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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.1 Belo Horizonte jun. 2008

 

SEÇÃO ABERTA

 

Resenha

 

 

Guilherme Massara Rocha*

Universidade Federal de Minas Gerais

 

 

FRANÇA NETO, Oswaldo. (2007) Freud e a sublimação – arte, ciência, amor e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 215 p.

(Freud and sublimation – art, science, love and politics)

(Freud y la sublimación – arte, ciencia, amor y política)

 

“Tendo a aproximar a prática analítica com o trabalho do artista, e não com a do cientista. De qualquer forma, arte ou ciência, ambas estão no campo da sublimação, o que colocaria o trabalho do analista dentro dos seus domínios.” Assumir francamente uma posição, num debate teórico-clínico marcado pela diversidade de leituras e interpretações do arrojado conceito freudiano de sublimação, eis alguma coisa que o autor da presente obra não recua em empreender, mas não sem antes levar a cabo um complexo e variado exame da questão.

Arte, ciência, amor e política são os “procedimentos genéricos” que Oswaldo França Neto extrai das formulações ontológicas de Alain Badiou, e que têm em comum o fato de não serem pensáveis sem tomar em consideração o sujeito do inconsciente. O “processo sublimatório”, cuja complexidade o autor da presente obra persegue em seus determinismos e em suas aporias, recebe em certo momento uma definição que parece justificar sua vinculação, para fins de esclarecimento, ao exame dos procedimentos genéricos supramencionados: “um sujeito sustentando uma singularidade frente a um universal que deve se manter necessariamente marcado por uma falta”. A sublimação, como sugere o autor, é menos um estado, uma condição anímica que permite calcular uma posição subjetiva do que um “movimento”, um circuito estabelecido a partir das vicissitudes da experiência pulsional, cujos efeitos podem ser verificados nos campos que fornecem à obra seu subtítulo: arte, ciência, amor e política. O fato de que, em sua démarche, Oswaldo França Neto reserve mais fôlego para o exame dos três primeiros procedimentos pode sugerir, por um lado, suas predileções epistêmicas e, por outro, a complexidade inerente à investigação psicanalítica da experiência política sobre a qual, lembrese, Freud ele mesmo praticamente silenciou.

O primeiro capítulo, “Discutindo com Freud”, é o mais extenso e reservado a uma exposição da metapsicologia da sublimação que privilegia as fraturas da compreensão linear do conceito, assim como as ambigüidades e contradições que marcam sua formulação em diferentes momentos da obra de Freud. Mas o refinamento da investigação do autor é aquele de quem relê Freud com o auxílio de Lacan, a quem, diga-se de passagem, devem ser creditados os méritos de ter levado adiante, e de forma absolutamente original, a elucidação do regime de interpolação entre arte e psicanálise. Oswaldo França Neto demonstra, por exemplo, em que medida uma das mais canônicas definições da sublimação na obra de Lacan – a elevação do objeto à dignidade da coisa – está fundada no esforço de Freud em resolver os impasses que tornavam o processo sublimatório em alguma medida superposto ao fenômeno imaginário da idealização do objeto. Ao contornar o objeto, a pulsão retorna ao eu uma imagem cujo signo concerne parcialmente à restauração de seu regime de identidade, narcisicamente estabelecido. Eis o vetor próprio à idealização. Mas acontece que, nesse mesmo movimento, retorna também uma opacidade do objeto, ou como prefere o autor, “um furo” na imagem do objeto que, ao desestabilizar a fortaleza do eu, remeteo a sua clivagem constitutiva. Aqui, é o sujeito que se constitui por referência ao vazio da Coisa. O autor sublinha, com isso, que a sublimação visa “restaurar” ao objeto sua dignidade perdida de Coisa. “Dignidade essa”, lembra ainda Oswaldo França Neto, “que na verdade ele nunca teve.”

Após um percurso conceptual em que o autor demonstra sua desenvoltura no trabalho com teses de Freud e Lacan, um novo e instigante desdobramento do estatuto da sublimação é formulado. Oswaldo França Neto reabilita a contraposição que Freud mesmo empreendia entre o sintoma e a sublimação, mas para relativizar a freqüente interpretação de que a sublimação seria, por assim dizer, uma alternativa bem-sucedida aos conflitos que se expressam, patologicamente, nos sintomas neuróticos. Afirma o autor que “a sublimação seria esse percurso, a tentativa de fazer o sólido (corpo) virar abstração (significante). E o sintoma, enquanto corpo, estaria lá como referência básica, como aquilo que resiste, que nos pontua o limite do que se pode sublimar.” Em seu prefácio à obra, Célio Garcia vai observar que a sublimação consiste numa “tentativa de fazer com que um excesso deixe de ser um excesso”. Um excesso, contudo, cujo resto inassimilável se condensa na irredutibilidade da experiência do sintoma, como afere Oswaldo França Neto, mas também na arte. Garcia vai insistir que “o produto do trabalho artístico é um resto do processo criativo, signo da falha da sublimação”. Como se pode observar, o percurso do livro tem como um de seus efeitos distintivos uma desimaginarização do processo sublimatório e de seus resultados. Ao leitor motivado por esclarecimentos suplementares a essa questão, vale conferir, sobretudo, o tratamento que França Neto dispensa, em diferentes partes da obra, à investigação lacaniana do tema do amor cortês. Lá ele fornece indicações precisas dos limites da sublimação e das especificidades de modos de gozo das quais ela é susceptível.

