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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.13 n.1 Belo Horizonte jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Risco e crise: pensando os pilares da urgência psiquiátrica*

 

Risk and crisis: thinking about psychiatric urgency

 

 

Katita Jardim** ; Magda DimensteinI,***

IUniversidade Federal do Rio Grande do Norte

 

 


RESUMO

Temos o intuito de problematizar a Urgência Psiquiátrica e seus conceitos fundantes, o risco e a crise. A rede de saúde mental não é estruturada para atender o paciente em crise e acaba delegando essa tarefa aos serviços de urgência. Assim, a rede de saúde mental, que ainda hoje privilegia o hospital psiquiátrico como seu órgão de maior complexidade, fortalece o fluxo de internamentos, colocando abaixo todos os preceitos da Reforma Psiquiátrica. Fazse necessário discutir o serviço de urgência e repensar estratégias que possam inventar novos contextos, que não privilegiem a crise e seus sintomas e sim a pessoa que sofre. Pessoas em crise, geralmente, precisam de ajuda e, em alguns casos, essa ajuda precisa ser imediata. É importante que possamos desconstruir a idéia de urgência em psiquiatria e a nossa proposta é pensarmos uma ética-cuidado que se aproxima mais de um tipo de atenção urgente à pessoa em crise.

Palavras-chave: Urgência psiquiátrica, Crise, Risco, Saúde mental.


ABSTRACT

This article focuses on Psychiatric Urgency and its fundamental concepts, risk and crisis. In many places, the mental health network does not have enough support to attend patients during their crises, and urgency services become responsible for the task. As a result, the mental health network, which still considers Mental Health Hospitals the most important and complex source of care support, increases the flux of patients in asylums, disregarding all the principles of Psychiatric Reform. Thus, it is necessary to discuss urgency services and devise strategies able to create new contexts that emphasize not the crisis and its symptoms, but the person suffering. People in crisis normally need help, and, in some cases, that help must be immediate. It is important to deconstruct the concept of urgency in psychiatry and consider a form of care-ethics consisting of urgent care of the person in crisis.

Keywords: Psychiatric urgency, Crisis, Risk, Mental health.


 

 

É um equívoco pensarmos que a aprovação da Política Nacional de Saúde Mental, a lei 10.216/01, é um fato que assegura a consolidação da Reforma Psiquiátrica no nosso país. Muito pelo contrário, ao invés de ter sido um fim, é, antes de tudo, o início de uma longa jornada. A reforma tem uma conotação dinâmica e ampla, pois vai além da mera implantação de serviços e fechamento de hospitais, já que visa abolir conceitos arraigados na cultura há séculos, como a idéia de doença mental e a da própria internação psiquiátrica como modelo de tratamento (Rotelli, Leonardis & Mauri, 2001).

A lei aprovada no Brasil não conseguiu estabelecer a extinção dos hospícios, mas a superação do hospital psiquiátrico como unidade central de tratamento por meio da estruturação de uma rede diversificada de serviços baseada numa lógica de complexidade1 piramidal. Sendo assim, as equipes do programa de saúde da família (PSF) ficam na base, os centros de atenção psicossocial (CAPS) e demais serviços substitutivos logo acima, a urgência psiquiátrica em seguida e, por último, o hospital psiquiátrico.

Apesar dos esforços dos trabalhadores de saúde mental para fazer avançar as propostas da reforma, a estruturação dessa rede de serviços, cuja função é evitar o hospitalismo e favorecer a reinserção social, é problemática exatamente por não ter logrado inverter a pirâmide aqui indicada e manter o espaço privilegiado ocupado pelo hospital, não dando ênfase às intervenções fora desses espaços.

Nesse contexto, o serviço de urgência2 ocupa um lugar importante, mas não menos problemático. Por ser o último nível antes da internação psiquiátrica acaba se tornando um observatório do sistema de saúde, lugar privilegiado para perceber os pontos em que o fluxo da rede estanca, detectar problemas e desenvolver estratégias mais resolutivas. Portanto, é importante dirigirmos nossa atenção para esse serviço previsto na lei 10.216/01, porém muito pouco explorado.

Sabemos que ainda hoje vigora nos serviços de urgência psiquiátrica a mesma lógica manicomial herdada dos asilos. Vários técnicos aí inseridos são egressos de instituições psiquiátricas fechadas que, todavia, continuam exercendo seus saberes, mantendo as mesmas práticas. Incontáveis pacientes que chegam às urgências acabam novamente internados. Em função da precariedade da rede de atenção em saúde mental, especialmente dos CAPS tipo III e da falta de leitos em hospitais gerais, os serviços de urgência psiquiátrica continuam alimentando as internações psiquiátricas em manicômios, em vez de promover uma nova geografia na distribuição da demanda em saúde mental, preservando, conseqüentemente, o hospital psiquiátrico, símbolo máximo de exclusão social e descuido.

Muita literatura já é dedicada à discussão dos aparelhos específicos da saúde mental, porém, muitas vezes, exclui a intersetorialidade com a urgência. Em consonância com o exposto, é imprescindível direcionarmos nossas atenções também para a urgência. Este artigo tem como objetivo problematizar a urgência psiquiátrica e seus conceitos fundantes: o risco e a crise. Para tanto, se faz necessário uma contextualização sobre a lógica da psiquiatria e seu incurso pelo preventivismo.

 

A lógica psiquiátrica e a medicalização da crise

Ancorado no pressuposto cartesiano, o sistema capitalista nascente necessitava de indivíduos trabalhando para o seu bom funcionamento e todos aqueles incapazes de seguir essa lógica eram segregados da sociedade: os insanos, os doentes, os desempregados, os miseráveis. Foucault (1972) alerta que as instituições (por exemplo: hospitais, manicômios e prisões) surgem não por conta de descobertas científicas, mas em função de necessidades sociais de ordem e progresso. Os loucos não produziam, não eram capazes de trabalhar sob a lógica capitalista, e, ainda, perambulavam pelas ruas incomodando os “cidadãos de bem”. O que mais fazer com eles a não ser tirá-los da cidade? Dentro do asilo, por meio do princípio de isolamento e do ideal de normalização3 imposto ao sujeito, a medicina se apropriou da loucura.

