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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.1 Belo Horizonte jun. 2008

 

ARTIGOS

 

A política do psicanalista: o saber da psicanálise entre ciência e religião

 

The psychoanalyst’s policy: the knowledge of psychoanalysis between science and religion

 

La política del psicoanalista: el saber del psicoanálisis entre ciencia y religión

 

 

Tania Coelho dos Santos*

Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Partindo do laço entre o advento da ciência e da modernidade com o nascimento da psicanálise, foi preciso encontrar as ferramentas conceituais para pensar também, psicanaliticamente, o contemporâneo. O corte entre o moderno e o contemporâneo é, freqüentemente, reduzido ao mero tempo presente, à alta modernidade; ou à hipermodernidade. A unificação das ciências reduz todos os saberes a um mercado único, produzindo um novo mal-estar na civilização: a homogeneização dos saberes. Não existe um saber que sirva de medida comum, pois o saber não é um bem intercambiável. Nem todos, portanto, terão acesso ao mais de gozar que ele engendra. O sintoma é essa maneira como cada um sofre em sua relação ao mais de gozar. Eis aí uma nova forma de impostura que me parece sob medida para circunscrever o conceito de contemporaneidade.

Palavras-chave: Modernidade, Contemporaneidade, Saber, Verdade.


ABSTRACT

The bond between the advent of science and modernity with the birth of psychoanalysis brings about the need to find conceptual tools to consider the contemporary world psychoanalytically as well. The gap between the modern and the contemporary is often reduced to the present time, to high modernity or to hyper-modernity. The unification of sciences reduces all knowledge to a single market, thus bringing about a new discomfort to civilization: the homogenization of knowledge. Knowledge cannot work as common measure, since it is not an interchangeable asset. Not everyone, therefore, will enjoy the profit that it engenders. The symptom is the way each one suffers in the relation with joy as a profit. There lies a new form of fraud that seems just perfect to circumscribe the concept of contemporaneity.

Keywords: Modernity, Contemporaneity, Knowledge, Truth.


RESUMEN

Partiendo del lazo entre el advenimiento de la ciencia y de la modernidad con el nacimiento del psicoanálisis, fue necesario encontrar las herramientas conceptuales para pensar también, psicoanalíticamente, lo contemporáneo. El corte entre lo moderno y lo contemporáneo es, frecuentemente, reducido al mero tiempo presente, a la alta modernidad; o a la hipermodernidad. La unificación de las ciencias reduce todos los saberes a un mercado único, produciendo un nuevo mal-estar en la civilización: la homogeneización de los saberes. No existe un saber que sirva de medida común, pues el saber no es un bien intercambiable. Ni todos, por lo tanto, tendrán acceso al plus de goce que él engendra. El síntoma es la manera como cada uno sufre su relación con el plus de goce. He ahí una nueva forma de impostura que me parece a la medida para circunscribir el concepto de contemporaneidad.

Palabras-clave: Modernidad, Contemporaneidad, Saber, Verdad.


 

 

Nossa perspectiva

A psicanálise, segundo Freud (1933 [ 1932] 1976, p. 194), não deve ensejar uma Weltanschäuung1 própria. Ela faria parte, da grande Weltanschäuung da ciência. Jacques Lacan, em seu retorno aos fundamentos da doutrina psicanalítica, revelou que é a concepção estruturalista aquilo que permite incluíla no campo da ciência. Mais além de sua dependência da ciência, a psicanálise é uma prática que se difunde na cultura e tem incidências inegáveis sobre a subjetividade do século XX. O laço analítico desponta como uma alternativa a outros laços sociais mais antigos e consolidados, com o médico ou com o padre.

A vizinhança do laço analítico com a ciência e com a fé, entre a medicina e o confessionário, é suficiente para pôr em dúvida sua dependência da Weltanschäuung da ciência? Desde cedo, sob a influência da genealogia do poder de Michel Foucault, minha abordagem epistemológica foi marcada pela inquietação política. Seria a psicanálise um dispositivo de poder a serviço do progresso da scientia sexualis? (Foucault, 1977, 1984). Deve ser incluída entre as práticas religiosas de confissão que visam colocar o sexo em discurso? Ou seria preciso buscar a arqueologia da psicanálise nas práticas, eminentemente éticas, que desde a Grécia antiga preocupam-se com o cuidado consigo próprio e o uso correto dos prazeres? (Foucault, 1985).

 

De Freud a Lacan: o moderno e o contemporâneo

O retorno de Lacan a Freud permitiu superar muitas dessas questões. Passo a destacar as principais teses lacanianas que justificam meu ponto de vista. O sujeito da psicanálise depende do campo da fala e da linguagem para constituir-se como tal (Lacan, [ 1953] 1966, p. 237-322). Não é, portanto, um indívíduo em sua imediaticidade, um dado da natureza. A psicanálise tão pouco existe desde sempre. Sua emergência depende do advento da ciência. Somente à medida que a ciência opera reduzindo os dados da experiência sensível a objetos formais, sem qualidade, é que o sujeito sobre o qual a psicanálise opera constitui-se enquanto tal (Lacan, [ 1965-66] 1966, p. 855-878). Lacan esclarece que o dispositivo analítico é um discurso que depende do advento do discurso da ciência. Mais precisamente, o discurso analítico insere-se entre o discurso do mestre (religião/direito) e o discurso da histérica (ciência).2

