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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.1 Belo Horizonte jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Corpo, sentidos e coreografias: narrativas de uma festividade na Bahia do século XVIII

 

Body, senses and choreographies: narrations of a festivity in 18th century Bahia

 

Cuerpo, sentidos y coreografías: narrativas de una festividad en Bahia en el siglo XVIII

 

 

Renata de Lima Conde*; Marina MassimiI,**

IUniversidade de São Paulo

 

 


RESUMO

O objetivo desta pesquisa é analisar o papel da coreografia e sua função mobilizadora do dinamismo psíquico de atores e espectadores, em dois relatos de festividade ocorrida em Salvador no século XVIII. Partimos da hipótese de que o caráter aglutinador e integrador da festa pode ser melhor compreendido se levarmos em conta a concepção corporativa da sociabilidade e dos relacionamentos sociais próprios da época. Para tal análise, o objeto escolhido foram dois documentos que descrevem a festa realizada no Brasil, na Bahia, mais especificadamente, em comemoração pelo casamento de Dom Pedro. O primeiro documento foi encontrado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e elaborado pelo Padre Manoel Cerqueira Torres em 1760, na Bahia, tendo o título de Narração panegírica das festividades com que a cidade da Bahia solenizou os felicíssimos desposórios da Princesa Nossa Senhora com o Sereníssimo Infante Dom Pedro.

Palavras-chave: História dos saberes psicológicos, Festas coloniais, Psicologia e cultura.


ABSTRACT

The purpose of this study is to analyze the role of choreography and its function of mobilizing the actors’ and spectators’ psychic dynamism, in two reports about festivities that took place in Salvador, Bahia State, in the 18th century. The study is based on the hypothesis that the agglutinating and integrating character of the festivity can be better understood if the corporative perception of sociability and the social relationships characteristic of that time are taken into consideration. Two documents were selected for the analysis. They describe the festivity that took place in Brazil, more specifically in Bahia, to celebrate Dom Pedro’s wedding. The first document, entitled Panegyric narration of the festivities with which Bahia celebrates the most happy wedding of Princess Our Lady and Serene Infante Dom Pedro, was found in the Rio de Janeiro National Library, and was elaborated by Father Manoel Cerqueira Torres in Bahia in 1760.

Keywords: History of psychological knowledge, Colonial festivities, Psychology and culture.


RESUMEN

El objetivo de esta pesquisa es analizar el papel de la coreografía y su función movilizadora en el dinamismo psíquico de actores y espectadores, en dos relatos de una festividad ocurrida en Salvador en el siglo XVIII. Partimos de la hipótesis de que el carácter aglutinador e integrador de la fiesta puede ser más comprendido si tenemos en cuenta la concepción corporativa de la sociabilidad y de las relaciones sociales propias de la época. Para ese análisis, el objeto escogido fueron dos documentos que describen la fiesta realizada en Brasil, en Bahia, más específicamente, en conmemoración de la boda de Don Pedro. El primer documento fue encontrado en la Biblioteca Nacional de Rio de Janeiro y elaborado por el Padre Manoel Cerqueira Torres en 1760, en Bahia, con el título de Narração panegírica das festividades com que a cidade da Bahia solenizou os felicíssimos desposórios da Princesa Nossa Senhora com o Sereníssimo Infante Dom Pedro.

Palabras-clave: Historia de los saberes psicológicos, Fiestas coloniales, Psicología y cultura.


 

 

No Brasil colonial, nas grandes festas cívicas, realizavam-se vários gêneros de representações artísticas em conformidade ao caráter teatral e espetacular da cultura barroca. Tratava-se de festas em que primava a ostentação da riqueza e da criatividade da sociedade colonial através de manifestações tais como eram as cavalhadas, corridas de touros, jogos e representação de comédias ou tragédias. A importância desses eventos culturais suscita questões acerca de sua finalidade lúdica e persuasiva e acerca de recursos, modalidades, técnicas utilizadas nesta intenção para mobilizar o interesse e a adesão do público.

Nesse âmbito cultural, o objetivo da presente pesquisa é analisar o papel da coreografia e sua função mobilizadora do dinamismo psíquico de atores e espectadores em dois relatos de festividade ocorrida em Salvador, no século XVIII. Partimos da hipótese de que o caráter aglutinador e integrador da festa poderia ser melhor compreendido se levarmos em conta a concepção corporativa da sociabilidade e dos relacionamentos sociais própria da época. A festa como um todo bem como seu desenvolvimento e articulação interna visam nessa perspectiva evidenciar o corpo da sociedade civil em seu conjunto e a coesão dos corpos e entre os corpos internos à mesma. Nessa intenção, utilizaremos também a concepção de corpo exposta pelo teólogo e pregador espanhol Luís de Granada em seus tratados de retórica que foram utilizados, inclusive no Brasil, como manuais normativos para a realização de sermões, celebrações e outros atos envolvendo a arte retórica. Com efeito, Granada foi um dos mais importantes especialistas da retórica e da oratória sagrada da época e seus textos foram modelos de referências amplamente difundidos e seguidos em todo o Ocidente dos séculos XVI ao XVIII (Massimi, 2005).

