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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.1 Belo Horizonte jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e pragmatismo: aproximações e possibilidades

 

Psychoanalysis and pragmatism: approaches and possibilities

 

Psicoanálisis y pragmatismo: aproximaciones y posibilidades

 

 

Marta Regina de Leão D’AgordI,*; Gabriel Inticher Binkowski**; Felipe Bücker Chittoni***

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 


RESUMO

Este trabalho realiza um diálogo entre a Psicanálise e a Filosofia pragmatista a partir de uma temática comum: a linguagem. Utilizase o método de análise comparada para analisar as concepções de linguagem em cada um desses dois campos. Se, para os pragmatistas, a linguagem é tratada como um jogo de linguagem, para os psicanalistas, a linguagem é enfocada através dos efeitos da fala. Enquanto que aos pragmatistas interessará a permanente construção de significações; aos psicanalistas interessará a possibilidade de novas significações através da análise de sintomas, sonhos, equívocos ou chistes. Entretanto, ambas as perspectivas se encontram pela aposta na abertura para novos sentidos gerada pelo campo da linguagem; assim como pelo abandono da busca de um referente último e pelas implicações éticas dessa aposta na abertura de sentido.

Palavras-chave: Psicanálise, Pragmatismo, Jogos de linguagem, Análise comparada.


ABSTRACT

This article develops a dialogue between psychoanalysis and the pragmatist philosophy based on a common theme: language. The comparative analysis method is applied to analyze the concepts of language in each field. If language is treated by pragmatists in terms of language games, for psychoanalysts, it is focused through the effects of speech. While pragmatists are occupied with the permanent construction of meanings, psychoanalysts consider the possibility of new meanings, through an analysis of symptoms, dreams, misunderstandings and jokes. Both perspectives, however, offer an opening to new directions generated by language, and give up the search for an ultimate referent and the ethical implications related to the idea of new directions.

Keywords: Psychoanalysis, Pragmatism, Language games, Comparative analysis.


RESUMEN

Este trabajo realiza un diálogo entre el Psicoanálisis y la Filosofía pragmatista a partir de una temática común: el lenguaje. Se utiliza el método de análisis comparado para analizar las concepciones de lenguaje en cada uno de esos dos campos. Si, para los pragmatistas, el lenguaje es tratado como un juego de lenguaje, para los psicoanalistas, el lenguaje está enfocado a través de los efectos del habla. Mientras a los pragmatistas les interesará la permanente construcción de significaciones, a los psicoanalistas les interesará la posibilidad de nuevas significaciones a través del análisis de síntomas, sueños, equívocos o chistes. Sin embargo, ambas perspectivas se encuentran al apostar por la apertura generada en el campo del lenguaje a nuevos sentidos; así como también por abandonar la búsqueda de un referente último y por las implicaciones éticas de esa apuesta por la apertura de sentido.

Palabras-clave: Psicoanálisis, Pragmatismo, Juegos de lenguaje, Análisis comparado.


 

 

Este artigo apresenta uma análise de questões relacionadas à linguagem na Psicanálise e no Pragmatismo. Nesta análise será ensaiado um diálogo entre dois diferentes campos, o que se torna viável através do método da análise comparada. Método que permite, de um lado, que os problemas que a Filosofia trata através da análise da linguagem beneficiem a teoria psicanalítica, na medida em que se pode lançar mão da lógica para o aprimoramento de questões e formalização de conceitos psicanalíticos. De outro lado, esse método é profícuo para trabalhar as oposições entre os dois campos, na perspectiva de oposições que geram uma determinação, isto é, ao se opor, os dois campos conceituais explicitam suas próprias questões.