Em meu percurso de pesquisa, pensar o laço entre o advento da ciência e da modernidade com o nascimento da psicanálise não foi o trabalho mais difícil. Meu desafio maior foi, e ainda tem sido, o de encontrar ferramentas conceituais para pensar psicanaliticamente o contemporâneo. Muitos pesquisadores não reconhecem o corte entre o moderno e o contemporâneo. Freqüentemente, o reduzem ao mero tempo presente, à alta modernidade ou à hipermodernidade. É o caso de alguns conhecidos sociólogos: Anthony Guiddens, Richard Sennet e Zigmunt Bauman, entre outros. Diferentemente, o eixo proposto por Lyotard (1989) para pensar a condição pós-moderna, inscreve-se a partir dos efeitos de maio de 1968. O elenco de fenômenos subjetivos e socioculturais, que descreveriam essa nova condição é muito amplo. A ideologia freudo-marxista, os movimentos sociais pela liberação da sexualidade, o feminismo, o declínio das grandes narrativas, o relativismo moral, a cultura do narcisismo, a absolutização do direito ao gozo seriam alguns dos seus efeitos. Uma nova orientação da ideologia individualista impele à reivindicação generalizada do direito de ser tratado como uma exceção (Coelho dos Santos et al., 2005, p. 77-96), ao consumismo, às compulsividades, ao império dos semblantes e à sujeição à chuva de objetos.

Em meu curso deste ano, sobre Psicanálise e Lógica – dediquei-me a comentar o Seminário XVI “De um outro ao outro” (Lacan, [ 1968-69] 2006 –, recém-estabelecido por Jacques Alain Miller. Foi com satisfação que encontrei nele a seguinte definição lacaniana da contemporaneidade: a entrada do saber no mercado.

É, originalmente, por meio da renúncia ao gozo, que começamos a saber um pouquinho, sem que seja preciso trabalhar para isso. Não é porque o trabalho exige a renúncia ao gozo, que toda renúncia ao gozo se faça por meio do trabalho. [...] O saber não tem nada a ver com o trabalho. Mas, para esclarecer um pouco esse negócio, é preciso que exista um mercado, um mercado de saber. Ora, eis aí o que se precipita, e não tínhamos a menor idéia. Deveríamos ter tido ao menos uma pequena intuição, considerando a forma que as coisas vêm tomando, e o ar de que isso toma há algum tempo na Universidade. (Lacan, 2006, p. 39)

Durante esse seminário, o ensino de Lacan foi evacuado da École Normale Supérieure, onde Althusser o acolhera alguns anos antes. Esse fato se dá em meio aos movimentos estudantis de maio de 1968, quando cresce a ambição política de reduzir todo saber a um saber sem mestria: ao novo império do diploma universitário. Lacan (2006) observa, igualmente, que o saber é apenas o preço que se paga pela renúncia ao gozo. A unificação das ciências reduz todos os saberes a um mercado único. Essa homogeneização dos saberes no mercado produz um mal-estar na civilização muito preciso: o mais de gozar, obtido por meio da renúncia ao gozo, leva em conta o princípio do valor do saber. Ora, o saber não é um bem intercambiável. Nem todos, portanto, terão acesso ao mais de gozar que ele engendra. O sintoma é essa maneira como cada um sofre em sua relação ao mais de gozar.3 Não existe verdade social média, abstrata, nem um saber que sirva de medida comum para todo mundo. Eis aí uma nova forma de impostura que me parece sob medida para circunscrever o conceito de contemporaneidade.

Lacan antecipa que, graças à impostura da homogeneização do saber, vai se dar uma proliferação acelerada na cultura do saber acéfalo, desvencilhado da castração, do peso da transmissão pelo mestre. O saber devém equivalente à pulsão. Surpreendentemente, sua resposta a essa conjuntura política nefasta foi uma aposta renovadora nos poderes da lógica. É um elogio da ciência contra o gosto pelo historicismo. Sua pesquisa consistirá em reduzir o mais essencial da teoria psicanalítica a um discurso sem palavras. Toda a teoria psicanalítica poderia ser traduzida nos três termos: o saber, o gozo e o objeto a. Hiperformalização, portanto, do Nome do Pai (S1), do desejo da mãe (S2) e da criança (a).

 

Psicanálise e ciência

Após o Seminário XVI (“De um outro a um outro”) no seminário que se seguiu, “O avesso da psicanálise” ([ 1969-70] 1991), essas letras se arranjam segundo uma ordem fixa, cuja permutação de lugares é predefinida, como um discurso sem palavras. O que garante a ordem própria aos discursos é sua gênese, a dependência lógica de um ponto no qual é impossível decidir se é falso ou verdadeiro. O que é um indecidível? Para compreender melhor esse ponto, lanço mão de um exemplo divertido que encontrei num artigo recente (Abelhauser, 2006, p. 189-198). Observem a sentença que se segue: “Esta fase contém quatros eros”. Dado que só há três erros, a afirmação é incorreta. Mas se a afirmação é incorreta, então, há quatro erros. O quarto seria um erro de conteúdo. É nesse ponto que começa a ficar divertido, pois se a frase contém quatro erros, logo ela é correta. Se ela é correta, então o erro de conteúdo não existe. Mas se o erro de conteúdo não existe, não há quatro erros e, portanto, a frase está incorreta! Enfim, não há solução!

