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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.13 no.2 Belo Horizonte Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

Atualidade clínica da homossexualidade masculina: solução ou escolha de objeto

 

The current clinic of male homosexuality: solution or choice of object

 

 

Jésus Santiago*

Universidade Federal de Minas Gerais

 

 


RESUMO

Por intermédio de caso clínico, busca-se mostrar em que medida a questão homossexual introduz questionamentos importantes sobre a angústia de mal-viver entre os sexos nas sociedades estruturadas pela via democrática do individualismo de massa. Refiro-me ao fato de que as novas normas da homossexualidade, nas quais sobressai a figura do gay configuram aquilo que se constitui como a marca exemplar dos novos estilos de vida sexual – a fluidez, a transitoriedade, a inconstância e, mesmo, a errância. Passou-se o tempo em que se restringia a homossexualidade à noção de inversão, cuja prática se exercia, quase sempre, de modo clandestino e segundo um funcionamento particular da fantasia. Desde o final dos anos sessenta, assiste-se a um novo modo de afirmação do sintoma social da chamada homossexualidade gay, com a busca de sua inserção na cultura e o combate político por um reconhecimento que se reflete no terreno jurídico. Se esta última concepção da homossexualidade subverte profundamente a indicação freudiana da escolha de objeto, ela não poupa também a formulação da questão paterna sob o prisma da sua capacidade de proceder à articulação entre o desejo e a lei. Portanto, o interesse é mostrar que essas novas formulações conceituais refletem a necessidade de a psicanálise estar à altura da atualidade clínica da homossexualidade masculina.

Palavras-chave: Homossexualidade, Gay, Angústia, Culpa, Pai.


ABSTRACT

Based on a clinical case, this paper attempts to demonstrate in what measure the homosexual issue introduces relevant questions about the anguish of poor living between sexes in societies structured in the democratic pattern of mass individualism. New standards of homosexuality, in which the ‘gay’ figure stands out, constitute an example of new sexual lifestyles, which consist of fluidity, transience, inconstancy and even making mistakes. Homosexuality is no longer restricted to the notion of inversion, whose practice was almost always clandestine and followed a private fantasy process. Since the end of the 60’s, a new affirmation form of the social symptom of the so-called gay homosexuality has taken place, with a search for its cultural insertion and the political conflict for recognition reflecting on legal grounds. If this conception of homosexuality subverts deeply the Freudian indication of the choice of object, it does not spare the formulation of the paternal question in the light of its capacity to promote the articulation between desire and law. Therefore, this paper aims to demonstrate that these new conceptual formulations reflect the need for psychoanalysis to be in harmony with the current clinic of male homosexuality.

Keywords: Homosexuality, Gay, Male, Heterosexual, Anguish, Guilt, Father, Oedipus, Love, Clinic, Liquid, Nomad, Satisfaction.


 

 

Amor líquido, amor nômade

É no contexto mais recente dos novos estilos de vida sexual que emerge o que os especialistas qualificam como amor líquido (Bauman, 2004), dada a volatilidade das parcerias sexuais que obrigam o sujeito a transitar de um lugar para outro. Ainda antes do emprego da metáfora da liquidez, o filósofo Gilles Deleuze, segundo uma outra perspectiva, qualificou de nomadismo (Deleuze & Guattari, 1997) tal inovação nos modos de relação entre os pares sexuais. Sob esse ponto de vista, o nomadismo constitui-se numa forma de estar no mundo que subverte as expectativas sociais e as estruturas subjetivas hegemônicas identificadas com o moralismo centralista e falocêntrico do Estado. Em vez de fixar-se em um ponto do espaço, como faz a existência sedentária, o nômade transforma, sem cessar, suas experiências afetivas, pois não possui um território e segue trajetos contingentes, vai de um ponto a outro (Deleuze & Guattari, 1997). É por isso mesmo que o nomadismo tornou-se, para ele, o equivalente de uma máquina de guerra, capaz de desterritorializar os anseios e as estruturas das relações instituídas pelo Estado, visto que agencia do exterior e independentemente deste, outros fluxos, intensidades e enunciações.

