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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.13 n.2 Belo Horizonte dez. 2007

 

ARTIGOS

 

A impossível “perda” do outro nos estados limites: explorando as noções de limite e alteridade

 

The impossible “loss” of the other in borderline states: exploring the notions of boundary and otherness

 

 

Marta Rezende Cardoso*

Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Nosso objetivo é examinar o modo de funcionamento psíquico próprio dos estados limites, tendo em vista o papel singular da dimensão de alteridade nesses quadros. Essa perspectiva de análise vem nos remeter à idéia de uma complexa relação entre interioridade e exterioridade que caracterizaria essas patologias, marcadas por uma problemática identitário-narcísica. São esses os aspectos que pensamos estarem na base desses quadros clínicos, visão distinta daquela que, utilizando o termo borderline, tende a defini-los a partir da fronteira entre a neurose e a psicose.
A questão da alteridade pode ser um operador dos mais relevantes nessa investigação, propiciando elementos de análise bastante frutíferos, não somente dos fundamentos dos “funcionamentos limites” como também de outros quadros psicopatológicos, permitindo, até mesmo, o estabelecimento de uma interessante base de comparação entre eles. Dessa forma, buscaremos estabelecer um contraponto dos estados limites com outros quadros clínicos, com a finalidade de melhor apreender a sua singularidade.

Palavras-chave: Estados limites, Alteridade, Interioridade, Exterioridade, Perda.


ABSTRACT

This is a study of the psychic functioning in cases of borderline states pathology, in view of the unique role the dimension of otherness plays in such cases. This analytical perspective evokes the idea of a complex relationship between interiority and exteriority, peculiar to those pathologies, marked by an identitynarcissistic problem. These features can be found at the core of those clinical cases, a view that differs from the one using the term ‘borderline’ to define such cases in a perspective of the border between neurosis and psychosis. The issue of otherness can be quite a relevant operator in such investigation, providing useful elements for an analysis not only of the fundamentals of the functioning of boundaries pathology, but of other psychopathological cases too, allowing the establishment of grounds for comparison between them. So, a counterpoint to those cases is established with other clinical frameworks, aiming at a better grasp of their uniqueness.

Keywords: Borderline states, Otherness, Interiority, Exteriority, Loss.


 

 

Ante a presença cada vez mais aguda de um sentimento de desamparo e desespero na subjetividade contemporânea, temos assistido a uma significativa incidência, na clínica psicanalítica, de casos de adicção, patologias alimentares e doenças psíquicas que envolvem passagens ao ato e uma convocação do corpo, inclusive do corpo orgânico, dentre outros estados limites. A proposta mais ampla deste artigo é continuar a examinar o estatuto e modo de funcionamento psíquico próprio desses estados clínicos.

Os ângulos de análise que temos contemplado ao longo de nosso percurso de pesquisa vêm conduzir-nos agora a uma exploração mais rigorosa e atenta do papel singular da dimensão de alteridade nos estados limites. Interessa-nos principalmente melhor explorar determinados aspectos envolvidos nesse tipo de adoecimento psíquico, tendo em vista a prevalência do apelo ao ato e ao corpo que nele tem lugar. Estes são mecanismos defensivos que pressupõem, de uma só vez, a presença de elementos traumáticos e de falhas importantes no âmbito da capacidade representacional.

Porém, a nossa abordagem, dirigida à dinâmica e economia pulsional, não pode ser dissociada de um olhar voltado para o plano das relações objetais, da relação com o outro. Tendo em conta essa dupla vertente do problema (aspectos pulsionais e objetais), pretendemos mostrar como a dimensão de alteridade pode ser um operador dos mais relevantes nessa investigação. Mais do que isto, a tomada em consideração desse aspecto pode oferecer elementos de análise bastante frutíferos, não somente dos fundamentos dos estados limites como também dos outros quadros psicopatológicos, permitindo, até mesmo, o estabelecimento de uma interessante base de comparação entre eles. A título de exemplo, proporemos, na parte final deste artigo, o estabelecimento de um contraponto dos estados limites com os seguintes quadros: neurose, paranóia e melancolia.

O desenvolvimento desses pontos, em cuja confluência se situa a dimensão de alteridade, nos remeterá ao exame da complexa relação entre interioridade e exterioridade. De que forma se processaria, qual seria o modo de tratamento e quais seriam os limites do trabalho do ego quando confrontado com a presença de uma alteridade interna de caráter mais radical, verdadeiro “corpo estranho”, no espaço psíquico?

