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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.13 no.2 Belo Horizonte Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

Desenvolvimento fonológico de crianças pré-escolares da Região Noroeste de Belo Horizonte

 

Phonological development of preschool children at the Northwest Region of Belo Horizonte

 

 

Renata Maia Vitor* ; Cláudia Cardoso-MartinsI,**

IUniversidade Federal de Minas Gerais

 

 


RESUMO

Objetivo: Descrever o desenvolvimento fonológico de crianças em idade pré-escolar falantes da variante mineira do Português Brasileiro. Metodologia: 95 crianças que freqüentavam escolas infantis da rede particular de ensino da região Noroeste de Belo Horizonte foram submetidas a uma triagem de fala. As crianças foram classificadas de acordo com o número e o tipo de processos fonológicos. Além disso, foi calculado o Índice de Densidade Fonológica – PDI (Edwards, 1992). Resultados: Apenas 35 crianças não realizaram qualquer processo fonológico. Os processos fonológicos mais freqüentes foram os de substituição de consoantes líquidas e redução de encontro consonantal. Finalmente, variações no desenvolvimento fonológico correlacionaram-se com variações na idade das crianças. Conclusões: Os resultados do presente estudo têm implicações importantes para o diagnóstico de distúrbios fonológicos em crianças no final dos anos pré-escolares e falantes da variante mineira do Português Brasileiro.

Palavras-chave: Linguagem, Fonologia, Crianças pré-escolares.


ABSTRACT

The aim of this study is to describe the phonological development among Brazilian Portuguese (Minas Gerais variant)-speaking preschoolers. The methodology assessed the speech of 95 children attending preschool classes in private schools in the Northwest region of the city of Belo Horizonte. The children were classified according to the number and type of phonological processes. In addition, the Phonological Density Index - PDI (Edwards, 1992) was calculated. Results indicated a relatively small number of children (N = 35) who did not show any phonological process. Liquid replacements and cluster reductions were the most frequent phonological processes in the children’s speech. Finally, variations in the phonological development were correlated with age variations. As a conclusion, the results have important implications to the diagnosis of phonological impairments among children in the last years of preschool speaking the Mineiro variant of Brazilian Portuguese.

Keywords: Language, Phonology, Preschool children.


 

 

O domínio da linguagem, entre outros aspectos, implica no conhecimento do sistema fonológico da língua, isto é, do seu inventário de sons e das regras para combiná-los em unidades significativas. Vários estudos têm investigado o desenvolvimento fonológico de crianças falantes do português brasileiro (ver, por exemplo, Wertzer, 1995; Santini, 1996; Araújo et al., 1998; e Mezzomo & Ribas, 2004). Os resultados desses estudos apresentam implicações importantes para o diagnóstico e o tratamento dos distúrbios que envolvem a fala e a linguagem.

Para avaliar o desenvolvimento fonológico, é fundamental analisar a fala da criança em função do sistema fonológico do adulto. Um modelo que tem sido muito utilizado na literatura para a descrição do sistema fonológico da criança é o dos processos fonológicos, que diz respeito à simplificação das regras fonológicas que envolvem seqüências de sons na pronúncia das palavras (Wertzner et al., 2002). A maioria dos processos fonológicos faz parte do desenvolvimento típico da fala, sendo eliminados gradualmente, ao longo dos anos pré-escolares.

O quadro seguinte apresenta os processos fonológicos mais comuns no Português do Brasil (PB), de acordo com Yavas et al. (2001). (Os símbolos fonéticos utilizados neste trabalho são os símbolos do Alfabeto Internacional de Fonética. Os símbolos para as consoantes mais comuns do PB estão descritos no Apêndice A).

 

 

Embora o desenvolvimento fonológico no PB tenha sido bastante investigado, ainda existem controvérsias, sobretudo no que diz respeito à idade de superação dos processos fonológicos (ver, por exemplo, Mourão et al., 1994 e Silvério et al., 1995). Conforme descrevemos a seguir, os resultados de estudos mais recentes sugerem que o desenvolvimento fonológico no PB deve estar praticamente completo aos 5 anos.