Se há um teor fluido, líquido ou nômade nos novos estilos da vida amorosa, não me parece, como querem alguns, que isto seja fruto da simples quebra radical da verticalidade das relações sociais. Ao contrário de tais formulações, importa ressaltar em que medida tais transformações encarnam uma resposta efetiva à manifestação da inexistência do Outro na esfera dos diversos modos de gozo. Devo admitir que a interferência do individualismo de massa sobre as práticas sexuais é uma demonstração viva de que nossa época responde ao malviver entre os sexos, com a identificação a algum significante-mestre (S1) pulverizado e individualizado (Miller, 2003). O termo gay surge para evidenciar que se o tédio, a tristeza estão do lado da rotina dos heteros, o carnaval, as coisas divertidas se encontram do outro lado. O movimento gay é um exemplo dessa oferta identificatória no mercado do gozo, visto que a simples disponibilidade de um significante novo é suficiente para uma identificação comunitária que busca contrapor-se à atopia do nomadismo.

Constata-se, assim, que a maneira como as relações sintomáticas entre os sexos se exprimem no contexto dos amores nômades assume conseqüências inquietantes, até então, inéditas, para o psicanalista. Induzida pelo individualismo de massa, a instalação desse mercado das formas de gozo e do amor não acontece sem criar as fontes para a redistribuição e o surgimento de novos sintomas e novas angústias. A inflexão da multiplicidade das soluções amorosas acarreta a adoção do imperativo de ter que se identificar com sua própria diferença, de tentar lidar, custe o que custar, com um significantemestre individualizado.

A meu ver, é preciso enxergar para além da desterritorialização deleuzeana, pois é notório que as diversas expressões não-sedentárias do amor agudizam o fato clínico de que se a mulher, para o homem, equivale a um sintoma, o homem, por sua vez, é, para uma mulher, um fator de devastação. Esse valor subversivo, das práticas homossexuais com relação às normas que fixam e regulam os laços afetivos já instituídos, não passou desapercebido a Jacques- Alain Miller. Durante uma intervenção conclusiva de um colóquio que versava sobre a questão dos gays em análise, ele se perguntava “se a incidência do homossexual, sobre a evolução recente da prática analítica, inclusive, sobre a própria elaboração de Lacan, não foi maior do que, até agora, fomos capazes de perceber” (Miller, 2003, p. 83).

 

O refúgio homossexual no circuito autístico do gozo do Um

No fundo, mais do que a interferência da homossexualidade sobre o discurso das práticas sexuais e afetivas, em geral, interroga-se sobre a sua repercussão na teoria e na prática atual da psicanálise. Ninguém desconhece que a proliferação das novas normas homossexuais contribuiu para tornar pouco credível a inclusão da sexualidade em uma ordem natural fixa e preestabelecida. Torna-se, cada vez mais, anacrônico não admitir a homossexualidade como um estilo de vida, uma escolha de objeto que, apesar de ser minoritária, é tão defensável quanto qualquer outra. Diante disto, não é sem razão que o movimento dos homossexuais, que realizou e adotou a construção do gay, pôde desalojar do saber psiquiátrico referente a eles qualquer alusão da categoria de perversão.

Para a psicanálise, a disseminação dos efeitos dessas novas normas da homossexualidade assume outras conseqüências. Segundo Miller, esses efeitos recaem sobre o próprio discurso analítico, uma vez que a homossexualidade masculina constitui um dos pontos capitais para se apreender o que é a reelaboração lacaniana do gozo não-todo, característico do lado feminino da sexuação. Nem é preciso dizer que essa via de questionamento fornece os fundamentos para aquilo que é o avesso do Mais ainda, um contraponto que se transmuta na questão implícita da elaboração de Lacan. Se a questão homossexual reflete o apego do sujeito ao gozo do Um fálico, é ela que também alimenta o verdadeiro judô de Lacan com a sexuação masculina em geral (Miller, 2003).