O isolamento passou a ser uma das estratégias centrais para a elaboração do conceito de alienação mental, princípio muito utilizado pelas ciências naturais, que se fundamenta na idéia de que para tratar é preciso conhecer e só se conhece a natureza verdadeira da doença quando se retiram todas as influências externas. Seria uma “observação in vitro”, realizada dentro do hospital.

Porém, já no final do século XVIII, se percebia que nem todos os doentes se curavam, e a proposta do isolamento não resolvia todos os problemas do suposto desvio. Procurou-se redefinir mais cuidadosamente a população dos hospitais, dispor de técnicas e objetivos mais “científicos”. No entanto, a psiquiatria enquanto “medicina abstrata” encontrou diversas dificuldades para seu funcionamento. No início do XIX, a idéia de crise, que era uma noção teórica e, principalmente, um instrumento prático da medicina, cai em desuso fundamentalmente por conta do aparecimento da anatomia patológica. Isso possibilitou a construção de uma teoria sobre as doenças, individualizando-as de acordo com as lesões que os sujeitos apresentavam e permitindo o estabelecimento de um diagnóstico diferencial (Foucault, 2006).

A psiquiatria, enquanto disciplina médica colocou-se à parte desse movimento, se direcionando para um diagnóstico diferencial. O cerne da sua questão estava muito mais ligado a um diagnóstico absoluto. É pelo diagnóstico absoluto que a psiquiatria funciona, e não pelo diagnóstico diferencial, como a medicina dita tradicional.

Além dessa discrepância entre diagnósticos, a psiquiatria é uma prática médica na qual há uma ausência de corpo. Portanto, a anatomia patológica, maravilhosa descoberta que dava instrumentos concretos e visíveis aos médicos, tal qual àqueles das ciências naturais, que fatiava corpos mortos em busca de suas doenças ocultas, não serviria de nada à psiquiatria. Mas não sem esforços, visto que desde o início da psiquiatria, procuravam insistentemente correlatos orgânicos que determinassem que lesão, qual órgão e que alteração biológica poderiam vir a causar a loucura4 (Foucault, 2006).

Com a utilização do diagnóstico absoluto e pela ausência de corpo, a psiquiatria não pôde prescindir do momento em que, segundo a medicina pré-anatomia patológica, a “verdade da doença” seria revelada: a crise. É a crise que ajudará a produzir a prova de realidade que o psiquiatra precisava para funcionar enquanto médico, constituindo em doença mental a demanda que chega a ele, conduzindo e autorizando o internamento. Foucault (2006) chama esse movimento de “prova psiquiátrica”, que seria responsável por uma dupla entronização: entroniza a vida do indivíduo como tecido de sintomas patológicos e entroniza sem cessar o psiquiatra como médico ou instância disciplinar suprema da medicina.

Além disso, a sanção jurídica torna-se o complemento fundamental da psiquiatria, fundando o conceito de “periculosidade social”, sendo este justificado e racionalizado pelos médicos, delineando uma contradição no seio da psiquiatria, desde seu nascimento, entre o tratamento do doente e defesa social, entre a medicina e a ordem pública (Basaglia, 2005). Assim, a legislação definiu os indicadores da “periculosidade social”, apontando-a como simbioticamente ligada à doença mental. Esse conceito serviria de norte para a psiquiatria, configurando o modo de tratamento da loucura: o enclausuramento.

A psiquiatria, com o apoio da legislação, se coloca enquanto entidade que exerce o poder de subjugar o corpo improdutivo, firmando um compromisso entre a ciência e a organização de produção capitalista. Do terreno de desenvolvimento do saber psiquiátrico foi subtraído o corpo produtivo capaz de funções úteis, as ditas socialmente relevantes enquanto potencialidades de trabalho, o corpo do cidadão dotado de direitos que constituem o limite da ação do técnico. O corpo do louco assume importância só no que diz respeito a ser “conteúdo do manicômio”, sendo o seu tratamento a sujeição às normas organizativas da instituição, engendrando a cronificação de uma verdadeira doença: a mortificação da vida, a impossibilidade da criação (Basaglia, 2005; Alarcon, 2005).

Nos Estados Unidos, na época do governo do presidente Kennedy, em 1963, adotou-se a política do Estado Mínimo, encorajando o processo de desospitalização dos pacientes psiquiátricos (Alverga, 2004). Porém, não foi o questionamento sobre os direitos do paciente internado que o tiraram de dentro do manicômio, mas o quanto ele custava para o Estado. Era mais barato tratálo com a família, utilizando outros dispositivos de controle, como o exame, por exemplo.5 A partir daí, diversas estratégias foram engendradas: proliferamse os testes psicológicos, com o objetivo de classificar, separar, selecionar os indivíduos, a fim de prever e controlar seus comportamentos, adaptando-os a norma, tendendo a homogeneização, elaborando um arquivo, documentando as individualidades, garantindo uma utilização personalizada de cada indivíduo, baseado numa “normalização que não representa a uniformização das individualidades, mas a sua adequação a um dispositivo” (Fonseca, 1995, p. 62). Assim, os muros das instituições totais se esfumaçam, confundindo interior com exterior. Suas forças avançavam invisíveis, engolindo toda e qualquer alteridade. Começava a era do controle a céu aberto (Pelbart, 2000).

