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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.1 Belo Horizonte jun. 2008

 

ARTIGOS

 

O objeto da psicanálise no impasse da avaliação

 

The object of psychoanalysis in the impasse of assessment practices

 

El objeto del psicoanálisis en el punto muerto de la avaluación

 

 

Antônio M. R. Teixeira*

Universidade Federal de Minas Gerais

 

 


RESUMO

Neste texto, o autor se propõe a realizar uma abordagem crítica da expansão contemporânea das práticas de avaliação, apontando sobretudo o programa político ao qual elas respondem, ao pensar o sujeito com base em uma tipificação definida pela mensuração quantitativa de seu valor instrumental. Ao criticar essa reificação instrumental do sujeito pela ideologia da avaliação, assim como o processo de homogeneização coletiva do qual suas práticas dependem para fixar o seu objetivo, o artigo expõe o modo pelo qual a experiência psicanalítica revela um objeto inavaliável na relação do sujeito com o gozo, no sentido de algo que não se presta ao uso instrumental nem tampouco comporta medidas de comparação ou critérios de equivalência.

Palavras-chave: Práticas de avaliação, Critérios de equivalência, Singularidade subjetiva.


ABSTRACT

The object of psychoanalysis in the impasse of assessment practices: the author examines the contemporary expansion of assessment practices, focusing especially on the political program to which they respond, considering the subject from a classification defined by a quantitative measurement of his instrumental value. In criticizing this instrumental reification of the subject by the assessment ideology, as well as the process of collective homogenization required by assessment practices to set their goal, the article exposes how the psychoanalytical experience reveals an un-assessable object in the subject’s relation with pleasure, in the sense of something that cannot be instrumentally used nor accepts comparison measures or equivalence criteria.

Keywords: Evaluation practices, Equivalence criteria, Subjective singularity.


RESUMEN

El objeto del psicoanálisis en el punto muerto de la evaluación: El autor realiza un abordaje crítico de la expansión contemporánea de las prácticas de evaluación, señalando sobre todo el programa político al cual responden, al pensar en el sujeto a partir de una tipificación definida de la mensurabilidad cuantitativa de su valor instrumental. Al criticar esa cosificación instrumental del sujeto, así como el proceso de homogenización colectiva del cual las prácticas de evaluación dependen para fijar su objetivo, el artículo expone el modelo por el cual la experiencia psicoanalítica revela un objeto invaluable en la relación del sujeto con el goce, en el sentido de algo que no sirve para el uso instrumental ni tampoco conlleva medidas de comparación o criterios de equivalencia.

Palabras-clave: Prácticas de evaluación, Criterios de equivalencia, Singularidad subjetiva.


 

 

Em 1958 corria a fama, escreve Rui Castro, de que quando se tratava de Copa do Mundo o jogador brasileiro era frouxo (Castro, 1996, p. 136). Dizia-se que nos faltava fibra, que não tínhamos firmeza para os jogos decisivos. Eram freqüentes, da parte dos jogadores, as queixas de dor de ventre na véspera das grandes partidas, assim como sintomas de insônia, ansiedade e nervosismo. A um mal disfarçado racismo, que atribuía essa situação à debilidade de nossa composição étnica, pouco a pouco se substituiria o ensejo por uma observação mais séria, supostamente apoiada, por sua vez, numa psicologia que se pretendia científica por se pautar em avaliações numéricas.

Pois é nesse contexto, prossegue Rui Castro, que apareceria uma figura até então inusitada na comissão técnica da seleção brasileira: o psicólogo – então representado por João Carvalhaes – seria pela primeira vez chamado para diagnosticar e quem sabe remediar a situação, trazendo consigo sua bateria de testes de equilíbrio emocional e aptidão cognitiva. Embora sejam escassas as passagens em que Rui Castro a ele se refere (elas se limitam a três páginas, para ser exato), duas informações a seu respeito merecem nossa atenção. Sabemos, em primeiro lugar, que a avaliação psicológica do jogador Garrincha foi absolutamente deplorável, a começar pelo preenchimento de sua ficha: ele escrevera “atreta” no espaço reservado para indicar o nome de sua profissão. No teste que lhe foi aplicado, Garrincha não obteve mais que 38 pontos num escore de 128; em termos comparativos, ele não estaria habilitado sequer para trabalhar como motorista de ônibus. Sabemos igualmente, em segundo lugar, que um certo Edson Arantes do Nascimento tampouco se qualificaria na avaliação de Carvalhaes, embora tenha se saído melhor do que Garrincha. Fez apenas 68 pontos no mesmo teste, e foi considerado infantil, destituído de agressividade e sem disciplina.