Como foi frisado no início deste trabalho, o problema clínico da homossexualidade – que é distinto daquilo que concerne à figura do gay – lança luzes sobre a incidência do individualismo democrático de massa na diversidade das parcerias sexuais em que prevalecem os traços emergentes de uma sociedade de celibatários. Se, para a norma gay, impõe-se uma saída marcada pela identificação que se designa como comunitária, o homossexual, por sua vez, interroga o problema de uma solução calcada nos excessos do uso do gozo fálico em uma sociedade que favorece e reforça certas tendências celibatárias.

Por outro lado, essa posição do homossexual em face do gozo tornou-se um fator essencial para demonstrar a interferência do pai e de seus usos, nos estilos de vida sexual que se refugiam no circuito autístico do gozo do Um. É nesse sentido que se propõe a tese de que a homossexualidade ocupa, hoje, o lugar que a histeria ocupou em uma época em que o Nome-do-Pai e os seus ideais serviam para regular a relação do sujeito com o gozo (Miller, 2003). Como procurarei mostrar mais adiante, a elucidação da questão da homossexualidade masculina, nos termos do último ensino de Lacan, aponta para a reformulação da função paterna confundida com o lugar da lei. O caso de homossexualidade masculina que passo a comentar demonstra, de modo explícito, o quanto a compreensão da função paterna migrou do problema da lei para aquele do pai como instrumento, como artifício.

 

A hipótese dos ciclos na experiência analítica

Saliento, em primeiro lugar, que se trata de caso clínico inserido nas novas dinâmicas de demandas geradas por essa variedade atual da psicanálise aplicada que se institui, entre nós, pelo método dos Centros Psicanalíticos de Consultas e Tratamento (CPCT). Parece-me evidente que esse novo laço de trabalho foi adotado com o intuito de manter acesa a busca de revitalização do desejo do psicanalista para-além dos ritos e dos padrões estabelecidos. É claro que essa revitalização só se torna possível se a aplicação terapêutica da psicanálise ousa atingir algo da verdadeira natureza da psicanálise pura.

Chamo a atenção para o fato de que essa ousadia mais uma vez se fez presente entre nós, ao buscarmos retirar conseqüências práticas do fator temporal, da rapidez dos efeitos terapêuticos obtidos pelo tratamento. Apesar do desconhecimento de grande parte dos psicanalistas, a própria experiência da análise fornece inúmeros elementos para se admitir a rapidez com que se podem obter os seus efeitos terapêuticos. Isto se opõe, frontalmente, ao que o senso comum e, mesmo, grande parte do mundo psicanalítico toma como o padrão temporal do tratamento analítico. Não são poucos os ângulos que permitiram a Lacan inserir a experiência analítica do lado oposto dessa dimensão temporal linear e infinita. Penso que é importante para a discussão desse caso de homossexualidade enfatizar a hipótese clínica que se sedimentou a partir da Conversação de Barcelona, de que a experiência analítica se processa na forma de ciclos ou, mesmo, de apenas um ciclo (Miller, 2005).

Essa breve introdução sobre os efeitos terapêuticos rápidos me auxilia a interrogar sobre a natureza do ciclo que se processou a partir do encontro desse paciente com o analista, no contexto de um atendimento no CPCT. Com o material clínico relatado, deve-se falar de um ciclo completo da experiência? Caso isto se verifique, deve-se falar de efeitos terapêuticos? Quais? Eles foram rápidos? Em que circunstâncias eles se processaram? Em que medida eles são relativos ao método CPCT, no qual sobressaem a gratuidade e a duração limitada do tratamento? Por outro lado, esses efeitos devem ser também concebidos como concernentes às coordenadas subjetivas com as quais o paciente procura o tratamento. E, por último, é preciso, também, levar em conta, nesse contexto clínico, as intervenções do analista.