 

E eis o preventivismo: uma reconfiguração da crise

A Medicina Preventiva é a herdeira da Higiene, conceituada como “conjunto de preceitos buscados em todos os conhecimentos humanos, mesmo fora e além da medicina, com o propósito de cuidar da saúde e poupar a vida” (Arouca, 2003, p. 33). Em nome da Higiene, foi autorizada uma suposta defesa da saúde, quando esta estivesse correndo perigo de ser agredida, cuidando não apenas do indivíduo, mas da espécie e da raça. Buscava uma tecnologia de “melhoramento humano” por meio da eugenia e da previsão da herança mórbida, a fim de evitar a disseminação de caracteres hereditários degenerescentes, se aplicando a regeneração, quando possível, e a de doenças, acidentes, intoxicações, infecções, doenças de carência e doenças comuns.

Agregando esses aspectos, a Medicina Preventiva abarca os âmbitos psicossociais, fundando o sujeito biopsicossocial. Rios (citado por Arouca, 2003) define a Medicina Preventiva como “o conjunto de noções e técnicas visando o conhecimento e manipulação dos processos psicossociais do comportamento humano que dizem respeito à implantação de padrões racionais de saúde” (p. 35). A Medicina Preventiva possui duas características marcantes: se funda no conceito de saúde/doença, sendo a primeira um estado relativo e dinâmico de equilíbrio e a segunda um processo de interação do homem diante de estímulos patogênicos. Tem ligação direta com as noções de normal e patológico, sendo, portanto, dicotômico. A outra característica é o fato de ter feito renascer no interior do discurso médico a História Natural das Doenças, preconizada por Leavell e Clark (citado por Arouca, 2003). Esta afirma que, para o surgimento das doenças, é necessário existir um agente patogênico, um hospedeiro (o homem, no caso), e um meio ambiente com características favoráveis. Levando em conta essa lógica, o desenvolvimento da doença poderia ser impedido com base na modificação de um desses três componentes: ou se elimina o agente patogênico ou se mune o hospedeiro contra tal agente, ou se manipula o ambiente.

Na esteira do preventivismo, Gerald Caplan (1980) funda a Psiquiatria Preventiva, utilizando os moldes da Medicina Preventiva. Com a noção de Saúde Mental substituindo a de doença mental, o campo da psiquiatria foi consideravelmente expandido. Pôde, assim, extrapolar os muros do hospital e ganhar a comunidade, e, dessa forma, além de tratar os “doentes”, podia trabalhar com a profilaxia, identificando precocemente (por meio de questionários de triagem distribuídos entre a população) os indivíduos que, provavelmente, desenvolveriam a doença, fazendo diagnósticos precoces e trabalhando com a reabilitação social. Foi organizada em três níveis de prevenção:

a) Primário: Objetiva promover a sanidade mental da população e evitar o surgimento de casos de doença mental, por meio de intervenções nas condições identificadas como passíveis de ocasionar a doença, podendo ser aplicadas tanto no indivíduo quanto no meio ambiente, tem o objetivo de promover um estado de bemestar biopsicossocial;

b) Secundário: Diagnosticar precocemente as enfermidades mentais e proporcionar o tratamento adequado, evitando, assim, o seu agravo;

c) Terciário: Prevê a reabilitação psicossocial dos que já tenham sido acometidos pela doença mental, o seu reajustamento e a adaptação à sociedade. (Amarante, 2003, p. 50)

Por conta disso, a psiquiatria ganha as ruas e adentra a casa das pessoas, implantando em seu âmago conceitos que interferiram nas formas de relacionamento e criaram uma nova necessidade: a de vigiar para prevenir e detectar precocemente a doença mental, instaurando, de maneira primorosa, o mecanismo de controle social (Amarante, 2003).

Seguindo a lógica da História Natural das Doenças de que toda doença tem uma causa (agente patogênico, vulnerabilidade do hospedeiro ou circunstâncias favoráveis no meio), a explicação dada como causa da doença mental foi fundamentada sobre a noção de crise.6 As crises seriam responsáveis por deixar o indivíduo suscetível ao adoecimento psíquico, já que pressupõe um desequilíbrio que é o oposto do equilíbrio preconizado por essa concepção de saúde. A intervenção, nesses casos, tem o objetivo pontual de equalizar o sujeito, incidindo sobre ele e/ou sobre o agente patogênico por meio da utilização de fármacos e contenção ou sobre o meio, tirando-o do convívio social e confinando-o no asilo. Foi baseado nessa lógica que surgiram os serviços de urgência psiquiátrica, com a finalidade de adaptar o indivíduo desajustado, promovendo o atendimento no momento crítico, objetivando controlá-lo, para devolver ao sujeito o seu estado normalizado, prevenindo, assim, o agravo da “doença mental”, as “internações desnecessárias” e todos os seus gastos financeiros.

 

O conceito de risco: a crise capturada

Os serviços de urgência psiquiátrica se consolidam com a desospitalização e com a revolução dos psicofármacos, que passaram a ser os responsáveis pelo domínio da loucura fora dos manicômios (Basaglia, 2005). Em fins da década de 1960, a situação da assistência psiquiátrica no Brasil era a seguinte: mais de sete mil pacientes internados estavam lotados nos leitos-chão (sem cama), em média, casos agudos passavam sete meses internados e o índice de mortalidade era seis vezes e meia maior do que dos hospitais de doenças crônicas. De loucura não se morre, mas, mesmo assim, o nível de mortalidade nos manicômios era gigantesco (Paulin & Turato, 2004).

Nesse ínterim, a lógica de compra estatal que beneficiava o setor privado acabou causando um grande déficit nos fundos da Previdência Social, que se viu obrigada a investir em soluções saneadoras para melhor uso da rede pública de saúde e modernização de suas unidades. Assim, em 1968, o então Estado da Guanabara cria a Comissão Permanente para Assuntos Psiquiátricos (CPAPGBM), que tinha como objetivo principal estudar as dificuldades da assistência psiquiátrica no estado. O relatório da análise feita pela CPAP-GBM apontou a rede de serviços psiquiátricos com o setor ambulatorial totalmente ineficaz, funcionando como um encaminhador de laudos para internação e o hospital psiquiátrico convencionado como único agente terapêutico. Para resolver esse problema, a comissão apontava os pressupostos da psiquiatria preventivista americana como solução.