Mas eis que a dupla formada por Pelé e Garrincha, ambos considerados inaptos a jogar como titulares pelo avaliador psicológico da seleção brasileira, inaugurariam uma das mais grandiosas eras da seleção brasileira: a equipe jamais perderia uma só partida com os dois jogadores em campo, que nos deixaram cenas de jogadas absolutamente marcantes, tão memoráveis, para quem as viu, quanto a contemplação de uma tela de Matisse. O desenrolar dos fatos mostrou quem realmente eles eram, avaliando assim o avaliador e fazendo com que ele fosse mantido, para a felicidade geral da nação, por longo tempo fora do cenário futebolístico.

Seria prazeroso lembrar-se da figura do avaliador, se ela se mantivesse congelada na imagem derrisória e cômica desse pobre João Carvalhaes. Mas nos preocupa hoje perceber, quase meio século após esse feliz episódio, que tal figura volta ao panorama mundial e assume formas cada vez mais inquietantes. O avaliador hoje retorna em todos os níveis sobre a cena, trazendo sisudo e triunfante suas réguas e baterias de testes. Ele já se dá mesmo ao luxo de exibir panfletos bombásticos, como o recente livro negro da psicanálise, absolutamente vazio de qualquer conteúdo, mas de que todos já ouviram falar, graças à aparelhagem midiática que lhe serve de esteio. Já não é mais suficiente rir do avaliador, que de funcionário inepto de uma falsa expectativa agora parece exercer uma função condizente com o modo de organização que a sociedade atualmente exibe. Cabe-nos antes fazer o diagnóstico da situação da qual ele é o sintoma, para examinar de que modo se pode a ele responder.

É Canguilhem quem nos esclarece que a psicologia, ao se arrogar o papel de uma teoria de avaliação das habilidades, valeu-se de sua constituição, no século XIX, como disciplina do comportamento humano (Canguilhem, 1966, p. 77-86). Ela responde a um momento em que se solidarizam, por um lado, uma biologia organizada na forma de uma teoria geral das relações entre organismos e meio, apoiada na dissolução da crença criacionista num reino humano separado, e uma ideologia dos valores da sociedade industrial, agora voltada para o aspecto instrumental da habilidade humana. O valor dado à competência técnica aumenta à medida que decresce o antigo valor atribuído à sabedoria. Com a difusão do igualitarismo semeado pela Revolução Francesa, a psicologia se afirma então na forma de uma prática da expertise. Sua função é agora determinar objetivamente a capacidade técnica dos indivíduos, uma vez excluídos os valores atribuídos à casta, ao privilégio social, assim como a função antes enaltecida da atividade do pensamento.

Mas sejam quais forem as suas motivações ideológicas, o que há de mais criticável na psicologia, assim formulada enquanto pretensa ciência das habilidades e dos comportamentos, diz menos respeito ao problema de sua limitação técnica do que à ausência de uma formulação clara do seu projeto instaurador. Ao aceitar o papel de uma ciência objetiva de aptidões, denuncia Canguilhem, a psicologia esquece de situar seu comportamento específico com relação às circunstâncias históricas e aos meios sociais nos quais é solicitada a propor seus serviços. Ela quer ser simplesmente se oferecer como instrumento, sem interrogar para quê ou para quem ela está funcionando. E uma vez recusado, de sua perspectiva, qualquer questionamento filosófico acerca desse propósito de tomar a habilidade como uma característica a definir os critérios de avaliação, é a idéia da utilidade que lhe serve de esteio. Sob a condição, é claro, de que ela seja extraída, de modo necessariamente inexplícito, da definição instrumental do homem como fabricante de utensílios.