Para tal análise, o objeto escolhido foram dois documentos que descrevem a festa realizada no Brasil, na Bahia, na ocasião da comemoração pelo casamento de Dom Pedro. O primeiro documento foi encontrado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e elaborado pelo Padre Manoel Cerqueira Torres, em 1760, na Bahia (edição moderna, 1909). Para complementar esta narrativa, foi analisado também outro documento referente ao mesmo acontecimento, a saber, a relação de José Antônio de Sarre (1760), localizado no mesmo acervo. Após a leitura minuciosa dos documentos, foram selecionados os tópicos referentes aos elementos constitutivos da estrutura narrativa da representação e às potências psíquicas que se pretendia evocar conforme interpretação explicitamente sugerida pelos autores dos documentos. Buscou-se compreender esses elementos e termos e conceitos referentes ao psiquismo (citados nos documentos) à luz do contexto cultural da época e seu significado. A função deles na representação do corpo social (“ator” da celebração) foi investigada com base na leitura da concepção de corpo formulada por Granada. A leitura de obras de referência para o entendimento da história da cultura permitiu o aprofundamento do sentido da “representação” nas festas coloniais. Verificouse que a concepção do dinamismo psíquico presente nos documentos é derivada da visão aristotélica e tomista: desse modo, as narrativas foram iluminadas pela leitura de obras da psicologia aristotélica (De Anima e Ética, especialmente).

 

A festa barroca como representação do corpo social

Como dito, as duas narrativas referem-se ao acontecimento da festa celebrada em Salvador na ocasião do casamento da Princesa do Brasil Dona Isabel com o Infante Dom Pedro. Na corte portuguesa, no período dos reinados de Dom João V a Dom Pedro I, a organização das festas era instrumento importante utilizado pela Coroa, de gestão política e de obtenção do consenso ideológico dos súbditos e das Colônias (Carvalho & Souza, 2001). Na ocasião, costumava-se construir grandiosos aparatos efêmeros, inspirados na arte neoclássica e utilizados para significar algo que não estava imediatamente presente de modo material, mas estava presente e vivo na memória. As festas marcaram profundamente a memória coletiva da população brasileira, interrompendo a rotina do tempo comum: iniciavam com uma longa preparação, a partir da convocação oficial realizada pela Corte ou pela Câmara da cidade.

A distribuição de funções e a organização da festa eram realizadas com grande cuidado, numa seqüência semelhante a um ritual que tinha seu fim no término da festa, quando todos voltavam ao tempo ordinário.

Na festa, todos trabalhavam e se divertiam por um bem comum: a própria sociedade concebida como res-pública. Desse modo, tencionava-se apresentar através desses gestos a imagem de uma sociedade bem integrada, e por esse motivo, freqüentemente, utilizavam-se metáforas do mundo da vida simbolizando unidade e integração entre as partes, como o formigueiro e a colméia.

O grande ator dessas festividades era o corpo social (os participantes da festa), o corpo místico (toda a sociedade cristã, formada e alicerçada pelo poder divino) e o corpo político (reis, governadores, câmara e oficiais etc.). Visava-se assim firmar a relação entre governantes e governados (Hansen, 2001). Através da festa, a sociedade civil queria mostrar a força coletiva, sua capacidade organizadora (da festa entendida como símbolo da vida toda), sua dignidade, a presença da realeza no local (mesmo que não juridicamente reconhecida, afirmava-se a realeza da pessoa humana, de grupos, minorias e comunidades, como corporações de trabalho, irmandades, etnias e povos, como no caso do reis do Congo nas congadas, ou dos índios).

Objetivava-se realizar uma celebração perfeita, que seguia uma ordem rígida e perfeita. A intenção era trazer para o local do evento a representação da soberania, do poder central, mesmo que de forma simbólica, firmando vínculos de autoridade, compromisso, fidelidade e lealdade. Tal aproximação imaginativa entre monarcas e vassalos era tida como essencial e visava afastar a impressão muito difundida entre a população brasileira de que a colônia era esquecida ou menosprezada pela metrópole, que a considerava apenas como local de exploração de mão-de-obra escrava e de extração de riqueza material.

Desse modo, um dos objetivos visados pela festa era a obtenção do consenso e o impedimento de possíveis revoltas dos colonos. Para esses fins e para superar a distância geográfica, servia também a elaboração das narrativas da festa contendo descrições pormenorizadas e que podiam ser impressas e difundidas em Portugal, que chegavam a serem lidas pelo rei, agradando-o e conseguindo seu apreço. Portanto, a narrativa escrita era ela também parte integrante da mesma intenção celebrativa que originara e perpassara todo o gesto, desde a concepção e o envolvimento dos participantes, até a execução.

Tal intenção política e celebrativa encontram possibilidade de efetivação pelo próprio sentido cultural da festa na Idade Moderna. Esse sentido implica mobilização do dinamismo psíquico dos participantes, de modo a favorecer envolvimento, adesão, persuasão, modificação das condutas.

Conforme ressaltado por Hansen (2001), na cultura barroca o objetivo da representação é fazer com que os observadores sejam por ela envolvidos e percebam, sintam e entendam o que está sendo representado. Além disso, a representação deve poder ser guardada na memória. Esses efeitos são obtidos provocando a imaginação dos espectadores, de modo a formarem uma imagem interior da realidade representada. O meio para atingir a imaginação é a solicitação dos afetos (conformação afetiva).

Nessa perspectiva, as representações visam evocar o dinamismo anímico dos espectadores, que a concepção psicológica em vigor na época na cultura luso-brasileira dava por formado pela memória, vontade e intelecto. Essas faculdades se integravam hierarquicamente na realização do “bem comum” tanto da pessoa quanto do Estado. Tal integração ocorria através do uso do livre-arbítrio, sendo que a subordinação à hierarquia anímica e política proporcionaria a “tranqüilidade da alma” e a integração do corpo individual ao corpo social, místico e político (Hansen, 2001).