Esse relatório repercutiu nacionalmente, o que assegurou ao grupo que compunha a CPAP-GBM um convite para realizar o mesmo estudo, só que em âmbito nacional. O resultado desse estudo deu origem ao Manual de serviço para assistência psiquiátrica (Paulin & Turato, 2004). O Manual propunha a estruturação básica do preventivismo por meio de unidades de atenção primária, secundária e terciária, contemplando a desospitalização, e, por sua vez, a implantação de serviços extra-hospitalares. Foi nesse momento que as urgências psiquiátricas proliferaram no país, bem como ambulatórios, pensões e lares abrigados.

Com isso, a estratégia estava traçada, o controle continuaria, mas sem muros aparentes. O conceito utilizado desde os primórdios da psiquiatria, a crise, se reafirmou com toda força. Com os loucos fora dos hospitais, eram as crises que incomodavam a comunidade e a família, pois “quebravam” a normalidade, e a agudização do sintoma deveria ser apaziguada pelos remédios. Afinal de contas, tudo que foge do normal merece a aplicação da norma. A medicação instrumentaliza a norma e passa a ser item indispensável para uma pseudoconvivência em sociedade, visto que o louco não é acolhido por ela, mas sobrevive a sua margem. A partir do momento que os remédios começam a não cumprir essa função, é o serviço de urgência psiquiátrica e suas medidas corretivas que emergem como uma estratégia a ser acionada, com a finalidade de suprimir a crise, equalizar o sujeito, devolver a ele a sua “normalidade” perdida, trazê-lo para dentro-de-si (Dell’Acqua & Mezzina, 2005; Birman, 2003).

E, para tanto, utilizam as mais antigas táticas: a contenção mecânica, o confinamento nos asilos, a violência simbólica e física. Se o paciente está em crise, eles devem ser estabilizados. Isso, na linguagem médica, quer dizer: medicados e contidos. Ainda hoje os livros de psiquiatria trazem capítulos inteiros sobre eletroconvulsoterapia, que é indicada como tratamento para as urgências psiquiátricas. A justificativa psiquiátrica para o uso dessa prática é engenhosa. Afirmam que foi descoberto, há muitos anos, que os neurônios que causavam os ataques epiléticos eram incompatíveis com os neurônios responsáveis pela psicose (Kapczinski et al., 2001). Assim, era preciso induzir crises epiléticas no louco, pois, depois disso, ele ficaria “milagrosamente sereno”. Nesse caso, sereno quer dizer desacordado, o que, certamente, aconteceria com qualquer ser humano depois de levar descargas elétricas no cérebro. Qualquer atuação é justificada por essa ciência, a fim de esculpir o indivíduo e suas individualidades socando-o para “dentro-de-si mesmo”, até mesmo a mais vil tortura.

De acordo com a Psiquiatria Preventiva, anteriormente citada, a crise é o agente patogênico da loucura, sendo sua causa por excelência. A crise é expressão de embate de forças contrárias, o instituído e as novas possibilidades, que causa um desequilíbrio. Como num terremoto, no qual as placas tectônicas se movem para se acomodarem de uma forma nova, mas para isso precisam causar um terremoto. Em uma crise de sofrimento subjetivo, as medidas “terapêuticas de urgência” adotadas não viabilizam novas configurações, uma melhor acomodação das placas, mas um retorno ao antigo, um enquadramento às regras já instituídas e das quais o indivíduo estava buscando se desprender. Causando mais sofrimento e iminentes reedições da crise (Moraes & Nascimento, 2002).

Dell’Acqua e Mezzina (2005) explicam que o atendimento à pessoa em crise é o ponto de máxima simplificação de uma relação em que ela (a pessoa) reduziu, progressivamente, a um sintoma a complexidade da sua existência de sofrimento. E de forma especular, o serviço de urgência se equipou para perceber e reconhecer o próprio sintoma, sendo ele mesmo um modelo de simplificação. Os vários serviços de urgência psiquiátrica de hoje herdaram, como não é de se admirar, a herança manicomial dos hospitais psiquiátricos, se configurando em manicômios menores, mas não menos destrutivos. Trata-se exclusivamente o sintoma. Não se questiona o serviço nem a crise. Quem define a crise? E o que a caracteriza?

Os “definidores” da crise, geralmente, são as pessoas que tutelam ou acompanham de alguma forma o louco. São eles que notam a diferença7 se manifestando e acionam o serviço, transformando a crise em urgência psiquiátrica. De acordo com Flaherty, Channon e Davis (1990), uma urgência psiquiátrica pode ser definida como a situação em que o transtorno do pensamento, do afeto e da conduta é de tal modo disruptivos, que o paciente mesmo, a família ou a sociedade, consideram que requer atenção imediata. Essa definição explicita bem o peso cultural e moral que configura uma urgência psiquiátrica: é a família, o paciente ou a sociedade que decidem se o caso é uma urgência ou não. A crise é vista enquanto urgência a partir do momento que afeta diretamente a rotina da família (ou do responsável) e que se decide denominar o acontecimento enquanto tal.

O conceito do risco em saúde mental se coloca aqui a partir do momento que a crise é o prenúncio do agravo ou desencadeamento de uma suposta doença mental (instalada ou futura). Com as novas tecnologias, a antecipação dos acontecimentos, de forma a se saber como será o futuro, coloca nas mãos do indivíduo a possibilidade de mudar, de prevenir, “transformar o anormal em normal”. Transformar o anormal em normal é corrigir e aperfeiçoar, mas é, principalmente, não questionar os valores do presente, simplesmente, se adaptar à norma (Vaz, 1999).

[…] A norma é um modo de reunir fato e valor, de conectar o ser ao dever-ser: o que é deve ser, pois a única mudança é a recomposição da norma. Trata-se de naturalizar os valores do presente por torná-los verdade, por apresentá-los como descoberta do que o homem verdadeiramente é […]. Por ser culpabilização, a norma implica um mecanismo de feedback: sua existência a reforça ao produzir o temor do anormal. (Vaz, 1999, p. 105)

E esse temor do anormal cria um circulo vicioso, implicando a normalização.