Para proceder a esta análise, faremos inicialmente um levantamento de alguns tópicos da obra freudiana. Estamos certos de poder encontrar um solo consistente para esta reflexão, centrada na noção de limite, tendo em vista, em primeiro lugar, o papel e estatuto do outro na vida psíquica assim como no campo das relações intersubjetivas.

 

A questão da exterioridade/interioridade em Freud

A tematização da questão de limite, de fronteira, faz-se presente desde os primórdios da teoria freudiana. Muitas das idéias desenvolvidas no Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1895) já apontavam para essa direção. O modelo de aparelho psíquico que começa a ser elaborado nesse texto leva-nos a pensálo, desde então, como constituído por distintas regiões, delimitadas por fronteiras. Esboçam-se nesse texto algumas importantes idéias sobre a questão do limite no âmbito da constituição subjetiva, limite entre mundo externo e mundo interno, entre exterioridade e interioridade.

Esses aportes serão aprofundados na famosa Carta 52, de 6 de dezembro de 1896, mediante a apresentação de um interessantíssimo modelo, baseado na concepção de uma transcrição de registros, a qual, de acordo com Jean Laplanche (1990), comportaria um caráter eminentemente “tradutivo”. A partir desse aporte de Freud, vemo-nos novamente instigados pela idéia de limite, de vias de passagem entre os diferentes espaços implicados na vida psíquica e, ao mesmo tempo, pela relação que esses espaços mantêm com o mundo externo.

Esta via de análise será retomada por Freud em 1900 com a sistematização da Primeira Tópica, na qual se insere, entre outros espaços, o de uma exterioridade que habitaria o mundo interno. Lembremos que a idéia de “corpo estranho” proposta por esse autor anteriormente, já nos estudos sobre a histeria, indicava justamente o lugar de uma alteridade situada nos confins da interioridade. Esse magistral estudo dedicado aos sonhos traz igualmente uma apreciação das fronteiras situadas entre a realidade e a fantasia.

Com a reviravolta teórica dos anos 1920, Freud realizará um grande salto nesse campo de problemas: o da interiorização, tornado muito mais complexo a partir de então. São múltiplos os elementos que, pouco a pouco, vieram problematizar as hipóteses sustentadas na teoria freudiana até esse momento. No contexto desse profundo remanejamento teórico, queremos destacar, em primeiro lugar, um texto cujo valor nos parece paradigmático. Trata-se de “O estranho” (Freud, 1919), em que vemos surgir a idéia de uma interioridade que não seria habitada apenas por um “corpo estranho” recalcado, mas que comportaria diferentes níveis de estraneidade. Segundo as bases desse novo modelo, a constituição do psiquismo, assim como o seu funcionamento, passam a ser considerados como movimento do fora e do dentro.

No entanto, toda a transformação que se opera nesse período na obra de Freud e que resultará, como é sabido, na construção do segundo dualismo pulsional e, posteriormente, na da Segunda Tópica, tem início muito antes. São vários os fatores que vêm determinar essa fascinante reviravolta, fatores de natureza tanto teórica quanto clínica.

Mencionemos, em primeiro lugar, as novas interrogações que vêm se colocar para Freud e seus principais interlocutores acerca da singularidade das patologias de caráter mais grave, marcadas pela ação de uma violência psíquica. Embora com inegável destaque nesse cenário, a psicose não constitui o único quadro de relevância nesse contexto, ainda que, caberia ressaltar, a análise desta patologia tenha recolocado em questão algumas das facetas mais sugestivas da noção de limite em Psicanálise: a articulação entre realidade e fantasia, entre interioridade e exterioridade, entre corpo e psiquismo, assim como a complexa fronteira entre o eu e o outro. Esses são os pontos que desejamos destacar na genealogia da nova visão teórica apresentada por Freud, visão que emergirá a partir de um movimento bem anterior e que gira em torno da problemática do narcisismo. Nesta, o papel da alteridade já se mostrara absolutamente primordial no processo de constituição e desenvolvimento psíquicos.

É verdade que Freud não chegou a fazer menção à categoria de estados limites, assim como não veio a conceder um estatuto conceitual ao termo limite em sua teoria. Porém, sustentamos que no decorrer de todo esse período, assim como a partir de então, ele esteve efetivamente atento a essa dimensão. Em última análise, desde os anos 1910, o olhar de Freud vai se deslocar da neurose para a compreensão das situações clínicas marcadas pelo excesso pulsional, isto é, pelo traumático.

