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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.13 n.2 Belo Horizonte dez. 2007

 

ARTIGOS

 

A capacidade de estar só: um contraponto winnicottiano ao ideal contemporâneo de autonomia absoluta

 

The capacity to be alone: a winnicottian counterpoint to the contemporary ideal of absolute autonomy

 

 

Beatriz Gang Mizrahi* ; Claudia Amorim GarciaI,**

IPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Segundo Robert Castel, o projeto moderno de liberdade e autonomia exigiu a construção de suportes sociais que compensaram a vulnerabilidade do indivíduo, deixado inicialmente à mercê de si mesmo na aurora da modernidade. Esta análise sugere a tese paradoxal de que a liberdade individual não contradiz, pelo contrário, supõe a consistência dos laços sociais que permitam o livre exercício da autonomia. Winnicott, por sua vez, contribui para a compreensão desse paradoxo, do ponto de vista subjetivo, mostrando como, ao longo do processo maturacional, nas suas diferentes fases, a autonomia do indivíduo, representada pela capacidade de estar só, depende da presença de um ambiente suficientemente forte para suportar que ele se discrimine sem risco de ruptura e solidão. Este trabalho representa, portanto, uma tentativa de articulação das contribuições da sociologia e da psicanálise no entendimento da crise que atravessa a sociedade contemporânea, conseqüente da dissolução dos suportes sociais.

Palavras-chave: Autonomia, Modernidade, Desamparo, Capacidade de estar só, Ambiente suficientemente bom.


ABSTRACT

According to Robert Castel, the modern ideal of freedom and autonomy was made possible by the development of social institutions that compensated for the extreme vulnerability of the individual, who, at the onset of modernity, was left on his own. This analysis points out the paradoxical thesis that individual freedom does not contradict but, on the contrary, presupposes the existence of solid social bonds that allow the free exercise of individual autonomy. Winnicott, from a subjective point of view, contributes to the understanding of this paradox, arguing that, during the different phases of the maturation process, individual autonomy, represented by the capacity to be alone, depends on the presence of an environment strong enough to encompass differentiation with no risk of retaliation or loneliness. This paper, therefore, articulates sociological and psychoanalytic contributions with the aim of better understanding the present social crisis that results from the dissolution of social institutions.

Keywords: Autonomy, Modernity, Helplessness, Capacity to be alone, Good enough environment.


 

 

O processo que culmina na extrema vulnerabilidade do homem na atualidade remonta ao início da era moderna, quando surge o problema de como permitir ao indivíduo a prometida “liberdade pessoal” diante do desmonte dos antigos suportes tradicionais que caracterizaram a sociedade medieval. Acompanhando os desdobramentos desse individualismo até a atualidade, Castel (1998) oferece uma reconstituição original, apontando para a idéia de que o desprendimento do sujeito em relação à antiga sociedade hierárquica tornou necessária a construção de certos suportes sociais alternativos que hoje se desfazem, deixando-o à mercê de uma experiência subjetiva extremamente solitária. No desenvolvimento desse raciocínio, Castel (1998) constata que a liberdade foi tanto maior quanto mais se apoiou em amparos sociais, o que nos remete ao paradoxo winnicottiano segundo o qual a autonomia individual, isto é, a separação eu/mundo, depende do suporte ambiental. Ou seja, para que o indivíduo se constitua como entidade autônoma e separada dos outros e da sociedade, tal como pretendeu o projeto moderno, uma ligação transicional precisa ser mantida com os espaços públicos e coletivos.

A contribuição winnicottiana possibilita um olhar alternativo sobre o individualismo contemporâneo já que situa o homem criativo sempre num contexto de amparo ambiental. De fato, a postulação de uma nítida separação eu-outro está ausente do texto winnnicottiano, que, por outro lado, contém diversas afirmativas sobre a tarefa sempre inconclusa, própria do humano, de distinguir o interno do externo (Winnicott, 1975c). Assim, os diversos significados do estar só na presença de alguém (Winnicott, 1998a) bem como os três momentos que caracterizam a relação do indivíduo com a realidade ao longo do desenvolvimento – a relação com objeto subjetivo, o espaço transicional e o uso de um objeto – representam fenômenos psíquicos que não desaparecem ao longo da vida e apontam para a indispensabilidade do outro, ajudando a questionar a idéia hoje tão valorizada de uma independência absoluta. É nesse sentido que este trabalho pretende defender a idéia de que as formulações winnicottianas podem representar um contraponto crítico interessante à tese de uma autonomia absoluta presente na ideologia individualista dominante na atualidade

 

O desamparo atual como condição naturalizada.