Nas duas narrativas objetos desta pesquisa, a representação é estruturada em formas, figuras e efeitos. Já na coreografia, destacam-se as seguintes componentes: Triunfo, Procissão, Tourada, Cavalarias e Danças. Todas acontecem em seqüência articulada e ordenada para que o conjunto seja ao mesmo tempo formado por partes, cada uma tendo coreografia própria resultando numa forma única e dinâmica, quase como a dança de um corpo em movimento: uma coreografia unitária. Dá-se assim expressão material ao tópico barroco que concebe a sociedade comum corpo único e simultaneamente como integração de corpos diferentes (Zardin, 2000; Hansen, 2001; Boschi, 1986). Hansen nota que o corpo, nesse tipo de festa, assume diversas formas: o corpo do Estado, que é o corpo político; a população unida em uma única fé como corpo místico (o Corpo de Cristo, em muitos casos na forma de Eucaristia); e o corpo pessoal (físico, biológico, anímico e intencional) de cada um dos participantes. Nesse contexto o valor de cada corpo transforma-se, não sendo mais simples corpo individual de cada um e sim figura, representação e parte do Corpo místico e político, não havendo solução de continuidade entre os dois. Desse modo, admoestava-se a todos os destinatários da festa acerca da impossibilidade de um corpo individual negar o poder soberano e, ao mesmo tempo, acerca da possibilidade de cada um elevar-se e participar de tal poder se for unido ao conjunto.

A submissão do povo ao rei acontecia como gesto de transmissão do poder do indivíduo e da sociedade ao soberano por uma aliança estipulada entre as partes, uma vez que o rei representa o povo e este reconhece a autoridade do rei como expressiva de seu próprio ser, segundo a doutrina do pacto de sujeição. A leitura da obra de Luís de Granada ilumina a compreensão desse significado pluridimensional do corpo: Granada retoma a visão platônica do homem-microcosmo que contém em si mesmo todas as propriedades das demais criaturas, tendo sido criado por Deus no sétimo dia como “un summario” de “todo lo que hay en el mundo mayor”. Nessa perspectiva, o corpo humano “es como una breve mapa que aquel soberano Artifice trazó, donde no por figuras, sino por la misma verdad, nos representó cuanto habia en el mundo. [...] Esta mapa es mas pequeña, y familiar, y mas conoscida de nosotros (pues anda en nuestra compañia)” (1945, p. 243). Nessa concepção, fundamenta-se a possibilidade do corpo individual e social expressar em si de modo metafórico a realidade toda, conforme mostram as coreografias e alegorias utilizadas na festa. Tais representações, com efeito, não têm mero caráter ficcional, mas apresentam uma realidade que pela sua própria natureza sacramental (vide Pecora, 1994, 2001) contém em potência o todo no fragmento (Iori, 1998).

Cabe aqui observar que inclusive nas festas já citadas promovidas e realizadas no Brasil pelos jesuítas, concebidas como parte importante de sua ação missionária, o objetivo era participativo e integrava o processo de formação da sociedade colonial entendida como “corpo social cristão”, associando índios, portugueses e africanos. Dentre os testemunhos da ocorrência dessas celebrações desde os inícios da época colonial, podemos citar os relatos de Leonardo do Vale e de Anchieta – nas Cartas Anuas a Cláudio Acquaviva e ao jesuíta Fernão Cardim, que em sua narrativa descreve as danças indígenas e portuguesas nas festas promovidas com o intento de evidenciar a participação de todas as componentes do corpo social pelos missionários (Luz, 2001).

 

Os componentes da representação

Nos relatos da festa aqui analisados, o corpo social é o ator de uma representação que se articula numa coreografia de conjunto da qual pertencem vários corpos (tais como: o clero, a Câmara, as corporações dos ofícios, as irmandades, as etnias), os quais, por sua vez, criam e realizam suas próprias coreografias. As imagens e os símbolos dos oragos carregados em andores, ou em bandeiras, fazem parte também desta composição: trata-se de elementos representativos da natureza mística e transcendente e, ao mesmo tempo, imanente daquele corpo; componente invisível, mas que se faz visível na própria coesão física, social e religiosa do corpo social. Para que os participantes possam ter consciência da presença e ação do divino em seu meio, a corporeificação do poder sobrenatural na imagem material de estátuas e símbolos resulta ser um essencial instrumento pedagógico e persuasivo.

A apresentação desse conjunto é qualificada pela ordem: era “bem ordenada” a apresentação das várias corporações e irmandades, cuidadosamente organizada em antecedência pela Câmara que distribuíra papéis e lugar de cada um no conjunto; assim como a seqüência das imagens dos oragos desfilava segundo uma norma teologicamente definida e socialmente estabelecida: em primeiro lugar, o Sacramento Eucarístico apresentação de Deus encarnado; depois a estátua de Nossa Senhora do Pilar e a seguir, as dos santos padroeiros: “conservada, porém à ordem de suas preferências”: Santa Ana, Santo Antônio, São Pedro, Nossa Senhora da Conceição da Praia, as irmandades da freguesia da Sé. Essa ordem era proposta aos espectadores para que o público, em primeiro lugar, enxergasse o todo, a movimentação, a coreografia; depois os destaques, as máquinas alegóricas; e então os participantes, os personagens; para a seguir visualizar os detalhes, roupas, jóias, enfeites, os materiais; e ouvir as palavras, os signos verbais, de modo que, enfim, todos tivessem suas potências psíquicas ativadas, seus sentidos e suas emoções evocadas, seu entendimento solicitado para compreender tudo o que estava acontecendo e sua vontade mobilizada para aderir a ele.