Vale lembrar que, a partir desse momento, opera-se um retorno da questão do trauma na teoria freudiana. Nesse retorno, essa questão se reapresenta profundamente transformada. Não se trata da retomada da dimensão de um traumático desencadeado por um acontecimento (conforme a primeira teoria do trauma, apoiada na idéia de uma sedução factual, marca dos primórdios da obra de Freud), mas de um resgate do conceito de trauma, que passa a ser compreendido como excesso pulsional, excesso de energia livre, sem que o ego tenha os meios de ligá-la, de elaborar psiquicamente essas excitações.

Descortina-se, a partir daí, um novo horizonte também no que concerne à concepção do aparelho psíquico, que passa a englobar – como aponta Knobloch (1998) a partir das ricas contribuições de Ferenczi (1988), particularmente os seus escritos do período 1909-1933 –, além das representações e dos elementos recalcados, marcas traumáticas que, não podendo ser inscritas, interiorizadas como representações psíquicas, tendem a ser exteriorizadas pela via do ato e do corpo, ou seja, tendem a ser apresentadas através de fenômenos veiculados pela compulsão de repetição.

Somos conduzidos à questão da passividade pulsional, isto é, a da situação de um ego passivo ante a irrupção de um excesso pulsional – a qual vem novamente convocar a noção de limite em Psicanálise: trata-se, neste caso, do limite entre o eu e o outro (alteridade interna e externa). Aliado a essa vertente do problema, há o aspecto de impulsão, visto o caráter repentino e disruptivo das compulsões, apontando para a singularidade da temporalidade dos processos psíquicos que envolvem. Esse imediatismo resulta da precariedade dos mecanismos de elaboração psíquica aí implicados: limite, agora, da representação, condição necessária dessa modalidade de resposta (Cardoso, 2006).

De fato, o traumático é indissociável dessa questão relativa aos limites da representação, aos limites entre o eu e o outro, entre corpo e psiquismo, para mencionarmos apenas alguns dos eixos teóricos que se desdobrarão dessa nova rede de interrogações a ser situada, ela mesma, nos limites entre a teoria e a clínica psicanalíticas. A ampliação desses temas promoverá, até mesmo, o rompimento de certas fronteiras próprias ao campo da psicopatologia, considerando-se que a pulsão de morte, conceito que representa o ápice de todo esse processo de transformação teórica, será tratada por Freud como pulsão por excelência. Portanto, essa rede de questões está situada nas fronteiras entre o normal e o patológico, assim como entre neurose e psicose, trazendo também à tona a discussão sobre os limites do trabalho analítico.

Como mostra Reis (2004, p. 47), a partir daí, a teoria freudiana passa a conceder uma maior atenção ao corpo, “à medida que a teoria baseada no registro das representações não se mostra capaz de explicar as manifestações resultantes das experiências traumáticas que não se inscrevem na ordem simbólica, nem são recalcadas”. Acrescenta a autora que no lugar do corpo histérico – entendido como palco de representações cujo retorno se dá pela atualização em sintomas – passa-se à investigação de uma impossibilidade de significar, expressa pelo corpo. Este passa a ser veículo, não de um processo de representação, mas de uma apresentação, pela via sensória, motora e visceral, de elementos que, por terem permanecido retidos como impressão, ficaram fixados numa temporalidade externa à memória representacional.

Como conseqüência de todas as inovações metapsicológicas advindas desse “retorno” e dessa insistência do traumático na clínica, a teoria freudiana passará a atentar para o registro das modalidades de resposta do ego quando assolado, de dentro, por um pulsional mortífero, não suscetível de efetiva interiorização ou recalcamento. A análise das defesas extremas às quais o ego pode apelar diante da ameaça provocada pela irrupção de um excesso pulsional na tópica psíquica fará com que Freud se volte, de maneira especial, para o mecanismo da compulsão à repetição. No nosso entender, essa noção constitui um verdadeiro fio condutor, uma espécie de via de “ligação” dos múltiplos elementos explorados em Além do princípio do prazer (1920), texto crucial nesse movimento de virada teórica que culminará na conceituação da pulsão de morte.