Em “Função e campo da fala e da linguagem” ([ 1953] 1998b), Lacan anunciou o seu projeto da retomada dos trabalhos de Freud destacando um diálogo com o campo da linguagem e da Filosofia. O diálogo entre a Psicanálise e a Filosofia, que toma como cenário o campo da linguagem, tem sido ensaiado nos trabalhos de autores brasileiros. Dentre os quais salientamos dois ensaios de Stein (1997a, 1997b). No primeiro deles, Stein (1997a) separa as duas leituras possíveis que a filosofia faz da psicanálise: através dos paradigmas ordenadores, que buscam situá-la dentro de um sistema logicamente válido e com conceitos seguros, e dos paradigmas instauradores que produziriam, através de um universo semântico próprio, novas formas de olhar sobre questões caras à psicanálise. Dessa forma, novas perspectivas clínicas e teóricas se abririam, estas se orientando sempre para o não-sabido, ou seja, aquilo que cabe à Psicanálise e que tampouco pode e deve ser ordenado logicamente. Por outro lado, em um segundo ensaio, Stein (1997b) salienta que a Psicanálise tem a ganhar com o desembaraçamento que o conceito de sujeito ganha com o pragmatismo, após aquele ter se tornado “estéril” com o estruturalismo. Entretanto, o autor julga que as leituras pragmatistas ignorariam alguns dos problemas subjacentes que permanecem vivos nessa abordagem filosófica, como a relação entre as regras de caráter a priori de uso da linguagem e o acesso epistêmico aos fenômenos. Mesmo assim, Stein termina por aplaudir a aproximação entre a Psicanálise e o Pragmatismo.

Mas será que o paralelo entre a abertura de sentido na escuta psicanalítica e a concepção de jogos de linguagem poderia encontrar ressonâncias no campo filosófico pragmatista? E como essa idéia poderia ser recebida pelos autores que, assim como Stein, estabelecem um diálogo entre Psicanálise e Filosofia?

 

Jogos de linguagem: teoria e clínica

Quando se diz que a Psicanálise não trabalha com uma escuta preditiva e moralista, se afirma que ela trabalha com uma forma de escuta específica que se caracteriza pela abertura para novas possibilidades de sentido. Essas possibilidades são trabalhadas com base nos efeitos de linguagem na fala do analisante. Por exemplo, dado o acontecimento de um lapso ou equívoco de língua durante uma sessão clínica, a escuta clínica trabalhará com os novos sentidos que podem se abrir nas associações produzidas a partir desse acontecimento. É nesse sentido que o campo da linguagem interessa ao psicanalista. Em que essa forma de escuta se aproximaria da concepção de jogos de linguagem?

A segunda parte do trabalho filosófico do austríaco Ludwig Wittgenstein, caracterizada pela obra ,Investigações filosóficas, focaliza os diferentes usos da linguagem na vida cotidiana. Diferentemente das linguagens ordenadas (criadas por lógicos), a linguagem da vida cotidiana se coloca sempre aberta a novas possibilidades de significação, além da reconstrução da maneira como os termos são utilizados. Assim sendo, uma abertura de sentido é a precondição para o uso de linguagem. É porque há linguagem que é possível a fala. Mas, quando se trata de proposições, há, na Filosofia, a preocupação com a clareza do sentido de uma proposição.

Na Psicanálise, por sua vez, há uma diferença entre o discurso teórico e formal e o discurso do analisando, cotidiano e ordinário. Entretanto, ambos se interpenetram, pois o discurso de natureza teórica é produzido considerando a experiência clínica, mas também produz efeitos nela. Um comentário do psicanalista e psiquiatra Joel Birman (2002), em uma entrevista concedida à revista Percurso, problematiza esse limite:

Através de Freud, Lacan, Ferenczi, Tausk, Winnicott, e assim sucessivamente, a psicanálise constituiu historicamente diferentes jogos de linguagem. Jogos de linguagem entendidos no sentido wittigensteiniano do termo, ou então na versão de Foucault, que chama isso de jogos de verdade; isto é, nós criamos diferentes jogos de verdade para falarmos dos processos psíquicos e existe uma espécie de doença fatal dos psicanalistas que os faz acreditar que um jogo é melhor do que o outro. (Birman, 2002)

O termo utilizado por Birman (2002), doença, é muito interessante nesse contexto, já que faz referência direta a uma expressão do próprio Wittgenstein, que afirmava que a maioria dos problemas filosóficos, em especial os da metafísica, não passaria de erros no uso da linguagem, portanto deveriam ser tratados como uma doença dentro da Filosofia.

