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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.13 no.2 Belo Horizonte Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

Toxicomania: complexo familiar e figura do pai1

 

Toxicomania: family complex and the father’s figure

 

 

Jean-Luc Gaspard*

Universidade Rennes 2

 

 


RESUMO

O acompanhamento clínico em centro de atendimento de pais de adolescentes ou de jovens adultos, em grupo de fala ou individualmente, permite que se evidenciem as carências na transmissão da função paterna encontradas na base da patologia do laço familiar. Assim, pode ter início um movimento de elaboração psíquica capaz de sustentar um trabalho de separação real e fantasmática. A partir do relato do atendimento de uma mãe, este texto, valendo-se de uma referência precisa do ensino de Lacan sobre a função das drogas, propõe uma reflexão sobre a posição subjetiva na toxicomania. Posição que o autor explicita como a maneira pela qual cada sujeito se sustenta em sua relação ao saber e a suas determinações, o fato de chegar ou não a se inscrever no laço social e, também, o de consentir ou não à responsabilidade quanto a seu gozo.

Palavras-chave: Toxicomania, Atendimento dos pais, Função paterna, Complexo familiar.


ABSTRACT

Clinical assistance in health centers to adolescents’ or young adults’ parents, in speech groups or individually, highlights some needs in the transmission of the paternal function, found at the core of family bonds pathology. Thus, a movement of psychic elaboration capable of supporting a real and a phantasmal separation process may begin. Based on the account of assistance to a mother, this text, referring to Lacan’s teaching of the function of drugs, proposes a reflection on the subjective position in toxicomania, explained by the author as the way each subject supports himself in relation to knowledge and its determinations, his inserting himself or not into the social bonds, and his accepting or not the responsibility for its enjoyment.

Keywords: Toxicomania, Assistance to parents, Paternal function, Family complex.


 

 

Se as drogas conhecem um sucesso inquestionável é porque elas são “o que permite romper o casamento do corpo com o pequeno pipi” (Lacan, 1975).2 Essa definição original, extremamente precisa, da função da droga teve o mérito de renovar a abordagem da toxicomania a partir da categoria de corpo e de gozo. Ela se revela igualmente preciosa para interrogar aquilo que diz respeito a uma posição subjetiva, ou seja, a maneira pela qual o sujeito se sustenta em sua relação ao saber e a suas determinações, o fato de chegar ou não a se inscrever no laço social e, também, o de consentir ou não à responsabilidade quanto a seu gozo.

Mas, qual é o efeito da manobra da toxicomania? Ela busca, notadamente, denunciar um casamento celebrado no campo do Outro que deve conduzir o sujeito a um contato com a função fálica.3 Com a conseqüência de que essa formação de ruptura, que permite a suspensão do embaraço em inúmeras confrontações com o Outro sexo, com a alteridade, contraria a definição de sintoma no sentido analítico do termo.

Na concepção freudiana, o sintoma é uma solução singular que permite ao sujeito introduzir no laço social a parte irredutível de alteridade que carrega, mesmo se a desconhece ou ignora, e que deve assumir como sua. Mas, para que essa “solução de compromisso” possa se inscrever no discurso, é preciso ainda que o mais particular do ser do sujeito não esteja absorvido no laço social ou que o laço não venha se chocar contra a rocha da particularidade subjetiva.

Tal seria a “posição de a-sujeito” na toxicomania: um sujeito instrumentalizado, aparelhado com um produto (mesmo que de substituição) que se torna um dos elementos maiores da existência (Gaspard, 2004; Gaspard et al., 2008). A noção de ‘a-sujeito’4 que introduzimos é distinta da de assujeito, cujo exemplo nos é dado por Lacan (1957-58, p. 188-191) a propósito do pequeno Hans, o menino fóbico cujo tratamento Freud relata. Ao falar em ‘asujeito’, nossa referência é o matema do discurso do capitalista, estabelecido por Lacan em 1972. No relato que traremos aqui, construído a partir das incidências terapêuticas de uma prática orientada pela psicanálise com pais de adolescentes ou jovens adultos toxicômanos, essa posição de ‘a-sujeito’ delineiase como pano de fundo.