Wertzner (1995) avaliou a ocorrência de processos fonológicos de 64 crianças entre 3 e 7 anos de idade. As crianças tinham fala inteligível, pertenciam à classe socioeconômica baixa, e residiam na cidade de São Paulo. Para a coleta de dados foram utilizadas provas de nomeação e repetição de palavras. Os resultados mostraram que alguns processos fonológicos como, por exemplo, a substituição de líquidas, foram produtivos até os 7 anos. No entanto, a autora ressalta que esse resultado pode ser explicado em função da variante lingüística a que as crianças que participaram do seu estudo estavam expostas. Com efeito, as substituições observadas entre as crianças mais velhas restringiram-se praticamente à substituição da líquida [l] pela líquida [r] em encontros consonantais ,uma substituição comum em populações de baixa renda.

Santini (1996) administrou o teste de nomeação espontânea de figuras temáticas (Yavas et al., 2001) a 192 crianças da cidade de São Paulo, com desenvolvimento típico e faixa etária entre 2 anos e 6 anos e 11 meses. A autora determinou a porcentagem de produção correta de cada som consonantal do PB em diferentes grupos etários, sendo que o desenvolvimento fonológico mostrou-se essencialmente completo a partir do grupo de 4 anos. De fato, poucas mudanças foram observadas entre as idades de 4 e 6 anos. Por exemplo, a proporção de consoantes reproduzidas corretamente aumentou apenas 10% nesse período – de 87%, aos 4 anos para 97%, aos 6 anos de idade.

De acordo com Santini, a ordem geral de aquisição dos sons consonantais foi similar à ordem relatada em muitos estudos na literatura: de uma maneira geral, as consoantes plosivas e as nasais foram produzidas corretamente antes das fricativas, africadas e líquidas. Outras conclusões relevantes foram: (a) aos 4 anos, a maioria das consoantes atingiu um nível de 75% de produções corretas; (b) as consoantes surdas foram pronunciadas mais adequadamente do que as consoantes sonoras; os primeiros sons, adquiridos antes dos 3 anos, incluíram: ; os sons intermediários, adquiridos entre 3 e 4 anos, foram: ;finalmente, os sons adquiridos após os 4 anos de idade foram:

O estudo de Araújo et al. (1998) incluiu crianças entre 4 e 11 anos de idade. Os processos fonológicos mais comuns foram: a) redução de encontro consonantal; b) apagamento de líquida final não-lateral ([r]); e c) apagamento de líquida intervocálica não-lateral ([r]). Como esses resultados demonstram, a maior dificuldade encontrada por crianças falantes do PB refere-se à supressão de processos de estrutura silábica relativos às líquidas.

Mezzomo e Ribas (2004) sugerem que a aquisição das líquidas no português acontece de maneira intercalada entre as líquidas laterais e não-laterais. A primeira líquida a se estabilizar no sistema fonológico da criança é o [l], aos 3 anos, seguida do [x] aos 3 anos e 4 meses e do , aos 4 anos. O é a última líquida a se estabilizar, o que parece ocorrer por volta dos 4 anos e 2 meses. No entanto, é comum as crianças apresentarem dificuldades em encontros consonantais ou ataques complexos até os 5 anos de idade.

O encontro consonantal é a última estrutura a alcançar estabilidade dentro do sistema fonológico da criança (Ribas, 2004). Segundo a autora, a aquisição da estrutura silábica CCV (Consoante-Consoante-Vogal), que em geral envolve as consoantes líquidas ou [l], ocorre aos 5 anos, praticamente um ano após a aquisição de todas as consoantes.

 

Distúrbio fonológico

Até a década de 80, as crianças que apresentavam qualquer alteração de fala eram consideradas como tendo um distúrbio articulatório. Desde então, tem havido uma maior preocupação em compreender por que a criança apresenta uma fala ininteligível, procurando-se apontar as características dessa alteração e a melhor forma de tratá-la (Wertzner, 2003).