Dessa âncora da lógica num ponto indecidível decorre a seguinte formalização: existiria uma equivalência estrita entre discurso, sintoma e laço social. Todo discurso é um sintoma, uma defesa contra o real como impossível de reduzir à oposição entre verdadeiro e falso. Cada discurso organiza uma modalidade de laço social. São quatro os discursos, segundo a ordem de aparecimento na história: o do mestre, o da histérica, o da universidade e o do analista. Para compreendê-los, podemos estabelecer uma equivalência com a ordem de aparecimento dos saberes. Primeiro surgiu o saber fundado na autoridade da religião (primeira forma do direito). Depois, o saber autoral do cientista que é diferente do saber anônimo dos universitários que o sucede. Finalmente, surge um saber que não se separa do gozo: o saber do analista. Acontece que o discurso do capitalista rompe com a regra que os constitui enquanto tal – anunciando que tudo é possível – e desarranjando a ordem de permutação das letras. Essa é a chave para abordar os efeitos subjetivos, na contemporaneidade, do poder acéfalo do saber homogeneizado: o desarranjo da ordem de permutação das letras.

O discurso do capitalista provoca uma ruptura nas relações entre o saber, o gozo e o objeto a. O sentido do sintoma foi progressivamente desvinculado do real. O que os mantinha unidos era o fato de que ele dizia algo para alguém, aquele que se oferecia para escutá-lo, para interpretá-lo. Os sintomas vêm sendo reduzidos ao silêncio, são pulverizados, destituídos de sua lógica e estrutura, enumerados num catálogo – o DSM IV – de distúrbios (Miller, 2005, p. 15).

 

Por que um discurso sem palavras?

Volto ao meu ponto de partida. Que efeitos a difusão da psicanálise opera na subjetividade e na cultura? A difusão da psicanálise, à medida que alimenta a ideologia individualista (Coelho dos Santos, 2001, p. 115-181), contribui para dissolver os laços sociais e acentua a proliferação desordenada do saber acéfalo. A posição do analista, que consiste em operar com o objeto a em posição de agente, concorreu em nossa história recente, para elevar o objeto a ao zênite da civilização (Miller, 2005, p. 13). Podemos extrair a seguinte questão: o sujeito contemporâneo deve ser definido ainda como barrado em seu gozo pulsional, pelo significante do Nome do Pai? Afinal, vemos crescer, contemporaneamente, a dependência dos indivíduos do objeto para efetuar uma localização do excesso pulsional, em detrimento da relação aos ideais. Isso prova o fracasso da metáfora paterna? Seria necessário até, talvez, inverter o raciocínio habitual. Não é verdade que sejamos consumistas porque deixamos de ser orientados pela função do ideal. Ao contrário, o objeto de consumo, e não o significante do Nome do Pai, é o que nos orienta hoje e nos permite circunscrever o gozo e limitá-lo, reduzí-lo, localizá-lo. Fazer do vício virtude é a verdadeira sabedoria do homem contemporâneo?

A absolutização da lei do mercado promete que tudo pode ser comprado ou vendido. Não haverá, num futuro próximo, nenhum objeto irredutível a lei da troca? Nem mesmo o corpo, seus órgãos, suas células, óvulos, espermatozóides e embriões são inegociáveis. Isso é inquietante! Onde poderá refugiar-se o objeto do gozo fantasmático? Os sintomas serão cada vez mais descartáveis, ready-made, prêt-à-porter e dispensarão a complicada engenharia libidinal do inconsciente? As realidades psíquicas encontrarão a sua mais completa tradução na nova geração de medicamentos? O campo da fala e da linguagem ainda vai render-se à sabedoria pavloviana das terapias cognitivo-comportamentais? Psicanalistas! É preciso refazer nossa aliança com a ciência. Um oceano de falsa ciência ameaça nos afogar numa imensa onda de protocolos pseudocientíficos!

Nós sabemos que o sentido do sintoma não é objetivável, que há um intervalo entre a causa, o traumatismo, e a estrutura do sintoma. O gozo com o sintoma, por sua vez, é um benefício que não se dissolve, se redistribui ou se redireciona de acordo com procedimentos protocoláveis. Essa é apenas mais uma, entre outras conseqüências nefastas, da aliança entre o discurso do mestre (S1-à S2) e o saber (S2 -à a), que resultaram em deformações bastante sensíveis na dimensão assimétrica de alguns laços sociais depois de maio de 1968. Quais são elas? O esvaziamento da potência oracular do significante mestre, que como Jacques Lacan já antecipava em “Les complexes familiaux dans la formation de l’individu” ([ 1938] 2001), nos conduziria à grande neurose caracterial contemporânea. A oposição, banalizada na cultura atual, à autoridade infundada do significante mestre, rejeita a verdade enigmática do inconsciente, preferindo a transparência dos acordos igualitários. A maciça rejeição à feminilidade na política, celebrada na máxima: nada é de graça,4 recusa-se a distinguir os deveres régios do Estado das obrigações contratuais entre indivíduos em posições equivalentes. Nem a diferença geracional nem a diferença sexual resistem a essa máquina discursiva homogeneizante. O que foi feito da imoralidade do significante mestre?

Em 1968 (no Seminário XVI “De um outro ao outro”) e como uma reação antecipada à futura redução da psicanálise a um saber entre outros, Lacan apresenta sua versão ultra-reduzida da psicanálise como um discurso sem palavras.