É nessa perspectiva que Birman (2002) nos convida, por um lado, a diferenciar processos psíquicos da explicação de processos psíquicos. As estruturas explicativas dos processos psíquicos não estão nas pessoas, mas nos nossos modelos teóricos. É por isso que uma estrutura psicótica não pode ser dita menos saudável. A estrutura não é correlativa do indivíduo. Por outro lado, Birman (2002) considera a importância dos jogos de linguagem na fala ordinária e a implicação desses para a constituição do sujeito psíquico.

Jurandir Freire Costa (1994), trabalhando com a releitura que Rorty faz de Freud, formaliza o argumento do pragmatista norte-americano em relação a este ponto: “[...] o que denominamos sujeito não é um dado preexistente aos elementos lingüísticos constitutivos de sua descrição... o sujeito é despojado de todo suporte ‘essencial’, idealista ou realista” (p. 6). Em outro texto, Jurandir Freire Costa (1995) trabalha de forma mais acurada com esses apontamentos de Rorty:

Redescrições é só uma maneira de acentuar a idéia de que o sujeito é uma realidade lingüística ou um efeito de linguagem e de dizer, por exemplo, que interpretações, perlaborações e construções em análise, não visam desvelar nenhum existente real que seja o “último” referente do desejo nem nenhuma estrutura onde se localiza o “irredutível” sujeito do desejo [...] nossa realidade psíquica é contingente e somos uma pluralidade identificatória sem centro ordenador metafísico, dada a vicariância, a variabilidade e a imprevisibilidade de nossos desejos. (Costa, 1995, p. 96)

Mas, não é porque o sujeito seja uma realidade lingüística que seu desejo deva ser vicariante, e sim porque ele é uma realidade lingüística que seu desejo também é uma realidade lingüística. Os jogos de linguagem trabalham na perspectiva de que não há uma essência enquanto dado natural, mas que o ser acontece em um horizonte de linguagem, isto é, em que os sentidos prévios e a produção de sentido exercem efeitos um sobre o outro.

Nesse diálogo que estamos propondo entre Pragmática e Psicanálise, a Psicanálise pode tomar de empréstimo os jogos de linguagem tanto de forma teórica quanto clínica, mas é preciso mostrar as peculiaridades de cada uma dessas formas. Para Wittgenstein, a expressão jogos de linguagem remete à “totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada” ([ 1958] 2005, p. 19). Os jogos de linguagem implicam um contexto no qual há produção de uma significação, mesmo quando os falantes não possuem consciência lógica do funcionamento da fala e da forma de ocorrência da significação. Trata-se, para o falante, de utilizar expressões que fujam ao equívoco. Na clínica psicanalítica, ao contrário, trata-se de tornar o equívoco produtivo. O trabalho analítico consiste em desmanchar a forma de significação operante naquele contexto, abrindo novas possibilidades de sentido. É por essa via que se insere a distinção que Lacan propõe entre fala vazia e fala plena. O equívoco faz parte da fala plena, mesmo se o sentido seja produzido no só depois. Enquanto que, na fala vazia, o sentido é tomado como já dado. Se no contexto filosófico, e em especial pragmático, o equívoco é desprezado, na clínica psicanalítica se reconhece o equívoco como fala plena. Vale observar que se na clínica esse equívoco perde o caráter de equívoco pelo fato de ser considerado uma forma plena de manifestação do sujeito, pois se reconhece que o sujeito fala ao Outro enquanto tesouro dos significantes, logo é possível também reconhecer outras formas de fala, como os neologismos.

Pode-se, então, considerar que o jogo de linguagem que se instala na clínica se apóia no equívoco. Nesse jogo, não se trata de encontrar uma equiparação entre os significados para ambos os falantes, mas de uma disparidade de posições. Não há equivalência entre os parceiros, um fala e outro escuta para além da significação contextual, isso é a forma de vida da psicanálise: a instauração de um jogo de linguagem que passe a ser vigente e válido naquele contexto. Na apropriação do equívoco na situação clínica, há a instauração de uma forma de vida que se faz vigente naquele contexto. A clínica pode então ser considerada como uma especificidade de forma de vida.