Antes mesmo de entrar no mérito de tais questões, devo dizer que, considerando o aspecto das relações entre a demanda e o sintoma, se trata de um caso cuja atualidade clínica se encontra escamoteada. Não se trata de alguém que chega com um novo sintoma, como é o caso das novas compulsões expressas pela toxicomania ou anorexia. Tampouco se está diante de uma situação de urgência subjetiva, devido à presença de alguma depressão, ou, ainda, de um acting-out ou passagem ao ato grave. A meu ver, há algo de típico, neste caso, que consiste na maneira como a demanda se configura em função de um sintoma que se exprime por meio de um conflito. Parece-me nítido que o funcionamento da tríade clássica sintoma-demanda-transferência, própria da clínica do sintoma concebido como o retorno do recalcado, de alguma maneira se faz presente no caso.

O analista responsável pela condução desse caso tem toda razão em realçar a componente conflitual, sobretudo quando busca caracterizar o momento em que o sujeito solicita o tratamento. Assinala-se que ele o faz, não apenas com o conflito entre “a religião e a sexualidade”, mas, também, com a queixa de que, apesar de “se sentir superior aos outros, padece de um grande sentimento de inferioridade”. A propósito dessa vertente conflitual, chamo a atenção tanto pelo número de ocorrências do termo conflito ao longo do relato clínico quanto pelo inventário rigoroso, realizado por meio de uma série de interrogações, que, a meu ver, dão o tom da escuta do analista. Essas interrogações delineiam o que Lacan designa como quadro do julgamento íntimo do analista, que, em última instância, diz respeito ao espaço no qual se efetua a própria construção do caso.

No momento em que esse recenseamento da dinâmica do conflito, sob a forma de várias interrogações, acontece, nota-se, também, a necessidade incontornável de introduzir o campo do Outro, via romance familiar do sujeito. Eis, então, as interrogações do analista: qual dos dois conflitos deve ser captado como primário, ou seja, qual deles se insere na origem de seus sintomas? Há condições de postular uma causalidade entre eles? Qual o papel desempenhado pelo pai-pastor? Qual o papel da religião? Como considerar o desejo da mãe e a posição do sujeito, que se vê como um objeto especial frente a ela? É possível dizer que o conflito entre religião e sexualidade decorre do pai e o de “ser superior e a inferioridade” como relativa à mãe? Mais do que o inventário sobre o conflito, predomina a tentativa de captar a interferência dos ideais paternos religiosos sobre a montagem pulsional do sujeito. Tanto isso é verdade que um desses conflitos se formula sob a égide de um paradoxo: como alguém pode se sentir angustiado pelo sentimento de inferioridade quando, na verdade, ele mesmo acredita que é melhor do que os outros.

 

Desangustiar não é desculpabilizar

Ao acolher o que esse jovem traz como uma situação de conflito que o divide, a analista busca explicitar, com a própria condução do tratamento, que a estratégia da desculpabilização adotada pelo sujeito mostrou-se insuficiente para desangustiá-lo. Afastar-se da sua família de origem, principalmente do pai, pastor de uma igreja protestante adventista, e do tio, presidente dessa igreja, com preceitos morais e regras punitivas rígidas, poderia ser uma saída para libertar-se dos conflitos e impasses de que padecia desde a adolescência: “continuar na religião ou viver seus desejos homossexuais”. Tomar distância do pai e da religião, iniciar os estudos universitários, inserir-se no mundo do trabalho e encontrar um parceiro com quem vive, desde a sua chegada na cidade, não foi suficiente para atenuar o seu sofrimento e suas angústias. Dois anos depois de assumir esse novo estilo de vida, a sua angústia não cedia, ao contrário, agravava-se ainda mais. Acresce que seu parceiro homossexual, agora desempregado, o oprime com suas exigências excessivas, que, aliás, tornaramse a marca do relacionamento amoroso dos dois.

Constata-se, assim, que o analista não desangustia o sujeito pela via da desculpabilização, coisa que um psicoterapeuta poderia muito bem visar, ao buscar ratificar a saída que ele encontrou adotando um novo estilo de vida. Logo após a mudança, quando suas aflições eram intensas, o jovem procurou um psiquiatra, que, também, é um terapeuta comportamental-cognitivista. Já na primeira consulta, o psiquiatra propôs uma cura de sua escolha homossexual. Ele lhe respondeu prontamente: “Gosto de ser assim”. Ao relatar esse episódio para a analista, acrescenta que já pressentia, desde a infância, a presença desses desejos em um menino “gordinho, fofinho e que cantava no coral da igreja”.