A escolha de apresentar a especificidade desse trabalho de elaboração “no passo do sujeito” e em torno do complexo familiar não é, certamente, para “fetichizar” o caso, dando-lhe valor de paradigma, nem de promover uma nova versão de uma terapia familiar. Trata-se, sobretudo, de uma ocasião para verificar como as histórias de vida podem se entremear e levar a numerosas situações patogênicas. Histórias de vida que, como as de Madame A., professora, atendida numa manhã de outono, podem se inscrever como “fatum”5 no itinerário do toxicômano. O pai jamais compareceu a esse atendimento, apesar de sempre convocado. Também não tivemos ocasião de conhecer o filho “toxicômano”, mas progressivamente ele se tornará o “objeto”6 de nossas entrevistas.

 

O complexo familiar

Madame A. é uma mulher de modos esportivos – a bicicleta é seu meio de transporte na cidade –, “sem hora”, diz ela, “eu não uso relógio, mas me localizo muito bem no tempo...”. Ela tem um olhar claro, que vai direto nos olhos do interlocutor. Vem falar de seu filho B., de 22 anos. Tinha buscado ajuda para ele já há alguns anos. No momento, ela teme por ele, sente-o em perigo. O motivo de sua vinda, nesse dia, é o fato de tê-lo achado completamente abatido, sonolento, sem se comunicar mais, “não fazendo nem mesmo: mais semblante”, diz, muito comovida, pensando que ele não tem mais forças. O fato de o período do Natal estar próximo também a preocupa, pois foi nessa época, no ano anterior, que o filho “se chocou contra um caminhão”. O filho já destruiu quatro carros, o que ela interpreta como tentativas de suicídio. Até agora, “ele sempre conseguia se refazer”, acrescenta.

B. quis entrar num instituto de formação de professores, seguindo os passos do pai e da mãe, mas capitulou na hora do concurso; desde então, encontra-se à deriva, não consegue se aprumar. Nesse mesmo período, separou-se da namorada, com a qual vivia. Assim, há um ano e meio, ele não é mais como antes. Basta ouvir sua voz ao telefone para que sua mãe saiba que as coisas não estão bem: “com freqüência, o tom de sua voz é confuso”.

B. é o caçula de três meninos. Um deles é profissional liberal, vive no exterior, é casado, pai de família “feliz”, um outro filho acaba de nascer: “ele está felicíssimo”. O outro filho de Madame A. mora na França, mas em outra região. Também é casado, pai de dois filhos, dos quais ela cuida de vez em quando. Ele defende seu irmão, pois viveu igualmente um período de consumo de drogas bem difícil, mas conseguiu mudar isso há alguns anos. Madame A. pontua: “Ele está feliz com sua companheira”. Sobre eles, ela fala de bons encontros e de vida feliz, formam “casais sólidos”, “que conseguem vencem duras provas”.

O que mobiliza Madame A., o que a preocupa e a divide são os desafios do casal, da família. Ela se surpreende de ainda chorar por sua família desfeita, despedaçada, quando seu ex-marido, pai de seus filhos, foi embora com outra mulher, alguém que mantinha alianças de parentesco com ela própria. Todo esse mundo de irmãos, irmãs, suas mulheres e maridos reuniam-se em torno de seus avós, pais do Fulano (Monsieur) para desfrutarem juntos, dentro da idéia de uma grande família fraterna, no plano do lazer, da educação etc.

Pouco a pouco, Madame A. relembra esses momentos felizes, assinalando, aqui e ali, aqueles que ainda a fazem sofrer. Com o tempo, no correr das entrevistas, desvela para si mesma que o homem que conheceu tão jovem, adolescente tanto quanto ele, e com o qual se casou depois de um período de afastamento – pois naquela época ele (já) escolhia ocupações que o levavam para longe de casa –, costumava deixá-la só com as crianças. Algumas vezes em localidades do interior, sem água corrente, nem aquecimento. Mas ela estava sempre cercada por toda a família, que a encorajava muito.

A partir de seu relato, delineia-se o que ela havia edificado com e na família para fazer face às reiteradas ausências de seu marido, durante o longo tempo de vida a dois, revelando-se como soluções. Apoiada em sua montagem para ele e em sua crença nele, fazia vivo O lugar do pai para seus filhos.

