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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.13 n.2 Belo Horizonte dez. 2007

 

SEÇÃO ABERTA

 

 

Carlos Roberto Drawin*

 

 

Filho, José Tiago dos Reis & Franco, Vânia Carneiro (Org.). Aprendizes da clínica. Novos fazeres psi. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. 234 p.

As condições de trabalho, em nosso país, não são nada fáceis. Essa afirmação, apesar de genérica e banal, não deixa de ser verdadeira. O desemprego crônico que atinge a todos, mas, sobretudo, os jovens que tentam ingressar no mercado de trabalho, os baixos salários, o desrespeito aos direitos dos trabalhadores, o difícil acesso à formação profissional e à atualização técnica e científica, a escorchante remuneração do capital, a degradante qualidade de vida dos grandes centros urbanos, tudo parece conspirar contra a valorização do trabalho. Quando se trata do trabalho social, isto é, aquele que não está diretamente voltado para a produção da mais-valia e para a acumulação do capital, mas para o desenvolvimento humano em toda sua abrangência, então a situação torna-se verdadeiramente dramática.

Assim, as áreas da saúde e da educação, sempre exaltadas como prioritárias nas campanhas eleitorais, vivem num abandono crônico e secular, e os que a elas se dedicam são tratados, senão com desprezo, com certa indiferença, entre cínica e complacente, por parte dos governos que se sucedem e das elites que permanecem. Nessas áreas, a contradição entre o capital e o trabalho – que se agravou ainda mais com a hegemonia do capitalismo financeiro globalizado – se impõe com uma evidência que os ideólogos do fim das ideologias teimam em negar. Não se trata, porém, de uma negação apenas tola, insensata e vazia, porque se, por um lado, a sua força persuasiva não tem um fundamento objetivo, por outro a evidência da miséria, da desigualdade e da exclusão parece incapaz de produzir um efeito crítico e de mobilização política. A ausência de um horizonte utópico enfraquece a base normativa dos discursos e das práticas e os esvazia de sua energia afetiva. Ou, como advertiu Habermas há mais de duas décadas: “quando secam os oásis utópicos estende-se um deserto de banalidade e perplexidade”. Ou, poderíamos dizer, a repetição do horror, que se tornou banal e converteu-se num destino, tem o poder de cristalizar numa perplexidade paralisante o nosso pensamento e a nossa ação, uma vez que a evidência se converteu também em intransparência, e o mundo tornou-se, de certa forma, ininteligível (Habermas, 1987).

A travessia desse paradoxo – a evidência intransparente ou a presença ininteligível das contradições sociais contemporâneas – tornou-se o desafio maior para todos os que se lançam no trabalho social. Na ausência de um modelo teórico capaz de tudo abranger e tudo explicar, é preciso voltar-se para a prática, para o duro aprendizado da experiência, mas sem a pretensão de extrair um saber da empiria bruta. Pois, afinal, o ativismo empirista é tão ingênuo quanto o teoricismo dogmático. O conjunto de ensaios do livro que estamos resenhando aponta, ao contrário, em outra direção: há que mergulhar na prática, sem a presunção da nudez conceitual, mas conscientes das nossas opções teóricas e da pré-compreensão que trazemos conosco para, desse modo, colocarmo-nos em disponibilidade diante de um outro saber que vem ao nosso encontro. É essa disponibilidade para o outro que nos torna aprendizes , e é esse saber que não vem pronto do mundo da abstração, mas que se encontra disseminado nos discursos e nas práticas, que podemos designar como clínica. É esse o horizonte dos aprendizes da clínica, que reúne a diversidade dos ensaios do livro, e que foi delineado na Apresentação dos seus organizadores – os professores José Tiago dos Reis Filho e Vânia Carneiro – como sendo uma reflexão crítica capaz de se projetar “para além das competências e habilidades” e aliar “teoria e experimentação numa práxis na concepção dialética do termo”.

Não há, certamente, como resumir no restrito espaço de uma resenha a riqueza das propostas, experiências e reflexões relativas aos diferentes domínios específicos que são reivindicados pela psicologia e incluídos no livro. Este contém textos que focalizam desde os desafios e impasses da formação do psicólogo e da clínica-escola a diferentes intervenções no campo da saúde mental, desde contribuições acerca das clínicas psicomotora, da atenção psicossocial, do trabalho e do acompanhamento terapêutico a considerações críticas sobre a violência social e institucional. Mas a diversidade dos temas, abordagens e propostas não se confunde, de modo algum, com a mera fragmentação, pois o livro não se configura como um conjunto heteróclito de saberes, mas como uma unidade na diferença, já que foi organizado a partir de uma experiência comum, a da “implantação do curso de psicologia da PUC Minas em Betim”, e de uma posição ética partilhada, a do irredutível compromisso com o sujeito padecente, alienado e oprimido, mas também desejante, atuante e responsável. O fio condutor que atravessa a diversidade dos textos é justamente essa posição ética empenhada na abertura de um espaço que possibilite ao sujeito nomear o seu assujeitamento e emergir com a sua palavra e com a sua dor, com o seu silêncio e com a sua esperança.

Não poderíamos, no entanto, concluir esta resenha sem a nossa palavra e o nosso silêncio, sem a nossa dor e a nossa esperança. A dor que provém da morte prematura e trágica do José Tiago dos Reis Filho – professor do curso de psicologia da PUC em Betim e um dos organizadores da obra – e diante da qual se nos impõe o silêncio. Mas este não é incompatível com a palavra que, sendo assentimento ao encontro com o real, não se confunde com a desistência e o fracasso, uma vez que a reiteração da palavra é sempre perquirição de sentido e reencontro com o dom da vida. E essa é a esperança suscitada pelo José Tiago, que nos deixou um rastro de alegria e de luz, a nos assinalar, para além da simples espera, o compromisso ativo para com os sujeitos em sua existência concreta e encarnada, mesmo – e sobretudo – para com aqueles que aparentemente nada mais teriam a esperar da esperança.

 

 

*Psicólogo, psicanalista, professor do Departamento de Filosofia e do curso de especialização em Teoria Psicanalítica da UFMG. E-mail: carlosdrawin@yahoo.com.br

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