Aliás, isso deixava na mãe a forte expectativa de que, no futuro, ele seria um grande cantor. É nítido que ele próprio consente com a escolha homossexual, apesar do terapeuta comportamental-cognitivista supor que, nessa escolha, encontra-se a origem de todos os seus males. O consentimento quer dizer que a homossexualidade constitui, para esse sujeito, uma espécie de solução que apresentou os primeiros contornos, desde muito cedo, e que se afirmou ainda mais na saída do Édipo. Isto significa que aquilo que o culpabiliza e o angustia não reside na solução homossexual e, sim, no julgamento recriminatório que ele próprio se faz diante da resposta que, no plano do gozo, ecoa sobre a pessoa do seu pai.

Se o analista, ao contrário da perspectiva comportamental-cognitivista, não desculpabiliza o sujeito, não é apenas porque se mostra prudente com respeito à dissolução da função da lei e dos ideais, inerentes ao que pesa sobre ele, sob a forma dos ideais da religião. Trata-se, neste caso, de atingir e circunscrever a divisão do sujeito, por meio da culpabilidade, que, no contexto desse caso, assume uma importância capital. Quando o sujeito procura o tratamento, ele se vê impelido a se defrontar com o fato de que ele é culpável por gozar e, por existir, ou seja: abandonou a religião e continua triste e angustiado. É por isso mesmo que o analista recebe com o máximo de apreço aquilo que é a dignidade desse sujeito, a saber, a sua angústia. Se ela é um afeto que não engana é porque, por meio dela, ele mostra que está diante do desejo que lhe causa e, inicialmente, aquele que aparece na forma do que o Outro quer dele.

 

O pai e a suposta infâmia do filho

Em função dessa explicitação da divisão do sujeito por intermédio da culpabilidade, introduz-se uma conjectura da analista, a saber: abriram-se, no plano da palavra, as condições para elucidar aquilo que foi o encontro do sujeito com esse pai-pastor. É bem provável que, por essa via, ele pudesse obter algum saber sobre o seu gozo, sobre o qual ele diz que já possuía “esse gosto desde a infância”, ainda que, ao mesmo tempo, era como se não soubesse disto. A hipótese clínica era a de que, pela via do pai, iria surgir um consentimento do que se constitui como o particular de seu modo de gozo, capaz de produzir um efeito terapêutico rápido, pois criariam as chances de que, a partir daí, algo da responsabilização do seu desejo pudesse emergir. Porém, permanece ainda a questão: como conceber esse consentimento do particular do gozo? É a homossexualidade? Ou não?

Nesse ponto preciso, destaca-se a lembrança do sujeito de que nos momentos em que sua curiosidade pelo mesmo sexo vinha à tona e que o pai percebia, este não deixava de adverti-lo: “Olha! Tenha cuidado!”. Chama a atenção, ainda, o fato de que o sujeito, mesmo tendo deparado, desde cedo, com o desejo homossexual, permanece, no entanto, vacilante sobre o que acontecia com ele: “não sei se eu sabia ou se era assim”. O próprio analista indaga se a sentença do pai “Tenha cuidado!” assume um valor efetivo de interdição. O paciente tem dúvidas sobre a reação do pai no instante em que viesse a saber de sua homossexualidade. Afinal, cabe introduzir a questão: esse pai-pastor que interdita, com os preceitos e as normas punitivas de uma igreja fundamentalista, é um pai que favorece a equivalência entre o desejo e a lei? É um pai que desempenha a função da lei e, portanto, torna possível uma normalização mínima da relação do sujeito com o gozo?