No século XIX, uma das grandes descobertas da estatística foi a regularidade dos desvios de comportamento. No século XX, as estatísticas desses comportamentos desviantes viabilizaram a contabilização e classificação de atos que, probabilisticamente, colocam a vida em risco no futuro. Em sua face positiva, o risco supõe que podemos prever o futuro por meio desse jogo de probabilidades estatísticas, remetendo-nos ao planejamento e à possibilidade de aventurar-nos com segurança e controle no uso de tecnologias bastante complexas. Sua outra face, porém, é a advertência constante sobre as conseqüências de nossos atos, que podem refletir enquanto um mau agouro no nosso futuro próximo ou até longínquo. Entretanto, o conceito de risco não se descola da medicina preventivista. Muito pelo contrário, o risco nasce do casamento entre a estatística e a prevenção. Calcula-se a probabilidade de se incorrer determinada doença com o intuito de preveni-la o quanto antes.

Para tanto, quando o assunto é Saúde Mental, a loucura ainda é vista como doença, uma doença a ser prevenida. Se a crise é o fator que desencadeia, agrava e cronifica a loucura, a lógica posta para circular nos serviços é de suprimir a crise, debelá-la e enquadrar o sujeito. Levando isso em conta, é interessante nos determos mais sobre o conceito de risco que assume um aspecto central na discussão, visto ser o norteador do funcionamento do modelo de sociedade atual.

Com base na analítica do poder foucaultiana, Deleuze (1992) desenvolveu a idéia de sociedade de controle, que marcou a passagem da norma8 ao risco enquanto produtor de subjetividades. Assim, o risco iguala contradições futuras no presente, convencionando que só é possível administrar o futuro de modo racional, considerando criteriosamente a probabilidade de ganhos e perdas, conforme as decisões tomadas no agora (Castiel, 2003), havendo uma ligação direta e irrefutável entre os passos dados hoje e os acontecimentos amanhã, desconsiderando os imprevistos, acasos e fluxos não dimensionáveis. Ou seja, se alguém leva uma vida sexual desregrada é muito provável, pela lógica do risco, que ela acabe contraindo uma doença venérea, AIDS, e definhe até a morte. Esse seria o resultado dos atos não gerenciados racionalmente e abandonados a uma lógica diferente da dominante.

Com o advento do Capitalismo Industrial, emerge a necessidade de inserir nos corpos uma mecânica geradora de lucros. Nessa égide surge a Disciplina. E é por meio dela que o poder passa a estabelecer uma outra relação com o corpo, constituindo novos modos de subjetivação (Rosa, 1997). Foucault (2002) diz que o momento do nascimento da Disciplina é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa o aumento de suas habilidades, aprofundando sua sujeição, tornando-o progressivamente dócil e útil, uma verdadeira anatomia do poder. Sendo assim, o indivíduo é cuidadosamente fabricado pelo seu esquadrinhamento, vigilância das suas atividades, pela aplicação de um rigoroso controle de horário, pela investigação do tempo da ação, pela observação nos mínimos procedimentos.

Contrariando o poder soberano, que tinha como figura central o rei, o poder disciplinar se materializa nos corpos dos sujeitos individualizados por meio de suas técnicas disciplinares. Ao invés de se apropriar e retirar bens, como era costume das monarquias, o poder disciplinar tem como função maior o adestramento dos corpos, a fim de retirar e se apropriar ainda mais e melhor, administrando os corpos e gerindo calculistamente a vida. Posto para funcionar nas instituições disciplinares,9 o poder disciplinar permite o desenvolvimento de vários saberes sobre os corpos e sobre os indivíduos, construindo e descrevendo os padrões desejados de funcionamento, criando um modelo a ser seguido e que, por isso, controla o comportamento dos indivíduos, excluindo os que não se adaptam. Assim, o poder disciplinar inaugura a Sociedade do Normal, que se interioriza nas pessoas em função daquilo que elas deveriam ser (Moraes & Nascimento, 2002).

Já na Sociedade de Controle, a convocação é livre e a adesão, facultativa. Porém, estamos nos referindo a uma forma de convocação diferente da formulada na sociedade disciplinar. Uma convocação desenhada para exercer um poder positivo insidioso que impele o sujeito à produção de novas formas de subjetivação e engendramentos de subjetividades, um poder que de tão pulverizado é quase imperceptível aos olhos (Passetti, 2003). Assim, sob a trindade francesa de igualdade, fraternidade e liberdade, se manter fora do movimento dominante pode custar muito caro. O boicote da nova idéia de normalidade (que inclui, acima de tudo, gerenciar e controlar riscos a fim de não sofrer conseqüências negativas) é algo que deve ser evitado.

A diversidade e densificação de universos que se misturam em cada subjetividade tornam suas figuras e suas linguagens obsoletas rapidamente, convocando-as a um esforço quase contínuo de reconfiguração. Nesse ínterim, a subjetividade se descobre incerta e precária, mudando completamente a noção de desestabilização. Com a intensificação da experiência de desestabilização, esta não mais é associada ao conceito de doença, mas ao de normalidade. O medo é que, depois de se desestabilizar, não seja possível se reconfigurar de todo minimamente eficaz. Assim, na sociedade de controle, os corpos se constituem de forma minimalista pretensamente capazes de vestir toda espécie de identidade, o que desperta a angústia de ter que mudar incontáveis vezes, se fazendo e desfazendo num piscar de olhos (Rolnik, 1999).