Podemos formular a hipótese de que a valorização da escuta do não-dito inclui a psicanálise e seu inventor, Freud, no que se convencionou chamar de giro lingüístico. É nesse sentido que é possível fazer essa análise comparativa entre jogos de linguagem e escuta clínica. Mas, em toda comparação, há que ressaltar as diferenças. Neste caso, o jogo de linguagem psicanalítico busca a abertura de sentido através da escuta dos interstícios, do semi-dizer. E se algumas formas de jogos de linguagem correm o risco de se limitar a uma estrutura binária significante/significado, válido/não-válido, a psicanálise pode, desde a escuta clínica, repensar essa forma binária, abrindo-a.

No próximo momento, estabeleceremos a condição para um jogo de linguagem psicanalítico, algo iniciado por Freud e que vem se desenvolvendo, de inúmeras formas, até os dias de hoje.

 

Formas de vida e homem psicanalítico

Em seus Estudos sobre histeria, após a descrição de alguns casos, Freud ([ 1895] 2003a) colocava a seguinte questão em relação aos seus achados que corroborariam a teoria dos processos, ou inteligência, inconsciente: esta armação dos processos e fenômenos psíquicos, as recordações – o que mais tarde Freud chamaria de construções –, existiria antes de ser explorada? Essa dúvida inicial sobre uma ontologia do inconsciente, esta abertura científica, permitiu, em nossa opinião, os desenvolvimentos ulteriores da psicanálise. Quais os motivos para isso?

Freud, influenciado por filósofos como Hartmann e Schopenhauer, pôde se perguntar, clinicamente, sobre o fundamento dos processos que estaria observando em suas pacientes histéricas. Sua dúvida sobre a existência prévia de uma inteligência inconsciente abriu espaço para a observação clínica e a produção desses fenômenos dentro de um determinado espaço clínico – num fenômeno denominado por psicanalistas como “histericização”.

Nesse espaço, e na influência da psicanálise sobre a cultura no século XX, se produz um jogo de linguagem movido por uma falta, uma falta que chamamos de sujeito. Esse será o grande foco de Lacan, especialmente em suas teorizações sobre o uso que a psicanálise pode fazer da lingüística.

Santaella (1989), em um de seus trabalhos sobre o tema, coloca a questão: pode o inconsciente ser reduzido a uma questão de linguagem? Sim, se as formações do inconsciente são hiâncias por onde emerge o sujeito do inconsciente, e há uma combinatória significante que subjaz a essas hiâncias. É por isso que essas formações podem ser encontradas através de tropeços na fala e no encadeamento de associações dentro de um processo analítico. Mas, para Santaella (1989), há também um indeterminado, um inominável, que faz com que o tema do inconsciente não se reduza à questão da linguagem.

Assim, de forma quase paradoxal – contudo, logicamente necessária na teoria psicanalítica –, pode-se mencionar a necessidade de uma dimensão anterior para a fala, mas que só existiria no só depois (nachträglich, après-coup). Eis o sujeito do inconsciente, essa falta que é responsável pelo movimento no discurso do indivíduo falante. Santaella (1989) fala em uma “falsa contigüidade da cadeia significante e as ilusões da presença do sujeito” (p. 124). Uma forma de vida psicanalítica supõe um sujeito que aparece no só depois.

A psicanálise, dessa forma, produz os fenômenos que estuda e, assim, um tipo de homem psicanalítico, na definição de Herrmann (2001).