A coreografia do conjunto apresentando uma hierarquia ordenada de funções articulava-se por volta de dois símbolos: a cruz, símbolo religioso, e a vara branca, símbolo do poder político. Cada corpo de funções e ofícios exibiase nas danças particulares num conjunto, esse também ordenado hierarquicamente, apresentando assim um corpo formado por elementos criativos e dinâmicos, mas também súbditos dos dois poderes representados pela Cruz e a Vara. O desfile das irmandades diante do clero evidencia a importância prioritária atribuída a elas. A presença no desfile do andor com a imagem do orago de cada irmandade estava a significar que os santos também integravam este corpo, ao mesmo tempo, visível e invisível, materializado no presente e enraizado no passado. O seu centro não era apenas um símbolo e sim o sacramento eucarístico, fundamento real e encoberto daquela unidade.

O objetivo visado por essa coreografia é explicitado pelo narrador: “O Reverendo Cabido tomou a sua conta fazer uma festa em tudo solene, e uma procissão que fosse juntamente um triunfo, em que desempenhasse a mesma grandeza” (Torres, 1909, p. 2). O “triunfo” é uma forma de homenagem que surgiu no Império Romano para honrar os imperadores que voltavam de uma batalha vitoriosa, envolvendo o desfile dos vencedores por entre arcos (os famosos “arcos do triunfo”), entre outras manifestações de grandiosidade. O Renascimento retomara esta tradição destinando-a para celebrações especiais. Na narrativa, o autor escolheu tal palavra para referir-se a este gênero de evento. A disposição coreográfica do conjunto é o resultado, por um lado, de uma tradição celebrativa já codificada e, por outro, de um processo preparatório, este também normatizado de modo preciso, conforme o documento.

 

As máquinas

As máquinas utilizadas na celebração são alguns carros alegóricos e um chafariz efêmero. Na narrativa explicita-se o sentido da presença destes aparatos: a ostentação da riqueza e do poder, e também a evocação de sensações prazerosas. Por exemplo, o vigário da Conceição da Praia destacou-se pela generosidade com que concorreu com as despesas à “magnificência deste agro com que lhe pertencia, fazendo colocar a Imagem da Senhora da Conceição com um majestoso carro coberto de sedas as mais primorosas, que pela diversidade das cores [...] ofereciam aos olhos delicioso objeto” (Torres, 1909, p. 3). Cada irmandade desfila acompanhada por um carro carregando a imagem do orago.

 

Os aparados efêmeros

Um aparato efêmero embeleza a catedral: o cabido incumbira o arquiteto Paulo Franco da Silva de criar o ornado da catedral que se “admirou a riqueza e o artifício”: no centro havia um “trono que estava iluminado com muitas velas, cujas luzes faziam refletir as de muitos ramalhetes prateados, que o aformoseavam”. Evidenciavam-se um “um majestoso Crucifixo, e Cruz de prata, muitos castiçais do mesmo metal”. Além do mais, “todas as janelas das tribunas assim na capela-mor como em todo o corpo da igreja estavam ornadas com cortinados de damasco carmesim, pendendo dos balaústres de cada uma ricas colchas do mesmo”. A decoração do arco da capela-mor destacava-se por “opulência nas telas, nos volantes, galões, e franjas de ouro, e outras preciosidades, pendendo deste arco” (Torres, 1909, p. 2). No arco da capelamor evidenciava-se uma “elegante proporção das cores” do material utilizado na decoração. As capelas colaterais também eram ricas “no ornato e formosura, todas majestosamente armadas, e iluminadas com muitas luzes” (Torres, 1909, p. 2). O aparado incluía as roupas diferenciadas pelos tecidos e cores e os preciosos paramentos dos participantes.

 

As personagens

As personagens são os atores principais da coreografia. Os membros do corpo social e religioso se apresentam no conjunto de seus respetivos grupos de pertença dispostos em ordem hierárquica. São eles: as irmandades, as congregações religiosas, as corporações de ofícios, os chefes das instituições política e religiosa, e o povo em seus diversos estados sociais. Na disposição dos assentos, as vagas são distribuídas segundo uma ordem marcada pela presença do livro sagrado (o evangelho): em destaque, o governador, a seguir os desembargadores e o senado da câmara. O narrador esclarece que essa forma segue uma tradição “sempre praticada nesta catedral em semelhantes ocasiões” (Torres, 1909, p. 2). São listadas também as congregações religiosas presentes na celebração e também a participação de “todo o clero, a nobreza, e povo em copiosíssimo número”. Seguiam na procissão, os cônegos, e dentre eles o pregador do sermão destinado a imortalizar com palavras aquela especial ocasião. Em sucessão, procediam as irmandades de todas as freguesias e no fim de cada uma o clero que lhes pertencia e o carro ou andor com a imagem do orago correspondente acompanhado pelo pároco vestido com uma capa especialmente rica.