O capítulo que encerra a primeira parte do livro toma por objeto um tema pouco freqüente nos estudos sobre a sublimação, a despeito de sua importância. Discutem-se ali as diferentes formas de situar a especificidade da sublimação nas distintas estruturas clínicas, mais especificamente na psicose e na perversão. Aqui, novamente, Oswaldo França Neto procura discernir aspectos específicos do processo sublimatório num terreno distinto daquele da neurose. Esse que se tornou, por assim dizer, seu lugar-comum.

Freud e a sublimação é um livro prenhe em recursos tomados de empréstimo à lógica e à filosofia. Mas que, longe de apontarem para um gozo da pseudoerudição – infelizmente tão comum na literatura psicanalítica – aparecem bem inseridos no corpo do texto, fornecendo estofo e demonstrabilidade às teses que o autor mobiliza. O livro é redigido num estilo conciso, sintético, e suas proposições usualmente antecipam ao leitor as conclusões de que se fazem veículo. De posse delas, acompanhar o argumento se torna ocasião para o exame de sua legitimidade e também para seus modos de verificação. A episteme de Oswaldo França Neto contempla ainda um recurso calculado às referências e citações. O autor as mobiliza na justa medida da necessidade de fundamentar origem e natureza das proposições que examina e, em boa parte das ocorrências, assumindo o risco de dizê-las à sua própria maneira. Pontualmente, o leitor poderá se indagar acerca dos fundamentos de determinadas teses que, uma vez mobilizadas, servem menos à exposição de sua legitimidade própria do que aos propósitos de fundamentar argumentos que o autor visa desenvolver. É o caso, por exemplo, do empréstimo que Lacan faz de uma proposição da Crítica da faculdade de julgar, de Kant, e que Oswaldo França Neto utiliza para discutir a “estética” perversa. Um leitor kantiano poderia reivindicar um recurso direto à obra de Kant, motivado, sobretudo, pela notoriedade com que Lacan se servia de proposições filosóficas sem muito compromisso com o valor de verdade do qual tais proposições eram dotadas em seu território original. Mas o raciocínio veloz e a démarche programática de Oswaldo França Neto – manifestos no todo de uma obra complexa e multifacetada, mas que visivelmente obedece a um plano calculado de exposição – parecem confiar na desconfiança do leitor, deixando para este a tarefa de cotejamento que porventura se faça necessária.

A segunda parte de Freud e a sublimação é reservada ao exame dos procedimentos genéricos. De forma original, o autor nos indica que a tensão entre arte e ciência, ambas relativas aos protocolos da sublimação, pode encontrar um parâmetro de distinção se considerarmos que “na arte, a letra se constitui na conjunção do espectador com a obra de arte”, enquanto que no discurso da ciência “seria como se a letra fosse dada a priori”. Ao sugerir, portanto, que à arte subjaz um protocolo de constituição de letras, e que isso a distingue da ciência – devotada a promover o “desdobramento de letras já dadas a priori” –, Oswaldo França Neto fornece uma interessante ferramenta de tratamento para o conceito de sublimação que, nos quadros de um retorno a Freud, por exemplo, auxilia na elucidação dos fundamentos metapsicológicos da análise de Leonardo da Vinci. Sujeito este que percorria simultaneamente as vias da arte e da ciência de uma maneira que Freud não se cansa de indagar. França Neto acrescenta ainda, quanto a essa distinção, que cada obra produzida ao longo da carreira de um artista “é um fragmento finito de uma investigação infinita”. Se a sublimação é, então, um conceito que enoda os procedimentos da arte e da ciência, pode-se dizer, com o autor, que isso ocorre na medida em que o fenômeno da investigação se faz estruturante em ambos.

Finalmente, a obra de Oswaldo França Neto – resultado de uma pesquisa de doutorado em psicanálise realizada na Universidade Federal do Rio de Janeiro – tem ainda algo a ensinar acerca do fenômeno do amor e sua relação com a sublimação. Sendo este, talvez, o ponto de maior força expressiva do livro. Para além da “escolástica do amor infeliz”, essa feliz expressão com que o autor resume a fatalidade trágica do amor cortês, Oswaldo França Neto escrutina uma dimensão do amor em que a sublimação viabilize algo da inscrição do gozo (a “aventura do pensamento” que é constitutiva da dimensão poética do amor), mesmo que advertida de seus limites. Escreve o autor: “é necessário ao amor, em consonância com a sublimação, uma parcela de satisfação sexual direta”. Nessa amálgama em que sublimação e gozo se mesclam em proporções jamais definíveis de antemão, importa insistir nos limites daquilo que se inscreve sob a forma de um saber. Oswaldo França Neto chama a atenção do leitor para esse ponto brindando-o, ainda, com seu próprio verso de homenagem à aventura amorosa. Uma frase, que advém em meio a sofisticadas formulações metapsicológicas: o amor “não é uma fatalidade, mas algo que se inventa a dois”.

Os leitores de Freud e a sublimação – aos quais essa resenha não pode legar senão uma pálida imagem de sua riqueza – certamente encontrarão ali, nos esforços investigativos de Oswaldo França Neto, o benefício de uma transmissão. Arte, ciência, amor e política são significantes que o autor engenhosamente aproxima para deles extrair, com o exame da sublimação, um solo comum na experiência humana.

 

 

*Psicanalista e professor do Departamento de Psicologia da UFMG. E-mail: gmassara@uai.com.br

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