Juntamente com a sistematização da Segunda Teoria das Pulsões, esse texto nos oferece um belo aprofundamento da noção de limite e da dimensão de alteridade em Psicanálise, sem que estas sejam, entretanto, diretamente nomeadas. Isto se expressa, nesse contexto, numa notória complexificação da relação entre espaço externo e interno – um dos eixos centrais das reflexões de Freud acerca da psicose e das patologias traumáticas. Esse movimento se fará acompanhar, de maneira complementar e articulada, também da complexificação da relação entre o eu e o outro. A figura da “vesícula”, tão marcante em Além do princípio do prazer, é, ao lado de algumas outras enunciadas ao longo desse período – por exemplo, a do estranho –, uma imagem bem nítida dessa abertura que a teoria freudiana veio promovendo em direção à questão do limite, da fronteira.

Vemo-nos, portanto, lançados, a partir de Freud, numa reflexão sobre a temática dos limites, sobre a questão do papel do outro na constituição e no funcionamento da vida psíquica, ou seja, vemo-nos lançados ao campo da alteridade. Esse movimento, como procuramos mostrar, faz-se a partir da ênfase dada por Freud ao eixo exterioridade/interioridade, tanto por uma via metapsicológica quanto psicopatológica e clínica. São justamente estas as vias que nos permitem embasar, com a devida consistência, a temática principal deste artigo, dedicado, essencialmente, a um maior entendimento dos estados limites.

 

A questão da interioridade/exterioridade nos estados limites

A designação estados limites da qual temos feito uso ao longo de nosso percurso de pesquisa não está referida, em nossa leitura, à idéia de uma patologia singular situada entre neurose e psicose (como é o caso, por exemplo, do termo borderline). Consideramos que se trata de afecções psíquicas nas quais se faz presente de maneira significativa e particular uma dimensão traumática, de violência psíquica. Em concordância com Chabert (1999), em sua crítica a uma formulação sobre esses quadros, baseada na idéia de eles não serem neuróticos, nem psicóticos, consideramos que se faz necessário delimitarmos o seu modo singular de funcionamento psíquico. Aliás, por essa razão, aquela autora chega a sugerir a designação de “funcionamentos limites”, no lugar de “estados limites”. Ao assim designá-los, a autora deseja dirigir-nos à análise de uma organização determinada que comportaria, segundo ela, maior complexidade, tanto no plano clínico quanto metapsicológico.

Como procuramos mostrar em outros trabalhos (Cardoso, 2006; 2006a) em acordo com vários autores tais como André Green (1999; 2003), René Roussillon (1999; 2001), Didier Anzieu (1985), dentre outros, essas situações clínicas devem ser consideradas como limites pelo fato de a própria questão de limite, de fronteira psíquica, nelas se colocar de maneira especialmente problemática, aspecto que configura, aliás, o seu núcleo central.

Como pontua Figueiredo ao comentar certas contribuições de André Green sobre o tema:

(...) Green assinala a importância na constituição subjetiva e na montagem do aparelho psíquico dos limites externos ao eu. Nesse contexto, ele aponta as duas angústias características dos fronteiriços: a angústia de abandono, separação e perda do objeto e a angústia de invasão ou engolfamento pelo objeto. Ambas, abandono e perda ou engolfamento, seriam doenças das fronteiras do ser e implicariam possibilidades aterrorizadoras de morte e dissolução. (Figueiredo, 2003, p. 82)

Consideramos que nos estados limites, nos “funcionamentos limites”, a interioridade vê-se suplantada por uma tendência à exteriorização, justamente em função dos limites da capacidade de representação e de recalque. Isto se expressa através das angústias típicas vivenciadas por esses sujeitos, conforme apontado na citação acima, angústias de caráter paradoxal por envolverem, simultaneamente, ameaça de invasão e de perda do objeto. No plano interno, pressupõe a ausência da formação de uma efetiva zona fronteiriça entre o eu e o outro interno. Isto vem impossibilitar, ou ao menos dificultar muito, o estabelecimento de efetiva negociação, ou seja, a formação de compromisso entre as marcas traumáticas e o ego.

Aquilo que não se faz representar tende a se apresentar como ato, resposta limite à ameaça de um possível transbordamento interno provocado pela presença de um excesso pulsional. Essa força não-ligada tenderá a invadir o espaço egóico, configuração própria de uma situação traumática. À luz do segundo dualismo pulsional, concebemos o traumático como arrombamento do sistema de pára-excitações cuja resultante é a irrupção de quantidades inassimiláveis de excitação no ego.