Em Metamorfoses da questão social (1998), Castel constata que assistimos hoje, na sociedade ocidental, ao desmonte das estruturas criadas ao longo do século XX para combater o risco de vulnerabilidade que adveio da idéia de indivíduo, surgida na era moderna.

A sociedade medieval se constituiu como uma rede de fidelidade hierárquica onde cada um tinha o seu lugar, o que incluía as obrigações relativas à sua posição: o servo com seu senhor, os nobres com suas relações de vassalagem, os artesãos com seus mestres. A mesma autoridade a quem se devia obediência oferecia também certa proteção, sendo que o trabalho de cada um era dado pela posição social que se ocupava. Foi o crescimento do comércio na Europa e o enriquecimento dos mercadores que fez com que, a partir do século XIV, essas relações tradicionais perdessem parte de sua força. Os comerciantes começaram, então, a se utilizar do trabalho de certas famílias no campo e de certos artesãos na cidade, corroendo a constância dos laços de fidelidade e proteção, fazendo surgir uma massa de homens vulneráveis e desgarrados de sua comunidade, que circulavam em busca de trabalho e sustento. Os assim chamados vagabundos não eram reconhecidos pela legislação medieval e se tornaram um “problema” que desafiava aquela sociedade onde todos deviam ter um lugar.

O vagabundo é um ser absolutamente desengatado (desfiliado). Só pertence a si mesmo e não é um homem de ninguém, nem pode se inserir em nenhum coletivo. É um puro indivíduo e, por isso completamente despossuído. É individualizado a tal ponto que está superexposto: desprende-se do tecido encorpado de relações de dependência e de interdependência que estruturam a sociedade. (Castel, 1998, p. 598)

O individualismo dos vagabundos era ainda, segundo Castel, “individualismo negativo porque se declina em termos de falta - falta de consideração, falta de seguridade, falta de bens garantidos e vínculos estáveis” (Castel, 1998, p. 598).

A partir dos séculos XVIII e XIX, a condição de desproteção vivida por esses que se tornaram desgarrados dos laços coletivos passou a ser considerada, na lógica contratual do mercado, como capaz de contribuir para o desenvolvimento industrial que pressuporia o trabalho “livre”, desprendido dos antigos vínculos hierárquicos tradicionais. Segundo Castel (1998), o contrato é uma convenção pela qual pessoas supostamente livres se obrigam a dar, fazer ou não fazer algo; nele não há referência a proteções, mas apenas àqueles direitos jurídicos que asseguram a liberdade e a legalidade dos contratos. Essa lógica contratual foi, então, aplicada a indivíduos que da liberdade conheciam apenas a vulnerabilidade, não tendo outra opção senão vender sua força de trabalho em meio às condições precárias que caracterizaram as primeiras fábricas. A desproteção dos trabalhadores se transvestiu, portanto, de liberdade em relação às antigas obediências medievais, e o trabalho, deixando de se situar no interior das relações hierárquicas com suas obrigações e proteções, passou a ser um passaporte instável e duvidoso para uma inclusão social incerta.

As revoltas dos trabalhadores industriais miseráveis na Europa do final do século XIX, contudo, levaram ao surgimento de medidas compensatórias que, ao longo do século XX, foram capazes de inserir o indivíduo/trabalhador num esquema de proteções jurídicas de Estado, modelo que aos poucos foi difundido no mundo ocidental (Castel, 1998). Leis trabalhistas, serviços públicos, instituições de saúde e sindicatos, embora funcionassem com o intuito de gerenciar a vida dos indivíduos para garantir a sua produtividade, passaram a oferecer também certos suportes e garantias que compensavam alguns dos efeitos mais devastadores do funcionamento capitalista. Esses direitos fundados no status profissional do trabalhador chegaram a permitir ao indivíduo uma real mobilidade, ou seja, uma liberdade sustentada pelas regulações jurídicas (Castel, 1998, p. 601). Nessa perspectiva, portanto, a liberdade e os enquadramentos sociais não se contrapõem necessariamente como realidades opostas, mas podem se complementar, do mesmo modo que, na concepção winnicottiana, como veremos, a autonomia individual não é cerceada, mas facilitada pelas boas proteções ambientais.

