre o olhar dos pais e o dos pares e amigos, que aparecem as carências na significação do corpo.

A passagem da autoridade dos pais para novas formas de autoridade traz consigo, também, um hiato, trabalhado por Rodulfo et al. (1986), como uma luta entre referências. O sujeito está aí situado num lugar “entre” diferentes olhares, “entre” diferentes formas de autoridade.

Queixas quase intermináveis são formuladas pelos adolescentes escutados, mas, diferentemente de outras queixas, estas parecem não ter solução. Queixamse, por exemplo, da falta de reconhecimento deles enquanto adultos, e, ao mesmo tempo, menosprezam qualquer dizer vindo dos “adultos”. Demandam cuidados especiais da mãe e enraivecem quando esta atende aos seus pedidos. Solicitam liberdade total, mas confundem-se com o excesso de liberdade.

A operação adolescente apresenta-se, então, de acordo com Rassial (1997), como uma pane subjetiva. Essa coloca o sujeito numa posição “entre” autoridades, “entre” olhares, denunciando que ainda há significações a fazer.

Nesse hiato, no qual são demandadas novas significações, os sujeitos poderão encontrar no tóxico uma saída. A saída pela via do tóxico permite aos adolescentes uma suspensão daqueles conflitos associados à demanda de uma nova posição. É nessa lógica que podemos situar as formulações de Rassial (1999), que consideram as drogas como uma continuidade do brincar infantil. Observamos como muitas vezes os adolescentes utilizam-se do tóxico para retomar o jogo de presenças e ausências. Um jogo que possibilita a simbolização, na medida em que faz o sujeito suportar as perdas ou ausências. Aparecimentos e desaparecimentos que têm no corpo um ponto de equilíbrio.

Se há, na adolescência, um momento de desajuste corporal e das referências de autoridade e na toxicomania um remédio para resolver “ajustes”, a operação farmakon poderá se apresentar como solução. Em alguns casos, esta constituirá um pedido endereçado ao outro. Em outros, poderá defender àqueles sujeitos que se encontram desamparados e sem continência, uma garantia de sustentação. Defesa ilusória que coloca o tóxico como anteparo perante a ameaça de aniquilamento subjetivo.

 

Referências

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Texto recebido em maio/2007.
Aprovado para publicação em junho/2007.

O Processo editorial deste artigo foi acompanhado pelo Editor Responsável e pelos membros da Comissão Executiva.

 

 

*Doutora em Psicologia, professora do Programa de Pós-graduação em Psicológica Clínica e do curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: djamb@terra.com.br

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