Ele, que possuía uma identidade aparentemente confiável, crível (ainda que fosse um psicótico), submete-se a uma crise existencial que lhe questionará o mais íntimo do seu ser. Não mais crê em si agora. Se a crença é a função psíquica, pré-consciente, que sustenta toda e qualquer representação [...], pode-se dizer que o Homem Psicanalítico admite uma crença ao revés, cede parte de sua sustentação identitária para readquiri-la ampliada [...], os espaços abertos pela abdicação provisória de uma identidade, antes reputada sólida, serão o lugar de sucessivas experiências provisórias de assunção de identidades alternativas. [...] o ser em condição de análise, o Homem Psicanalítico, nasce de uma crise experimental da identidade. Ao mesmo tempo e de maneira simétrica, essa crise afeta-lhe também a realidade. Pois a realidade, tanto quanto identidade, é representação; realidade é o complemento simétrico da identidade e tão característica do sujeito como esta. Assim, o Homem Psicanalítico também experimenta realidades distintas e provisórias, testa mundos, prova aproximações alternativas ao real. (Herrmann, 2001, p. 22)

Numa definição pragmatista, o Homem Psicanalítico poderia operar simbolicamente com as significações, seja pela fala seja pelo imaginário. O que a filosofia pragmática nos mostra, portanto, é justamente que a produção deste homem psicanalítico é fruto de um jogo de linguagem na clínica, ou seja, é uma forma de vida. O conceito de forma de vida encontraria, na clínica psicanalítica, uma de suas aplicações.

 

Chistes e intencionalidade

Para avançar essa análise comparativa, introduzimos outro elemento na discussão: o chiste, uma formação do inconsciente mais refinada e sobre a qual Freud dedica um livro e alguns ensaios que influenciaram fortemente suas posteriores obras metapsicológicas.

A análise psicanalítica dos atos falhos e dos chistes ou ditos espirituosos contribuirá para pensar o problema da intencionalidade inconsciente no campo da linguagem. Esse problema já havia sido apresentado por Freud no 12º capítulo de sua Psicopatologia da vida cotidiana ([ 1901] 2003b), quando analisou a causalidade psíquica, realizando um dos passos mais arriscados e, por sua vez, sólidos na constituição do que entendia por psicanálise. Ao mostrar que os processos inconscientes estariam vinculados a certos atos aparentemente não intencionados que, através de uma análise, se mostrariam determinados por motivos desconhecidos da consciência. Ou seja, o psíquico é o inconsciente. A psicanálise se apóia, portanto, sobre a intencionalidade inconsciente para poder explicar os fenômenos aos quais se propõe.

O chiste ou dito espirituoso é um enunciado caracterizado pela brevidade, lúdico, que irrompe espontaneamente e provoca risos no grupo de ouvintes. Como Freud ([ 1905] 2003c) descreve: um pensamento pré-consciente ou um curso de pensamento é por um instante abandonado à revisão do inconsciente, surgindo repentinamente como chiste e provocando o riso na audiência. Essa colaboração entre um pensamento inconsciente e um pensamento préconsciente é o que faz dos chistes um exercício de nonsense. O chiste é um exercício do significante que leva ao máximo a polissemia e sua função criadora que se apóia nas estruturas da condensação (metáforas) e do deslocamento (metonímia). Freud ([ 1905] 2003c) mostra que os chistes perpetuam, na vida adulta, o prazer do nonsense.

O chiste seria como um jogo que consiste na fragmentação do discurso e no nonsense que daí advém. Com Lacan (1998c), poderemos avançar e afirmar que o chiste é um jogo de linguagem enquanto jogo significante. Isto é, um jogo com a similaridade fonética do passo-de-sentido (pas-desens), do pouco-sentido (peu-de-sens) e do sem sentido (pas-de-sens). A própria similaridade fonética permitiria conceber que, do sem sentido, pode ser produzido outro sentido. No chiste, a intenção do indivíduo é ultrapassada pela trouvaille1 do sujeito. Isto é, a palavra esgota o sentido da palavra no ato que a engendra. Lacan (1998b) então inverte a expressão goetheana, que diz que no início era a ação, e propõe “no início é o verbo”, e nós vivemos na sua criação, “mas é a ação de nosso espírito que dá continuidade a essa criação” (1998b, p. 273). Nesse sentido, o chiste é criação enquanto abertura para novos sentidos.