Por trás dessa normalidade convencionada, aquela em que estamos sempre bem, prontos para desempenharmos os mais diversos papéis sociais, internalizando as exigências de atuar diplomaticamente, relativizar e nunca ferir os direitos alheios, o controle foi disseminado e dimensionado em cada ser. Discutindo sobre isso, Passetti (2003) traz o conceito nietzschiano de divíduo, que rebate a idéia de indivíduo e de sua suposta autonomia. Completa afirmando que “a sociedade de controle sofre de melancolia do indivíduo e esboça a continuidade da utopia da autonomia e liberdade” (p. 257). O divíduo é múltiplo, flexibilizado, fragmentado, parte software, parte corpo humano. É um híbrido de ser humano e robô que sustenta a crença num futuro clone e que, por participar dessa malha de fluxos tecida pelo poder, ganha, como prêmio, seguros e garantias (Passetti, 2003). Aquelas que o fazem dormir bem à noite, com a certeza de que tem o controle em suas mãos, sem, ao menos, perceber que é o próprio controlado.

Em um mundo que busca se livrar de estrias, formatando um território esticado pelo poder, a loucura é um sulco que teima em se aprofundar, gerando contradições, instabilidades e dúvidas. Apesar de todos estarmos propícios a entrar em crise, em algum momento da vida, os loucos, por terem recebido o rótulo de doentes mentais, acabam mais monitorados quanto a essas ocorrências. E por serem considerados incapazes, são tolhidos de resolverem suas próprias questões, tendo em vista serem entregues, nessas ocasiões, nas mãos dos ditos especialistas.

Os especialistas têm a função de aplacar o risco, analisar os erros na conduta anterior do sujeito e ditar seus novos direcionamentos, a fim de prevenir falhas futuras, assegurando a “saúde”. A “experiência” do risco participa da formatação de matrizes identitárias e da configuração de subjetividades suscetíveis a interpretações, sendo profundamente sugestionáveis (Castiel, 2003). A loucura fica, assim, hermeticamente fechada, trancada sobre si mesma. Os loucos precisam se comportar tais quais os “normais”, seguir um ritmo que não é o deles e jamais questionar o que lhes é imposto. Para se ajustarem tomam remédios, dúzias deles. Arquitetam estratégias para lidar com a contemporaneidade: alucinações, delírios, outros mundos possíveis. E, por isso, seguem recebendo o rótulo de doente, de perigoso. Como subsistir num sistema que busca desmaterializar a diferença, num ritmo que estimule mudanças controláveis, direcionamentos previsíveis de uma massa inteiramente manobrada?

Exigem-se denúncias em nome de uma ética, pela defesa da saúde alheia, da segurança dos outros e de si mesmo, uma proteção contra o que não se conhece. O que é estranho e incômodo. Uma denúncia de vivos sobre vivos, em nome da sociedade e do Estado para o corpo são. É preciso regras e protocolos para tudo, uma moral sólida regida por éticas responsáveis com a finalidade de aplacar sustos (Passetti, 2004).

É preciso estar seguros diante das crises da loucura. E a urgência psiquiátrica aparece com a missão de suprimir o que há de anormal para trazer o louco a uma realidade controlada, previsível, que deve investir nas mudanças, mas primando a ordem estabelecida. É possível repensar as práticas da urgência? É possível mudarmos esses serviços que têm bases manicomiais tão fortes?

Rotelli, Leonardis e Mauri (2001) dizem que o desmonte do hospital psiquiátrico deve ser feito de dentro pra fora. O processo de desinstitucionalização da loucura se realiza por meio das transformações institucionais pelo uso de recursos e problemas internos para construir pedaço por pedaço as novas veredas. Como buscamos a desinstitucionalização no tocante à urgência psiquiátrica, é indispensável que pensemos esse processo também de dentro pra fora. Só pensando as bases de um serviço como esse podemos, de fato, enxergar suas potencialidades e problemas a fim de “desestruturá-los logo de saída” (Romagnoli, 2006), produzindo novas formas de cuidado nas urgências.

Sabemos que é a própria rigidez dos procedimentos adotados na rede de Saúde Mental que não apenas dificultam, bem como determinam a emergência das crises (Dell’Acqua & Mezzina, 2005). O que encadeia uma ciranda de crise-supressão-crise sem fim. A formatação desses serviços impossibilita a formação de vínculo, visto que são pontuais, ignoram a complexidade do sofrimento, simplificando-o por meio da atenção ao sintoma, retira do indivíduo a responsabilidade sobre o seu estado e a sua vida, desresponsabilizando-o pelo atestado de que o que está se manifestando é a doença e não ele próprio, o descontextualiza, insere-o em um cotidiano artificial isolado, roubam sua autonomia, desconsideram a potencialidade da crise enquanto movimento de mudança e transformação.

O foco do trabalho das urgências psiquiátricas está primordialmente no procedimento, em sua dimensão biológica, no corpo pensado como objeto de intervenção da anatomia patológica e qualquer fator que extrapole esse âmbito é desconsiderado. Então, até mesmo enquanto doença mental, a loucura foge da lógica das urgências. Não se manifesta enquanto lesão palpável ou visível, evoca outros questionamentos, incomoda por diferir tanto das outras demandas, não se encaixa no espaço, não se submete à autoridade, põe em xeque os técnicos e seus sábios conhecimentos, desvela as suas impotências. Por essa força aterradora é que ela acaba sendo o mais veloz possível, calada. E as mordaças e as drogas são visíveis e se fazem sentir enfaticamente.

É importante frisar que com o processo de desospitalização dos loucos, a crise passou a ter um papel muito mais importante do que tinha dentro das instituições de seqüestro10 (Moraes & Nascimento, 2002). Isso porque, além de continuar sendo vista como a prova viva da loucura, a causa do adoecimento mental por excelência, é um momento particularmente vulnerável e potente, espaço privilegiado de produção subjetiva por meio de linhas diversas.