 

As imagens

A narrativa se detém na descrição em pormenores das imagens que eram levadas por cada irmandade: aos pés da primeira imagem, Nossa Senhora da Conceição, iam dois figurantes como “anjos custosa e curiosamente vestidos”, os quais “levavam nas mãos dois emblemas da Conceição em graça da Mãe de Deus” (Sarre, 1760, p. 1). Os emblemas eram recursos retóricos comuns na época: tratava-se de formas alegóricas compostas por um “corpo” (imagem) e por uma “alma” (discurso), cujo uso público tinha finalidade político-moral (Hansen, 2006). A imagem é descrita como “tão perfeita que parece animada” – efeito correspondente à preceptística da arte sagrada pós tridentina, segundo a qual a imagem devia evocar a presença real do ser representado. Segundo Paleotti ([ 1582] 2002), nas imagens devem ser considerados três aspectos: a matéria de sua composição; a forma dada à matéria pelo artista e o resultado da união entre matéria e forma, que “definimos propriamente como a imagem enquanto representa uma coisa real à qual ela assemelha-se” (Paleotti, 2002, p. 96). Desse modo, “não nos referimos mais somente à obra, à matéria e à figura, e sim ao objeto representado pela imagem e a este volvemos nossa atenção”. As imagens tornam-se assim “atos de uma representação” (Paleotti, 2002, p. 97). O efeito descrito na narrativa de Sarre, portanto, na qual a perfeição da obra artística simula a realidade de modo admirável, possibilita aos espectadores esta experiência de aproximação com o apresentado real, ou seja, a própria pessoa real de Nossa Senhora e dos Santos padroeiros das irmandades.

 

As alegorias

“Com vários gêneros de figuras fizeram tão jocosas representações que geralmente alegrarão a todos.” (Sarre, 1760, p. 2) As representações lúdicas incluem figuras alegóricas dentre seus atores, bem como maquinas alegóricas para a realização de determinados efeitos. A alegoria era empregada na Idade Moderna como recurso para a tradução e transmissão de conteúdos filosóficos, religiosos e políticos: dispositivo que opera uma tradução figurada de um sentido cultural determinado e também produto da invenção e do engenho de seus criadores, em muitos casos artistas e arquitetos.

Dois grandiosos carros alegóricos representam o espaço (os continentes do mundo) e o tempo (as estações da natureza). No primeiro, figuram: a “Europa sentada em um touro ricamente vestida á trágica com coroa imperial e cetro”; a “América sentada em um pássaro de varias cores, coroada de galantes e vistosas penas cingidas das mesmas com arco e flecha em mão e alijava de setas ao ombro” a “África sentada em um leão vestida á mourisca e no alto do tocado uma bem posta meia lua e finalmente a Ásia ricamente vestida sentada em um elefante”. Nos quatro cantos do segundo carro, “iam quatro figuras em trajes de homens vestidos á trágica, a primeira era a figura do verão, a segunda do estio, a terceira do outono e a ultima do inverno” (Sarre, 1760, p. 10).

A representação dos continentes e dos climas é um lugar-comum dos tratados de iconologia, como o de Ripa ([ 1618] 1992), tratado muito utilizado para a invenção das festas barrocas, inclusive no Brasil (Hansen, 2001). No caso da nossa festa, a invenção parece ter obedecido magistralmente às dicas de Ripa: como ele mesmo comenta, à figura da Europa pertencem elementos simbólicos do poder e da riqueza: “A coroa que carrega na cabeça serve para mostrar que a Europa sempre foi superior e Rainha do mundo inteiro” (1992, p. 295). A Ásia é caracterizada pela elegância das roupas e ornamentos, por ser uma cultura refinada cujos povos costumam utilizar jóias e ornamentos preciosos. A representação da África fornecida no tratado de Ripa, porém, é bastante diferente da que comparece no relato da festa baiana: a África de Ripa é caraterizada pela nudez, pela pobreza e pela presença de animais selvagens; a ênfase na tradição moura que é presente no carro alegórico baiano talvez devase à relevância desta tradição no domínio cultural ibero-lusitano e brasileiro. A representação da América é bastante semelhante.

Quanto ao segundo carro alegórico, nos tratados de iconologia, a figura do verão é qualificada pela juventude, vestida de amarelo, cor quente (evocando o calor climático) e o amadurecimento dos frutos. O outono é figurado por uma mulher madura e gora ricamente vestida. O inverno é caracterizado pela velhice, pela cor cinzenta evocando frio e melancolia. A primavera é jovem e jocosa. Outros elementos decorativos e simbólicos importantes comparecem nestes dois carros: uma pirâmide e um chafariz lançando água (Sarre, 1760, p. 10). Na Iconologia de Ripa, a pirâmide – monumento fúnebre dos faraós – evoca a antiga civilização egípcia, remetendo à dimensão histórica da civilização humana que desafia a morte e o passar do tempo pelos seus empreendimentos e obras. O chafariz lançando a água representa também grandeza, já que faz alusão ao mar, pelo qual Portugal exerceu seu domínio. Algumas figuras alegóricas completam a representação: dentre elas, “a fama ornada a mil maravilhas, com azas, tocando um clarim, com escudo no braço com esta letra fama volat” (Sarre, 1760, p. 10). A fama é uma figura recorrente na Idade Moderna, e a sua representação corresponde à descrição de Ripa (1992, p. 124): asas e movimento para indicar a rapidez de seu passar, trompa (ou clarim) para significar sua manifestação clamorosa.