Os novos sistemas de regulação jurídica passaram, assim, a sustentar as relações contratuais capitalistas, submetendo-as aos direitos sociais, e o Estado moderno passou a intermediar a relação entre capital e trabalho, compensando o monopólio do mercado para permitir o seu próprio funcionamento. Dessa forma, ficou claro que a exclusão social colocava em risco a própria dinâmica industrial, e que, portanto, o agenciamento das forças produtivas pressupunha paradoxalmente um atendimento, ainda que parcial, a certas reivindicações profissionais coletivas.

A destruição das funções reguladoras do Estado que presenciamos na atualidade implica, para Castel (1998), no retorno para muitos de um individualismo negativo. O desemprego em massa e o recuo das antigas estabilidades e garantias pedem hoje ao indivíduo que tome a iniciativa, submetendo-se às leis do mercado. A atual desvalorização das profissões, empurrada por uma produção mutante voltada para as demandas cambiantes do consumo, leva novamente ao nomadismo de um indivíduo/trabalhador agora exposto às freqüentes reestruturações empresariais, à instabilidade de seu status profissional, ao peso enfim de sua própria “liberdade” em relação aos antigos empregos.

Vê-se desenvolver hoje um outro individualismo, desta vez de massa, e que aparece como uma metamorfose do individualismo “negativo”, desenvolvido nos interstícios da sociedade industrial. Metamorfose e de modo algum reprodução, porque é o produto do enfraquecimento ou da perda das regulações coletivas, não de sua extrema rigidez (...) Não tem muito a ver com um movimento de afirmação de si - não é necessariamente o valor do indivíduo que é prioritariamente motor num processo de individuação, talvez seja, de fato, a desagregação do enquadramento coletivo. (Castel, 1998, p. 603)

Nesse contexto, o aparente culto narcísico de si assume uma forma defensiva. Já não se trata tanto de valorizar realmente a si mesmo, mas de satisfazer a exigência de iniciativa pessoal imposta pela destruição das proteções sociais:

Para muitos jovens, em especial é necessário tentar esconjurar a indeterminação de sua posição, isto é, escolher, decidir, encontrar um jeito e preservar uma preocupação consigo para não se afundar. Essas experiências parecem estar nas antípodas do culto do eu, desenvolvido pelos adeptos da performance ou pelos exploradores dos arcanos da subjetividade. Não deixam de ser aventuras de alto risco de indivíduos que se tornaram tais por subtração. (Castel, 1998, p. 603)

Ao mesmo tempo em que o apelo à iniciativa pessoal ajuda a promover a ruptura dos vínculos no trabalho e na própria família, uma vez que nenhum laço estável deve deter a fluidez do capital, a perda dos suportes coletivos resulta numa enorme insegurança que ameaça a garantia de um lugar próprio na sociedade. Esse processo traz para vários indivíduos o risco de se verem novamente presos às fidelidades locais, de modo semelhante ao que ocorria no período pré-moderno. É assim que muitos ficam atados a um certo local de trabalho, ou a certas relações pessoais, com receio de que, devido ao desemprego e à deterioração da sociabilidade, não tenham outras opções (Bauman, 2000; Sennett, 1999).

No entanto, a cultura atual já não vê a precariedade do indivíduo deixado à própria sorte como um problema a ser resolvido, pois vivemos de fato um período de pós-proteções (Castel, 1998, p. 593). O mecanismo de exclusão tornou-se um fato naturalizado: não há trabalho para todos nem nada que ocupe seu lugar e possa representar mecanismos de inclusão e reconhecimento social alternativos. Assim, o desamparo e a vulnerabilidade passam a ser vistos como parte irrevogável de nossa condição, realidade última até então escondida pelos mecanismos supostamente artificiais e arcaicos de regulação do Estado protetor, o que Castel questiona afirmando que “Vive-se mais à vontade a própria individualidade na medida em que esta se apóia em recursos objetivos e proteções coletivas” (Castel, 1998, p. 609).