De alguma maneira, já na terceira sessão, ele nos fornece uma pista sobre como conceber a sua relação com o pai e sobre o alcance dos efeitos terapêuticos obtidos nesse tratamento. Nesta sessão, ele comunica ao analista que vai visitar os pais. É como se essa visita estivesse incluída no interior de seu percurso de análise, é como se fosse uma sessão a mais, um elemento de ligação entre o que já foi dito e o que falta por dizer. Quando regressa, isto se confirma. O paciente relata que falou ao pai da sua “escolha sexual”, acrescentando que “já não freqüenta mais a religião”. Diz ter ficado espantado com a compreensão fácil e rápida do pai. Sua surpresa se justifica, pois o fundamentalismo adventista concebe a homossexualidade como um quisto que perturba a ordem natural que envolve a vida sexual dos humanos. Para o pastor adventista não há nenhuma razão para admitir a homossexualidade como um novo estilo de vida, que, ao fazer uma escolha de objeto, certamente, minoritária, opta por uma solução tão defensável quanto o são outras escolhas.

Diante da sua surpresa, o próprio sujeito constata que todos já sabiam, mesmo o principal dirigente da igreja adventista em sua cidade natal, que é o seu tio paterno. Creio que a possibilidade dos efeitos terapêuticos se descortina, nesse caso, no momento que o sujeito se dá conta de que “todos sabiam, mas ele ainda não havia falado”. Surge, então, a questão: que saber é esse que tanto o pai quanto a comunidade religiosa a que pertencia detinham? É preciso considerar que há uma sombra tênue do real que envolve esse passo que o sujeito deu em direção ao pai. Afinal, a compreensão fácil e rápida do pai não é um sinal de que essa aceitação apenas se deu porque ele se distanciou da cidade e deixou para trás a comunidade religiosa do pai? Parece-me acertada a hipótese de que o pai quer se ver livre da falta moral e da infâmia do filho, que o atingira como um homem fiel aos valores da igreja adventista. É esse “se ver livre do filho” que o sujeito capta quando encontra no pai um saber que certamente o divide.

 

Solução versus escolha de objeto

Por mais paradoxal que possa ser, essa reação do pai é compatível com todo o esforço do fundamentalismo religioso adventista de querer ir contra a tendência civilizatória de buscar dissolver qualquer sentido proveniente da relação sexual. Para esse pai, a homossexualidade do filho é um mero gozo, completamente destituído do sentido da vida. Na verdade, se a fórmula do não há relação sexual adquiriu todo o sucesso entre os analistas lacanianos, é porque é extremamente eficaz para captar o que se passa com os modos de gozo próprio da sociedade dos celibatários. Em outros termos, o fato de não haver entre os dois sexos relação fixa, estabelecida e programada não quer dizer que não haja, também, laço social. Observa-se, ao contrário, que, na civilização do objeto (a), esse real da não-relação se impõe, cada vez mais, sob a forma da ausência de sentido da relação sexual, inclusive, ausência de seu sentido moral. Em suma, a falta de sentido da relação sexual alimenta e propulsiona a existência da sociedade dos celibatários, bem como uma de suas expressões que se afirma no movimento contemporâneo dos gays. É diante desse real da não-relação que ressoa dos mais variadas formas no laço social que a homossexualidade, diz Miller, passa a ser concebida como uma invenção, uma construção, uma solução, inclusive, como uma festa (Miller, 2003).

Ao tratar a homossexualidade como solução, visa-se, antes de tudo, contrapor-se às insuficiências de uma concepção que se esgota na visão simétrica e dicotômica do que é a escolha de objeto homossexual. Ser homossexual não é simplesmente escolher o homo, o igual, o mesmo, pois o que é requerido é o falo. Isto se deduz da definição que Lacan fornece, em O aturdido, sobre o que é o heterossexual, a saber: “[...] chamemos heterossexual (...), aquele que ama as mulheres, qualquer que seja seu próprio sexo” (Lacan, 1972, p. 467). Amar o hetero é amar a alteridade que se encarna no Outro sexo que, em suma, equivale à feminilidade. Além do mais, a indiferença com relação ao sexo daquele que ama as mulheres introduz, de modo radical, a dissimetria entre a homossexualidade feminina e a masculina. No fundo, isto se justifica pelo desacordo e pela dissimetria de base entre o lado feminino e o masculino da sexuação.