Uma distinção importante diz respeito à natureza fonética ou fonológica dos distúrbios da fala. A dificuldade de natureza fonética resulta de deficiências no planejamento e na execução de seqüências de gestos dos órgãos da fala, necessários para o movimento dos articuladores de forma rápida e precisa. Os erros são, portanto, decorrentes de uma dificuldade no nível periférico (Wertzner, 2003). Por outro lado, no distúrbio fonológico, a dificuldade está na representação mental da regra fonológica. Isso quer dizer que o indivíduo tem dificuldades em fazer uso das regras da fonologia de sua língua. Portanto, pode-se afirmar que o distúrbio fonológico caracteriza-se pela alteração na inteligibilidade da fala resultante de simplificações das regras fonológicas (Wertzner & Oliveira, 2002).

De uma maneira geral, os distúrbios fonológicos resultam em uma fala menos inteligível do que os distúrbios oriundos de alterações fonéticas (Wertzner, 2003). Há evidência de que o distúrbio fonológico afeta aproximadamente 10% da população e constitui uma das dificuldades de comunicação mais prevalentes em crianças de idade pré-escolar e escolar (Gierut, 1998). No estudo de Araújo et al. (1998), por exemplo, 21,36% das crianças avaliadas (faixa etária entre 4 e 11 anos) apresentaram alterações de fala. Dessas crianças, 95,46% apresentaram desvios fonológicos e/ou fonéticos e fonológicos.

Wertzner et al. (2002) afirmam que uma criança que apresenta processos fonológicos além da idade em que eles são comumente observados, possui um desvio fonológico. Segundo Mota (2001), quando uma criança apresenta dificuldades específicas para o aprendizado da linguagem, afetando a produção da fala, na ausência de fatores etiológicos conhecidos e detectáveis (por exemplo, déficit intelectual, desordens neuromotoras, distúrbios psiquiátricos etc.), devese dizer que ela possui um “desvio fonológico evolutivo”.

De uma maneira geral, os processos fonológicos de crianças com distúrbios fonológicos são semelhantes aos encontrados entre crianças típicas mais jovens (Wertzner et al., 2005). O que define o distúrbio fonológico é a presença desses processos em idades mais avançadas. No entanto, algumas crianças apresentam processos idiossincráticos.

Yavas et al. (2001) encontraram, entre crianças com desvios fonológicos evolutivos com idades entre 4 anos e 9 meses e 9 anos e 2 meses, os seguintes tipos de processos fonológicos idiossincráticos:

O presente estudo apresenta uma descrição de diferentes aspectos do desenvolvimento fonológico de um grupo de crianças em idade pré-escolar da cidade de Belo Horizonte, MG.

 

Método

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais – COEP/UFMG (Protocolo: 15/05). As diretoras das escolas participantes, bem como os pais das crianças e/ou responsáveis, assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, autorizando a realização da pesquisa.

 

Participantes

Participaram da pesquisa 95 crianças (47 meninos e 48 meninas), com idade entre 4 anos e 9 meses e 6 anos e 9 meses (Idade média = 5 anos e 4 meses). Todas as crianças freqüentavam escolas infantis da rede particular de ensino da região Noroeste de Belo Horizonte. Sessenta e sete estavam matriculadas em classes do 2° período (70,5%) e 28 em classes do 3° período (29,5%).

 

Material

Foi utilizado o desenho da Sala da “Avaliação Fonológica da Criança” (Yavas et al., 2001) para obter uma amostra da fala das crianças. O desenho contém figuras representando os seguintes vocábulos: brinquedo, cruz, dinheiro, disco, gato, globo, guarda-chuva, igreja, jornal, lápis, livro, martelo, mesa, palhaço, planta, prego, poltrona, quadro, rádio, tapete, televisão, tesoura, antena, botão, estante, franja e telhado. A palavra poltrona foi excluída da amostra, por ter se mostrado de difícil evocação pelas crianças da amostra estudada.