Tocamos assim numa outra vertente da questão principal que aqui nos ocupa – a questão da alteridade – se considerarmos que a força pulsional excessiva constitui, ela mesma, uma exterioridade, uma “diferença” em relação ao espaço egóico. “Quando o excesso pulsional rompe as barreiras protetoras, o sujeito vêse lançado em um estado de terror no qual não reconhece mais seus limites tanto psíquicos quanto corporais” (Reis, 2004, p. 49). Diante do traumático, uma das tentativas possíveis, como recurso limite, é justamente colocar fora de si os elementos intraduzíveis. Dessa maneira, a realidade é utilizada para suprir o vazio/ excesso do espaço interior. A prevalência, nos estados limites, da corporeidade em detrimento da interioridade torna-se assim bem mais compreensível. No entanto, esse aspecto não deixa de nos interrogar sobre a relação entre os estados limites e os quadros de psicose. Voltaremos mais adiante a essa questão.

Quanto ao apelo ao ato, próprio dos casos fronteiriços, o que poderia estar aí em jogo é, de acordo com Roussillon (1995), a criação de uma “tela” de excitação corporal que funcionaria como anti-estímulo psíquico. O ato conduz a uma descarga direta através da motricidade: grandes quantidades de excitação são radicalmente subtraídas do processo de pensamento, subtraídas do trajeto de mentalização. Não haveria, porém, nesse processo uma efetiva “contenção”, pois esse movimento de ato-descarga não pressupõe um sistema de ligação ou de laço. Nos termos de Roussillon, tratar-se-ia de um movimento de “excorporação”.

Essa idéia vem ratificar e dar consistência ao que estamos buscando indicar como sendo um dos aspectos mais fundamentais do modo de funcionamento psíquico nos estados limites: a tendência a um movimento de exteriorização, em detrimento de uma interiorização, a qual suporia a efetiva assimilação, em última instância, de uma alteridade interna – alteridade, neste caso, de caráter radical.

Após termos esboçado uma apreciação de caráter mais geral do problema do limite e da alteridade nos estados limites, queremos introduzir novos elementos de análise nesta reflexão. Buscaremos agora traçar uma possível comparação, ou melhor, estabelecer uma espécie de contraponto desses estados com outros quadros clínicos, utilizando, como operador central, a dimensão de alteridade.

 

Estados limites: em contraponto com a neurose

A questão da angústia de perda do objeto, presente igualmente nos casos de neurose, parece-nos um ponto de partida frutífero para realizarmos essa proposta. Nos estados limites aos quais René Roussillon (1995) se refere muito justamente como sendo patologias identitário-narcísicas, o sujeito, muito mais do que se ver ameaçado de perder o objeto, parece estar diante da impossibilidade de perdê-lo (“esquecê-lo”, “negativá-lo” internamente). Esse aspecto tem sido, aliás, muito bem explorado na obra de André Green através, especialmente, da noção de “trabalho do negativo”. Não pretendemos, entretanto, deter-nos aqui no estudo dessa noção específica, o que ultrapassaria os objetivos do presente texto.

Nos estados limites, o risco da perda de si, experimentada internamente como uma espécie de ausência de si (conforme têm sustentado vários autores, dentre eles Pontalis [ 1977]), é constantemente recolocado em cena. Isso acaba por promover, nesses sujeitos, uma convocação permanente do objeto. Segundo Pontalis, a imagem de um espaço psíquico vazio seria uma metáfora particularmente expressiva da complexidade desse quadro clínico. Assim, de um ponto de vista teórico, vemo-nos diante de uma incessante e dificultosa tentativa de delimitá-lo, tendendo muitas vezes a privilegiar em nossa análise aquilo que nele se apresenta “em vazio” (en creux).

É como se, no vivido desses sujeitos, o objeto é que viesse atestar a sua existência, emprestando-lhes, se podemos assim dizer, a sua consistência. Sublinhemos como esse fenômeno em muito difere de uma configuração dominantemente neurótica na qual a ameaça que parece assombrar o sujeito – e, vale lembrar, como fantasia – é a da perda do amor do objeto. Se na neurose a angústia, ligada ao problema da falta, parece sinalizar uma vivência de “falta no ser”, nas problemáticas identitário-narcísicas, o vivido mais marcante é o de uma “falta de ser”.