Tomando o estudo de Freud sobre os chistes, Wittgenstein reapresenta a questão do vínculo entre jogos de linguagem e intencionalidade. Para Wittgenstein, deixar tudo ao acaso seria o mesmo que dizer que qualquer tipo de interpretação seria válido, pois não haveria controle algum sobre os seus efeitos. Como poderia ser admissível uma escuta clínica que, mesmo que equiflutuante, procedesse com um rigor no seu desenrolar?

Um questionamento de Wittgenstein à obra de Freud se deveria à hipótese de um referente que estabeleceria a verdade desvelada pelos sujeitos em tratamento. Freud teria encontrado no inconsciente este referente tal como um motor responsável pela movimentação do psiquismo? Como admitir uma intencionalidade sem um referente?

Se, para a interpretação de um sonho, considera-se a realização de desejo como uma causa, e se uma causa pode ser tomada como referente, é preciso esclarecer a diferença entre intencionalidade e referente.

Para isso, é preciso responder a partir dos fenômenos. Quais são os fenômenos? Os fenômenos são fenômenos de fala em associação livre. Os fenômenos de fala em associação livre seriam clínicos e apareceriam na linguagem. Assim, se a escuta psicanalítica pode ser considerada como um jogo de linguagem enquanto abertura de sentido e, como em um jogo de linguagem, não se reconhece um referente. Em seu texto “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, Lacan ([ 1957] 1998a) afirma que “nenhuma significação se sustenta a não ser pela remissão a uma outra significação” (p. 501). Ainda, chama de ilusão achar que o significante responderia à função de representar o significado.

Frege (1848-1925), um dos precursores da filosofia analítica, introduziu a expressão sentido (sinn) como uma abertura na relação de significação. Assim, também Lacan vai mostrar que há algo a mais na relação entre os signos. Ou seja, se a definição semiótica do signo como indicando algo para alguém jogava com uma definição ou determinação a cargo de um intérprete, com a indicação de que um significante produz um sujeito para outro significante, Lacan destaca essa abertura de sentido que vinha sendo reivindicada na própria Filosofia.

 

O inconsciente é pragmático?

O filósofo pragmatista norte-americano Richard Rorty, em um diálogo com Umberto Eco, assinala a indistinção entre interpretar e usar textos (ou falas). Rorty (1993) considera que não há distinção entre uso e interpretação e que do ponto de vista pragmático “tudo o que alguém faz com uma coisa é usá-la” (1993, p. 110). A interpretação realizada pelo leitor é um uso do texto. Rorty (1993) chama a atenção para a ilusão do que ele chama de “metáfora da profundidade”, caracterizada, em algumas concepções filosóficas dos séculos XIX e XX, pela busca de conexões ocultas entre os fatos do mundo. Em sua crítica ao estruturalismo, Rorty (1993) brinca com a imagem de “arrancar os véus da aparência para revelar a realidade” (p. 105).

Essa perspectiva de indistinção entre uso e interpretação de textos pode muito bem ser transposta para a relação entre fatos e narrativas de fatos. A escuta clínica não diferencia os fatos das narrativas dos fatos. Para uma escuta clínica, a narrativa de um fato ou a narrativa de uma lembrança da infância é uma reelaboração, portanto uma criação e construção. Assim, em nível da realidade psíquica, aquela que é considerada na escuta psicanalítica, há indistinção entre fatos e narrativa de fatos. A produção de fala em associação livre, isto é, enquanto criação, envolveria, por conseguinte, uma dimensão pragmática dos processos inconscientes?

Nesse aspecto, é possível pensar uma aproximação entre a perspectiva da Filosofia pragmatista e a da Psicanálise. Do lado da Psicanálise, teríamos a fala criadora a partir do dispositivo da associação livre. Do lado da Filosofia pragmatista, teríamos os jogos de linguagem. Ambos os processos podem ser reunidos sob a perspectiva da abertura de novos sentidos ou novos efeitos de significância.