 

Procedimento

As crianças foram estimuladas a nomear as figuras no desenho da Sala da “Avaliação Fonológica da Criança” (Yavas et al., 2001). Não foi estabelecida nenhuma ordem para a nomeação das palavras, tendo sido realizada, a princípio, de acordo com a preferência da criança. Quando a criança parava de nomear as figuras espontaneamente, a examinadora tentava estimulá-la, perguntando, por exemplo: “O que está em cima da mesa?” ou “Qual é o nome dos objetos que estão no chão?” ou, então, apontava as figuras restantes, pedindo para a criança nomeá-las. Caso a criança não fosse capaz de se lembrar do nome do objeto apontado, a examinadora falava o nome e prosseguia com a triagem. Posteriormente, a examinadora perguntava novamente o nome do objeto (repetição retardada). Se a criança, mesmo assim, não conseguisse evocar a palavra, a examinadora nomeava novamente o objeto e pedia para a criança repetir o seu nome.

Para cada criança, foi preenchida uma folha de respostas contendo a sua identificação, a transcrição fonética da sua pronúncia das palavras e os processos fonológicos, quando realizados. Também se tomou o cuidado de registrar a ocorrência de repetições retardadas ou imediatas.

As crianças foram classificadas de acordo com o número de erros fonológicos produzidos na nomeação das figuras do desenho da Sala. Foi considerado um erro fonológico qualquer erro articulatório que envolvesse substituição ou omissão de sons consonantais e que, portanto, caracterizasse um processo fonológico. As distorções não foram incluídas nas análises por caracterizarem principalmente erros fonéticos, que geralmente resultam de alterações estruturais dos órgãos fonoarticulatórios e não de distúrbios fonológicos.

Como observado na revisão da literatura, as consoantes líquidas são as últimas a serem adquiridas no PB e os processos fonológicos que envolvem essas consoantes são os mais difíceis de serem superados. Em vista disso, as crianças foram também classificadas em função do tipo de processos fonológicos realizados. As crianças que realizaram processos fonológicos envolvendo apenas as consoantes líquidas foram separadas daquelas que realizaram processos fonológicos superados mais precocemente no desenvolvimento. Foram considerados processos fonológicos que envolvem as consoantes líquidas: redução de encontro consonantal, apagamento de líquida final, apagamento de líquida intervocálica, apagamento de líquida inicial, metáteses e epênteses que envolvam consoantes líquidas, substituição de líquida, semivocalização de líquida, nasalização de líquida e plosivização de líquida.

Finalmente, o desempenho das crianças também foi avaliado por meio do Índice de Densidade dos Processos Fonológicos – PDI (Edwards, 1992), uma medida da gravidade do transtorno fonológico. Para se obter o PDI, deve-se calcular o número total de processos fonológicos e dividi-lo pelo número de palavras analisadas na amostra. O PDI não está relacionado a um tipo específico de amostra de fala, podendo ser obtido a partir de qualquer procedimento de avaliação.

Alguns autores têm sugerido que a avaliação da gravidade do distúrbio fonológico pode auxiliar na identificação e na classificação dos seus subtipos. Além disso, esse tipo de índice permite uma avaliação do desenvolvimento da criança no decorrer do tratamento fonoaudiológico (Papp & Wertzner, 2006).

 

Resultados

Apenas 35 (36,8%) crianças não realizaram nenhum processo fonológico na avaliação da fala. Entre as outras 60 (63,2%) crianças da amostra, nenhuma realizou alterações articulatórias exclusivamente fonéticas, 49 (51,6%) apresentaram apenas alterações fonológicas e 11 (11,6%) apresentaram alterações fonéticas e fonológicas. Considerando-se apenas o número de erros fonológicos, 34 (35,8%) crianças realizaram entre um e três erros fonológicos e 26 (27,4%) realizaram quatro ou mais erros fonológicos.

De acordo com a classificação em função do tipo de processos fonológicos, 24 (25,3%) crianças realizaram processos fonológicos envolvendo apenas as consoantes líquidas e 36 (37,9%) realizaram diversos processos fonológicos. Esse grupo incluiu crianças que realizaram processos fonológicos que não envolviam as consoantes líquidas e crianças que produziram diversos tipos de processos fonológicos, incluindo processos envolvendo as consoantes líquidas.