 

De uma discutível nova moralidade…

O declínio da pesada moral civilizada repressiva, causa das doenças nervosas modernas, vem cedendo seu lugar à nova moralidade light, anti-repressiva, contratual, persuasiva, que não se orienta pelos ideais, e sim pelo objeto de satisfação. A lei oracular e assimétrica do supereu que interdita o gozo reduziu-se a busca da máxima proporção possível entre custo e benefício. O sonho de nossa época é contabilizar o gozo e maximizar sua utilidade. O esforço de medir, regulamentar, distribuir e homogeneizar o campo da satisfação visa garantir o prazer seguro e dissolver preventivamente todo mal-estar. Uma profunda inversão entre a oferta e a demanda está em curso. Para aproveitar sempre a melhor oferta é preciso adquirir quase tudo aquilo de que não precisamos. Acumular objetos para evitar a escassez, anular a falta, esmagar a demanda e obturar a causa do desejo.

O declínio da moral sexual civilizada não nos deixou inteiramente náufragos, à deriva, ou desbussolados. A civilização contemporânea se orienta pelo objeto a (a à $) na sua dimensão de mais de gozar, de lucro, de mais-valia. A difusão da psicanálise contribuiu muito para o emagrecimento da mestria (Miller, 2006, p. 75-84) e nos impõe um esforço a mais para refazer, com urgência, uma nova aliança com os métodos da ciência. Isso é mais do que necessário, é urgente, se não quisermos mergulhar nos fundamentalismos nostálgicos do passado ou submergir às avaliações positivistas.

A prática lacaniana é sem protocolos, mas não é, de modo algum, sem princípios. Ela é passível de ser avaliada cientificamente, pela fidelidade aos princípios do discurso da psicanálise e não pela observância de quaisquer protocolos pseudocientíficos. É pela fidelidade ao “espírito da pesquisa freudiana” que continuaremos a assegurar nossa aliança com a ciência. Essa orientação prevaleceu no ensino e na prática de Jacques Lacan desde a inovação do tempo das sessões. Ela prevalece também nos diferentes dispositivos investigativos e clínicos, que inventamos para renovar os poderes da palavra e da interpretação em tratar o inconsciente e o gozo.

Coerentemente com essa orientação, o psicanalista não recua diante dos novos sintomas e das formas inéditas do mal-estar contemporâneo. Sabemos que ao lado dos sintomas clássicos, multiplicam-se, nos dias de hoje, as patologias do excesso, típicas da grande neurose caracterial contemporânea. São as novas identidades ou novos nomes do pai tribalistas: drogaditos, trabalhadores compulsivos, deprimidos, angustiados, compulsivos sexuais, bulímicos, anoréticos e muitos outros. Essas são algumas das modalidades de precariedade simbólica dos traumatizados pelo “excesso de gozo”, isto é, do objeto a em posição de agente. São demandas que desnudam a face mais perversa do Outro contemporâneo. Suas queixas derivam de uma outra face da precariedade simbólica, aquela que confina com o desamparo material e que resulta da profunda desigualdade política, da segregação cultural e social e da exclusão do acesso aos meios de gozo. Somos confrontados, quando acolhemos em análise esses novos sintomas, aos efeitos da ruptura do contrato de direitos e deveres assimétricos entre os cidadãos e o Estado que outrora alicerçava a ficção do Estado moderno. A mundialização do capitalismo, a lógica tirânica da relação custo-benefício nos legou um Estado enfraquecido, manco, endividado, impotente e corrompido. O novo sintoma tem sempre a mesma forma: a da separação entre o sentido e o real. São a prova da inutilidade de endereçar um dizer a um Outro que não existe.

 

…a uma nova aliança com a ciência.

Em “A questão de uma Weltanschäuung”, Freud (1933 [1932]1976) delimita o aspecto mais essencial da inserção da psicanálise no campo da ciência. Não reivindica a identidade de método, nem a submissão às mesmas regras de construção do objeto, ou às mesmas exigências de verificação de suas hipóteses. A regra fundamental não é um protocolo! Inclusive porque todo analista sabe que convidar alguém a dizer tudo que lhe vem à cabeça é um mandamento impossível! Entre outras razões, porque não impede ninguém de mentir! Freud argumenta que a cientificidade da psicanálise se resume à descoberta de que a realidade psíquica, a ilusão, o resíduo da fé em Deus Pai não podem ser eliminadas pela razão. A fé em Deus não pode reduzir-se à convicção intelectual. Deus não é demonstrável! O ato de fé em Deus depende de um ponto lógico indecidível pela razão, uma aposta: Deus existe ou não?

A psicanálise surge nesse intervalo obscuro entre saber e fé. Expulsos do paraíso, padecemos do pecado original: a curiosidade sexual. Foi o desejo de saber que moveu Eva a oferecer a Adão o fruto proibido da árvore da ciência do bem e do mal. Lacan (1965-66/1966), em “La science et la verité”, retoma o desafio de definir a especificidade da psicanálise entre ciência e religião. Ele não define o psicanalista como um cientista entre outros. Ele estabelece uma curiosa equivalência entre os sujeitos do inconsciente e da ciência. O seguinte axioma formula rigorosamente essa articulação: “o sujeito sobre o qual a psicanálise opera não pode ser senão o sujeito da ciência” (Lacan, 1965-66/ 1966, p. 858).