 

As danças e os espetáculos

As duas narrativas analisadas referem-se a vários tipos de danças realizadas no âmbito da festa: minuetos, contradanças, mouriscas. O minueto é uma figura presente nos bailes de corte na tradição européia; a contradança é dança de pares (-a-, ou, do inglês, country dance); as mouriscas são danças possivelmente criadas pelos cruzados, ou vinda de antigas danças célticas (ligadas à tradição da Morris Dance) (Monteiro, 2001). As narrativas descrevem também danças de ofícios representando as corporações. A presença do escravo, do índio, do mulato e do negro nas danças faz do evento um momento de administração das forças sociais em tensão, reafirmando posições sociais e concretizando “no plano espetacular e simbólico a missão atribuída a Portugal por Deus” (Monteiro, 2001, p. 821). Enquanto na Europa tende-se a desteatralizar a dança, no Brasil a participação de toda a população dá ao baile a aparência de um teatro. Aqui, a dança se fez presente já no primeiro contato feito entre os portugueses e os nativos das terras brasileiras relatado na carta de Caminha, e no período colonial realizavam-se as folias de origem portuguesa rural e bailados escolares (Tinhorão, 2000). A dança comparecia nas procissões mais solenes (como a de Corpus Christi, a maior e mais famosa festa da época) e acompanhava todas as festividades do início ao fim, dos dias de preparação ao último momento. No século XVII, o padre jesuíta Claude-Françóis Ménestrier, compositor e autor de Des Ballets Anciens et Modernes selon les Règles du Théâtre (1682) destaca, no âmbito das culturas espanhola e portuguesa, a presença dos balés em todas as festas, profanas ou religiosas: “até mesmo nas cerimônias mais santas [...] na igreja e nas mais sérias e graves procissões” (citado em Luz, 2001, p. 812). Na América portuguesa colonial, as relações das festas referem-se à ocorrência da dança, evidenciando a incorporação da dança européia influenciada e alterada pela dança dos nativos, tendo sido este meio expressivo uma modalidade importante de integração entre colonizados e colonizadores.

A narrativa de Torres detém-se na descrição dos acontecimentos espetaculares que juntamente às cerimônias religiosas compunham a festa: as tradicionais touradas cujos atores “toureador a cavalo e vaqueiros” eram “vestidos á mourisca” (Torres, 1909, p. 10), e as “cavalarias” organizadas pelos “senhores de engenho” (Torres, 1909, p. 9), que “vestidos á mourisca em soberbos e briosos cavalos” enfileirados, se apresentaram e “fizeram uma bem concertada e vistosa escaramuça”. As corporações de ofícios entraram em cena com danças representando aspectos de seu trabalho. Os marinheiros trajados com “bombachos carmesim, vestes brancas floreadas de encarnado com cintos de veludo da mesma cor” (Torres, 1909, p. 3), uma vez realizada uma dança de abertura fizeram “pela praça entrar um navio que com as velas largas parecia, que navegava com ventos em poupa, seguindo-se uma bem ensaiada e vistosíssima contradança de doze figuras trajadas a inglesa”. Os ferreiros em sua apresentação evocavam a origem mitológica de seu ofício: a dança constava de duas figuras, “em uma se representava Hércules vestido á trágica, na outra, a Hidra de sete cabeças. Ao som de bem temperados instrumentos dançava a primeira figura que o compasso ia cortando as cabeças da Hidra, e porque de novo outras nasciam as ia também decepando até a matar.” (Torres, 1909, p.6) O narrador comenta que “agradou o invento, por se ver representada ao vivo a fábula que fingem os poetas deste famoso herói” (idem). A dança mais rica é a dos ourives: “entrou pela praça uma virtuosíssima contradança de doze figuras primorosamente trajadas” e “duas ninfas vestidas a mil maravilhas com salvas de prata cheias de flores” que “com alegras vozes alternamente cantaram”. O canto a capella era seguido por uma dança de “treze figuras trajadas de bombachos carmesim, vestes brancas fincadas de encarnado com cintos de veludo da mesma cor”, que mascaradas dançaram a dança “vulgarmente chamada de Chafariz”. A seguir, “ofereceram estas quatro danças, a primeira que vulgarmente se chama do espadeiro, a segunda da passara, a terceira das ciganas, e a quarta das mouriscas” (Torres, 1909, p. 4). Por fim, “ao som de harmoniosos instrumentos dançaram algumas fanas comuns com toadas e modas da terra”. Os alfaiates, cujos trajes evocavam as tarefas dos ofícios, realizaram a “dança da aranha”: “uma virtuosíssima dança de doze figuras com uma aranha pintada, que tinha a denominação de dança da aranha”. A coreografia da dança terminava com a morte da aranha. Seguiram-se as danças dos sapateiros, dos tanoeiros, dos correres, dos carpinteiros (Torres, 1909, p. 3). Não apenas os trabalhadores como também a terceira idade participam da festa, de modo que “no fim do dia teve uma dança engraçada de treze velhinhos vestidos de brancos e bastões, cada um deles repetindo uma obra poética e por fim dançando” (Torres, 1909, p. 10). As diversas raças componentes do corpo social da colônia são representadas: em primeiro lugar, os ciganos e depois, os pretos que “em ambas as tardes foram à praça com muitas divertidíssimas danças, todas primorosíssimas pela opulência com que iam trajadas quanto pelas idéias das mesmas danças” (Torres, 1909, p. 11). Além de corporações e raças, algumas figuras alegóricas também entram na dança: “os três meninos não menos primorosamente vestidos saíram representando o primeiro a figura do prazer, o segundo do encômio, e o terceiro do aplauso espalhando flores” (Torres, 1909, p. 3). Vale aqui diferenciar imagem de alegoria: a imagem representa alguém, ao passo de que a alegoria representa algo (por exemplo: uma idéia, uma virtude, um sentimento).