Todavia, um dia, Monsieur, que tinha tido uma promoção no trabalho, pede transferência para um cargo no exterior. E faz isso sem avisá-la, de modo que ela não pode sequer tentar acompanhá-lo, buscando obter algo semelhante. Ele parte dizendo que era “para pensar”. Nesse momento, B. tinha 13 anos e os dois mais velhos estavam começando a faculdade. De fato, Monsieur se instala bem longe com uma cunhada, mas sem que nada dessa relação, segundo Madame A., tivesse sido, até então, ao menos aventada. Dois anos depois, a separação se torna definitiva. Os dois filhos mais velhos saem de casa e Madame A. fica só, ferida, definitivamente abandonada, face a face com B. Por outro lado, o irmão de Madame A. está arrasado: a família está esfacelada, em pedaços. No relato de Madame A., tudo se organiza a partir daí, o momento da separação confirmada constitui o ponto de ruptura: delimita um antes e um depois na temporalidade de sua vida.

 

As figuras do pai

Durante as primeiras sessões, Madame A. testemunha uma dedicação total ao pai de seus filhos, que ela invoca com respeito e que convoca, ainda, a um jantar com B. para falar dos problemas de inserção desse filho. Pai em sua função simbólica amado/respeitado, chamado por ela, ainda e sempre ansiado por ela. Sobre isso, emerge sua expectativa de (um) pai para seu filho, de (um) homem que corresponda ao que ela espera, a quem ela possa transmitir ou somente delegar uma parte de seus poderes.

Aos poucos, para além desse pai que invoca para esse filho, ela consegue questionar a ligação com o homem em relação ao qual identificou esses seus sentimentos. Sentimentos que, desde sempre, ela cuidou de abandonar, deixar de lado, encarregando-se de tudo sozinha, como se fosse um desafio para o casal, a fim de fazer funcionar O pai para seus filhos, para seu filho. Mas essas relações, com o pai, com o filho, fazem-na chorar muito, apesar de ela ter contado, desde o início de nossos encontros, que vive um ótimo relacionamento com um companheiro que a ama e a trata com bastante carinho. Ela se sente bem nesse amor, apesar e através das intempéries. Vê-se, então, que num tempo posterior ela pode prosseguir com sua vida e re-construir um casal precioso, segundo suas próprias palavras.

Madame A. observa que chora muito mais agora do que antes. Antes? Seria o tempo no qual ela devia sustentar, em face da ausência, com toda a família reunida, mas bem acomodada, a sua versão do pai? Então, como ponto de mira encontra-se entronizado o pai ideal, aquele que, em conseqüência, pode permanecer para o filho para sempre inatingível. Entretanto, seus dois filhos mais velhos conseguiram, ao que parece, se distanciar dessa versão, construindo a deles. Mas B., colado a sua mãe e ao espanto da adolescência, parece ter sido pego na armadilha dessa versão materna.

Em dado momento, Madame A. começa a afrouxar suas expectativas em relação ao pai. Recusa, então, um convite dele e deixa os dois, pai e filho, sozinhos. Em seguida, percebe que, sob o medo da morte de B., motivo maior de vir às consultas no início, se dissimula o desejo de que desapareça esse filho que representa a objeção à realização do bom pai à qual os mais velhos se alinharam sem problema, sem questionarem a vontade materna.

 

O ponto de silêncio

Esse momento, em que Madame A. aponta e reconhece a ambivalência de seu desejo em relação a esse filho, porque ele perturba a paz familiar à qual ela aspira acima de tudo, constitui um momento fundador e de liberação. É então que relata algo que diz ser um embaraço, um peso, com o qual não sabe o que fazer nesse momento: após o falecimento de sua mãe, alguns anos antes, ela e seus irmãos acharam a foto de uma criança, um irmão deles, nascido antes dela. Uma criança da qual ninguém falava nunca, de cuja morte ninguém nunca soube – e não sabia ainda –, a causa, um irmão morto muito pequeno, mas que na foto aparecia cheio de saúde.