A ciência moderna determina um modo de constituição do sujeito. Esse sujeito se constitui da mesma maneira que os objetos matematizados da ciência: como um sujeito sem qualidades. Na obra de Lacan, o sujeito da ciência é tãosomente uma dedução do pensamento. É uma consequência do discurso da ciência: “Para chamar as coisas pelo seu nome, esta lógica matemática é essencial à existência de vocês, saibam vocês ou não” (Lacan, 2006, p. 35). O sujeito é apenas aquilo que um significante representa para outro significante. Essa estrutura é, portanto, o real. O que a motiva – sua causa – é a convergência em direção a uma impossibilidade: não há um sentido último. O referente dessa estrutura, enquanto um campo da representação, é definitivamente perdido. O que especifica as relações entre saber e gozo, em jogo nessa articulação entre significantes, é que o saber não se sabe. O sujeito do significante não tem representação, ele é o representante da representação. Se o inconsciente é estruturado pela linguagem, o sujeito não está representado nessa estrutura senão como a causa.

Retomo a segunda afirmação de Lacan em “La science et la verité”: “A psicanálise é essencialmente o que reintroduz na consideração científica o Nome do Pai.” (1966, p. 861) Essa afirmação soa como um eco de sua antecedente freudiana: a realidade psíquica, a fé em Deus Pai, é ineliminável pela razão. A tese freudiana ecoa, mais ainda, muito mais tarde, no Seminário XXIII, quando Lacan dirá: “A hipótese do inconsciente, Freud o sublinha, não se sustenta sem o Nome do Pai. Supor o Nome do Pai, por certo, é Deus. É nisto aí que a psicanálise, por triunfar, prova que do Nome do Pai, podemos prescindir com a condição de nos servirmos dele.” ([ 1975-76] 2005, p. 136).

O advento da ciência moderna é correlativo do declínio do mestre antigo. Podemos depreender, especialmente da obra de Koyré, que corresponde à passagem do cosmo fechado ao universo infinito um esvaziamento dos sentidos consolidados pela tradição religiosa. Tudo que até então era tido como real se desmancha no ar. Inverte-se a economia de visibilidade do poder. Michel Foucault salientou que a ostentação hipnótica do poder majestático dá lugar à vigilância panóptica de uma nova microfísica do poder. O poder disciplinar dispensa o uso da sugestão, não precisa do temor a Deus, porque penetra os corpos por meio de técnicas disciplinares, tornando-os dóceis e úteis. O corpo dedicado ao usufruto da vida devém o corpo domesticado a serviço do trabalho e da produção da mais-valia.

Louis Dumont (1983), antropólogo francês, privilegiou em sua leitura do nascimento da modernidade: a separação entre o Estado e a Igreja e a queda do dossel de símbolos sagrados que unificava os domínios econômico, social e político sob a hegemonia da religião. A fé em Deus deixa de ser imposta por seus representantes temporais e torna-se um risco, uma aposta do indivíduo. Nasce o individualismo como um novo princípio do funcionamento social. A experiência subjetiva de desbussolamento na modernidade coordena-se à emergência da ideologia individualista. Enfatiza as conseqüências da fundação do Estado moderno laico, que se apóia na declaração de que todo homem nasce livre e igual, e reduz a fé religiosa a mero assunto de consciência individual. Deus não se encarna mais, no mundo, em seus representantes temporais. Deus será colocado, desde então, fora do mundo.

Quais os efeitos subjetivos dessa exclusão de Deus do mundo? Deus tornouse tão abstrato e desencarnado que podemos presumir que está morto? Se Deus está morto, então tudo é permitido? Lacan ([ 1969-70] 1991, p. 139), na contramão dessa pretensão, argumenta: “Indiquei há tempos que diante da frase do velho pai Karamazov, ‘Se Deus está morto, então tudo é permitido,’ a conclusão que se impõe, no texto da nossa experiência, é que Deus está morto tem como resposta, nada mais é permitido.”

A psicanálise resgata o real, o ato de fé, pois a experiência permite verificar que “todo homem nascido de um pai, sobre o qual dizem que é na medida em que está morto que ele – o homem – não goza daquilo que tem para gozar” (Lacan, [ 1969-70] 1991, p. 143). O advento da ciência tem a conseqüência de suspender o determinismo da crença em Deus. A existência de Deus, desencarnado, fora do mundo, não é mais assegurada pela tradição. Cada um precisa recriá-lo com seu próprio custo. Por essa escolha – Deus existe ou não? – se paga um preço.

A invenção da psicanálise corresponde à reintrodução na consideração científica do Nome do Pai. Se o sujeito da ciência moderna nada quer saber do Nome do Pai, é precisamente porque a invenção da ciência tende a instalar-se como uma nova tradição, promovendo o esquecimento do arbitrário, do acaso, do começo, da novidade da origem. Lacan opõe a ciência no sentido forte, à tradição. A tradição é o esquecimento das origens.

A fundação de Escola de Lacan tem uma afinidade de estrutura como o gesto da ciência. Ela repete a origem, interroga o Nome do Pai, isto é o desejo do fundador da psicanálise, Freud. Ela questiona o escopo de sua principal articulação teórica: o Complexo de Édipo. Ela toma esse mito como um sonho freudiano, algo que tem relação com o desejo “não analisado” de Freud. Enquanto a instituição fundada por Freud se propunha a perpetuar o Nome do seu fundador, transmitindo uma tradição, a transferência com Lacan, no ato de fundação da Escola pretende reviver o gesto inaugural de Freud. Enquanto a identificação ao líder, ao Nome do Pai reduzido ao pai morto – guardião da origem e garantia do laço fraterno –, é o eixo e a base de uma organização como a IPA, a Escola de Lacan estrutura-se em torno do ensino de Lacan, que, nesta época, não é um ensino concluído, mas prossegue (Miller, 1997-98, p. 50). Essa reinvenção permanente testemunha um laço vivo com a ciência.

 

Pai: vivo ou morto?