O modo de relação que esses sujeitos tendem a estabelecer com o objeto permite-nos supor, inclusive, que nesses casos a relação entre o ego e o objeto tende a cristalizar este último em sua face absoluta, “necessária”, o que caracterizaria, como foi proposto por Cardoso (2006a), uma situação de “servidão”. Na cena externa, essa relação tende a se apresentar como uma relação de domínio, cujo modo de funcionamento psíquico parece se organizar, prioritariamente, em torno do eixo passividade/atividade. Esse aspecto pode ser constatado, por exemplo, no constante apelo feito ao ato, como recurso defensivo extremo, tão recorrente nos estados limites. Paradoxalmente, esses sujeitos parecem buscar a cena psíquica no mundo exterior. Nas brilhantes palavras de Pontalis (1977): é como se necessitassem de um metteur em scène para existir.

Na neurose, o conflito se dá, basicamente, entre instâncias, confronto entre desejos contraditórios que envolve, dentre outros aspectos, a ameaça de perda do objeto. Portanto trata-se de um conflito próprio à cena interna. Mesmo quando transposta à exterioridade, como ocorre nos casos de histeria, é uma cena fantasística, interna, que vem a ser encenada na realidade externa.

A labilidade e a fragilidade das identificações (que levam a falar de “pseudo-identificações”), a tendência a agir, a sugestionabilidade evocam a histérica, embora no caso desta a encenação [mise em scène] remeta ao “teatro privado” e a dramatização a um conflito infantil carregado de angústia que o agir repetido visa a abreagir, enquanto no caso do as if o mundo exterior, longe de ser “teatralizado”, de ser puro pretexto para o desdobramento da fantasia agenciada, é colocado como tal: (...) o conflito sobrevém sempre entre o indivíduo e o exterior. (Pontalis, 1977, p. 164. A tradução é nossa)

Diferentemente do que ocorre nas neuroses, nos estados limites, a problemática central é, portanto, do dentro e do fora, pela presença significativa de elementos traumáticos e, ao mesmo tempo, em razão de as fronteiras egóicas serem mal definidas.

 

Estados limites: em contraponto com a paranóia

Dando seguimento a esta perspectiva comparativa, delimitadora, cujo parâmetro central de que fazemos uso aqui é a dimensão de alteridade – tomada como possível operador na análise de diferentes quadros clínicos – avancemos um pouco mais, através agora da tentativa de esboçarmos um paralelo entre os estados limites e a paranóia.

Em linhas muito gerais, nos quadros psicóticos, particularmente na paranóia, assistimos a um processo de expulsão do “dentro” no “fora”. Trata-se, neste caso, de um outro “tratamento”, ou seja, da utilização de outro recurso defensivo diante da ameaça de irrupção, no interior, de uma alteridade radical interna. A projeção, a denegação, mecanismos que pressupõem, como Freud já mostrara, a experiência de uma perda de realidade, parecem-nos também bastante diversos daqueles utilizados nas patologias fronteiriças, identitário-narcísicas.

Sobre esse ponto, precisa Pontalis que a maneira de lidar com a realidade é bem diferente nesses casos: “eles a utilizam também, como qualquer um, mas para suplantar o vazio de seu espaço interior; eles não expulsam o dentro no fora, como o psicótico, num processo eminentemente defensivo de projeção, de denegação e de onipotência (...)” (Pontalis, 1997, p. 166).

Se podemos nos permitir uma apreciação sintética e esquemática do problema, na psicose, em especial na paranóia, haveria inicialmente uma ruptura entre o eu e a realidade, seguida de uma tentativa de superação desse corte através de uma luta ferrenha travada pelo ego, visando resgatar, refazer esse elo. Por meio da construção do delírio, o mundo interno vem a ser colocado no lugar da realidade. Já nos estados limites, o estado de vulnerabilidade narcísica subjacente a essas patologias resultaria na necessidade do sujeito de sustentar um permanente interesse do outro, processo que pensamos distinguir-se consideravelmente de uma indiferenciação para com o outro. Nos estados limites, tratar-se-ia de uma espécie de abertura desesperada ao outro, para o outro, processo cuja expressão seria essa tendência incessante que podemos observar na clínica, a repetir um movimento de exteriorização em detrimento da capacidade de interiorização.

“A figura da alienação psíquica nasce da circunstância onde o outro é um eu” (André, 2001, p.106). Porém, diferentemente desse processo, na configuração limite, acrescenta o autor, o único eu é um outro, outro fora de si, no exterior.