Madame A. havia aceitado guardar essa foto, quando seus irmãos mais velhos lhe pediram, mas hoje, justamente, ela não sabe o que fazer com ela e, sobretudo, se pergunta por que carregar isso. Nossa proposta foi, então, “de depositar aqui essa prova”, por ocasião de nossa próxima entrevista. Ela recebe o oferecimento com um “É verdade ? Eu posso fazer isso!” formulado, ao mesmo tempo, como pergunta e afirmação. Na entrevista seguinte, assim que entra na sala, entrega a foto dentro de um envelope, com um alívio intenso.

A partir desse momento, inicia-se um trabalho de luto dessa criança, seu irmão, mas também de B., que ela se encarregou de sustentar, agora e sempre na vida, espreitando as recaídas e presa no tormento dos ciclos de altos e baixos das forças do sujeito (B.) que a mantinham alerta. Como B. afunda cada vez mais no sofrimento, ela decidiu tomar para si a tarefa de carregar a vida dele. Desse modo, espera mobilizar cada vez mais “seus recursos de ser”, como ela os nomeia, aqueles que permitem a ele se refazer, retomar sua vida após as recaídas. Ela aceita, então, que ele não tem essa força, esse desejo, mas que é ela quem espera dele, por ele, que ele se levante de novo, a cada vez.

Ela não pode carregar a vida dele, deve devolvê-la a ele, o que quer que ele faça dela (da vida). E devolvê-la (a vida dele) é sobretudo aceitar que ele não faça nada com ela, mesmo quando ela quer, sabendo-o bem dotado para muitas coisas. A propósito disso, uma outra figura do pai se desvela: as sessões trazem um ex-marido por vezes humilhante em relação a ela, pouco cuidadoso com o casal e que, de fato, não a fez feliz. Monsieur também não dava atenção aos filhos e ela pode, agora, desenterrar as acusações mútuas e os conflitos.

 

Enodamento e desenodamento

Assim, vem o tempo do pai real, gozando alhures e terrível com os seus, o trabalho de sua denúncia e a aceitação de Madame A. da porção de ódio que a habita. Esse ódio, que faz o leito do romance familiar,7 estava até aqui profundamente submerso sob um respeito e uma apresentação da palavra do pai sem falha. Desse modo, ela passa, durante o trabalho que realizamos, sucessivamente, pelas diferentes figuras que o pai assume para um sujeito. Isto, em relação àquele que ela institui como tal: o pai de seus filhos. O retrato de seu próprio pai foi descrito a partir de suas três modalidades, mas desde a primeira entrevista, a avaliação sobre ele havia sido feita.

O pai que a incomoda, que a desloca não é esse aí, mas o outro, o que ela quis instituir: o bom pai de bons filhos/pais. Declinando, passo a passo, essas figuras, ela desfaz sua montagem para deixar lugar a esse homem. Enfim. Pela reviravolta que opera, Madame A. deixa cair suas expectativas, abrindo um espaço para um encontro entre eles, arranjando um espaço para cada um se engajar, se mobilizar. Ou não. Nessa ocasião, dá-se conta de que foram precisos vários anos, depois de sua separação, para ter o sentimento de que tudo estava acabado. E acrescenta: “por dedução, constatei que até ali não estava...”. Entretanto, as entrevistas prosseguiram e, apesar de seu filho não ter apresentado qualquer mudança, pouco a pouco, revelou-se uma outra imagem dele. Madame A. pode deixar de lado signos que pareciam desenhar um outro perfil.

Um dia ela telefonou, completamente transtornada, para pedir um horário de urgência. Chega muito afetada pelo que acaba de ver, pelo que entrevê, pelo que demanda ajuda para entender. Com efeito, atendendo a um pedido de seu filho, com o objetivo de auxiliá-lo a encontrar alguns documentos, entrou na casa dele. O choque foi provocado pelo estado em que encontrou o lugar: “nada mudou no mobiliário, nem na decoração após a partida de sua companheira”; em compensação, os sacos de lixo e restos de toda espécie se acumulam; para passar entre eles tem-se que abrir um caminho; a louça está toda suja e fica em todo canto, abandonada e com restos secos ou mofados; a correspondência e os documentos não abertos se acumulam etc. De fato, tudo parece ter sido abandonado e, entretanto, B. come, dorme, vive ali.