Do ponto de vista pragmatista, poder-se-ia perguntar pelo uso que Freud teria feito dos sonhos como um jogo de linguagem. Para Wittgenstein (apud Assoun, 1990), as imagens do sonho não podem ser definidas como parte de um quebra-cabeça, e sim como um “fragmento vivo” revelador da história do indivíduo. “O que é fascinante no sonho não é o seu vínculo causal com os acontecimentos da minha vida, mas, antes de tudo, o fato de que ele age como um fragmento e um fragmento muito vivo cujo resto permanece obscuro” (Wittgenstein apud Assoun, 1990, p. 137).

Destacamos, nesse texto de Wittgenstein, a idéia do fragmento que aponta com mais força a forma como este filósofo enfoca a interpretação onírica: o sonho apresentaria um “caráter inspirador” ao seu sonhador, o único público interessado. Assim, para Wittgenstein, trata-se de “jogar com as possibilidades indefinidas que um sonho implica” (Assoun, 1990, p. 138), e não tentar conformar um sonho a uma determinada interpretação. Wittgenstein segue, portanto, o preceito da indistinção entre usar e interpretar textos, agora transposta para usar e interpretar sonhos.

Nosso fio condutor para abrir o diálogo entre psicanálise e pragmatismo consiste em mostrar que a prática psicanalítica é um jogo específico de linguagem. Encontraremos novas aberturas para esse diálogo na definição de Lacan ([ 1966] 1998c) do campo da psicanálise como inserido no campo da linguagem. Para Silveira Sales (2004), o essencial, na abertura de Lacan para o campo da linguagem, é que “a estrutura da linguagem, sendo o próprio inconsciente, se articula na fala do sujeito que, em sua historicidade e finitude, entra, com o psicanalista, num processo de troca dialética que se direciona para a verdade de seu desejo” (p. 50).

E o que se pode considerar como função da fala senão a de abertura de sentido da linguagem, isto é, a entrada no jogo da linguagem? Nessa concepção, o psicanalista francês apresenta o homem como habitante da linguagem. Existindo na linguagem, o homem estaria operando e sendo determinado pela ordem simbólica. O homem, portanto, habitaria a linguagem e existiria nela e a partir dela.

O problema da linguagem acompanha a aurora do pensamento ocidental. Quando Aristóteles tematizou o ser como a substância primeira, diferenciou substância primeira de substâncias segundas. Substância primeira, prwthousia é o que não se predica de um sujeito, mas que está presente (se inclui) nas substâncias segundas, as espécies e os gêneros. As substâncias primeiras possuem predicados (as categorias, que são as substâncias segundas), mas não são predicáveis. A substância primeira é o que está sempre no processo de predicar (nomear), mas que não pode ser predicável, é o conceito, é o nome. Aristóteles oferece o exemplo da cor: a cor depende do corpo para ser um predicado, mas a própria cor, o predicado, não é apreendida se não houver um corpo a predicar. A substância primeira é o que inere na predicação de sujeitos, é o que inere nas categorias, mas não é predicável, no sentido de que não é uma coisa. Sua característica é estar inerente a todo ato de nomeação, é o nome da coisa, mas não é a coisa. É possível comparar a substância primeira com a função simbólica da linguagem? Considerando o simbólico como a condição de possibilidade de criação de novos jogos de linguagem, essa comparação é possível, desde que se estabeleça que o falante, ao se engajar em um ato de fala, projeta atrás de si, uma linguagem que o antecipa. E o inconsciente é efeito dessa projeção nos intervalos deste jogo de signos preestabelecidos pela língua, ou seja, o inconsciente se utiliza das propriedades criativas da língua (os jogos de linguagem), para a produção de aberturas de sentido.

Assim, se o olhar pragmatista sobre a psicanálise questiona, em algum momento, a experiência psicanalítica, em um segundo momento é a teorização psicanalítica, a partir da escuta clínica, que vem mostrar que é para uma abertura de sentido inesgotável que a clínica está dirigida. Essa abertura de sentido na clínica conduz a uma outra questão: a Psicanálise, enquanto prática de escuta seria, antes de tudo, uma experiência ética?