A narrativa explicita o objetivo das danças como um todo, ao evidenciar as capacidades do engenho que concebe a “idéia” do espetáculo, visando atingir os apetites e suscitar a admiração racional: “pelas ruas não se ouviam se não músicos instrumentos com diversíssimas danças que admirando pelo modo, suspendiam pelas estupendas farsas que idearam; certamente nem tinha o gosto mais que apetecer nem o juízo mais que admirar” (Torres, 1909, p. 1).

 

A evocação das potências psíquicas

Na festa, há a construção de um universo representativo destinado a aguçar as potências psíquicas do ser humano: sensações, emoções e entendimentos, inspirada na concepção psicológica própria da filosofia aristotélica-tomista, segundo a qual a alma se estrutura em alma vegetativa (comum às plantas, animais e seres humanos), alma sensitiva (comum aos animais e seres humanos) e alma intelectiva ou racional (exclusiva dos seres humanos). Visto isso, as almas vegetativas, sensitivas e intelectivas são atingidas pela ação da festa.

A alma sensitiva responsável pelo conhecimento sensível, o apetite e o movimento, possui como primeira função a sensação. As faculdades sensitivas não estão em ato e sim em potência, isto é, são capazes de receber sensações. Portanto, a capacidade de sentir só é percebida quando em relação ao objeto sensorial: a sensação é tornar-se semelhante ao sensível. As narrativas da festa baiana evidenciam que a alma sensitiva é aguçada, já que todo o aparato da festa visa causar boas sensações. Dessa forma, despende-se atenção para utilizar objetos e detalhes que façam brilhar os olhos, salivar a boca, dilatar narinas e tímpanos e acariciar a pele. São luzes que enfeitam o olhar, músicas que agradam os ouvidos, banquetes que deliciam o paladar, flores que exalam perfumes que entorpecem o olfato e roupas, materiais e tecidos que pinicam e massageiam a pele, aguçando o tato dos participantes da grande festa. Já analisamos nos dois textos a descrição dos artifícios usados para a evocação de tais sensações.

A visão é despertada pela presença das luzes, cuja importância é evidenciada já no decreto de convocação promulgado pelo Governador, que “ordenou que todos iluminassem as suas janelas com vistosas e brilhantes luminárias” (Sarre, 1760, p. 1). Os moradores obedecem à ordem de maneira tão eficaz que “as estrelas do céu pareciam luminárias da terra, e as luminárias da terra afetaram ser estrelas do firmamento”. A inversão retórica da narrativa de Sarre põe em evidência que o efeito da luz foi uma espécie de recriação do mundo, apagando-se pela luz, as diferenças entre mundo terreno e mundo celeste, de modo que um abrisse acesso ao outro. Este efeito manifesta a eficácia e a criatividade da intervenção do engenho humano, pois “lhes foi preciso pela tenebrosidade da noite mandar alumiar com fachas e archotes todo o terreiro que ficou por isso tão lustroso, que lhe não fizera falta os brilhantes resplendores do sol” (Sarre, 1760, p. 9). Os efeitos dos sofisticados jogos de luz proporcionam diferentes sensações (prazer, alegria, tristeza, espanto, maravilha): “lisonjearam o gosto no brilhante de suas luzes”, “despertavam o contento dos que viam que subindo com alegres faíscas, desciam com tristes lagrimas”. Ao pegarem fogo, as candeias de pólvora “encendendo-se os morteiros e girândolas com violentos ímpetos punham em graciosa desordem as figuras que rodeando no mais alto do aéreo elemento com, a claridade das chamas que delas saiam e com o estrondo que faziam” (Sarre, 1760, p. 11). As cores também são utilizadas com o mesmo objetivo. Em vários momentos, os textos se referem à variedade das cores dos vestidos e enfeites e aos efeitos sensoriais suscitados: admiração, por exemplo: “O rico das galas, o primor dos vestidos, as variedade das cores, se não suspendia, a certo é que admirava.” (Sarre, 1760, p. 2) O efeito da variedade cromática aumenta à medida que adquire caráter dinâmico integrando o movimento da dança e à medida que se emprega uma “elegante proporção das cores” no material utilizado na decoração (Torres, 1909, p. 1).

O paladar é estimulado no banquete composto de deliciosos manjares; o olfato é estimulado pelo emprego de cheiros agradáveis: “Iam quatro meninos [...] lançando para o povo dos palanques flores, globos de fino barro dourado com flores cheirosas.” (Sarre, 1760, p. 10)