Acho que o mais essencial, fazendo uma revisão do tema do Nome do Pai em Lacan é isso: pai vivo ou pai morto? Ao longo do seu ensino, o Nome do Pai formaliza o Complexo de Édipo freudiano em três tempos. O NP intervém no imaginário, na relação da mãe com a criança, introduzindo a significação sexual. No primeiro tempo, “a mãe funda o pai como mediador de algo que está além da lei do seu capricho e que é pura e simplesmente a lei como tal, o pai, portanto como Nome do Pai”. É ela quem transmite o Nome do pai como significante de sua falta, de seu desejo. “É como significante capaz de dar um sentido ao desejo da mãe que, a justo título, eu poderia situar o Nome do Pai.” No terceiro tempo, o pai transmite a castração e, desse modo, a mãe fica privada da criança que encontrará na imagem de um outro, onipotente, interditor, aquele que faz a lei do desejo da mãe. É supreendente que em seu último ensino Lacan acentue o papel ativo do desejo do homem por uma mulher que lhe dê filhos. Observem a seguinte fórmula: “um pai não tem direito ao respeito nem ao amor, se o dito amor, o dito respeito, não for, você não vão crer nas suas orelhas, père-(pai) versamente orientado, quer dizer feito de uma mulher, objeto a, que casa seu desejo [ ...] ” (RSI, 21 jan. 1975). O pai n’homeia, isto é, humaniza o desejo, confere peso sexual às palavras.

O complexo edipiano não deve ser considerado como apelo conservador à tradição, mas como o resíduo vivo de um desejo que não seja anônimo, no seio da sociedade liberal, democrática, homogeneizante que sobreveio à revolução francesa. Por essa razão, “o inconsciente é, acima de tudo, a política do psicanalista” (Lacan, [ 1970] 2001, p. 422). O grande R do real lacaniano é também o grande R da revolução francesa. “Que somente a estrutura seja propícia à emergência do Real, a partir do qual se possa se promover uma nova revolução, seja atestado pela Revolução, qualquer que tenha sido o R maiúsculo de que a francesa a proveu.” (Lacan, [1970]2001, p. 422).

Jacques Alain Miller (2003), em “O sobrinho de Lacan”, advoga a tese de que a modernidade conspira contra a poesia, contra a personalidade excepcional do escritor, contra a imoralidade do significante e o infundado do seu poder oracular. A modernidade trabalha para alcançar o equilíbrio, apaga as diferenças, promove a democracia, o nivelamento das desigualdades, a equivalência entre os problemas e sua solução. É uma “era de homens sem qualidades” (Miller, 2004), avaliados permanentemente por meio de critérios quantitativos, de produtividade. É a lei da segurança contra a aventura. Contra essa mentalidade, o autor nos recorda que os psicanalistas lacanianos apostam nos efeitos criadores da repetição. A psicanálise estabeleceu-se sob o fundamento de uma enunciação carismática, a de Freud. Ela resulta de uma conspiração. O que se cristaliza em torno dela é uma barreira ao funcionamento social. Sobre isso, Lacan disse: “Não é a psicanálise que é um sintoma, é o psicanalista.” ([ 1975-76] 2005, p. 135) Acrescenta que “uma mulher é uma ajuda contra o homem”. 5

O psicanalista é uma ajuda sobre a qual podemos dizer que se trata de uma reversão dos termos do Gênesis, pois o Outro do Outro é o que eu acabo de definir, agora mesmo, como esse pequeno buraco aí. Que esse pequeno buraco, sozinho, possa fornecer uma ajuda, é nisso que a hipótese do inconsciente pode dar seu suporte. ([1975- 76]2005, p. 136)

A psicanálise começou com a histeria, e Freud a abordou com os recursos da ciência da natureza perguntado-se sobre a causa, a etiologia da psiconeurose: descortinando a sexualidade como causa. O advento da neurose, forma moderna do mal-estar na civilização, é relativo à exclusão de Deus do mundo e seus efeitos de declínio da função paterna. O pai na modernidade não é pai investido dos poderes de um representante temporal de Deus. Se a histérica se exaure em salvar o pai é porque sabe que ele é castrado, que é um ex-combatente, que não está mais à altura de sua função simbólica.

A histérica eleva, então, o gozo ao absoluto, preferindo o saber ao gozo. Para ela o homem vale como mestre. Mesmo que seja apenas para mostrar a ele aquilo que ele não sabe. Não é que ela se recuse a ser tomada como objeto a, causa do desejo de um homem, mas seu verdadeiro parceiro é o saber, o pai morto (Lacan, [ 1968-69] 2006).

Entre os quatro discursos, Lacan não distinguiu um discurso da ciência. Mas me parece correto afirmar que o discurso da ciência tem uma afinidade de estrutura com o discurso histérico. O mestre não quer saber, ele quer que as coisas andem, funcionem. É o discurso histérico da ciência que se interroga sobre a causa. O discurso da pseudociência atual é cada vez menos o discurso da histérica. A universalização do acesso a universidade tende a reduzir o saber a essa mercadoria, pela qual não se paga o preço de passar por uma interrogação genuína. É o saber ready-made, que não requer de um sujeito, necessariamente, que ele percorra a via singular de acesso a um saber próprio.