Não é supérfluo frisar o caráter “necessariamente inexplícito” dessa definição do homem, a considerar que tal ausência de explicitação aqui não decorre de uma insuficiência contingente. Trata-se antes, prossegue Canguilhem, de um princípio que não pode, por razões estruturais, ser fornecido explicitamente: ele só pode ser ativado se permanecer ausente de qualquer formulação. Pois é a própria noção instrumental do homem, como meio de utilidade, que se encontra estruturalmente carente de uma finalidade que a justifique. Isso se explica pelo fato, elucidado por G. Bataille, de que todo elemento da natureza – seja ele o próprio homem –, ao ser tomado como instrumento, somente existe, enquanto tal, em relação a um fim que lhe é exterior, sendo que o próprio fim a se alcançar pelo instrumento acaba sendo colocado, nessa igual perspectiva, como meio para outra meta que, por sua vez, também o transcende, sem que se possa definir qual seria a finalidade última (Bataille, 1976, p. 297-298). Assim o pau, que perfura o solo, deve servir para assegurar o crescimento da planta que, por sua vez, é cultivada para manter a vida de quem procura o pau para perfurar o solo, e daí por diante, indefinidamente. O utensílio submete, desse modo, o próprio homem que dele se serve à servidão desse circuito contínuo, alienando-o também, por sua vez, como um meio para algo que lhe é exterior. Apenas a absurdidade desse reenvio infinito justifica, aos olhos de G. Bataille, “a absurdidade equivalente de um verdadeiro fim”, a saber: daquilo que não tem nenhuma finalidade, de algo que, finalmente, para nada serviria. Somente num mundo de seres indistintamente supérfluos se pode conceber a dimensão soberana daquilo que para nada serve, que existe como fim em si, e não em vista de outra coisa.

É, por conseguinte, necessário, para que o circuito instrumental continue a funcionar, que não se interrogue quanto a sua finalidade; sua exposição colocaria em suspenso o próprio sentido de instrumento em torno do qual gira esse circuito. Inútil, portanto, perguntar, como o faz Canguilhem, pelo que leva os psicólogos a se tornarem, entre os homens, os instrumentos de uma ambição de tratar o homem como instrumento. Tal pergunta poria a perder, por seu turno, o próprio sentido da prática de avaliação. Para que a avaliação continue, é preciso que não se pense nisso. É-lhe preciso, aliás, se quisermos ser mais exatos, que não se pense, preferencialmente. Pois é próprio da avaliação gerar uma demissão do pensamento, a considerar que o avaliador se encontra normalmente dispensado de interrogar a natureza mesma daquilo que ele avalia. Cabe a ele somente encontrar o equivalente numérico que lhe possa dar a medida do que ele se propõe avaliar, pouco lhe importando a razão de ser ou a finalidade do que está sendo avaliado. O que está em questão, na transformação reificante dos homens em instrumento ou coisa útil, é justamente deles fazer algo de comportamento previsível e funcionamento calculável. Nesse sentido, a idéia de se tomar a massa dos indivíduos como conjunto das coisas instrumentais igualmente requer a suspensão de todo questionamento singular cujo desfecho não admite cálculo estatístico.

Lacan já denunciara essa falácia da reificação, em sua “Intervention sur le transfer” (Lacan, 1966, p. 216), referindo-se a ela como uma objetivação que desconhece as determinações dialéticas do indivíduo. Essa falácia opera, segundo S. Gould, a partir da conversão de conceitos abstratos usados para designar faculdades mentais em entidades autônomas (Gould, 1981, p. 24, 151, 333 et seq.):

[…] nós designamos, com a palavra ‘inteligência’, esse extraordinariamente complexo e multifacetado conjunto de capacidades humanas, e com esse estenograma, assim reificado, damos à inteligência o duvidoso estatuto de coisa unitária. Uma vez que a inteligência se torna uma entidade, procedimentos standard da ciência virtualmente ditam a localização e o substrato físico que devem ser procurados para ela. Posto que o cérebro é o lugar da mentalidade, a inteligência deve ali residir.

Temos então o cérebro de Einstein, sobre o qual R. Barthes escreve um provocante verbete, lembrando que, para a ideologia, o super-homem sempre comporta alguma dose de reificação. Órgão antológico que se tornou uma verdadeira peça de museu, o cérebro de Einstein se veria disputado por dois hospitais, como se ali estivesse um aparelho insólito, cujo mecanismo poder-seia enfim desmontar. Ao cérebro se pede que pense na relatividade, mas sem se indagar o que significa pensar em..., como se o cérebro produzisse pensamentos ao modo que o moinho produz a farinha (Barthes, 1957, p. 104).