Em relação à audição, a narrativa registra repetidamente a presença do som (como música instrumental, repiques dos sinos, ruídos, barulhos, cantos etc.). Torres ressalta, no toque dos sinos da cidade, o efeito de mobilizar o psiquismo dos ouvintes: “os sagrados bronzes ferindo o ar estimularam afetos mais festivos sendo os ouvidos a respeito dos repiques os ductos porque as almas se enchiam de espécie, que lhes ocasionavam darem repetidas graças a Deus por tanta felicidade” (Torres, 1909, p. 1). A inspiração na psicologia filosófica aristotélica tomista se faz evidente nesta referência à teoria das espécies presente na explicação do narrador. O som é destinado a despertar prazer e infundir sentimentos da alegria: “pelas ruas não se ouviam senão músicos instrumentos [...] ; certamente nem tinha o gosto mais que apetecer nem o juízo mais que admirar. [...] Os repiques dos sinos de todas as igrejas infundiam nova alegria (Sarre, 1760, p. 1). O som é utilizado também na celebração litúrgica: “Houve uma missa solene com musica.” O apelo ao sentido do ouvido é recorrente: no início da noite “principiou a deliciosissima serenata formada e completa de afinados instrumentos, e concertadas vozes”: o afino dos instrumentos e a sintonia das vozes proporciona uma “tão plena e ajustada a harmonia” que o narrador compara à música mítica de Orfeu e que é capaz de “mover os mesmos irracionais e insensíveis às mais reverentes cortesias” (Sarre, 1760, p. 5). Mais uma vez, é enfatizado o poder persuasivo da música através da mobilização do dinamismo sensorial dos ouvintes: “a sonora musica finalizou esta egrégia função com os mesmos vivas que principiara”. O narrador frisa que “admiração grande causou” a combinação de estímulos auditivos com estímulos visuais quando “ao som das trombetas, charamelas, trompas, atabaques começaram a correr os foguetes soltos pelo ar dando muitas ocasiões de riso, pois pretendendo voar sem azas, ícaros desgraçados, se precipitavam da maior altura”. E completa que, ao mesmo tempo, as salvas da artilharia “despertavam as atenções dos circunstantes para afirmarem ser regia a festa” e “abriram muitas bombas, que não deixaram de divertir com o seu festivo estrondo (Sarre, 1760, p. 10).

Todos os sentidos dos participantes são atingidos no objetivo de despertar sua atenção. Segundo Aristóteles, da sensação nasce também o apetite, já que este é o desejo do agradável, e é aquela que proporciona o prazer ou a dor. Por sua vez, o movimento deriva do apetite, já que é o desejo por algo que impulsiona o ser a locomover-se até o objeto desejado. Além das sensações, outras potências psíquicas evocadas são as emoções. Estas, segundo a filosofia aristotélico-tomista em vigor na época, eram inerentes ao apetite intelectivo, sendo próprias do ser humano.

Nos textos, os trechos nos quais se descrevem as vivências de emoções são vários: afirma-se que o dia da festa “foi um dos mais alegres que gozou a Bahia”; que o tempo do dia festivo parecia “aprazível, alegre e risonho” (Sarre, 1760, p. 2); que as representações alegóricas “alegrarão a todos”, que a execução musical da banda e as danças deixaram a todos “sobre satisfeitos, admirados” (Sarre, 1760, p. 4). A sonata proporcionou aos ouvintes “recreios aos ânimos, que achando nelas que admirar, se mostraram sempre desejosos de lhes assistir” (Sarre, 1760, p. 5). “Contentamento”, “agrado”, “riso”, são evidenciados pelo narrador.

Na intenção dos proponentes, as potências psíquicas a serem atingidas pelo acontecimento festivo são: o juízo e a deliberação. O ato intelectivo é um receber e assimilar as formas inteligíveis contidas em potência nas sensações e nas imagens da fantasia e que devem ser traduzidas em ato. Através de símbolos, alegorias e coreografias, trajes, cores e músicas, o entendimento de cada um pode apreender a ordem subjacente, suas normas e rumos, e dar-lhe seu consentimento. Na alma intelectiva, encontram-se as potências psíquicas capazes de proporcionar esta vivência. Nos documentos analisados, alguns trechos referem-se à atuação da potência intelectiva: todas as evocações da festa “nos estimulavam a fazer demonstrações gratas e plausíveis pela celebração de tão desejado himênio” (Torres, 1909, p. 20) e “lhes ocasionavam darem repetidas graças a Deus por tanta felicidade” (p. 1). Ou ainda “indeciso o juízo mais aquilino ficou dúbio a favor da qual sentenciaria a primazia” (Sarre, 1760, p. 5). Para alcançar a persuasão, é muito útil também o recurso à palavra, como quando, por exemplo, o pregador durante o sermão proferido na igreja, “discorre angelicamente” (Torres, 1909, p. 2) sobre o significado daquele evento.

Se, conforme Aristóteles, todas as ações do homem buscam um fim, mas todas elas em conjunto buscam um fim último, um bem supremo, a felicidade, é a este ideal que o entendimento e a vontade deve ser orientada. A perfeição da alma racional é chamada por Aristóteles de virtude dianoética e tem dois dinamismos em sua relação com o mundo: o de voltar-se para o mundo propriamente dito e para as coisas mundanas (sabedoria); e o de olhar para as verdades supremas e necessárias (sapiência). Na celebração da festa, o objeto celebrado (o poder régio e o corpo social da cidade) é parte da ordem mundana (sabedoria), mas sinaliza também a ordem transcendente (a graça divina que Supremo Garante da ordem humana concede ao soberano o poder e une o povo entre si e ao rei). Desse modo, tem-se uma transição constante entre o invisível e o visível. O que se apresenta são estímulos sensoriais e movimento de corpos e máquinas, mas o que se vivência são sensações, sentimentos, pensamentos e posicionamentos que de alguma forma realizam em cada um e no corpo social os efeitos políticos, culturais e religiosos visados.

Todas as potências psíquicas dos presentes são mobilizadas pela apresentação do Corpo protagonista da festa: mobilização visando captar adesão e integração. Cada um assim torna-se parte deste organismo material, anímico e espiritual que é a sociedade barroca.

 

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Texto recebido em outubro/2007.
Aprovado para publicação em março/2008.

 

 

*Bolsista de Iniciação Científica Departamento de Psicologia e Educação-Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto. E-mail: renata_conde2006@hotmail.com
**Professora associada FFCLRP-USP. E-mail: mmassimi3@yahoo.com

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