Ou seja, se ao longo da História, em algum momento, o indivíduo usufruiu de alguma liberdade em relação aos enquadramentos sociais, isso aconteceu quando, paradoxalmente, esses mesmos enquadramentos foram eficazes na sustentação de tal liberdade. Apesar da crítica que se possa fazer ao Estado Moderno – com suas funções de regulação sobre a vida e de gerenciamento sobre as forças produtivas apontadas por Michel Foucault (1976) – foi, no entanto, essa mesma forma de organização que permitiu ao indivíduo ver-se só porque na presença consistente das instituições sociais. Dentre elas a inserção no mundo do trabalho ocupava um lugar central e representava um desses sustentáculos que garantiam uma certa estabilidade e possibilitavam uma certa previsibilidade, o que lhe conferia uma importância sui generis na trajetória de vida (Sennett, 1999) que parece se manter até hoje.

Se, por um lado, desde a Modernidade, o trabalho tem sido considerado como o veículo hegemônico de inclusão social e um meio de acesso a importantes direitos e garantias, por outro lado, esse mesmo trabalho, tido por tanto tempo como central na experiência subjetiva, torna-se atualmente escasso e precário, sem que tenha sido substituído efetivamente por outro meio de reconhecimento social. Assim, a grande valorização do trabalho que ainda encontramos na configuração de nossos ideais permanece, embora confrontada com sua efetiva precarização. Tal impasse pode estar, a meu ver, relacionado com a intensa experiência de desamparo que presenciamos na atualidade (Garcia & Coutinho, 2004).

Parece, no entanto, que nossa sociedade desistiu de resolver o problema que colocou para si no início da Modernidade, qual seja, o de permitir a liberdade do indivíduo sem deixá-lo exposto à própria sorte. Essa constatação coloca para nós uma questão central: como evitar a naturalização da vulnerabilidade, da desproteção e do desamparo como aspecto constitutivo do nosso viver? Se a psicanálise pretende oferecer uma compreensão mais aguçada dessa vivência contemporânea de vulnerabilidade, talvez precise lançar mão de teorias que relacionem mais de perto a liberdade pessoal e o suporte social; ou seja, é necessário buscar saídas para a dicotomia indivíduo/sociedade pensando talvez numa “liberdade individual” que não contradiz, mas que, ao contrário, depende da força dos vínculos coletivos.

 

O contraponto de Winnicott

A aderência e o engajamento de todos na tarefa infinda de garantir um lugar ao sol sempre precário, num contexto esvaziado de suportes sociais indispensáveis à trajetória individual, penaliza os indivíduos causando-lhes sofrimento e desesperança. Ehrenberg (2000) tem exaustivamente discutido os efeitos subjetivos da exigência de autonomia na ausência dos suportes necessários à sua concretização, tendo até cunhado a expressão “indivíduo insuficiente” (Ehrenberg, 2000) para designar as conseqüências desse estado de coisas. Na clínica psicanalítica atual, também testemunhamos os efeitos subjetivos nefastos dessa situação sobre aqueles que, instados a se discriminar autonomamente, falham e adoecem, sendo então culpabilizados por sua insuficiência e fracasso. É nesse sentido que o trabalho de Winnicott nos pareceparticularmente elucidativo ao apontar para a importância de um ambiente capaz de suportar que o indivíduo dele se discrimine – o que equivaleria talvez à aspiração moderna de tornar-se “livre” –, ressaltando, no entanto, que é a presença imprescindível de um cuidado consistente nos momentos de separação que garante a possibilidade de o sujeito realmente ficar só (Winnicott, 1998a) sem fracassar e se sentir abandonado.

De fato, estender a noção de mãe suficientemente boa à função ambiental permite apontar a importância de um suporte social capaz de autorizar a autonomia, tão essencial para a aspiração individualista e “libertária” nascida na Modernidade. Possivelmente Winnicott concordaria com Castel quanto à idéia de que um sujeito deixado à própria sorte não constitui um indivíduo a não ser no sentido negativo, uma vez que é sempre obrigado a submeter-se ao que lhe é imposto, perdendo, assim, a capacidade de se diferenciar autonomamente.

Em A capacidade de estar só (1998a), o psicanalista inglês descreve três diferentes experiências do estar só que correspondem a diversos graus de maturidade e autonomia.