Em todo caso, não é preciso ser especialista em Economia Política para reconhecer, nesse processo de reificação instrumental que converte sujeitos em entidades substanciais mensuráveis, um procedimento organicamente solidário do modo de organização da produção capitalista. É ali patente o esforço de estabelecer critérios de equivalência formal, tal como ocorre entre objetos reduzidos à forma de mercadoria, segundo descreve Marx, no livro I do Capital. Seria, todavia, inexato, conforme bem viu Lukács, tomar somente a equivalência formal dos trabalhos ou das habilidades avaliáveis como resultado desse processo; a suposição reificante da equivalência seria antes o verdadeiro princípio que governa esse modo de produção (Lukács, 1971, p. 83-109). Se a prática de avaliação psicológica encontra finalmente ali seu lugar, é porque com a moderna análise do processo de trabalho, a mecanização racional estende seus direitos à própria alma do trabalhador, de modo a “facilitar sua integração em sistemas racionais especializados e sua redução em conceitos estatisticamente viáveis”.

Embora o princípio inexplícito da avaliação esteja dado na idéia do homem enquanto valor mensurável de utensílio é preciso igualmente enfatizar, junto a Canguilhem, que a utilização, por ela mesma, não é fato do psicólogo avaliador. Ela lhe advém daqueles que lhe demandam relatórios ou diagnósticos, nos diversos campos em que ele oferta seus serviços. Por esse motivo, prossegue Canguilhem, o avaliador opera na maior parte das vezes como um prático profissional cuja ciência é inteiramente inspirada pela pesquisa de leis de adaptação a um meio sociotécnico – e não a um meio natural –, o que sempre confere a suas operações de medida uma significação de expertise.

Se quisermos então esclarecer o que vem a ser o meio sociotécnico sobre o qual hoje atua o avaliador, vale considerar que ele se constrói a partir da substituição progressiva do antigo modo de organização social, composto em conformidade com o paradigma da lei, pelo paradigma que cada vez mais se impõe das assim chamadas relações contratuais (Miller & Milner, 2006, p. 7 et seq.). Ao passo que o clássico regime da Lei supõe a autoridade do grande Outro, e implica, por conseguinte, uma relação de dessimetria essencial entre as partes que dele se autorizam, o contrato se apóia numa relação especular de equivalência entre os parceiros nele envolvidos. Em razão de sua dessimetria, a lei funciona tanto pelo silêncio quanto pelo que enuncia: ela permite tudo que não proíbe manifestamente. É esse silêncio, afirma Jean-Claude Milner, que dela faz uma Lei, cuja expressão é uma forma de prerrogativa do Estado como garantia de liberdade, para além de toda relação de equivalência ou semelhança.

O mesmo já não vale para o contrato, que não admite tal dessimetria. Ao que tudo indica, o ideal rousseauísta de uma sociedade transparente, do qual Bentham seria, aos olhos de Foucault, a figura complementar, é o que hoje realiza-se progressivamente sobre a noção de contrato, pautada na equivalência imaginária do semelhante: “que não haja mais zonas instituídas pelo privilégio do poder real; que os corações comuniquem-se uns com os outros, que os olhares não se deparem mais com obstáculos, que a opinião reine, a opinião de cada um acerca do outro” (Foucault, 1977, p. 16). Ali não rege o silêncio: somente vale, como nota Jean-Claude Milner, o que é expressamente estipulado, exposto em sua mais absoluta visibilidade. E é justamente por não poder contar com o silêncio, por encontrar, no regime do contrato, o seu meio sociotécnico, que a avaliação se revela tão fastidiosa e maçante. Seu procedimento deriva da mesma lógica de substituição de equivalente a equivalente da qual se vale o regime do contrato. Donde deriva o princípio de aporrinhamento máximo a que se refere Jean-Claude Milner, conhecido de todos que se vêem às voltas com os relatórios de aproveitamento em nossas universidades.

Diante desse contexto, não espanta ouvir, da parte de um crítico americano, que a psicanálise hoje não mais seria do que uma prática em desuso, posto que ela não respeita as cláusulas de equivalência contratuais. Ele desconhece o fato, constatado por Jean-Claude Milner, de que todas as doutrinas materialistas, às quais nos honramos de pertencer, trouxeram à luz algo que excedia à forma de equivalência do contrato (Miller & Milner, 2006, p. 10). O livro I do Capital o demonstra na economia, a partir do conceito de mais-valia, como “excesso que resiste a toda substituição calculável entre força de trabalho e salário”, assim como a física termodinâmica o demonstra, através do conceito de entropia, como forma de energia não aproveitável como trabalho, seja qual for o sistema de utilização. Diríamos então, junto a Jean-Claude Milner, que é nesse mesmo materialismo que a psicanálise se inscreve, ao formalizar, na relação do sujeito ao gozo, esse algo que não se deixa absorver nas formas de equivalência em que se definem as diversas habilidades instrumentais.