Esse momento, sobre o qual falará com freqüência nas sessões que se seguem, situa um outro ponto de articulação do trabalho; com efeito, ela deixa aparecer a grande desorganização psíquica desse filho, ao mesmo tempo em que descobre, passo a passo, a profundidade da mesma. Ele pode telefonar a qualquer hora do dia, mesmo muito tarde ou muito cedo, e encontrá-lo aflito por uma carta que acaba de abrir, por não saber o que fazer com ela.. Ela deve, por vezes, à distância, encorajá-lo a ler a carta para nela encontrar as explicações necessárias. Ele se confunde no seu tratamento e nas manifestações de sua doença (febre persistente, infecções urinárias repetidas). Não sabe em que ponto se encontra de seu tratamento médico (hepatite). Ela descobre que não é só o seu apartamento que ele não consegue gerenciar, mas toda sua vida pode, por vezes, cair nesse marasmo.

E, também, há o teatro: uma tia, comovida pelo estado de B., e o de sua mãe, propôs incluí-lo em um grupo de teatro da qual faz parte. No final do ano, todos são convidados para a representação. Madame A. chega antes, a fim de encorajar B. e se instala no salão, ao lado de seu companheiro. Os esquetes começam: B. desempenha seu papel, mas Madame A. percebe que ele parece buscar algo ou alguém na sala. Seu pai, o ex-marido de Madame A., chega. Durante toda a apresentação, B. olha sem parar em sua direção. Depois de buscá-lo com o olhar durante o lanche que se seguiu – o pai tinha se eclipsado desde o final do espetáculo –, B. consegue, finalmente, falar com ele pelo celular e descobre que “ele teve que ir embora mais cedo”. Mas esse olhar do pai não foi chamado pela mãe?

 

Para concluir

Assim, qual é a posição do sujeito dito “toxicômano” em relação à “verdade do casal parental” que ele desvela (Lacan, 1969)? Estaria ela do lado da posição de sintoma desse casal, ou seja, como o que vem juntar, agora e sempre, um pai e uma mãe, como é o caso na neurose? Ou melhor, como poderíamos supor aqui, enquanto ele realiza a verdade do objeto da fantasia da mãe.8 É assim que B. participava da vontade materna: fazer de seu pai um “bom pai”, aquele que pode se mobilizar por ele, sem que por isso a função paterna seja operante nesse sujeito.

Por outro lado, é acompanhado por ele, seu pai, que B. aceitará fazer os primeiros passos em direção a um centro de cuidados especializado. E é também com ele que retomará seu tratamento médico e será orientado para um serviço de acolhimento de toxicômanos, onde novas possibilidades de tratamento se descortinam. Paralelamente, com Madame A., o trabalho vai continuar. Ele consistirá em acompanhá-la em sua nova compreensão desse filho e em ajudála a re-organizar, em relação a cada um, uma distância separadora passível, enfim, de ser vivida.

De fato, enquanto “falasser” (ser falante), cada sujeito se encontra às voltas com um dispositivo de transmissão, com um discurso ao qual é submetido, quer dizer, em primeiro lugar assujeitado, mas do qual também é parte integrante e parceiro (Lapeyre, 2000). Alinhar-se ao princípio de filiação é aceitar, como sublinha Pierre Legendre (2003), levar em conta essa ordem genealógica, essa “reserva inesgotável onde os indivíduos vêm buscar, para viver, a bagagem de sua identidade”,9 ou, como prefere o autor, “as categorias elementares de sua identidade que, antes de se tornarem a bagagem efetiva de sua vida, passam pela mão dos intermediários, por esses fabricantes de imagens, as imagens identificatórias, os pais”.10

É nos intervalos de uma re-elaboração materna e/ou paterna dessa transmissão que o adolescente ou o jovem adulto toxicômano pode tomar a iniciativa, em suma, ser condenado a colocar aí algo de seu, mas dessa vez, num “jogo de vida”.