Inicialmente o lactente está “só”, não como ser diferenciado, mas no sentido em que a mãe,1 formando com ele uma unidade, o protege de um contato precoce com objetos não-eu, permitindo-lhe um espaço onde exista “só ele”. Tendo adquirido um sentido básico de unidade pessoal, a partir dos primeiros cuidados, o bebê agora anseia por afastar a mãe de si. É essencial que a mãe possa, então, tolerar esses momentos sem invadir nem perder o contato com o bebê. Essa presença sutil permite o estar só na presença de alguém (Winnicott, 1998a). Por último, num terceiro momento de maior maturidade, o bebê, depois de internalizar o bom cuidado que lhe foi oferecido, pode apreciar momentos limitados de solidão, quando o objeto de fato não se faz presente, sem que venha a reagir perdendo a integração que foi alcançada. Essa última e mais sofisticada forma de estar só não se constitui, no entanto, numa capacidade autônoma e independente do contexto, mas pressupõe a introjeção do cuidado ambiental, cuja continuidade é fundamental. Assim, se a ausência do cuidador durar além de um certo limite (que varia ao longo do desenvolvimento) sem que ele reapareça para autorizar a experiência de estar só, o bebê reage para chamar de volta o objeto, perdendo a integração recém-alcançada. Então, se até mesmo a solidão mais sofisticada pressupõe um certo tipo de presença do ambiente, não teríamos aqui o cerne da crítica ao individualismo extremo, no qual um pretenso exercício da liberdade e exigência de autonomia se dão num contexto de escassez de cuidados sociais?

A aquisição da capacidade fundamental de estar só (Winnicott, 1998a) sem sentir-se desamparado pode ser mais bem compreendida quando acompanhamos as várias modalidades de relação objetal que Winnicott descreve, representadas por três momentos que marcam a posição do sujeito diante do mundo: o objeto subjetivo, a experiência transicional e o uso do objeto (Klautau, 2002). Se o primeiro momento nos fala de um envolvimento da mãe que permite ao bebê começar a existir em unidade com ela, o segundo e o terceiro momento já apontam para o processo de diferenciação, que, paradoxalmente, estabelece novas formas de ligação e continuidade, ou seja, um “estar só em presença”.

É interessante assinalar que, em todos esses momentos, o que está em questão é a necessidade do indivíduo de encontrar um ambiente capaz de acolher sua agressividade, como fonte potencial de criatividade e vitalidade. A agressividade (Winnicott, 1993b), ligada à motilidade e à força vital, leva o bebê a buscar, desde o início, um certo domínio sobre a realidade à sua volta. Contudo essa mesma força agressiva só virá a satisfazer-se quando encontrar no ambiente a presença de um outro que em parte ceda e em parte resista a seus efeitos oferecendo, assim, um suporte real externo. A realização do impulso individual criativo depende, portanto, da presença de alguém que tolere, com níveis de resistência que variam ao longo do desenvolvimento, o movimento criativo de apropriação do mundo. Essa noção de gesto criativo, que implica na necessidade de encontrar do lado de fora uma certa oposição para satisfazer-se, contribui, a nosso ver, para que o pensamento paradoxal de Winnicott possa romper com o antagonismo entre indivíduo e sociedade, satisfação individual e laços coletivos.

Mas se o ambiente relacional não contradiz as necessidades individuais, podendo participar tanto de sua construção quanto de sua satisfação, a qualidade desse apoio ambiental precisa ir mudando ao longo do desenvolvimento emocional. Num primeiro momento – o da relação com o objeto subjetivo – a mãe se oferece ao bebê com bem pouca resistência, ajustando-se aos seus gestos, espelhando e legitimando o seu modo de estar no mundo (Winnicott, 1993c). A integração e a sua contrapartida – o relaxamento e a não-integração – ocorrem, então, a partir do ajuste sensível entre mãe e filho, assim como a personalização enquanto experiência de habitar o próprio corpo. Portanto, sem a presença imprescindível, neste momento inicial, de um outro que espelhe inicialmente os seus estados e necessidades, o bebê reage (Winnicott, 1993a) ao ambiente invasivo que submete seus gestos e, dessa maneira, interrompe sua continuidade de existência no esforço de ajustar-se ao ambiente. Portanto, apenas se o bom cuidado permitir a internalização desse objeto inicial que se apresenta em unidade com ele, poderá o lactente constituir seu self pessoal e reconhecer as frustrações quando estas chegarem a se apresentar.