As revoltas estudantis durante o mês de maio de 1968 marcam o ponto de inflexão desde o discurso histérico, próprio à ciência, ao discurso universitário. O saber (S2) em lugar de agente faz surgir o novo mestre: o mestre light. Seu único lema: É proibido proibir! Entramos no reino da opção, do poder persuasivo, do império da lógica diet. São 30% de gordura, 30 % de açucar, 30 % de autoridade, 30 % de mestria, igualmente: não mais. Não é que se deva saber tudo, mas devemos tratar tudo pelo saber! O exercício do poder infundado da autoridade tornou-se políticamente incorreto. Hoje, os indivíduos se autorizam dos movimentos sociais. Tornaram-se representantes de interesses de grupo. É o império da consciência de classe!

A nova ética do consumidor nos impõe o direito de tudo dizer, de tudo usufruir, sobretudo não ser privado de nada. O Seminário XVI, estabelecido no ano passado, traz uma releitura do mal-estar na civilização. O imperativo de renúncia ao gozo não é o que parece. Não se trata de dizer não ao gozo, e sim de apostar na multiplicação de suas formas. Lacan redefine a relação do sujeito ao gozo precisando que a entrada da força de trabalho no mercado, conseqüência do capitalismo, é correlativa do surgimento de um sujeito que joga, arrisca o valor da própria vida, na expectativa de ganhar uma infinidade de vidas, infinitamente felizes. O essencial da civilização moderna não é a renuncia ao gozo dos prazeres da vida, e sim o gozo que se acredita poder recuperar sob a forma do lucro, do gozo a mais. O que pesa sobre o sujeito, contemporaneamente, não é a interdição do gozo. É a obrigação de gozar.

 

Retorno ao estruturalismo: não há relação sexual

Em resposta aos acontecimentos de maio de 1968, momento da nossa história recente em que se pretendeu combater todas as formas de autoridade, Lacan redefine, em seu Seminário XVI, a essência da teoria psicanalítica como um discurso sem palavras. É uma resposta forte, firme, em defesa do estruturalismo. Os representantes da autoridade podem ser destituídos, mas a autoridade da estrutura, do significante oracular, da primazia da origem, não podem sofrer o mesmo destino. Contra aqueles que combatiam o estruturalismo e alegavam que a imprevisibilidade dos acontecimentos históricos não pode submeter-se a nenhuma determinação inabalável, Lacan contesta que não se trata de defender uma ideologia, nem de visão de mundo, mas do real. Que real? O da castração. O surgimento da lógica matemática – cuja consistência depende toda ela de um ponto indecidível, um ponto sobre o qual não podemos dizer se é verdadeiro ou falso, e vem mostrar que a ciência moderna inscreve-se sob o axioma: “não há relação sexual”. 6 Não há complementaridade entre os sexos nem igualdade entre as gerações. Todo princípio é arbitrário, ímpar, sem igual. Todo saber dito científico resulta de uma criação ex-nihilo, logo, o fundamento da razão é sempre infundado, é um artifício, um ato.

Se fosse o caso de fazer uma antropologia psicanalítica, bastaria, para refutá-la, recordar algumas verdades constituintes que a psicanálise traz. Elas concernem àqueles sobre os quais o Gênesis diz que “Deus os criou, existe também o criou, homem e mulher.” É preciso partir do fato de que não há relação entre homem e mulher que a castração: a) não determine a título de fantasma a realidade do parceiro em quem ela é impossível, b) sem que ela, a castração, seja uma espécie de retiro que a coloca como a verdade do parceiro a quem ela é poupada. Em um a impossíbilidade da efetuação da castração é determinante de sua realidade, no outro, a pior ameaça possível da castração, é que ela não precisa ocorrer para ser verdadeira (Lacan, [ 1968-69] 2006, p. 12). Ele dirá, muito tempo depois, que:

[ ...] uma mulher é para um homem, um sinthoma. [ ...] No nível do sinthoma não há, portanto, equivalência sexual, quer dizer que há relação. Com efeito, se a não relação advém da equivalência, é na medida em que não há equivalência que estruture a relação. Haverá ao mesmo tempo relação e não relação sexual. Ali onde há relação, é na medida em que sinthoma, quer dizer, que o outro sexo se sustenta no sinthoma. [ Por essa razão,] um homem é para uma mulher, tudo que lhes convier, pior que um sintoma [...] Uma devastação mesmo. ([ 1975-76] 2005, p. 101)

O estruturalismo é compatível com a psicanálise porque leva a sério a divisão do sujeito, pois supõe um saber desconhecido do sujeito, inconsciente, como causa do pensamento. Lacan ([ 1968-69] 2006, p. 17) considera Marx um exemplo do estruturalismo avant la lettre. Para perceber esse fato, basta que nos perguntemos: qual é o objeto do capital? Marx parte da função do mercado. Sua novidade é o lugar onde ele situa o trabalho. Que o trabalho seja comprado, que haja um mercado do trabalho, eis o que permite ao discurso de Marx demonstrar, e que ele chama de mais-valia. Eis porque um discurso é idêntico às condições de sua produção.

A renúncia ao gozo – que define a relação de trabalho – também não é nova. O que Freud (1930 [ 1929 ] 1974, p. 81-178) explicita são as relações entre a renúncia ao gozo e o mal-estar na civilização: quanto mais renunciamos, mas somos impulsionados a renunciar. Lacan vai mostrar a outra face da renúncia ao gozo, o gozo a mais que ele formaliza por meio da função do objeto a. A função deste mais de gozar, que entra em jogo na relação do sujeito ao significante, é a essência do discurso analítico. Eis porque o freudomarxismo apregoava a liberação sexual como antídoto à exploração do homem pelo homem. Eis também porque um marxismo lacaniano deveria pregar, à contrapelo, que do ponto de vista do gozo o sujeito é sempre feliz.