Pois o fato é que se o próprio Freud insurgia-se, e isso já em 1917, até mesmo contra aqueles que, tomados de estima pela psicanálise, exortavamno a publicar estatísticas dos êxitos terapêuticos de sua doutrina, foi por saber que as estatísticas não tinham valor em casos incomparáveis (nicht gleichwertig), ou seja, sem princípio de equivalência entre si (Freud, 1999, p. 480). Para situar então esse algo que excede a todo princípio de comparação, cuja consideração nos distancia das demais práticas comprometidas com os procedimentos de avaliação psicológica, eu indicaria para discussão que tal objeto inavaliável, que o dispositivo psicanalítico exibe, diz respeito ao princípio soberano, localizado por G. Bataille, daquilo que para nada serve, daquilo que é por essência inútil.

Ao evocá-lo, ocorre-me lembrar da famosa cena de Garrincha, descrita por Rui Castro, que quase lhe custou a vaga na seleção: após tirar de jogada toda a defesa, em vez de chutar para dentro do gol, sem ninguém a sua frente, ele prefere, para escândalo dos expectadores, retornar para driblar mais dois adversários e somente depois chutar para as redes. Garrincha, de certa maneira, ali representa o jogar soberano como fim em si mesmo, que não serve ao gol como causalidade última.

Eu diria então, para finalizar, que diversamente do sentido instrumental da linguagem, em que os objetos encontram-se ontologicamente definidos em conformidade com o uso que determinado discurso autoriza, o que a relação ao gozo exibe – e a psicanálise revela – é a natureza da exigência pulsional como busca por algo que para nada serve (Lacan, 1973, p. 10). A metáfora da boca que a si mesma se beija, proposta por Freud para pensar o auto-erotismo, define claramente o arranjo do circuito pulsional como realidade independente de qualquer finalidade instrumental que se possa querer atribuir-lhe. É nesse sentido que o aspecto propriamente escandaloso da descoberta freudiana deve ser pensado, se não quisermos reduzi-la a uma mera liberação do dizer sexual. Tal escândalo se deve ao fato, que a prática psicanalítica evidencia, de que o sexo não se encontra naturalmente subordinado, como coisa ou objeto instrumentalizado do mundo, a nenhum tipo de finalidade exterior a sua própria satisfação, seja esta a finalidade biológica (reprodução) ou a finalidade cultural (sublimação). Se há algo de específico, com relação ao sexo, que o coloca em posição de escória no interior do mundo instrumentalmente ordenado, esse algo, que a idéia freudiana de uma perversão polimorfa infantil ressalta, é justamente a soberania da satisfação sexual como fim em si, dissociado de toda espécie de vínculo para com as normas instrumentais da avaliação.

 

Referências

Barthes, R. (1957). Mythologies. Paris: Seuil.        [ Links ]

Bataille, G. (1976). Théorie de la religion. In G. Bataille. Euvres complètes (Vol. 7, pp. 281-361). Paris: Gallimard. (Texto original publicado em 1947).        [ Links ]

Canguilhem, G. (1966). Qu’est-ce que la Psychologie? Cahiers pour l’Analyse, 1/ 2, 77-86.        [ Links ]

Castro, R. (1996). A estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha. São Paulo: Companhia das Letras.        [ Links ]

Foucault, M. (1977). L’Eil du pouvoir. In J. Bentham. Le panoptique. Paris: P. Belfond.        [ Links ]

Freud, S. (1999). Die analytische therapie. In S. Freud. Gesammelte Werke (Vol. 11, p. 466-482). Frankfurt am Main: Fischer Verlag. (Conferência proferida em 1917).        [ Links ]

Gould, S. (1981). The mismeasure of man. New York: W. Norton & Co.        [ Links ]

Lacan, J. (1966). Écrits. Paris: Seuil.        [ Links ]

Lacan, J. (1973). Le séminaire, livre XX – Encore. Paris: Seuil.        [ Links ]

Lukács, G. (1971). History and class consciousness. London: Merlin Press Ltd.        [ Links ]

Miller, J.-A. & Milner, J.-C. (2006). Você quer mesmo ser avaliado? São Paulo: Manole.        [ Links ]

 

 

Texto recebido em abril/2008.
Aprovado para publicação em maio/2008.

 

 

*Psiquiatra, mestre em Filosofia Contemporânea (UFMG), doutor em Psicanálise (Champ Freudien – Paris VIII), professor adjunto da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: amrteixeira@uol.com.br

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