Se a integração inicial é bem estabelecida, o bebê passa a ansiar por encontrar na realidade objetos que resistam mais ao seu domínio, expressando, assim, a necessidade de exercer sua criatividade num mundo mais amplo. É nesse momento que a mãe, respondendo a esse anseio, torna-se, em geral, um pouco menos disponível e adaptada, passando então a ser vista pelo bebê a meio caminho entre ser parte dele e estar dele separada (Winnicott, 1975a). É em torno deste período que o bebê começa a encontrar satisfação com a proximidade de certos objetos que ocuparão a chamada área transicional: ao mesmo tempo em que os coloca entre si mesmo e a mãe, por outro lado nega, através desses mesmos objetos, a separação (Winnicott, 1975a). A ilusão de criar o que lhe é oferecido, na medida em que não é confrontado com a indagação sobre a origem dos objetos transicionais, é, então, possibilitada ao bebê, que pode assim expressar sua criatividade. A mãe, por sua vez, costuma atender a esse anseio criativo de seu filho alternando momentos de menor e maior proximidade e adaptação.

Essas experiências transicionais se espalham depois por toda a cultura (Winnicott, 1975b), naquelas áreas em que nos é permitida uma negação apenas parcial da objetividade das coisas, numa experiência em que nos sentimos ligados aos objetos, às pessoas e à tradição, e ao mesmo tempo, também distintos deles. Trata-se aqui daquele contato humano, proporcionado por um outro, capaz de nos oferecer uma base objetiva estável e, ao mesmo tempo, ceder parcialmente aos nossos anseios pessoais no jogo das interações coletivas. Temos assim que uma separação completa entre indivíduo e sociedade, criatividade e tradição pode ser refutada pela experiência transicional, fazendo cair por terra nosso ideal de autonomia absoluta:

(...) Detive-me o suficiente quanto ao significado da palavra cultura, deixando evidente o que sei e o que não sei a esse respeito. Interessa-me, contudo, como tema paralelo, o fato de que em nenhum campo cultural é possível ser original exceto numa base de tradição. Inversamente aqueles que nos oferecem uma contribuição cultural jamais se repetem, exceto como citação deliberada, sendo o plágio o pecado imperdoável do campo cultural. A integração entre originalidade e a aceitação da tradição como base da inventividade parece-me apenas mais um exemplo e um exemplo emocionante, da ação recíproca entre separação e união. (Winnicott, 1975b, p. 138)

O conceito de transicionalidade nos remete à tese paradoxal defendida por Castel (1998) segundo a qual a expressão plena da autonomia individual no mundo depende do suporte social. No entanto, a função do ambiente de permitir que o indivíduo dele se separe não se limita à esfera transicional mas implica também uma outra forma de reconhecimento da realidade que possibilita usar um objeto (Winnicott, 1975d).

Quando, através dos primeiros cuidados, o bebê foi capaz de construir um objeto subjetivo adaptado e sustentá-lo com a ajuda dos fenômenos transicionais, passa, então, a ansiar por encontrar objetos ainda mais resistentes, já que precisa estender a sua criatividade para uma área ainda mais ampla da realidade (Winnicott, 1975a). É então que a mãe se apresenta a ele consideravelmente menos adaptada, permitindo ao filho, que já traz consigo a experiência inicial de um manejo ajustado, reconhecer de fato as frustrações que gradualmente lhe são apresentadas. Com isso , o bebê passa a se opor à mãe, usando sua agressividade – agora experimentada como ódio – para repudiála, fazendo-a com isso emergir como objeto externo. Aqui é importante que a mãe possa sobreviver (Winnicott, 1975d), permitindo ser afetada pelo repúdio do seu bebê sem se deixar destruir como boa cuidadora nos aspectos essenciais. Só então o bebê poderá apreciá-la como pessoa distinta e amar aquela que aceitou o seu ódio como força criativa, desenvolvendo a capacidade de se preocupar com ela e de reparar construtivamente o que destruiu na fantasia. Se a mãe puder aceitar essa doação reparadora, permitirá a seu bebê utilizar sua criatividade em outras áreas da vida, de modo a expressá-la também na cultura. Assim, o ódio, segundo Winnicott (1975d), é usado no processo de diferenciação e faz parte do movimento de separação, que permite o reconhecimento da realidade compartilhada que se tornou mais objetiva.

 

Por um ambiente que suporte a autonomia individual

Embora o sujeito possa ter internalizado um bom cuidado ambiental a partir de suas primeiras relações, essa conquista precisa continuar sendo alimentada por objetos que, mesmo na maturidade, não o ameacem quando são repudiados. Podemos, então, pensar na necessidade de um suporte social consistente, que permita uma manifestação segura desse ódio potencialmente criativo na esfera coletiva e no trabalho, sem que isso implique uma ameaça permanente de abandono e ruptura nas relações.