Como indicado anteriormente, a crise se configura como um momento de intensa fragilidade subjetiva, uma desterritorialização que busca reterritorializarse. 11 Nesse contexto, as práticas profissionais incidem como produtoras de modos de subjetivação auxiliando nesse processo. Assim, técnicas manicomiais favorecerão a reprodução de subjetividades manicomiais, por sua vez, as práticas libertadoras agenciarão aberturas inéditas. Portanto, não é difícil entender porque a crise é o acontecimento central utilizado pela psiquiatria para capturar a loucura. É, geralmente, por meio dela que a psiquiatria continua esculpindo doentes mentais para serem depositados nos seus hospícios a fim de reforçar sua importância e, como conseqüência, gerar muitos lucros.

Além disso, a crise, juntamente com a idéia de risco, também se constitui na “cola” que une a urgência à psiquiatria, dando origem à urgência psiquiátrica. Na sociedade de controle atual, que prescinde cada vez mais das instituições disciplinares e reforça o controle da vida a céu aberto, essa não é uma estratégia inesperada. Então, é imperativo levantarmos algumas questões: sendo a crise uma manifestação autêntica do indivíduo que sofre, que possibilidades traz? Que caminhos novos enseja e desenha, esculpindo cordilheiras nunca antes esboçadas?

Se urgência é uma “ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência imediata” (Fernandes, 2004, p. 2), é importante frisar que o que está em jogo é a imprevisibilidade. Nesse caso, queremos focar na crise enquanto imprevisto, que Costa (2007) define como:

[…] um momento individual específico, no qual efervescem questões, afetos, gestos e comportamentos variáveis singulares, que afetam em graus diversos a vida cotidiana da própria pessoa e daqueles de seu convívio, e costumam ser determinante das demandas e intervenções em serviços de Saúde Mental. (p. 96)

Pessoas em crise, geralmente, precisam de ajuda e, em alguns casos extremos, essa ajuda precisa ser imediata. Assim, é importante preservarmos a idéia de urgência enquanto um serviço que pode ser prestado imediatamente. No entanto, é mais importante ainda que possamos desconstruir a idéia de urgência em psiquiatria, a fim de eliminar junto com ela toda a sua história de violência e estigma.

A nossa proposta aqui é pensarmos uma ética-cuidado pactuada que se aproxima muito mais de um tipo de atenção urgente à pessoa em crise do que simplesmente ao atendimento de uma urgência psiquiátrica. A urgência psiquiátrica traz consigo aspectos microfísicos, que reforçam a idéia de loucura como doença mental, conceito que, como vimos, foi forjado há séculos e tem conseqüências importantes.

Então, se a loucura foi moldada enquanto doença mental, isso quer dizer que ela pode ser reinventada em uma outra leitura. Ao invés do louco construir um espaço subjetivo de doente mental, ele pode, de fato, agenciar solos mais potentes. É melhor nos colocarmos no lugar de quem pode auxiliar nessa invenção de produção incessante de vida como profissionais comprometidos com a ética.

Essa ética não deve ser baseada em valores morais, mas em princípios vitais, sendo sempre em nome da vida e de sua defesa que se inventam estratégias, a fim de sustentar o seu movimento de expansão, não importando quais atitudes serão tomadas, das mais simples às mais sofisticadas e criativas (Rolnik, 2006). Quando nos referimos ao cuidado, trazemos nesse termo a idéia ilustrada por Ayres (2003/2004) de revalorização da sabedoria prática da pessoa que sofre. Como assim? Podemos até não concordar com uma dada crença dessa pessoa, porém, se simplesmente desconsiderarmos um saber não técnico implicado na questão de saúde com que estamos lidando, estaremos tolhendo o sujeito assistido de participar ativamente da ação em curso. Cuidar nas práticas de saúde deve envolver o desenvolvimento de atitudes e espaços de encontro, de exercício de uma sabedoria prática para a saúde, apoiados na tecnologia, mas sem nunca se resumir a ela (Ayres, 2003/2004).

Desmontando a lógica da urgência psiquiátrica, uma ética-cuidado na atenção urgente à pessoa em crise delimita apontamentos específicos. Sendo apontamentos, não estão circunscritos como regras, mas enquanto pontos que devem ser observados e trabalhados de acordo com a necessidade de cada situação. Antes de tudo, é crucial enxergarmos a pessoa. Uma pessoa com contexto, com história. A crise não é um diagnóstico com terapêutica delimitada previamente, muito pelo contrário, é fundamental vermos a crise como potencialidade e localizá-la no contexto da pessoa que a traz.

Nesse tocante, Teixeira (2005) traz a noção de acolhimento dialogado, que seria uma

[…] técnica de conversa passível de ser operada por qualquer profissional, em qualquer momento de atendimento, […] em qualquer dos encontros […]. No sentido mais amplo possível, corresponde àquele componente das conversas que se dão nos serviços em que identificamos, elaboramos e negociamos as necessidades que podem vir a ser satisfeitas. (p. 322)

Assim, o acolhimento dialogado prima pela busca de maior conhecimento das necessidades que o usuário traz, de modo a satisfazê-las. E isso faz parte da ética-cuidado num momento de crise, que pode não necessariamente envolver palavras, mas atitudes ou outra forma de comunicação. Quando a pessoa se sente acolhida, mais segura, sem medo de ser violentada por contenções de todo tipo, fica mais fácil estabelecer vínculos. Ao contrário do que muitos pensam, o vínculo pode ser estabelecido para aquele exato momento de crise. O acolhimento e a visão ética de que devemos dar suporte à vida favorece a vinculação.

Para ilustrar essa afirmação, traremos o caso de Ana.12 Ana é usuária de um CAPS III, que, segundo sua família, ela tem episódios de agressividade intensa. Numa certa manhã, Ana resolve arrumar o quarto de maneira peculiar: coloca todos os objetos e móveis ao redor da cama, a fechando de todos os lados e se esconde embaixo dela. A família pede pra Ana sair de lá e ela se recusa, então entendem isso como uma crise. Eles tentam tirá-la e ela os agride dizendo que não vai sair. A família chama o serviço de urgência móvel para resolver a questão. Quando este chega, Ana já está na varanda de casa, encolhida sobre uma cadeira, muito séria, com a mão na boca e olhando para baixo.