Se sob a ótica da sexuação, há convergência entre a heterossexualidade e a feminilidade, de que modo se pode conceber o oposto desse par, ou seja, as relações entre a homossexualidade e a masculinidade. Não há como evitar admitir que essa primeira convergência acaba por determinar uma segunda convergência entre a masculinidade e a homossexualidade masculina. Isto se justifica pelo fato de que, nestas últimas, sobrepõe-se a componente do gozo autístico do Um, com a conseqüente supremacia, em ambas, da recusa da feminilidade. É o que confirma Lacan quando inventa o neologismo de homossexuado, por meio do qual “erige-se o homem em seu estatuto, que é o do homossexual” (Lacan, 1972, p. 467). Esse estatuto homossexuado é, nada mais nada menos, que a função fálica concebida como uma baliza universal ??que estrutura a distribuição das diferenças entre os dois lados da sexuação, porém constitutiva do que é o masculino. Essa disposição da diferença entre os sexos apresenta, de um lado, o amor da mulher que não tem nome e, de outro, a exigência da presença do que vem dar nome ao gozo, a saber: o falo. O falo aparece como um semblante fundamental, como um significante-mestre, capaz de fazer funcionar e nomear o próprio gozo. É notório que esse ciframento do gozo pelo falo pode se efetuar de muitas maneiras, isto é, há várias maneiras de gozar com o falo. Isto apenas complexifica o tratamento psicanalítico da homossexualidade, uma vez que, com seu quebra-cabeças cheio de chicanas, é impossível tomá-la como uma categoria clínica única.

Se esta última concepção da homossexualidade subverte profundamente a indicação freudiana da escolha de objeto, ela não poupa também a formulação da questão paterna sob o prisma da sua capacidade de proceder à articulação entre o desejo e a lei. A exemplo do ponto de vista do Livro V, do Seminário, a escolha heterossexual do objeto apresenta como condição um pai que favorece a junção entre o desejo e a lei. Ao contrário, quando o pai não se confunde com a função da lei, a escolha homossexual aparece como uma via de resolução do Édipo, que não culmina nas insígnias e nos ideais do Outro, mas, sim, no uso perverso da fantasia. Nesse momento do ensino de Lacan, a perversão é vista como o grande contra-exemplo do que é o papel normalizador do Édipo. Ser um contra-exemplo não implica, de forma alguma, em dissolvê-lo, como acontece no caso das psicoses. Em suma, ao mesmo tempo em que se conjugam, Édipo e a perversão se opõem de modo frontal.

A partir do momento em que o pai deixa de estar confinado à função estrita da lei, o Édipo torna-se apenas uma das maneiras, dentre outras, para o saber haver-se com o gozo. Sob o ponto de vista do mais-além do Édipo, a homossexualidade torna-se mais uma das soluções do problema do real do sexo. Se a homossexualidade ocupa o lugar que, em outros tempos, a histeria já ocupou é porque ela explicita que o Édipo, ele próprio, é uma perversão, pois não há norma que não seja a norma particular do sintoma. Quando Lacan designa a função paterna pela expressão père-version, ele busca mostrar que, ao contrário, há algo no pai e, mesmo, no Édipo que se aproxima da perversão. A père-version é o fim do privilégio do Nome-do-Pai concebido como encarnação da função da lei. Desde então, o Nome-do-Pai deixa de ser a lei; e passa a ser um instrumento, uma ferramenta útil. A homossexualidade assume toda a importância a que me referi antes, porque para o homossexual o pai já é a père-version. Em definitivo, há inúmeros elementos que apontam que a homossexualidade, no último ensino de Lacan, se constrói como um correlato clínico da père-version.