Contudo se a lei econômica do mercado é, como sabemos, a mais impessoal de todas, pretensamente superior a qualquer organização social, ela é também a que menos tolera tanto os fenômenos transicionais quanto as manifestações do repúdio criativo na realidade compartilhada. O fim das antigas proteções deixa o sujeito temeroso toda vez que critica e discorda, obrigando-o a conter o seu ódio, ao invés de expressá-lo construtivamente. O mercado como realidade reificada não tolera ser repudiado e retalia com ameaça de exclusão caso as exigências de trabalho e consumo sejam questionadas (Bauman, 2000). O sujeito pouco pode expressar sua agressividade criativa uma vez que tais expressões arriscariam abalar o frágil suporte que ainda lhe resta. Na linguagem winnicottiana diríamos que a fragilidade dos vínculos sociais ameaça nos deixar absolutamente sozinhos, o que é radicalmente diferente da experiência de ficar só (Winnicott, 1998a) envolvida no exercício de liberdade e autonomia.

Atualmente vivemos, portanto, na ausência de um suporte ambiental social que cumpra sua função de cuidar permitindo o repúdio sem retaliação, única possibilidade verdadeira de expressão da liberdade e autonomia como ideais modernos a serem ainda alcançados. A tendência ao desinvestimento, de uma forma geral, e a dificuldade no estabelecimento de vínculos objetais significativos (Garcia, 2004) parecem ser indicativos da falência de um contexto que não cumpre sua função precípua de sustentação suficientemente boa (Winnicott, 1975a) necessária ao processo de subjetivação. Nesse sentido, podemos também pensar na violência que nos assola como uma forma última de reivindicar o direito de afastar-se do objeto, repudiando-o, reivindicação que só poderia transformar-se em capacidade de se preocupar caso venha encontrar um espaço seguro para se manifestar.

Além disso, notamos que a própria experiência transicional se encontra hoje bastante prejudicada. Podemos supor que, durante o período de vigência da função protetora do Estado, o atendimento parcial a certas reivindicações políticas tenha possibilitado a construção de uma realidade social mais sensível às necessidades subjetivas, tornando-a mais passível de transformação e menos imposta como objetividade dura. Ao contrário disso, a lógica hegemônica de mercado produz hoje um profundo desencantamento devido à sua apresentação como realidade última, supostamente independente das decisões humanas, acarretando a imposição de uma objetividade radicalmente afastada da vida subjetiva. Dessa forma, na ausência de resposta às suas necessidades, o sujeito tenta em vão produzir uma realidade mais suportável através do uso da droga, da obsessão com o ideal romântico, do consumo e do culto às sensações (Costa, 2004; Carreteiro, 2002; Plastino, 2002). Temos, então, um sujeito submetido a uma realidade invasiva que, defensivamente, desenvolve vínculos adesivos a objetos que se fazem permanentemente presentes em sua vida, já que se vê impossibilitado de usufruir de um espaço transicional criativo e prazeroso. Essas manifestações podem nos dar a impressão de um voltar-se para si, de um retraimento narcísico em relação à objetividade do mundo. No entanto, antes de mais nada, é através delas que o sujeito desiste de considerar seus anseios singulares, e evita reivindicá-los no mundo. Temos, então, como nos apontou Castel (1998), a prevalência de um movimento que é muito mais de adaptação à ordem social, redundando em sentimentos de desamparo e insuficiência, do que propriamente uma afirmação verdadeira do indivíduo livre.

 

Referências

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Texto recebido em setembro/2007.
Aprovado para publicação em outubro/2007.

 

 

*Psicóloga e psicanalista, doutoranda em Psicologia Clínica pela PUC Rio. E-mail: biagang@infolink.com.br
**Professora associada do Departamento de Psicologia da PUC Rio, psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. E-mail: clauag@uol.com.br
1Winnicott faz várias vezes a ressalva de que não necessariamente é a mãe biológica aquela que acolhe satisfatoriamente o lactente no início da vida. Portanto o uso da palavra mãe, neste trabalho, designa qualquer pessoa cuja proximidade com o bebê torna as suas atitudes e gestos especialmente importantes para o desenvolvimento emocional infantil.

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