A TAB. 1 apresenta a freqüência e a proporção de crianças que realizaram os processos fonológicos definidos por Yavas et al. (2001), a fim de determinar quais foram os mais comuns na amostra pesquisada. Nenhuma criança realizou alguns processos fonológicos encontrados no desenvolvimento típico do PB como, por exemplo, o apagamento de fricativa final, o apagamento de líquida intervocálica e a sonorização pré-vocálica. Apenas uma criança realizou um processo fonológico que não é encontrado na aquisição fonológica típica, o processo de plosivização de líquida.

 

 

Como pode ser visto nessa tabela, o processo fonológico mais freqüente na fala das crianças foi o de substituição de consoantes líquidas: 29 (30,5%) crianças realizaram esse processo durante a avaliação. O segundo mais freqüente foi o processo de redução de encontro consonantal, presente em 24 crianças (25,3%). Dois processos também bastante comuns foram o apagamento de consoante líquida no final da sílaba (20 crianças – 21,1%) e a dessonorização (18 crianças – 18,9%).

A TAB. 2 mostra os valores para as medidas de desenvolvimento fonológico (número de erros fonológicos e PDI).

 

 

Também foram calculadas as relações entre as medidas de desenvolvimento fonológico, a idade cronológica e a série pré-escolar que as crianças freqüentavam. No que diz respeito à série pré-escolar, não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre as crianças do 2º e as crianças do 3º período em relação ao número de erros fonológicos (teste não-paramétrico de Mann-Whitney: p= 0,087) e ao PDI (Mann-Whitney: p= 0,095). Por outro lado, como pode ser visto na TAB. 3, a idade correlacionou-se negativamente com ambas as medidas de desenvolvimento fonológico. Em outras palavras, como se esperava, tanto o número de erros fonológicos quanto o Índice de Densidade Fonológica foi maior entre as crianças mais jovens do que entre as crianças mais velhas.

 

 

Finalmente, não foram encontradas diferenças entre os sexos em relação às medidas de desenvolvimento fonológico. O teste estatístico revelou que a diferença entre meninos e meninas não foi estatisticamente significativa, quer em relação ao número de erros fonológicos (Mann-Whitney: p= 0,90), quer em relação ao PDI (Mann-Whitney: p= 0,94).

 

Discussão

Como era de se esperar, observamos uma diminuição no número de processos fonológicos ao longo dos anos pré-escolares. Surpreendentemente, no entanto, a maioria das crianças realizou um ou mais processos fonológicos. Uma vez que, segundo alguns autores (ver, por exemplo, Mezzomo & Ribas, 2004), o desenvolvimento fonológico do PB está praticamente completo a partir de 4- 5 anos de idade, esperávamos encontrar um número maior de crianças sem processos fonológicos.

É possível, no entanto, que várias das crianças que apresentaram um ou outro processo fonológico não possuíssem distúrbios de fala. De acordo com Lamprecht (2004), de fato, para afirmar que uma criança já adquiriu um determinado segmento ou estrutura silábica, não é necessário que 100% da sua produção seja correta. Segundo a autora, produções inadequadas podem representar resquícios de etapas já superadas ou, até mesmo, simples lapsos de fala, não se caracterizando necessariamente como um distúrbio ou atraso fonológico.

Essa consideração nos ajuda a explicar a ausência de diferenças entre as meninas e os meninos no presente estudo. Ao contrário do que é geralmente relatado na literatura (ver, por exemplo, Santos, 2000), os meninos que participaram do presente estudo não apresentaram um número maior de erros fonológicos do que as meninas.

Em conjunto com os resultados de estudos realizados em outras regiões do Brasil (por exemplo, Araujo et al., 1998; Ribas, 2000), nossos resultados sugerem que, independentemente da variante lingüística em questão, as consoantes líquidas são as últimas a serem adquiridas no PB. Conforme ilustrado na TAB. 1, os três processos fonológicos de ocorrência mais freqüente na fala das crianças que participaram do presente estudo, a saber, a substituição de líquidas, a redução de encontro consonantal e o apagamento de líquida final, envolviam precisamente aquelas consoantes.