 

Uma solução que se tornou Witz

É diante dessa postulação da homossexualidade como um correlato da père-version que se interroga sobre o uso que a solução homossexual do paciente faz do pai-pastor. Não seria sua solução homossexual um Witz que deixa no ar a própria derrisão que o sujeito lança ao pai confundido com as normas religiosas? Trata-se de um Witz que se institui para mostrar que a tal norma paterna religiosa não é de uma outra consistência do que revelar a sua ineficácia enquanto lei reguladora do gozo. Aliás, é da estrutura do Witz isto que sucedeu com o paciente: conta-se uma história que, uma vez contada, alguém vai repetir ao outro. Ou seja, conta-se a história ao analista e, depois, ela mesma vai ser transmitida para um outro, nesse caso, o pai-pastor. Ademais, é próprio do Witz ser transgressor, provocar escândalo, na medida em que este se institui como uma lei particular do sujeito, que não obedece à lei que serve à justiça ou àquela que serve à Deus.

Portanto, o pai, para esse sujeito, apenas vale enquanto père-version, que, nesse caso, se exprime como alvo da derrisão que o sujeito edificou por meio da solução homossexual. Assinalo o fato de que o tratamento do sujeito o tenha encaminhado para o encontro com o pai, no sentido de revelar-lhe o seu modo de gozo. Diga-se de passagem que é nesse encontro com o pai e com a comunidade religiosa adventista que o Witz adquire uma consistência particular. Não há Witz sem que o escândalo que ele provoca seja, de uma forma ou de outra, acolhido e sancionado pelo Outro. É também característico dele a divisão que o sujeito experimenta no instante mesmo que o Witz se formula. Esse flash da divisão tem lugar no exato momento em que, ao confessar o seu modo de gozo, o sujeito se defronta com a resposta do pai. De um lado, o sujeito se surpreende, isto é, se divide, ao se deparar com a reação de indiferença do pai; de outro, com o Witz, é o próprio desejo do pai que se revela, nesta indiferença inusitada, frente à opção sexual do filho.

Se posso afirmar que um dos ciclos da experiência se completou, é porque, nesse percurso da análise, o sujeito criou as condições para que uma subjetivação sobre a sua resposta particular ao pai pudesse orientá-lo para um novo estilo de vida. É evidente, por outro lado, que o psicanalista sabe que, apesar do término de um ciclo, permanece o hiato entre criar as condições e, efetivamente, extrair conseqüências dessa subjetivação sobre a sua resposta derrisória dirigida ao pai.

Com efeito, quando ele muda para a capital, longe do ambiente da religião do pai, ele procura lidar, no terreno da demanda social, com aquilo que se constitui como censura e discriminação do seu modo particular de gozo. A adoção de um novo estilo de vida, como é o caso de um estilo de vida gay, poderia consistir na resposta dele ao desejo do Outro que tanto o angustia. Ainda assim, o sujeito permaneceria provocado pela sua questão: “não sei o que sou no desejo do Outro?” Ou ainda: “no desejo do Outro, sou apenas a infâmia!” Porém, o que a experiência da análise o faz ver é a presença, nele, de uma estranheza inquietante com relação a sua solução homossexual. Abraçar um novo estilo de vida apenas contribuiu para manter-se à distância da angústia do desejo do Outro, distância paga com o preço do sentimento de inautenticidade da sua solução.

Essa inautenticidade é, de alguma maneira, ceder sobre o seu desejo homo. Nesse caso, ele abre mão de seu desejo porque passa a modelá-lo sobre o que imagina ser, para o Outro paterno, o valor sublime do desejo heterossexual. A saída pela via de um novo estilo de vida – tornar-se gay, por exemplo – seria apenas conferir algum reconhecimento e legalidade ao desejo homossexual. No entanto, a experiência da análise lhe objeta, que, ao contrário dessa saída, a lição mais profunda desse caso é colocar em evidência que há, na sua solução, não tanto algo de ilegítimo, mas algo de ilegal.

 

Referências

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Texto recebido em agosto/2007.
Aprovado para publicação em setembro/2007.

 

*Professor na UFMG, membro da Escola Brasileira de psicanálise, Seção Minas Gerais (EBP-MG), e da Associação Mundial de psicanálise (AMP). E-mail: santiago.bhe@terra.com.br

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