 

Ética: diálogo entre psicanálise e pragmatismo

A discussão sobre o abandono da busca por um referente tem também implicações éticas. Esse é um aspecto decisivo do diálogo entre pragmatismo e psicanálise. Ao retomarmos o que foi trabalhado sobre a escuta e a intervenção psicanalítica, é possível comparar a situação da escuta psicanalítica com a leitura pragmatista. Para um pragmatista, não há distinção entre uso e interpretação de textos, pois “tudo o que alguém faz com uma coisa é usá-la” (Rorty, 1993, p. 110). Para um psicanalista também não há essa distinção.

Através de uma análise comparativa, pode-se apontar para a perspectiva pragmática do inconsciente, pois a linguagem é utilizada, pelo analisante, para narrar, e, nessa narrativa, surgem novas possibilidades de significação. Dessa forma, é possível considerar que a escuta psicanalítica mostra que é na fala que se criam significações. Trata-se de uma forma especial de abordar os fatos, que, para aquele que escuta, o psicanalista, não têm outra realidade que a realidade psíquica. Nesse aspecto, o pragmatismo mostra sua aproximação com a Psicanálise por também abandonar a procura de um referente.

Na relação transferencial com o outro, instaura-se o jogo psicanalítico de linguagem, um modo particular de abertura de significação, tanto das cenas narradas pelos pacientes quanto da relação transferencial. A psicanálise, dessa forma, passa a trabalhar não mais com o inconsciente em um nível ôntico, mas em nível ético. Um estatuto ético do inconsciente já havia sido apontado por Lacan ([ 1964] 1985).

Nesse nível ético, o inconsciente é pragmático, pois o inconsciente não diferencia fato e linguagem. E a escuta clínica é ética enquanto reconhece as formações do inconsciente como criações desejantes. Assim, não se trabalha na perspectiva de referente último ou causa, mas na perspectiva da criação e recriação.

A Psicanálise enquanto atividade clínica acontece em um contexto de experiência ética, tanto em relação ao analisante quanto ao social. Como experiência ética, situamos a escuta do desejo como ponto-chave para a abertura do discurso e também de partida para criações que dêem visibilidade e reconhecimento ao desejo, levem-no a existir e se fazer presente através de novas produções discursivas, inclusive éticas. Assim sendo, a psicanálise, enquanto escuta clínica, age sobre os discursos sociais, enfim, intervém sobre as formas do homem existir e se fazer no mundo. As conversas entre a Psicanálise e as diferentes correntes filosóficas – e também outros campos de produção de saberes – passam a se dar como possibilidades de intervenção ética (e também estética, estilística) sobre os discursos que permeiam os pacientes e a sociedade, e não como uma tentativa pura de formular novos saberes (que não dêem espaços para novas produções), que encapsulem e aprisionem as formações desejantes.

 

Referências

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Texto recebido em outubro/2007.
Aprovado para publicação em maio/2008.

 

*Doutora em Psicologia, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia – UFRGS, membro do GT Pesquisa em Psicanálise da ANPEPP, membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. E-mail: mdagord@terra.com.br
**Acadêmico de Psicologia (Instituto de Psicologia – UFRGS). E-mail: gibinkowski@yahoo.com.br
***Acadêmico de Psicologia (Instituto de Psicologia – UFRGS). E-mail: felipbraz@yahoo.com
1A rede de atenção deve ser constituída de forma a agregar serviços de complexidade crescente, configurando três níveis de atenção: atenção primária (ou baixa complexidade), que são ambulatoriais e devem contar com profissionais generalistas que possam oferecer os cuidados básicos de promoção, manutenção e recuperação da saúde; atenção secundária (ou média complexidade), que podem ser ambulatoriais e hospitalares, onde são prestados os cuidados especializados; e as unidades de atenção terciária (ou alta complexidade), que são constituídas pelos centros hospitalares, sendo, nelas, aferidos cuidados de maior complexidade, muitas vezes sob o regime de internação (Santos et al., 2003).
2De acordo com Fernandes (2004), urgência é uma “ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência imediata” (p. 2).
1Trouvaille é um termo francês que designa o fato de descobrir ou ter uma idéia original de uma maneira feliz.

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