Na configuração limite, os objetos são instáveis, incertos, como pontua acertadamente Chabert (1999). Segundo essa autora, o objeto não chega a se estabelecer como tal, uma vez que o acesso à transicionalidade é precário, transitório e efêmero, não havendo segurança da possibilidade de o objeto sobreviver aos ataques do sujeito. A possibilidade de uma dialetização do espaço do dentro e do fora assim como do real e da fantasia é precária. A problemática central nos funcionamentos limites estaria centrada no seguinte experiência interna: a perda do outro, o seu desaparecimento, corresponderia à perda de si. Na base dessa vivência estaria a impossibilidade de manter o outro como objeto interno.

 

Estados limites: em contraponto com a melancolia

Em função da intricada problemática do limite entre o eu e o outro nos estados limites e em função de certos mecanismos próprios ao funcionamento psíquico básico desses estados, tais como a incorporação e a não-interiorização do objeto, poderíamos nos ver tentados a aproximá-los do modelo da melancolia. Vejamos algumas das razões que poderiam levar a essa posição.

De acordo com Freud, na melancolia, a questão da “sombra do objeto” revelaria uma suposta identificação com o objeto perdido. Assim como nos estados limites, este não chegaria a ser interiorizado, “negativado”, em função da impossibilidade de um trabalho de luto, “trabalho do negativo”. Na melancolia, a ferida narcísica, vinda do objeto, parece também colocar o sujeito numa situação de passividade intolerável. Porém – e este aspecto nos parece da maior importância – as auto-acusações permitem ao sujeito melancólico se situar, de alguma forma, no pólo ativo, indicador de um processo de interiorização.

Nos estados limites, o objeto é insistentemente procurado no exterior, via compulsão de repetição. O fenômeno mais marcante aí é, portanto, o da exteriorização, que pressupõe, dentre muitos outros aspectos, um estado de permanente abertura do espaço egóico ao outro. As fronteiras narcísicas, excessivamente porosas, não chegam realmente a se fechar.

Ainda que seja notória na melancolia a presença de uma dificuldade no plano da assimilação do objeto, no caso do objeto perdido, as modalidades de resposta parecem-nos muito distintas daquelas utilizadas nos estados limites. Referimo-nos aqui, basicamente, ao papel da auto-acusação na melancolia, resposta veiculada, em primeiro lugar, pela ação de um superego especialmente feroz. Esse apelo à auto-acusação, muitas vezes de caráter delirante na melancolia, processo de aguda culpabilização, traço marcante no melancólico, não é em nada similar às angústias paradoxais que encontramos nos estados limites. Caberia ainda precisar que na melancolia o combate com o objeto perseguidor se dá, em ultima instância, no interior.

Contrastando com essa tendência, sublinhemos uma vez mais o recurso à exteriorização que, de acordo com o que procuramos mostrar ao longo deste artigo, caracteriza sobremaneira o modo de defesa próprio dos estados limites. De acordo com Brusset, a presença da dependência, da apetência adictiva, ao lado da impulsividade e do apelo às passagens ao ato, atesta uma aguda necessidade de apoio do ego ou do funcionamento psíquico no outro. Porém, é preciso ter em vista que esta relação profundamente intensa, de caráter passional, destrutivo, com o objeto, provoca muita angústia nesses sujeitos, fazendo com que o movimento de investimento seja vivido como ameaçador, em função dessa destrutividade. “A destruição do objeto tem como conseqüência a destruição de si, em razão da dependência ao objeto real, atual, e na falta de deslocamentos que tornariam possíveis sua metaforização e sua simbolização” (Brusset, 1999, p. 58).

Não seria a ameaça de perda que estaria efetivamente em jogo nos funcionamentos limites. Nestes tratar-se-ia, de fato, da ameaça de não poder perder o objeto. Enquanto na base da melancolia haveria uma identificação de tipo narcísico, nos estados limites vemo-nos muito mais diante de um estado de “servidão ao outro”, estado de dependência, de passividade radical cujo pressuposto básico seria uma falha importante no plano da interiorização do objeto.

 

Referências

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Texto recebido em agosto/2007.
Aprovado para publicação em outubro/2007.

 

 

*Psicanalista, doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise – Universidade de Paris VII, professora adjunta do Instituto de Psicologia da UFRJ (Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica), membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, pesquisadora do CNPq. E-mail: rezendecardoso@ig.com.br . Agradeço a Pedro Henrique Rondon por suas contribuições e pela revisão final do texto.

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