É fácil entender porque o Seminário XVI, de Lacan (1968-69), gira em torno de uma leitura do desafio de Pascal (p. 107-120). Lacan procura formalizar neste seminário o fato de que não há renúncia ao gozo que não se pague com um acréscimo, um mais de gozar. Sua leitura sutil da alma do homem moderno desvenda um cálculo das posições subjetivas em jogo na aposta maior da modernidade: Deus existe ou não? Em torno dessa aposta gira o consentimento à renuncia ao gozo da vida que se tem, para arriscá-lo, e talvez ganhar uma infinidade de vidas, infinitamente felizes. Logo, o fundamento da renúncia ao gozo é nada menos que a disposição que um sujeito demonstra em investir no campo das identificações em busca de uma infinitude de formas de felicidade. O sofrimento neurótico não pode ser separado de sua demanda insaciável de felicidade.

Em nosso campo não há nenhuma harmonia, nenhuma correspondência do sujeito consigo próprio, nenhuma Selbstbewusstsein (Freud, 1925 [1924]1972, p. 17). Os novos imperativos anunciam formas novas de malestar, pois alimentam a expectativa de uma felicidade contra a evidência de que “não há relação entre os sexos”. Na cultura do narcisismo, a recusa do inconsciente impõe ao sujeito a tarefa impossível de “ser si mesmo”. Essa ambição cresce, depois desse momento, juntamente com a redução do saber ao diploma universitário.

Para concluir, retorno ao ponto de partida: penso que Lacan propõe uma definição rigorosa da diferença entre a modernidade e a contemporaneidade. Com a revolução francesa nasce o Real da psicanálise, que é o sujeito da ciência, sujeito sem qualidades. Com o movimento de maio de 1968, o saber se torna uma mercadoria que se compra e que se vende. O saber entrou no mercado e, desde então, circula desvencilhado do real, isto é, do peso da autoridade daquele que o transmite. Podemos falar de uma separação entre a veiculação do saber, e o poder do mestre vivo. Uma nova configuração das relações entre saber e poder, entretanto, se anuncia. O saber desencarnado se propaga graças a uma nova aliança com o poder. Trata-se do poder anônimo, acéfalo da pulsão. Todo um oceano de falsa ciência prospera aí, sobretudo na universidade.

 

Emprestando conseqüências

Toda essa reflexão deve convergir para uma ação. Sob essa nova configuração das relações entre saber e poder, nós nos arriscamos ao introduzir a psicanálise na Universidade Federal do Rio de Janeiro, criando o primeiro programa de pósgraduação em teoria psicanalítica, a sucumbir ao império dos semblantes, esvaziado do real da clínica psicanalítica. Assumimos o risco de ensinar sem transmitir. Assumimos o risco de alimentar o gozo acéfalo do saber desvencilhado da castração.

É fundamental que possamos, agora, desenvolver dispositivos nos programas de pós-graduação em psicanálise para assegurar que a pesquisa tenha como eixo a experiência clínica e, sobretudo, não se dissocie da formação do psicanalista. Se o mais essencial da teoria psicanalítica é que ela é um discurso sem palavras, não se pode transmiti-la como uma filosofia, um sistema de pensamento, uma Weltanschauung.

 

Referências

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Texto recebido em março/2008.
Aprovado para publicação em maio/2008.

 

 

*Doutora em Psicologia Clínica, pós-doutorado no Departamento de Psicanálise de Paris VIII, professora associada do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, coordenadora do Núcleo Sephora de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo, psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, bolsista de Produtividade Científica do CNPq, nível 1C. E-mail: taniacs @openlink.com.br
1De acordo com Freud, trata-se de “uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base numa hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra um lugar fixo” (1933 [1932] 1976, p. 193). Equivale aos termos “visão de mundo” ou “ideologia”, conforme o uso que nos habituamos a fazer dele, pesquisadores-doutores em teoria psicanalítica, em língua portuguesa.
2O Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo surgiu como um desdobramento dessas questões, graças ao financiamento do CNPq. Em 1994, quando o Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica criou o primeiro doutorado nessa área, Luiz Alfredo Garcia Roza, Joel Birman, Anna Carolina Lo Bianco, Teresa Pinheiro receberam bolsas de produtividade científica pela primeira vez. Meus agradecimentos ao CNPq que ainda financia toda essa pesquisa.
3O conceito de mais de gozar tem relação com a mais-valia. Refere-se ao que se lucra graças ao sintoma. Diferentemente, porém, da mais-valia marxista, o ganho sintomático pode se dar sob a forma de mal-estar no corpo e no laço social.
4Tomei certa liberdade de verter o conhecido ditado, There’s no free lunch, de acordo com o uso da língua portuguesa
5De acordo com a tradução da bíblia de André Chouraqui: Deus criou a mulher como uma ajuda contra o homem.
6O axioma “não há relação sexual” pode ser compreendido a partir da dependência dos quatro discursos de um real impossível de definir como verdadeiro ou falso. Deus os criou homem e mulher, diz o Gênesis, mas não definiu qual deve ser a relação entre eles. A ciência, por sua vez, não pode demonstrar seus axiomas, somente as conseqüências que deles decorrem. A experiência psicanalítica também mostra que o inconsciente não dispõe de um significante que represente o sexo feminino. O real impossível de definir como verdadeiro ou falso é o princípio de todo discurso válido logicamente.

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