 

Referências

Chemama, R. & Vandermersch, B. (1998). Dictionnaire de la psychanalyse. Paris: Larousse.        [ Links ]

Freud, S. (1985). Le roman familial des névrosés. In: Névrose, psychose et perversion. Paris: PUF, p. 157-160. (Texto original publicado em 1909)        [ Links ]

Gaspard, J-L., Dubo-Ceballos, C. & Rojas, A. (2008). Actualidad de una clínica del a-Sujeto: el ejemplo de la toxicomanía. Desde el Jardin de Freud, convocatoria 7, Drogas, clínica y mercado, Bogota (Colombia). No prelo.        [ Links ]

Gaspard, J.-L. (2004). Refus de l’école et addiction à l’adolescence. In: Guffens, J-M. (Dir.) Addictions et toxicomanie. THS6, 1, Paris: Ed Frison-Roche, p. 312-315.        [ Links ]

Lacan, J. (1957-1958). Les formations de l’inconscient. Le Séminaire Livre V. Paris: Seuil, 1998.        [ Links ]

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Lacan, J. (1975). Discours de clôture aux journées des cartels. Lettres de l’E.F.P, 18, avril 1976.        [ Links ]

Lapeyre, M. (2000). Complexe d’OEdipe et complexe de castration. Paris: Anthropos.        [ Links ]

Laplanche, J., Pontalis, J. P. (1967). Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: PUF        [ Links ]

Legendre, P. (2003). Filiation, Leçons IV, suite 2. Paris: Fayard.        [ Links ]

Roudinesco, E., Plon, M. (1997). Dictionnaire de la psychanalyse. Paris: Fayard.        [ Links ]

 

 

Texto recebido em julho/2007.
Aprovado para publicação em outubro/2007.

 

*Professor de Psicopatologia e Clínica Psicanalítica da Universidade Rennes 2-França, psicólogo clínico, psicanalista (Maître de Conférences en Psychopathologie et Clinique Psychanalytique, EA 4050, Université Rennes 2 (France), Psychologue clinicien, Psychanalyste). E-mail: jlgaspard@wanadoo.fr
1Título original “Toxicomanie: complexe familial et figures du père”, artigo inédito, traduzido por Vera Lopes Besset, revisado por Alain Besset.
2N.T. No original: “ce qui permet de rompre le mariage du corps avec le petit pipi”.
3Na doutrina psicanalítica, a referência ao Outro (com um O maiúsculo) ultrapassa a primeira dimensão de alteridade, a de todos os parceiros (pais, irmãos, família, próximos etc.) que sustentam as identificações, a identidade assim como o desejo de um sujeito. Em nosso escrito, o Outro é uma referência genérica que remete, a partir de suas figurações (Deus, o Estado, a cidade etc.) a um lugar de determinação, de introdução da Lei, em resumo, a uma ordem simbólica anterior e exterior ao sujeito. “C’est dans le langage que se distinguent les sexes et les générations et que se codifient les relations de parenté. C’est dans l’Autre du langage que le sujet va chercher à se situer “(Chemama & Vandermersch, 1998, p. 39). É nesse sentido que podemos dizer que o inconsciente é o discurso do Outro.
4O termo ‘a-sujeito’ faz eco a “a-studé”, neologismo forjado por Lacan em referência aos estudantes e que podemos associar ao processo de “objetivação subjetivante “de qualquer laço educativo.
5N.T. O Petit Robert indica que esse é um termo latino que significa “chose dite, destin irrévocable, ce qui est écrit” e, literalmente, destino, fatalidade.
6No original, o termo correspondente é “sujet”, que o autor destaca com as aspas, já que faz referência ao que acaba de expor.
7O romance familiar (Freud, 1909) é uma construção que “designa as fantasias a partir das quais os sujeitos modificam suas ligações com seus pais através da imaginação” (Laplanche et Pontalis, 1967). Seus fundamentos se encontram no complexo de Édipo, na maneira de rebaixar ou de exaltar certos traços dos pais. O sujeito pode, assim, modificar “suas ligações genealógicas inventando-se, por meio de um relato ou de uma fantasia, uma família diferente da sua “(Plon et Roudinesco, 1997).
8E, então, naquilo que se refere a uma falha radical da operação de separação, a criança ocupa a posição do objeto que revela, chegando mesmo a realizar essa verdade. É o que se passa na psicose, sobretudo.
9N.T. No original: “réserve inépuisable où les individus viennent chercher, pour vivre, le bagage de leur identité”.
10No original: “je devrais dire plutôt: les catégories élémentaires de leur identité, qui, avant de devenir le bagage effectif de leur vie, passent par les mains des intermédiaires, par ces fabricants d’images - les images identificatoires -, les parents”.

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