É possível que a freqüência relativamente alta de apagamento de consoante líquida no final de sílaba átona entre as crianças que participaram do presente estudo possa, de alguma forma, estar relacionada à variante mineira do PB. De fato, em Belo Horizonte, o [R] em final de sílaba costuma ser glotal e bastante fraco em relação a outras variantes do PB. É possível que a variante mineira do PB também possa explicar a freqüência relativamente alta de dessonorização, um processo fonológico não relacionado a consoantes líquidas, mas que foi bastante comum entre as crianças da amostra estudada.

Uma limitação deste estudo diz respeito ao número pequeno de palavras envolvidas na avaliação da fala, muitas das quais exigiam a realização de consoantes líquidas e de encontros consonantais. Dessa maneira, não foi possível determinar a proporção de acertos das crianças com relação a cada fonema, em diferentes faixas etárias.

O presente estudo levanta questões a respeito das normas que devem ser consideradas ao se realizar uma avaliação da fala em crianças que estão desenvolvendo a linguagem oral. Tendo em vista a faixa etária das crianças que participaram do presente estudo, nossos resultados sugerem que o desenvolvimento fonológico, sobretudo no que concerne às consoantes líquidas, é um processo mais prolongado do que se imagina.

 

Conclusão

Conforme descrevemos anteriormente, estima-se que cerca de 10% das crianças em idade pré-escolar e escolar apresentem desvios fonológicos. Em vista disso, é pouco provável que a maioria das crianças que apresentaram entre um ou três processos fonológicos no presente estudo pudessem ser classificadas como portadoras de um desvio ou atraso fonológico. Em vez disso, nossos resultados apóiam a sugestão de Lamprecht (2004) segundo a qual a existência de um ou outro processo fonológico na fala da criança não é suficiente para o diagnóstico de um distúrbio ou atraso fonológico.

Nossos resultados levantam questões importantes para a pesquisa futura, sobretudo no que diz respeito à freqüência e aos tipos de erro que devem ser considerados típicos para cada faixa etária e cada variante do PB. Essa investigação é importante tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista prático. Do ponto de vista prático, por exemplo, seus resultados serão cruciais para o desenvolvimento de instrumentos diagnósticos mais eficazes. Esses, por sua vez, possibilitarão a identificação e o tratamento precoces de distúrbios no componente fonológico da linguagem que, ao que tudo indica, representam um fator de risco importante para o desenvolvimento de dificuldades futuras de aprendizagem da leitura e da escrita (ver, por exemplo, Wagner & Torgesen, 1987 e McBride-Chang, 1996).

 

Referências

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Texto recebido em outubro/2007.
Aprovado para publicação em novembro/2007.

 

 

*Fonoaudióloga, mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela UFGMG. E-mail: renatamvitor@yahoo.com.br
**Professora titular do curso de Psicologia da UFMG, Ph.D. em Psicologia (University of Illinois at Urbana – Champaign). E-mail: cacau@fafich.ufmg.br

 

 

Apêndice A

A produção das consoantes envolve algum tipo de obstrução da corrente de ar no trato vocal. Em português, as consoantes são classificadas em função dos seguintes parâmetros: a) Modo de articulação – se refere ao tipo de obstrução que ocorre no trato vocal; b) Ponto de articulação – se refere à região do trato vocal em que o som é produzido e aos órgãos que se articulam para essa produção; e c) Sonoridade – classifica os sons quanto à ausência ou presença de vibração das pregas vocais quando o ar está passando pela laringe.

O quadro abaixo descreve os sons consonantais do PB em função desses parâmetros. O leitor interessado pode consultar a lista de símbolos fonéticos do Alfabeto Internacional de Fonética – IPA (revisado em 1993, atualizado em 1996), disponível em Lamprecht et. al. (2004), para maiores informações.

 

 

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