Quando a equipe, da qual eu fazia parte, sai da ambulância, o único movimento de Ana é levantar o olhar. A irmã e o pai dizem que ela é muito agressiva e que precisamos levá-la. O auxiliar de enfermagem diz que se ela não quiser vir, podemos acionar o corpo de bombeiros que realizará a contenção. Em vez disso, eu me aproximei dela e abaixei na sua frente, olhando nos seus olhos. Perguntei o que ela tinha, ela não respondeu e evitava me olhar. A família continua falando e falando, dizendo o quanto ela é perigosa. Eu peguei na sua mão e perguntei como ela estava, se queria vir conosco. Todas as perguntas foram ignoradas. Se tentássemos tirá-la da cadeira, certamente ela reagiria. Ao invés disso, eu disse que não iríamos fazer nada que ela não quisesse. Foi a primeira vez que ela me olhou nos olhos e sorriu. Depois disso, ela respondia, mesmo que só com o balançar da cabeça, às perguntas. Constatamos que não precisava de remoção e orientamos a família sobre encaminhamentos cabíveis nesse caso.

Mesmo que por instantes, um vínculo foi formado. Pudemos interagir de fato com Ana, entender que aquele problema não era dela, mas da sua família, que não estava conseguindo lidar com as diferenças que ela apresentava. É necessário levarmos em conta a pessoa em questão e, antes de tudo, encontrarmos (ou inventarmos) meios de nos comunicar, não importando se é com o olhar, com o toque, com gestos ou com movimentos. Se dermos um solo seguro para que elas pisem, nos darão de volta a cooperação que precisamos para trabalhar em conjunto. Entre conter alguém e lhe oferecer continência, a segunda opção é sempre a mais eficaz. A contenção é o fracasso da intervenção. Constatamos isso empiricamente, mas isso já é assunto para um próximo artigo.

Sabemos que essa questão ainda é pouco debatida e esperamos que essa seja apenas uma abertura para outras tantas questões que podem ser formuladas. Com pouco caminho na sola dos nossos pés e com tanto mais que precisaremos percorrer, não queremos jamais fechar as portas. E convocamos tantos quantos queiram se empenhar por mais perguntas e por inventar tantas outras respostas, sempre com a única certeza de suas provisoriedades.

 

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Texto recebido em maio/2007.
Aprovado para publicação em junho/2007.

O Processo editorial deste artigo foi acompanhado pelo Editor Responsável e pelos membros da Comissão Executiva.

 

 

*Agradecimento a Capes pelo apoio financeiro.
**Psicóloga, mestranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: katita.jardim@gmail.com
***Psicóloga, doutora em Saúde Mental pelo IPUB/UFRJ, docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: magda@ufrnet.br
1A rede de atenção deve ser constituída de forma a agregar serviços de complexidade crescente, configurando três níveis de atenção: atenção primária (ou baixa complexidade), que são ambulatoriais e devem contar com profissionais generalistas que possam oferecer os cuidados básicos de promoção, manutenção e recuperação da saúde; atenção secundária (ou média complexidade), que podem ser ambulatoriais e hospitalares, onde são prestados os cuidados especializados; e as unidades de atenção terciária (ou alta complexidade), que são constituídas pelos centros hospitalares, sendo, nelas, aferidos cuidados de maior complexidade, muitas vezes sob o regime de internação (Santos et al., 2003).
2De acordo com Fernandes (2004), urgência é uma “ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência imediata” (p. 2).
3Aqui estamos nos referindo ao conceito de “norma”, pensado por Foucault (2002), referente a estrutura do Poder Disciplinar, que busca o adestramento dos sujeitos afim de utilizá-los mais e melhor, fundando o conceito de “normal” e o seu contraponto, o de “anormalidade”; no qual a loucura se encaixaria.
4Em 1857, surgiu a Teoria da Degenerescência de Morel, que ensaiou dar a psiquiatria um substrato palpável para sua análise esfomeada. Esta pregava o pressuposto que haveria progressiva degeneração mental conforme se sucedessem às gerações: nervosos gerariam neuróticos, que produziriam psicóticos, que gerariam idiotas ou imbecis, até a extinção da linhagem defeituosa, em que a degenerescência se definia como desvio de um tipo primitivo perfeito, desvio este transmissível hereditariamente (Oda, 2001).
5Conceito criado por Foucault (2002) que se refere ao Poder Disciplinar, que busca o adestramento das forças para utilizá-las mais e melhor. Para tanto, o sucesso deste poder se deve ao uso de três instrumentos: a vigilância, a sanção normalizadora e o exame. A vigilância é a observação constante com o fim de controlar o desenvolvimento das ações. A sanção normalizadora é um conjunto de procedimentos punitivos que se relacionam às pequenas atitudes, “deslizes”, e atua onde a vigilância não alcança, preenchendo o espaço micro. O exame é a combinação desses dois instrumentos, que reúne as relações de poder investidas neste mecanismo disciplinar e a produção de um campo de saber, que viabiliza o investimento político sobre os indivíduos e as instituições.
6Aquelas mesmas utilizadas nos primórdios da psiquiatria como reveladoras da verdade da doença mental.
7Essa diferença se exprime por meio de sintomas de sofrimento, como delírios, auto ou heteroagressividade, agitação psicomotora, dentre outros.
8Referente à Sociedade Disciplinar. Para maior aprofundamento, consultar Foucault (2002).
9Como as escolas, quartéis e hospitais.
10Os hospitais psiquiátricos recebem essa denominação por utilizarem o seqüestro, retirada dos seus internos do convívio em sociedade, em nome de uma “terapêutica”.
11O conceito de territorialização formulados por Deleuze e Guattari (1995) se refere a um processo constante de construção de territórios subjetivos, ou seja, modos de ser dos sujeitos (processo de subjetivação). E faz contraponto a desterritorialização, que seria a desconstrução desses territórios.
12Nome fictício.

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